Acessibilidade / Reportar erro

As Teorias do Desenvolvimento Moral e o Ensmo Médico: uma Reflexão Pedagógica Centrada na Autonomia do Educando

Theories of Moral Development and Medical Education: a Pedagogical Proposal Focused on the Student's Autonomy

RESUMO

A questão do ensino de ética nas profissões da área da saúde está longe de ser adequadamente equacionada. Em última análise, as dúvidas perpassam diferentes instâncias, desde a indagação profunda sobre a natureza da ética até o questionamento sobre a possibilidade e melhor forma de ensiná­la. Não se propondo responder estas perguntas -talvez esforço para toda uma vida -, este artigo trata de uma sumária contextualização do desenvolvimento moral a partir da teoria do desenvolvimento sociomoral de Elliot Turiel, numa reflexão sobre a possibilidade de efetivar práticas pedagógicas ancoradas em tais pressupostos, aliada a uma conccpçiio de educação que situa o professor como um facilitador da autonomia do educando, por meio da discus.c;ào de questões éticas entre estudantes de medicina.

Palavras-chave:
Educação Médica; Desenvolvimento Moral; Estudantes de Medicina; Ética

Abstract:

The issue of teaching ethics to the health professions is far from being adequately settled. In the final analysis, the doubts permeate various areas, from deep inquiry into the nature of ethics to the questioning about the possibility of teaching the subject and the best way to do so. Although it is beyond the scope of this article to answer these questions -perhaps an entire life's endeavor - the authors briefly contextualize the moral development based on Elliot Turel's theory of sociomoral development, in a reflection on the possibility of implementing teaching practices grounded in such premises, together with a concept of education that situates the professor as a facilitator for the student's autonomy by means of the discussion of ethical issues among medical students.

Key-words:
Education, Medical; Moral Development; Srudents, Medical; Ethics

INTRODUÇÃO

“Homem algum poderá reveler-vos senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso entedimento. O mestre que caminha à sombra do temple, rodeado de discípulos, não dá de sua sabedoria, mas sim de sua fé e de sua ternura. Se ele for verdadeiramente sábio, não vos conduzirá a entrar na mansão de seu saber, mas vos convidará antes ao limiar de vossa própria mente.” Gibran Khalil Gibran

O debate sobre a "natureza" e a possibilidade de ensino da ética remonta à Antigüidad e. Platão, filósofo grego que se dedicou sobremaneira a este assunto, inicia um de seus mais importantes diálogos, o Mênon, com as seguintes questões: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é coisa que se ensina, mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se adquire pelo exercício nem coisa que se aprende,mas algo que advém nos homens por natureza ou por alguma outra maneira?11. Platão M. Texto estabelecido e anotado por John Burnet. [Tradução de Maura Iglesias]. Rio de Janeiro: Editora da PUC-Rio, Edições Loyola; 2001. (Passo 70 a).. Dois mil e quinhentos anos se passaram sem que estes problemas, recolocados das mais diferen tes maneiras por autores subseqüentes, pudessem ser solucionados.

No século 20, a arcaica controvérsia sobre o ensino de ética recebeu novos e vívidos contornos, graças principalmente às teorias psicológicas do desenvolvimento moral22. Rego STA. Teoria do desenvolvimento moral de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. ln: Rego STA. A formação ética do médico: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 75-102.), (33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15.. Merecem destaque neste panorama os trabalhos de: (1) Jean Piaget, para o qual o julgamento e o comportamento morais dependem do desenvolvimento cognitivo que, numa perspectiva inte racionista, consiste na construção de estruturas cognitivas, que se tornam mais complexas, dependendo da qualidade das interações com o ambiente44. Piaget J. Le jugement moral chez l'enfant. Paris (FR): Z. Alcan; 1932.. (2) Laurence Kohlberg, que compreendeu a evolução da consciência moral pressupondo uma "passagem" progressiva e irreversível por seis diferentes estágios dispostos em três níveis de julgamento moral (pré-convencional, convencional e pós-convencional), numa perspectiva linear e universal do desenvolvimento moral, sendo eles:

(a) orientação para a punição e a obediência, (b) hedonismo instrumental relativista, (c) moralidade de aprovação e relações interpessoais, (d) orientação pela lei e pela ordem, (e) orientação para o contrato social e (f) princípios universais de consciência, avaliáveis por meio da escala de julgamento moral por ele construída55. Kohlberg L. Moral stages and moralization: the cognitive development approach. ln: Lickona (ed.) Moral development behavior. New York (US): Holt, Rinehart and Winston; 1976.; e (3) Elliot Turiel, que propôs uma teoria dos Domínios de Conhecimento Social66. Turiel E. The development of concepts of social structure: social convention. ln: Glick J & Larke-Stewart A (Eds.) The development of social understanding. New York: Gardner Press; 1978. p. 25-108., concebidos como estruturas sociocognitivas que se organizam (se coordenam e/ou se subordinam entre si). Pode-se afirmar que uma grand e contribuição da teoria de Turiel neste campo foi a importância dada "às formas como os seres humanos organizam e desenvolvem o conhecimento derivado das interações sociais"33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15.. Ao invés de apresentar uma proposta linear, esse autor sugere que padrõesde julgamento variam segundo situações (prototípicas e não-prototípicas) e contextos, por exigirem formas distintas de organização (coordenação e/ou subordinação entre os diferentes domínios). Sua proposta, calcada numa perspectiva construtivista complexa, não-linear, consistiu, portanto, numa crítica aberta à proposta de Kohlberg.

Turiel admite qu e o conhecimento social e moral dos indivíduos provém de suas interações com o ambiente e com a cultura onde aspectos psicológicos são considerados no domínio pessoal (prerrogativas pessoais), mas sem que se possa desconsiderar o grande alcance das interferências da cultura em relação ao domínio convencional e moral66. Turiel E. The development of concepts of social structure: social convention. ln: Glick J & Larke-Stewart A (Eds.) The development of social understanding. New York: Gardner Press; 1978. p. 25-108.. Os julgamentos morais resultariam de reorganizações sucessivas dos conteúdos, valores, em torno dos diferen tes domíniosde conhecimento, em oposição à mera expansão ou acúmulo de conteúdos. Um princípio de organização, tal como postulado numa das teses referentes à construção do conhecimento da teoria piagetiana77. García R. O conhecimento em construção. Porto Alegre (RS): Artmed; 2002., fornece uma basecompreensiva à ques tão de como evolui o desenvolvimento moral, a qual é passível de extensão à teoria de Turiel. A ênfase dos pressupostos de Turiel recai sobre a distinção entre os domínios de conhecimento aos quaisse vinculam os julgamentos morais e não na estrita classificação destes em estágios, como propôs Kohlberg.

