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O enfermeiro na equipe de saúde mental: o caso dos CERSAMS de Belo Horizonte

El enfermero en los equipos de salud mental: el caso de los Centros de Referencia en Salud Mental

Nurses in the mental health team: the case of the Mental Health Centers in Belo Horizonte

Resumos

Os Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMS) representam hoje um dispositivo nuclear para fazer frente à proposta de Reforma Psiquiátrica. Assumem lugar estratégico contra o modelo hospitalocêntrico e inauguram espaço de interlocução com a loucura, reinventando o trabalho clínico. Este estudo tem como objetivo descrever as atividades do enfermeiro nas equipes dos CERSAMS da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, MG, focalizando o atendimento e seguimento ao doente mental. Trata-se de estudo qualitativo, cujos dados foram coletados através de entrevista semi-estruturada e submetido à análise do discurso. Foram sujeitos desta pesquisa oito enfermeiros inseridos nas equipes de saúde mental. Os resultados apontam sua inserção no trabalho interdisciplinar, assumindo a condução clínica do atendimento ao doente mental, auxiliando-o no seu percurso e na construção de vínculos com o tratamento.

enfermagem psiquiátrica; transtornos mentais-enfermagem; serviços comunitários de saúde mental


Los Centros de Referencia en Salud Mental (CERSAMS) representan hoy un dispositivo central para conducir la propuesta de la Reforma Psiquiátrica. Ocupan una posición estratégica contra el modelo hospitalocéntrico y establecen un espacio de interlocución con la locura reinventando el trabajo clínico. Esta investigación tiene como objetivo describir las actividades del enfermero en los equipos de los "CERSAMS" de la "Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte" centrándose en la atención y el acompañamiento al enfermo mental. Es un trabajo cualitativo del cual los datos fueron obtenidos por medio de entrevista semi-estructurada y sometido al análisis del discurso. Los sujetos de esta investigación fueron ocho enfermeros que trabajan en los equipos de salud mental. Los resultados indican su inserción en el trabajo interdisciplinario, asumiendo la conducción clínica de la atención al enfermo mental, ayudándolo en su trayecto y en la construcción de vínculos con el tratamiento.

enfermería siquiátrica; trastornos mentales-enfermería; servicios comunitarios de salud mental


At the moment, the Mental Health Centers represent an important initiative in the conduction of Psychiatric Reform. They have a strategic role against the hospital centered model and inaugurate a space of interaction with the mental disorders, reinventing the clinical space. This study aimed at describing nurses' activities in the teams of the Mental Health Centers, maintained by the Municipal Health Department in the city of Belo Horizonte, state of Minas Gerais, Brazil, focusing on the care and follow-up of patients with mental disorders. This is a qualitative study and data were collected through semi structured interviews, analyzed by discourse analysis. Eight nurses were the subjects of this research. Results showed an inclusion of the interdisciplinary work in this centers, assuming the clinical conduction of the treatment to patients with mental disorders as well as helping them in the trajectory and construction of links with the treatment.

psychiatric nursing; mental disorders; mental health community services


ARTIGO ORIGINAL

O enfermeiro na equipe de saúde mental - o caso dos CERSAMS de Belo Horizonte

Nurses in the mental health team - the case of the Mental Health Centers in Belo Horizonte

El enfermero en los equipos de salud mental - el caso de los Centros de Referencia en Salud Mental

Marília Rezende da SilveiraI; Marília AlvesII

IMestre em Enfermagem, Professor Assistente, e-mail: marilia@polopsf.ufmg.br

IIDoutor em Enfermagem, Professor Adjunto, Coordenadora do Núcleo de pesquisa Administração em Enfermagem, e-mail: marilix@enf.ufmg.br. Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

Os Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMS) representam hoje um dispositivo nuclear para fazer frente à proposta de Reforma Psiquiátrica. Assumem lugar estratégico contra o modelo hospitalocêntrico e inauguram espaço de interlocução com a loucura, reinventando o trabalho clínico. Este estudo tem como objetivo descrever as atividades do enfermeiro nas equipes dos CERSAMS da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, MG, focalizando o atendimento e seguimento ao doente mental. Trata-se de estudo qualitativo, cujos dados foram coletados através de entrevista semi-estruturada e submetido à análise do discurso. Foram sujeitos desta pesquisa oito enfermeiros inseridos nas equipes de saúde mental. Os resultados apontam sua inserção no trabalho interdisciplinar, assumindo a condução clínica do atendimento ao doente mental, auxiliando-o no seu percurso e na construção de vínculos com o tratamento.