Pode-se estender princípios cognitivistas à abordagem de Turiel também pelo reconhecimento da existência de um arcabouço psicológico e pelo valor dado às interações no contexto sociocultural, resultando em processos de reorganização sucessiva. Tais processos são comparáveis ao de equilibração da teoria piagetiana88. Nunes DC, Carraro L, Jou GT. As crianças e o conceito de morte. Psicol reflex crit. 1998; 11 (3): 579-590.. Esta reflexão revela possibilidades de ampliar a discussão do desenvolvimento moral e do ensino da ética na formação médica. A sólida base cognitivista e interacionista do legado de Piaget - a qual influenciou um número expressivo de teorias aplicáveis ao campo da educação - aponta para um sujeito cuja estrutura cognitiva se desenvolve por meio de constantes e sucessivas interações (experiências com o meio), que resultam em buscas pelo equilíbrio e organização, as quais convergem para novas formas de se relacionar e coordenar suas ações no mundo. Piaget ressalta a importância des tes componentes e das interações entre estes e o meio cultural para a evolução cognitiva e social, entende ndo o desenvolvimento moral inserido nestas dimensões88. Nunes DC, Carraro L, Jou GT. As crianças e o conceito de morte. Psicol reflex crit. 1998; 11 (3): 579-590..

É também a teoria psicogenética de Piaget - concepção que nutre os trabalhos de Turiel - que compreende a evolução cognitiva a partir das profundas interaçõessociais, as quais disponibilizam "ferramentas" (conteúdos) auxiliares na tarefa de construção de conceitos explicativos do mundo. Tal processo se dá no nível das estruturas cognitivas88. Nunes DC, Carraro L, Jou GT. As crianças e o conceito de morte. Psicol reflex crit. 1998; 11 (3): 579-590.), (99. Piaget J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar; 1976.. As interações oportunizam a aquisição de novos referenciais, a construção de conceitos, exigindo reorganização das estruturas, numa equilibração progressiva - sendo esta a forma pela qual o indivíduo lida com as diversas situações, na tentativa de compreendê-las. Assim, os conhecimentos são organizados em sistemas integrados de ações ou crenças, numa passagem constante de um estado de equilíbrio para um estado de desequilíbrio, resultando num equilíbrio superior, de modo a interagir com mais eficiência em seu ambiente social99. Piaget J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar; 1976.), (1010. Bruner J. Culture and human development: a new look. Hum Dev. 1990; 33: 344-355.. Na dimensão do desenvolvimento moral, considera-se que mudanças cognitivas ocorrem também a partir do processo de organização exigido pelas interações sociais, o que permite pensar sobre recursos pedagógicos que visem à promoção das capacidades do juízo moral na formação médica, como ora se propõe.

A ampliação do repertório cognitivo leva à percepção da existência de outras pessoas e à colocação de si mesmo como um indivíduo entre os demais. A socialização do pensamento, apontad a por Piaget como um dos objetivos do desenvolvimento, revela a import ância do contexto social na construção do conhecimento e do juízo moral99. Piaget J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar; 1976.. Estar diante de outros, como indivíduo em interação, exige uma organização cognitiva de si e do mundo1111. Costa CRBSF. A formação da atitude interdisciplinar dos professores do Instituto de Ciências e Letras e Fílculdade de Educação da Universidade do Amazonas. [Dissertação] Manaus (AM): Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Amazonas; 1999.. Interação e organização cognitiva são, pois, dotados de força motivadora para todo o processo de evolução do sujeito, incluindo-se aí sua formação profissional.

Esta abordagem construtivista é extremamente fecunda para o enfrentamento das questões relativas à formação moral. Assim, pois, teorias como a da Aprendizagem Social por Imitação de Modelos, proposta por Albert Bandura - baseada em fundamentos behavioristas no processo de aquisição e desempenho-, não oferecem suporte consistente a uma proposta pedagógica que privilegie a capacidade de autodeterminação do sujeito como resultado de um processo educativo1111. Costa CRBSF. A formação da atitude interdisciplinar dos professores do Instituto de Ciências e Letras e Fílculdade de Educação da Universidade do Amazonas. [Dissertação] Manaus (AM): Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Amazonas; 1999.. Limitações também se manifestam nas elaborações teóricas que dão ênfase aos princípios dinâmicos da ordem do inconsciente para fund ame nta r os julgamentos e ações mo­ rais - como preconizam as teorias psicanalíticas12 - , sob pena de deslocar o centro da reflexão, esmaecendo assim a possibilidade de conceber a educação profissional e o sujeito como construtores de um projeto de desenvolvimento moral, que tem como alvo a dimensão da autonomia.

A opção constru tivista da presente reflexão justifica-se, igualmente, pelo próprio mote em questão: a formação profissional. De fato, a apreensão subjetiva e coletiva do mundo, a ser incontestavelmente considerada na educação médica, abriga cognições, crenças e valores acerca do profissional médico, com sentidos compartilhados, frutos de um legado histórico das representações desse ator no coletivo, encarnadas em séculos de "evolução". Neste horizonte, não se pode duvidar de que, tradicionalmente, o repertório ético da medicina ocidental remonta a Hipócrates de Cós1313. Laín Entralgo P. La Medicina Hipocrática. Madrid (ES): Alianza Editorial; 1987.), (1414. Siqueira-Batista R. Deuses e homens. Mito, filosofia e medicina na Grécia antiga. São Paulo: Landy; 2003., de limitando­ se um nítido cunho paternalista no seu fazer1515. Almeida JLT, Schramm FR. Transição paradigmática, metamorfose da ética médica e emergência da bioética? Cad Saúde Pública. 1999; 15 (supl. 1): 15-25. Nestas veredas cristalizaram-se, por exemplo, expressões do tipo "o medico sempre sabe o que há de melhor para seu paciente", que refletem o alcance do poder deste profissional - em relação às melhores decisõesa serem tomadas - frente aos enfermos. Entretanto, mormente nos últimos 50anos,os avanços da ciência médica, as novas concepções da filosofia moral, as decisões emanadas pelos tribunais de justiça no âmbito da medicina e a descaracterização da tradicional relação médico-paciente combaliram a "aura" paternalista do médico, alterando a inserção social da profissão1616. Rego STA. Desprofissionalização ou reprofissionalização: um paralelo entre a advocacia e a medicina. Rev Assoc Med Bras. 1994; 40(3): 211-5.. Uma outra realidade se constituiu, sem que seus novos horizontes tenham sido devidamente considerados no processo de formação médica, ainda que alguns esforços venham sendo feitos neste sentido22. Rego STA. Teoria do desenvolvimento moral de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. ln: Rego STA. A formação ética do médico: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 75-102.), (1717. Rego STA, Schramm FR, Sayd JD. Percepção de estudan­tes de medicina sobre questões éticas em situações de ensino-aprendizagem. 6°. Congresso Mundial de Bicética; 2002; Brasília (DF). 30out.-03nov.; Anais. p. 75-75.. Assim, reatualizar as "velhas" perg untas sob re a natureza da virtude e a possibilidade de seu ensino mostra-se não apenas desejável, mas também altamente necessário para um melhor delineamento do profissional médico que se deseja formar1818. Brasil. Ministério de Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES Nu 4, de 7 de novembro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de novembro de 2001. Seção 1, p. 38..

Com a utilização de determinad as metodologias pedagógicas-resolução de conflitos morais qu e impliquem o maior número possível de domínios -, podem se ampliar os recursos cognitivos necessários às escolhas éticas na vida profissional, a partir do reconhecimento dos diferentes domínios nas decisões morais. Portanto, é preciso refletir sobre as possibilidades de efetivamente promover uma educação no sentido de formar sujeitos autônomos, capazes de tomar decisões -julga mentos e ações éticas - por meio da própria exposição ao conflito cognitivo. Tais possibilidades devem abranger as dife rentes dimensões do conhecimento que o educando possui acerca do real, do estar no mundo, de sua ação e implicações da mesma no aspecto relacional. Delinear, sumariamente, tal constructo é o escopo deste artigo.

PAIDÉIA E AUTONOMIA

Antes de abordar especificamente a teoria de Turiel, é necessário explicitar a concepção de educação que perpassa o presente trabalho. Ainda que os termos educação e educar possam abrigar tantos significados a ponto de não circunscreverem um processo específico, há propostas que apontam a educação formativa como um processo que envolve intervenção em vidas humanas, bem como o ensinar. Neste aspecto se inserem Morais1919. Morais R. Violência e educação. Campinas (SP): Papirus; 1995. e Freire2020. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003., na medida em que ambos concordam que ensinar não remete à transferência de conhecimentos, mas sim ao ato de criar possibilidades no processo pedagógico que levem o educando à sua própria produção e construção2020. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003.. Essa idéia distingue-se da inculcação de conteúdos preconizados pelos métodos tradicionais -ainda maciçamente presentes na educação em todos os níveis-, sendo defendida por Freire como rigorosidade metódica que visa "reforçar a capacidade crítica do aluno, sua curiosidade e sua insubmissão"2020. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003.), (2121. Freire P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra ; 2001.), (2222. Freire P. Conscientização. Teoria e prática da libertílção. São Paulo: Centauro; 2001.. Insistir dessa forma com aquele que aprende -levando-o a aproximar-se do objeto criticamente, depurando-o - remonta ao método socrático de "amparo" ao educando, tornando­o um "parturiente" de idéias e conhecimentos, na mais genuína concepção de maiêutica2323. Pessanha JAM. Sócrates - vida e obra. São Paulo: Nova Cultural; 2000. (Os Pensadores). Neste panorama se inscreve a abrangência do ideal grego de paidevia (paidéia)2424. Jaeger W. Paidéia: a formação do homem grego. [Tradução de Artur M. Parreira]. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes; 1995., termo que pode ser traduzido por educação2525. Melo JAC, Schramm FR. Educação: razão e paixão. In: Melo JAC. Educação, razão e paixão. Rio de Janeiro: ENSP­FIOCRUZ; 1993., no sentido mais amplo de formação dos seres humanos, participação na vida e no crescimento da sociedade -estruturação interna e desenvolvimento espiritual -e constituição da própria condição de humanidade1 1 Trabalho realizado na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz, no Núcleo de Estudos em Filosofia e Saúde (Nefisa), Fundação Educacional Serra dos Órgãos e na Faculdade de Educação Universidade Federal do Amazonas. . Ensinar, portanto, não se esgota na apresentação ou no simples tratamento do objeto ou do conteúdo, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível, transformando-se num exercício de autonomia2020. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003..

Compreendendo educação como uma forma de intervenção no mundo, levanta-se a questão da intencionalidade da prática pedagógica, a qual não deve ser entendida em uma reflexão superficial em contraposição à questão da neutralidade do professor quanto à transmissão de seus próprios valores -conteúdos morais -aos educandos. A intencionalidade não se refere, nesta concepção, a uma direção dos conteúdos a serem assimilados. Se assim fosse, nada haveria, nesta proposta, que levasse ao exercício da autonomia do sujeito. Como na definição de Morais:

"será educador (…) aquele capaz de alcançar a sutileza de distinguir a fronteira complexa que separa intervenção e invasão".1919. Morais R. Violência e educação. Campinas (SP): Papirus; 1995.

Assim, pois, refletir

"(…) profunda e corajosamente, sobre as intenções de [suas] ações, sobre os princípios teóricos que orientam [sua] atividade docente. Definir[-se] teoricamente, ou seja, pensar sobre qual(is) teoria(s) embasa(m) [o] trabalho[...] contribui para clarear [as] concepções, levando a seguir com mais firmeza na direção desejada, conscientemente escolhida"2626. Cavalcante LIP. A Docência em questão. Amazônida. Revista do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas; 2002; 2(1) 37-46.

são formas de explicitar intencionalidade e clarificar fronteiras no ensino para a autonomia2626. Cavalcante LIP. A Docência em questão. Amazônida. Revista do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas; 2002; 2(1) 37-46..