Descritores: enfermagem psiquiátrica; transtornos mentais-enfermagem; serviços comunitários de saúde mental

ABSTRACT

At the moment, the Mental Health Centers represent an important initiative in the conduction of Psychiatric Reform. They have a strategic role against the hospital centered model and inaugurate a space of interaction with the mental disorders, reinventing the clinical space. This study aimed at describing nurses' activities in the teams of the Mental Health Centers, maintained by the Municipal Health Department in the city of Belo Horizonte, state of Minas Gerais, Brazil, focusing on the care and follow-up of patients with mental disorders. This is a qualitative study and data were collected through semi structured interviews, analyzed by discourse analysis. Eight nurses were the subjects of this research. Results showed an inclusion of the interdisciplinary work in this centers, assuming the clinical conduction of the treatment to patients with mental disorders as well as helping them in the trajectory and construction of links with the treatment.

Descriptors: psychiatric nursing; mental disorders; mental health community services

RESUMEN

Los Centros de Referencia en Salud Mental (CERSAMS) representan hoy un dispositivo central para conducir la propuesta de la Reforma Psiquiátrica. Ocupan una posición estratégica contra el modelo hospitalocéntrico y establecen un espacio de interlocución con la locura reinventando el trabajo clínico. Esta investigación tiene como objetivo describir las actividades del enfermero en los equipos de los "CERSAMS" de la "Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte" centrándose en la atención y el acompañamiento al enfermo mental. Es un trabajo cualitativo del cual los datos fueron obtenidos por medio de entrevista semi-estructurada y sometido al análisis del discurso. Los sujetos de esta investigación fueron ocho enfermeros que trabajan en los equipos de salud mental. Los resultados indican su inserción en el trabajo interdisciplinario, asumiendo la conducción clínica de la atención al enfermo mental, ayudándolo en su trayecto y en la construcción de vínculos con el tratamiento.

Descriptores: enfermería siquiátrica; trastornos mentales-enfermería; servicios comunitarios de salud mental

INTRODUÇÃO

Historicamente, a política de saúde mental se apresentou com ações direcionadas para o atendimento no âmbito hospitalar, práticas de confinamento e exclusão social, além da hegemonia dos saberes e práticas centradas na figura do médico. A partir dos anos 60, vários movimentos psiquiátricos surgiram, em diversos países da Europa e Estados Unidos, como tentativa de reversão do modelo asilar, com objetivos econômicos e assistenciais. Uma das mais radicais transformações no campo da psiquiatria e das práticas manicomiais ocorreu em 1962, com a desativação do manicômio de Trieste, Itália, e criação de Centros Comunitários de Saúde Mental, visando a reinserção do doente mental em seu núcleo social(1).

Nesse cenário, diversos profissionais da área de saúde mental começam a se orientar pelos propósitos da Lei 180, promulgada pelo parlamento italiano, em 13 de maio de 1978, que proíbe a internação de pessoas em hospitais psiquiátricos e a construção de novos hospitais do gênero, indica a obrigatoriedade de criação de serviços alternativos e desvincula a doença mental do conceito de periculosidade e perda dos direitos civis(2).

A substituição do modelo manicomial pelos centros comunitários de saúde mental, também aconteceu no Brasil. No final da década de 70, surgiram movimentos pela defesa dos direitos civis dos doentes mentais e discussão sobre a conduta médica, até então, inquestionável(3). As crescentes denúncias da prática asilar, a violência e o abandono a que eram submetidos os loucos, fizeram surgir propostas de intervenção nos manicômios, visando a democratização e a humanização do atendimento. Assim, tem início o processo da "Reforma Psiquiátrica", propondo formas de atenção substitutivas ao tratamento hospitalar, enfatizando a participação da família, a descentralização dos serviços, a reintegração do doente mental ao seu contexto social e a luta pelos seus direitos civis(4). Novas propostas assistenciais surgem buscando a quebra da hegemonia do modelo asilar. Nesta perspectiva o Projeto de Lei no 3657/89(5), de autoria do deputado Paulo Delgado, preconizava a redução progressiva dos leitos psiquiátricos, implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos, que deverão ser extintos progressivamente, e regulamenta as internações, especialmente a involuntária.

Para fazer frente a esse desafio surgem os serviços de saúde mental ambulatoriais, visando reverter antigas práticas e apontar para novas referências de atendimento ao paciente, por meio da intervenção de diferentes profissionais, com formação e prática orientadas para a assistência comunitária. Para tanto, propõe-se o trabalho de equipes interdisciplinares, composta por assistente social, enfermeiro, médico, psicólogo e terapeuta ocupacional, entre outros, e que constitui uma questão inovadora no processo.