Ensinar exige respeito à autonomia do sei e do saber do educando -reflexão crítica sobre a prática-, supernndo o mero treinamento técnico que caracteriza em especial algumas formações. Embora a ênfase na autonomia possa sugerir um "descolamento" da coletividade, cabe destaque à teoria do desenvolvimento do juízo moral de Jean Piaget, quando este vincula a descentração do indivíduo às mais complexas formas de compreensão e formulação das "regras de jogos". Ademais, é pressuposto para as discussões acerca da autonomia a inscrição do sujeito em coordenadas sociais, caracterizando a impossibilidade de se constituir um nomos particular -próprio -a partir do nada, uma vez que a tomada de decisões só é levada a cabo no âmbito de fios condutores socialmente determinados -ou seja, a liberdade irrestrita é uma ilusão, haja vista todo o ''enredamento" cultural no qual o homem se encontra imerso2727. Schramm FM. A autonomia difícil. Bicética 1998; 6(1 ):27-37.), (2828. Kottow M. Ensenando las paradojas de la autonomía. Rev Bras Educ. Med 2000; 24(3):40-45.), (2929. Siqueira-Batista R, Schramm FR. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia. Cienc Saúde Coletiva. 2004; 9(1):31-41.. Deste modo, aquele que aprende se torna mais apto a conduzir-se autonomamente quando inserido em processos mais elaborados de interação e interdependência grupal44. Piaget J. Le jugement moral chez l'enfant. Paris (FR): Z. Alcan; 1932.. Assim, a autonomia moral desejada não consiste na recusa da coletividade, mas em profunda e complexa vivência do sujeito em seus meandros e na sua interseção com a sociedade.

Nesta perspectiva, considerando a relevância e a pertinência de pensar o ensino da ética na formação médica, aliada às possibilidades de reflexão que a teoria de desenvolvimento sociomoral de Turiel permite -como alicerce de uma práxis pedagógica que privilegie a autonomia e, simultaneamente, a interação e interdependência grupal, o que por vezes é conflitivo2727. Schramm FM. A autonomia difícil. Bicética 1998; 6(1 ):27-37.), (3030. Kottow M, Schramm FR. Desarrollo moral en bioética: ,eta­pas, esquemas e ámbitos morales? Rev Bras Educ Med . 2001; 26(2): 25-31.), (3131. Schramm FR. Contribuição da bioética e da comunicação na educação médica. Rev Bras Educ Med . 2001; 26(2): 15-24. -, segue uma síntese dos referenciais teóricos que poderão orientar atividades pedagógicas que possibilitem, com base na exposição de conflitos cognitivos, interação social, visando à promoção de mudanças na dimensão individual -formação de médicos autônomos, orientados para a dimensão ética do exercício profissional -para além da mera aquisição das "normas" éticas reconhecidas e estabelecidas no Código para a profissão.

A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO SOCIOMORAL DE ELLIOT TURIEL E A FORMAÇÃO ÉTICA DO MÉDICO: INTERSEÇÕES

O ensino da moral -ou ainda, a promoção do desenvolvimento do juízo moral -pode ser considerado um processo que visa à construção de comportamentos socialmente dirigidos. A formação médica, assim como a das demais profissões, pressupõe um princípio educativo (no sentido do ex ducere), implicando, assim, mudanças amplas que incluam uma forma diferenciada de pensar, agir e sentir. Por certo, as inúmeras críticas dirigidas aos modelos "tecnicistas" de formação derivam do fato de estes se restringirem à aquisição do conteúdo formal dos currículos médicos, não originando, muitas vezes, mudanças mais profundas, em face do contexto de ação3232. Silva Santos S. A integração dos ciclos básico e profissio­nal no curso de graduação em medicina: um exemplo de resistência. [Dissertação] Petrópolis (RJ): Programa de Pós­graduação em Educação, Universidade Católica de Petrópolis; 2003.. O ensino do Código de Ética Profissional, apresentado como "conteúdo" obrigatório da formação, não alcança o propósito de levar o futuro profissional a um exercício de sua autonomia diante das situações com as quais lidará.

O processo de equilibração-desequilibração proposto na base da teoria de Piaget representa um movimento que possibilita novos arranjos na relação do sujeito no mundo3737. Davis C, Rappapport CR, Fiori WR. Teorias do desenvolvimento. São Paulo: E.P.U.; 2003. Volume 1.. Quanto ao ensino da ética na formação médica, é possível inferir que a própria construção - no sentido cognitivo - do ser médico, no âmbito dos valores e das práticas que integram essa profissão, depende de sucessivos processos de integração de novos conhecimentos sociais, que passarão a constituir os esquemas antes existentes e que serão a base - necessária mas não suficiente - para os novos esquemas que surgirão ao longo dos processos futuros de equilibração e desequilibração em face dos desafios profissionais. Entre os desafios a enfrentar, mobilizando estruturas em sucessivos processos de equilibração e desequilibração, encontram-se as situações que exigem julgamento e tomada de decisão, as quais nem sempre são justificadas pelo seu autor-médico em questão - como resultado de uma ação reflexiva e autônoma. Tal é o espaço no qual as teorias de desenvolvimento moral podem contribuir para a busca de uma formação que favoreça posicionamentos éticos derivados de maior exercício da auto­nomia nas ações dos futuros profissionais.

Ainda que Kohlberg tenha proposto uma abordagem em que os mais elevados níveis da escala evolutiva indicassem sujeitos cuja moral pós-convencional estivesse calcada em princípios de autonomia e justiça, é na fixidez do rumo do desenvolvimento proposto (irreversibilidade dos estágios) e no interesse maior na classificação do estágio moral em que se encontram as pessoas que mais se detém o autor. A perspectiva de centrar a discussão educacional no âmbito da ação social - ou seja, na possibilidade de, por meio da educação moral, produzir modificações no âmbito da atuação profissional do médico - e não no julgamento do estágio evolutivo (moral) no qual se encontra o indivíduo justifica, pois, o embasamento nos pressupostos teóricos de Turiel, uma vez que ele não propõe uma progressão irreversível no julgamento moral33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15., como postulado por Kohlberg. Isto permite considerar as muitas formas pelas quais podem ser empreendidas ações morais, e, com isso, vislumbrar a possibilidade de uma formação que contemple escolhas morais pautadas, de forma mais consistente, na autonomia do sujeito.

Elliot Turiel não se ocupou necessariamente da ética, ainda que tenha permitido, por meio de suas formulações, que discípulos seus, como Clary Milnitsky-Sapiro, pudessem avançar nesta direção, ampliando as possibilidades de enriquecimento do debate no campo da formação ética a partir da teoria dos Domínios do Conhecimento Social3333. Milnitsky-Sapiro C. Desenvolvimento sócio-moral e aspectos culturais do parentesco. Psicol teor pesqui. 1996;12(1 ):71-82.. É com base no referencial teórico de Turiel e Milnitsky-Sapiro que se pode conceber a conduta moral e a competência ética como decorrências do desenvolvimento biossociocognitivo3333. Milnitsky-Sapiro C. Desenvolvimento sócio-moral e aspectos culturais do parentesco. Psicol teor pesqui. 1996;12(1 ):71-82. do indivíduo em seu processo de interação cultural33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15.. Como já dito, a proposta de Turiel se distancia daquelas que supõem uma linearidade no desenvolvimento. Ao contrário, enfatiza as interações sociais numa perspectiva de construção, resultando nas formas de organizaçiio e desenvolvimento do conhecimento que cada um possui acerca de seu universo cultural de modo relativamente singular. Daí entender-se quando ele chama atenção para as formas como o conhecimento social é organizado. Cada situação ou contexto pode sugerir a um dado indivíduo um modo específico de se situar, na perspectiva do desenvolvimento sociomoral. Obviamente, o modo específico e singular de se inserir no mundo resulta de processos cognitivos que ocorrem mediante interações do sujeito com o seu ambiente. A especificidade e a singularidade possíveis nas decisões que deságuam em reflexões de cunho moral não implicam ausência de interações. Ao contrário, é o agrupamento de conceitos, a elaboração de teorias - sendo testadas, refutadas ou adotadas no decorrer da história sócio-afetivo-cognitiva dos indivíduos que se constroem a partir das interações sociais - que acaba por constituir os domínios do conhecimento social. Deste modo, se o conhecimento social ocorre no processo das interações sociais estabelecidas no âmbito da cultura, para que se possa entender uma cultura e seus sistemas sociais, é necessário analisar concomitantemente os processos cognitivos de seus membros33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15..

Os domínios de conhecimento resultantes do processo de interação são identificados por Turiel como três: o domínio pessoal, que consiste na área circunscrita a ações cujas conseqüências dizem respeito apenas ao sujeito, sem gerar prejuízo ou injustiça à ordem pública ou a terceiros; o domínio convencional, representando a região correspondente às normas reguladoras das relações entre o indivíduo e o grupo social; e o domínio moral, consistindo na área resultante da necessidade de justiça e bem-estar individual ou social, ou seja, os princípios tidos como universais para avaliar a justiça.

Os julgamentos e ações dos indivíduos, na perspectiva desse autor, não poderiam, de modo algum, sofrer generalizações acerca do nível ao qual cada um pertenceria no posicionamento ante dilemas hipotéticos, como propôs Kohlberg22. Rego STA. Teoria do desenvolvimento moral de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. ln: Rego STA. A formação ética do médico: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 75-102.), (55. Kohlberg L. Moral stages and moralization: the cognitive development approach. ln: Lickona (ed.) Moral development behavior. New York (US): Holt, Rinehart and Winston; 1976..

A justificativa deste posicionamento repousa nas diferenças culturais e na não-univocidade das mesmas, por derivarem de processos interacionistas e construções cognitivas distintas entre si. A diversidade e a complexidade dos julgamentos e ações dos indivíduos devem ser consideradas, bem como o investimento destes nas relações interpessoais, a fim de compreender como os domínios sociocognitivos são construídos nos contextos específicos.

A formação médica deve contemplar a maior diversidade possível de vivências com as quais o profissional irá se deparar, no sentido dos julgamentos e tomada de decisões morais. Assim, no processo de construção de novas interações sociais e cognições, pode ser vista como uma etapa positiva a identificação dos conflitos entre as situações prototípicas (discordância entre prerrogativas pessoais e convencionais, e dilemas morais claros, não complexos, como: "é certo roubar?" e "pode-se agredir sem motivo?") e as situações não-prototípicas (a "lei de Gerson", aborto, estupro)33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15., como uma possibilidade de reconhecer as diferentes perspectivas segundo as quais o indivíduo pode se situar diante da questão, quer seja pelas prerrogativas, quer seja pelo domínio ao qual vincula seu posicionamento.

Milnitsky-Sapiro sugere que intervenções do tipo "oficinas" baseadas nesse referencial teórico possibilitam uma avaliação de princípios morais e a distinção entre aspectos convencionais e prerrogativas pessoais em diferentes contextos culturais. A autora sugere, também, que o conflito cognitivo desempenharia função análoga ao desequilíbrio (no sentido piagetiano), permitindo avaliar os domínios em que a situação exposta no conflito era percebida anteriormente33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15.. Por certo, tal avaliação resulta em reflexões caras ao sujeito em sua formação profissional. Deparar-se com a possibilidade de perceber diferentemente (com base em diferentes domínios do conhecimento social) conflitos referentes ao cotidiano profissional possibilita refletir criticamente sobre o conflito identificado, situando-o em outras perspectivas, a partir de novos registros cognitivos. Tal processo se diferencia muito da compreensão da moralidade como resultado da construção de normas sociais hegemônicas. A inconsistência e/ou antagonismo das respostas de cada indivíduo em seu cotidiano refletiriam a complexidade da dimensão psicológica na determinação das ações e julgamento moral, em face da possibilidade de agir em conformidade com domínios distintos, servindo como conteúdo reflexivo no processo de interação social na organização dos domínios de conhecimento.

A teoria de Turiel possibilita, além da superação do princípio linear no qual se advoga a irreversibilidade de estágios do desenvolvimento moral, uma base compreensiva satisfa tória para a questão da interação social e o valor da interferência cultural (já antecipada por Piaget ao superar a dicotomia meio versus hereditmiedade)33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15.. O ponto central das críticas dirigidas a Kohlberg - que não conseguiu transpor aspectos etnocêntricos em sua proposta - diz respeito ao conteúdo que distingue os estágios do julgamento moral. Para Turiel, a identificação dos conteúdos concernentes a cada domínio só é possível por meio de um estudo da cultura que assim determina o que pode ser entendido como prerrogativas convencionais ou morais. A universalidade neste caso re­side, portanto, na existência dos três domínios, proposta verificada e validada em estudos transculturais33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15., e não no que corresponde à justiça e bem-estar num sentido universal - ou seja, pode se perguntar universal para quem? Para uma proposta pedagógica na formação médica, a identificação do que constitui os conteúdos de cada um dos domínios - pessoal, convencional e moral - permite o exercício de um olhar mais crítico do futuro profissional acerca da justificativa de seus julgamentos e ações no contexto profissional.

Outra contribuição que se pode tributar à base compreensiva do desenvolvimento sociomoral proposto por Turiel é o avanço oportunizado por seus seguidores. Milnitsky-Sapiro introduziu o termo "investimento interpessoal" para referir-se a um componente por ela descrito como caráter universal, que se manifesta, contudo, de modo distinto nas diferen­tes culturas e agrupamentos33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15.. Corresponde a urna espécie de percepção ou sentimento de obrigação, afeto ou expectativa que os indivíduos experimentam em relação uns aos outros em suas interações. Na formação médica, deve ser considera­do que as relações estabelecidas entre os profissionais e a clientela atendida implicam, necessariamente, relações onde o componente "investimento interpessoal" estará presente, manifestando-se por meio do sentimento de obrigação, afetos, pressões em resposta às expectativas sociais geradas, entre outras vivências, em ambos os lados da relação, constituindo uma das faces complexas que integram o processo do conhecimento social e das ações sociomorais desempenhadas.

Refletir sobre o julgamento moral e as ações adotadas no exercício profissional deve constituir uma preocupação na formação médica, ampliando a possibilidade de responder às situações do cotidiano. A teoria de Elliot Turiel, por estar sedimentada em pressupostos construtivistas e interacionistas33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15., aponta para uma compreensão do indivíduo como sujeito cognoscente, cujas construções derivam do processo de interação e organização dos componentes psicológicos88. Nunes DC, Carraro L, Jou GT. As crianças e o conceito de morte. Psicol reflex crit. 1998; 11 (3): 579-590.), (3636. Piaget J. A construção do real. Rio de Janeiro: Zahar ; 1967.. O aluno de medicina, como sujeito cognoscente, em interações constan­tes e sucessivas - que incluem o conjunto de conteúdos a integrar os domínios de conhecimento social - organiza e integra tais conhecimentos, avalia, realiza julgamentos, estabelece relações, faz investimentos interpessoais, toma decisões e as justifica, sendo tais justificativas mais ou menos fruto de ação reflexiva, nem sempre sendo percebido como se organizaram e como foram escolhidas certas opções.

Assim, no intuito de formular alternativas para o ensino da ética, reconhece-se que esta base permite articular propostas que considerem estes processos, utilizando-os como meios para promover reflexões éticas que demandem um grau de autonomia maior por parte do educando, a partir da identificação dos domínios de conhecimento social que usualmente subordinam os demais ou se coordenam na resolução de conflitos ou enfrentamentos da prática profissional cotidiana. Tal perspectiva teórica, aliada à idéia de favorecer a autonomia do educando, aponta para um desafio na formação médica, no sentido da busca de práticas pedagógicas que favoreçam a introdução e a discussão de conflitos cognitivos verbais1212. Bock AMB, Furtado O, Teixeira MLT. Psicologias. São Paulo: Saraiva; 1998.), (3434. Costa CRBSF. A formação da atitude transdisciplinar do educador. Rev Universidade Federal do Amazonas. 1997; 6(1): 35-42. que possam produzir desequilíbrio das estruturas cognitivas, exigindo a busca de novas formas de organização dos conteúdos a partir de exercício reflexivo.

Um processo de aprendizagem orientado por esta base poderia ser caracterizado como "construtivista-interacionista". Práticas do tipo oficinas33. Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15. e dramatizações - como, por exemplo, dinâmicas de grupo que incluíssem a exposiçào de um dilema ético relativo ao exercício profissional, cujo objetivo fosse a instauração de um conflito cognitivo e posterior análise e avaliação à luz da teoria dos domínios de conhecimento social - certamente teriam como efeito a vivência de um estado de desequilíbrio das estruturas cognitivas e a tentativa de resolução do conflito por meio do posicionamento orientado por domínios específicos. Colocar o aluno diante de aspectos conflitivos que possam despertar cognições, afetos e possibilidades de conduta contraditórias, solicitando­lhe justificar seu posicionamento, permite avaliar as formas segundo as quais as três estruturas de conhecimento social se organizam - e como o indivíduo determina o rumo de suas ações morais no tocante à profissão.

Cabe destacar que o favorecimento da vivência de conflitos cognitivos segundo a estratégia pedagógica aqui apresentada com base na teoria de Turiel pouco ou nada tem a ver com o ensino de verdades ou transmissão de valores predeterminados. Antes, consiste na proposição de exercícios, ao longo da formação médica, que permitam a vivência do conflito, a reflexão, a tomada de decisões e, sobretudo, a justificativa e avaliação das mesmas, ancoradas no princípio da autonomia do aluno. Neste sentido é que a opção por dilemas se revela adequada a este fim, pois o dilema não possui resposta -ou seja, uma ou outra alternativa correta para sua resolução. Quando se solicita a um sujei to que emita juízo ou avaliação frente a uma sihiação geradora de conflitos, pode-se levá-lo a perceber cotradições existentes, sem, contudo, fornecer indícios da solução correta, uma vez que tal solução, em princípio, inexiste. A exposição ao conflito e o trabalho cognitivo resultante é que favorecem a emergência de novas formas de organização diante da situação proposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo apresenta uma reflexão acerca do ensino da ética no curso de graduação em medicina, tomando como pano de fundo uma compreensão do desenvolvimento moral que permita centrar o processo pedagógico na autonomia do sujeito. A articulação geral vai ao encontro das novas diretrizes curriculares do Ministério da Educação e Cultura (MEC) para curso médico, nas quais se reitera que

"[…] os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética /bioética."1818. Brasil. Ministério de Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES Nu 4, de 7 de novembro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de novembro de 2001. Seção 1, p. 38.

Ainda que a falta de um posicionamento mais claro seja pressentida, este documento sinaliza para uma formação diferenciada da tradicional - sobretudo no que se refere aos aspectos da formação ética-, na medida em que surgem situações e demandas cada vez mais complexas, como demar­cado por Miguel Kottow e Fermin Roland Schramm:

"[…] ao ingressar em uma prática social tão complexa como a biomédica, o candidato requer reabrir a sua formação moral e enriquecer o seu juízo ético até ser capaz de enfrentar contextos de enfermidades, incapacidades, morte, reprodução, começo da vida e tantos outros dilemas que conformam o território da bioética."3030. Kottow M, Schramm FR. Desarrollo moral en bioética: ,eta­pas, esquemas e ámbitos morales? Rev Bras Educ Med . 2001; 26(2): 25-31.

Entretanto, a despeito da premência em se firmar a educação moral de forma sistemática e construtiva - tornada pública no documento do Conselho Nacional de Educação - , este horizonte está longe de ser vislumbrado, em razão de inúmeros dificultadores, entre eles:

  • a manutenção da ênfase no ensino da deontologia médica - leitura "monótona" do Código de Ética Médica3535. Conselho Federal de Medicina. Brasil. Código de Ética Médica. Resolução CFM n. 1.246/88 -10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro; 2002. -em detrimento do debate ético e bioético;

  • a exigüidade de docentes, na escola médica brasileira, capacitados para desempenhar adequadamente o papel de educadores morais, num contexto social laico, plural e extrema­mente complexo das sociedades contemporâneas22. Rego STA. Teoria do desenvolvimento moral de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. ln: Rego STA. A formação ética do médico: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 75-102.), (1515. Almeida JLT, Schramm FR. Transição paradigmática, metamorfose da ética médica e emergência da bioética? Cad Saúde Pública. 1999; 15 (supl. 1): 15-25;

  • a pouca (ou nenhuma) ênfase no esclarecimento das formas a serem utilizadas para viabilizar a ampliação do ensino de ética nos cursos de graduação em medicina1515. Almeida JLT, Schramm FR. Transição paradigmática, metamorfose da ética médica e emergência da bioética? Cad Saúde Pública. 1999; 15 (supl. 1): 15-25.

Atrelada a estes complicadores, encontra-se, sem dúvida, uma concepção de educação que prioriza a transmissão de padrões de conduta moral ou aspectos legais do exercício da medicina, "inculcando" valores e conteúdos, e vislumbrando a reprodução do padrão como melhor resultado do processo pedagógico.

A efetividade do processo educacional, por exemplo, deve ser pensada em termos da intencionalidade do mesmo, remetendo não à transmissão de conteúdos morais específicos, mas ao exercício da autonomia por meio de práticas pedagógicas que promovam o conhecimento dos processos cognitivos envolvidos na tomada de posições eticamente orientadas, visando à coerência dos argumentos que fundamentam suas ações. Este modelo, como proposta pedagógica de Paulo Freire, visa

"[…] à prática consciente dos seres humanos, envolvendo reflexão, intencionalidade, temporalidade e transcendência", como "capacidade da consciência humana em sobrepassar os limites da configuração objetiva".2020. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003.

É a ênfase no processo educativo, propiciando ao aluno a caondição de se saber sujeito, sujeito da ação, vivendo no mundo, experimentando a dialética entre a determinação e aliberdade2020. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003.), (2121. Freire P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra ; 2001.), (3636. Piaget J. A construção do real. Rio de Janeiro: Zahar ; 1967..

Este panorama toma ainda mais difícil - e instigante - o problema do ensino moral nos bancos da escola médica brasileira. Na verdade, deve-se superar o modelo pautado na exclusiva memorização do Código de Ética Médica, almejando um novo panorama, em que os diferentes aspectos da profissão sejam problematizados com a utilização dos princípios da Teoria do Desenvolvimento Sociomoral. Perceber o movimento de organização - coordenação e/ou subordinação dos domínios do conhecimento social - em face de um conflito cognitivo pertinente ao exercício profissional favorece a emergência de uma postura realmente autônoma do estudante, na medida em que este passe a exercitar o reconhecimento da ação orientada pelo domínio moral, convencional ou pessoal, bem como de suas conseqüências - não por coerção, mas a partir da reflexão livre e fecunda -, como tão desejado por Tmmanuel Kant2727. Schramm FM. A autonomia difícil. Bicética 1998; 6(1 ):27-37.), (3838. Kant I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Companhia Editora Nacional; 1964.), (3939. Siqueira-Batista R. O médico diante da morte: perspectivas de discussão ética com base na filosofia de Immanuel Kant. Revista da Faculdade de Medicina de Teresópolis. 2001; 3(1):18-22.. Ao professor deste novo aluno não restará um amargo ostracismo, como poderiam pensar alguns, mas, sim, a atuação de um genuíno mestre, como uma parteira de idéias, no melhor sentido socrático da maiêutica.

AGRADECIMENTOS

Os autores são gratos ao Prof. Dr. Sérgio Rego e ao Prof. Dr. Fermin Roland Schamm, da ENSP/Fiocruz, pelas fecundas sugestões apresentadas durante a revisão crítica do original.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Platão M. Texto estabelecido e anotado por John Burnet. [Tradução de Maura Iglesias]. Rio de Janeiro: Editora da PUC-Rio, Edições Loyola; 2001. (Passo 70 a).
  • 2
    Rego STA. Teoria do desenvolvimento moral de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. ln: Rego STA. A formação ética do médico: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 75-102.
  • 3
    Milnitsky-Sapiro C. Teorias em desenvolvimento socio­moral: Piaget, Kohlberg e Turiel - Possíveis implicações para a educação moral na educação médica. Rev Bras Educ Med. 2000; 24(3): 7-15.
  • 4
    Piaget J. Le jugement moral chez l'enfant. Paris (FR): Z. Alcan; 1932.
  • 5
    Kohlberg L. Moral stages and moralization: the cognitive development approach. ln: Lickona (ed.) Moral development behavior. New York (US): Holt, Rinehart and Winston; 1976.
  • 6
    Turiel E. The development of concepts of social structure: social convention. ln: Glick J & Larke-Stewart A (Eds.) The development of social understanding. New York: Gardner Press; 1978. p. 25-108.
  • 7
    García R. O conhecimento em construção. Porto Alegre (RS): Artmed; 2002.
  • 8
    Nunes DC, Carraro L, Jou GT. As crianças e o conceito de morte. Psicol reflex crit. 1998; 11 (3): 579-590.
  • 9
    Piaget J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar; 1976.
  • 10
    Bruner J. Culture and human development: a new look. Hum Dev. 1990; 33: 344-355.
  • 11
    Costa CRBSF. A formação da atitude interdisciplinar dos professores do Instituto de Ciências e Letras e Fílculdade de Educação da Universidade do Amazonas. [Dissertação] Manaus (AM): Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Amazonas; 1999.
  • 12
    Bock AMB, Furtado O, Teixeira MLT. Psicologias. São Paulo: Saraiva; 1998.
  • 13
    Laín Entralgo P. La Medicina Hipocrática. Madrid (ES): Alianza Editorial; 1987.
  • 14
    Siqueira-Batista R. Deuses e homens. Mito, filosofia e medicina na Grécia antiga. São Paulo: Landy; 2003.
  • 15
    Almeida JLT, Schramm FR. Transição paradigmática, metamorfose da ética médica e emergência da bioética? Cad Saúde Pública. 1999; 15 (supl. 1): 15-25
  • 16
    Rego STA. Desprofissionalização ou reprofissionalização: um paralelo entre a advocacia e a medicina. Rev Assoc Med Bras. 1994; 40(3): 211-5.
  • 17
    Rego STA, Schramm FR, Sayd JD. Percepção de estudan­tes de medicina sobre questões éticas em situações de ensino-aprendizagem. 6°. Congresso Mundial de Bicética; 2002; Brasília (DF). 30out.-03nov.; Anais. p. 75-75.
  • 18
    Brasil. Ministério de Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES Nu 4, de 7 de novembro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de novembro de 2001. Seção 1, p. 38.
  • 19
    Morais R. Violência e educação. Campinas (SP): Papirus; 1995.
  • 20
    Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003.
  • 21
    Freire P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra ; 2001.
  • 22
    Freire P. Conscientização. Teoria e prática da libertílção. São Paulo: Centauro; 2001.
  • 23
    Pessanha JAM. Sócrates - vida e obra. São Paulo: Nova Cultural; 2000. (Os Pensadores)
  • 24
    Jaeger W. Paidéia: a formação do homem grego. [Tradução de Artur M. Parreira]. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes; 1995.
  • 25
    Melo JAC, Schramm FR. Educação: razão e paixão. In: Melo JAC. Educação, razão e paixão. Rio de Janeiro: ENSP­FIOCRUZ; 1993.
  • 26
    Cavalcante LIP. A Docência em questão. Amazônida. Revista do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas; 2002; 2(1) 37-46.
  • 27
    Schramm FM. A autonomia difícil. Bicética 1998; 6(1 ):27-37.
  • 28
    Kottow M. Ensenando las paradojas de la autonomía. Rev Bras Educ. Med 2000; 24(3):40-45.
  • 29
    Siqueira-Batista R, Schramm FR. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia. Cienc Saúde Coletiva. 2004; 9(1):31-41.
  • 30
    Kottow M, Schramm FR. Desarrollo moral en bioética: ,eta­pas, esquemas e ámbitos morales? Rev Bras Educ Med . 2001; 26(2): 25-31.
  • 31
    Schramm FR. Contribuição da bioética e da comunicação na educação médica. Rev Bras Educ Med . 2001; 26(2): 15-24.
  • 32
    Silva Santos S. A integração dos ciclos básico e profissio­nal no curso de graduação em medicina: um exemplo de resistência. [Dissertação] Petrópolis (RJ): Programa de Pós­graduação em Educação, Universidade Católica de Petrópolis; 2003.
  • 33
    Milnitsky-Sapiro C. Desenvolvimento sócio-moral e aspectos culturais do parentesco. Psicol teor pesqui. 1996;12(1 ):71-82.
  • 34
    Costa CRBSF. A formação da atitude transdisciplinar do educador. Rev Universidade Federal do Amazonas. 1997; 6(1): 35-42.
  • 35
    Conselho Federal de Medicina. Brasil. Código de Ética Médica. Resolução CFM n. 1.246/88 -10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro; 2002.
  • 36
    Piaget J. A construção do real. Rio de Janeiro: Zahar ; 1967.
  • 37
    Davis C, Rappapport CR, Fiori WR. Teorias do desenvolvimento. São Paulo: E.P.U.; 2003. Volume 1.
  • 38
    Kant I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Companhia Editora Nacional; 1964.
  • 39
    Siqueira-Batista R. O médico diante da morte: perspectivas de discussão ética com base na filosofia de Immanuel Kant. Revista da Faculdade de Medicina de Teresópolis. 2001; 3(1):18-22.
  • 1
    Trabalho realizado na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz, no Núcleo de Estudos em Filosofia e Saúde (Nefisa), Fundação Educacional Serra dos Órgãos e na Faculdade de Educação Universidade Federal do Amazonas.
  • 1
    É digna de menção a dupla origem da palavra educação: educare, que remete a “alimentar” o aprediz ou, de acordo com Santo Agostinho, de catequizandis rudibus; e ex ducere, literalmente “tirar dos caminhos batidos” no sentido de estimular a autonomização, fazendo-o passar da condição de rudibus àquela de sujeito autônomo. Cf.Melo JAC, Schramm FR. Educação: razão e paixão. IN: Melo JAC. Educação, razão e paicão. Rio de Janeiro: ENSP-Fiocruz, 19932525. Melo JAC, Schramm FR. Educação: razão e paixão. In: Melo JAC. Educação, razão e paixão. Rio de Janeiro: ENSP­FIOCRUZ; 1993..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2004

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2004
  • Revisado
    02 Ago 2004
  • Aceito
    02 Set 2004
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com