O que caracteriza esse trabalho em equipe é a busca de resultados comuns, onde a competência individual deverá se conjugar em esforços para a realização de ações de responsabilidade do conjunto de pessoas, numa relação de interatividade, fundamental no desempenho coletivo. Nesse sentido, interatividade diz respeito à permissividade, à participação, criatividade, complementaridade e conduta centrada na auto-responsabilidade e cooperativismo, levando a resultados mais qualitativos(6).

Assim, visando alcançar as metas preconizadas pela Reforma Psiquiátrica, surgem, em Belo Horizonte, MG, no início da década de 90, os Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMS), Centros de Convivência, Hospitais Dia e ampliação do atendimento ambulatorial, buscando substituir as tradicionais funções dos hospitais psiquiátricos, contribuindo para a reversão da lógica segregatória e iatrogênica vigente.

Nos CERSAMS, as ações terapêuticas são realizadas por equipes interdisciplinares e o enfermeiro, como membro dessas equipes, nos chamou atenção pela forma como vem desempenhando suas atividades no acompanhamento aos doentes mentais. No entanto, é necessário reconhecer que sua trajetória nos serviços de saúde mental, geralmente, esteve ligada às atividades intra-hospitalares, direcionando sua assistência à prestação de cuidados físicos e gerais aos pacientes, à administração de medicamentos, ao gerenciamento do ambiente institucional e controle do processo de trabalho da equipe de enfermagem.

Nesse sentido, sua atuação evoluiu de uma postura de custódia, centrada no atendimento das necessidades físicas e gerais dos pacientes, para, progressivamente, incorporar uma abordagem psicológica e social, o que lhe conferiu reconhecimento da equipe na abordagem ao paciente. A reorientação do trabalho do enfermeiro vem exigindo dos profissionais melhor qualificação, uma vez que, se antes suas funções eram precisas e bem definidas, com a inserção em novos modelos de atendimento, assume responsabilidades inexploradas e ainda pouco precisas(7).

O conhecimento que temos da sua prática profissional, em grande parte, diz respeito à reprodução dos saberes vigentes na vida asilar com muitos poderes disciplinares e sustentados pelo discurso hegemônico do médico. Hoje, esse conhecimento necessita ser ampliado no novo contexto, pois o relacionamento terapêutico foi incorporado ao rol de suas atividades e o enfermeiro passa a ter um papel reconhecido como "agente terapêutico, por sua possibilidade de influir nas relações interpessoais, de modificar favoravelmente o ambiente e de orientar as interações em grupo"(8). Nessa concepção, seu relacionamento e comunicação com o paciente, sua capacidade de ouvir e interagir contribuiu para a construção de nova identidade para esses profissionais na atenção ao portador de transtornos psiquiátricos. Hoje se discute o enfoque no atendimento global, que pressupõe a inserção do paciente em um contexto sociocultural, político e econômico com ênfase nas relações terapêuticas interpessoais, vinculadas às ações comunitárias, com uma lógica inversa àquela da exclusão e do internamento.

Dessa forma, a inserção do enfermeiro nas equipes de saúde mental, nos coloca frente a algumas questões: como o enfermeiro está organizando seu trabalho para se adequar às mudanças preconizadas pela Reforma Psiquiátrica? Que ações de saúde mental vem desempenhando? Que facilidades e limites tem encontrado no atendimento aos pacientes? Assim, esta pesquisa teve como objetivo conhecer as atividades realizadas pelo enfermeiro nas equipes de saúde mental dos CERSAMS da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) de Belo Horizonte, focalizando o atendimento e seguimento oferecido ao doente mental.

A CRIAÇÃO DOS CERSAMS DA SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE BELO HORIZONTE, MG

A mudança no eixo de referência do tratamento em saúde mental, do espaço hospitalar para o ambulatorial, é um fato concreto no âmbito da saúde mental em Belo Horizonte. A viabilização dessa mudança tem colocado como imprescindível a interlocução e a parceria de movimentos organizados de usuários, famílias e técnicos de saúde mental, o que propiciou a formulação dos princípios da assistência, a definição das prioridades assistenciais e os dispositivos que possibilitariam a extinção gradativa do modelo manicomial de atendimento.

Os princípios que guiaram o projeto e a criação dos novos equipamentos de saúde mental foram pautados pelo resgate da cidadania, historicamente negada aos portadores de transtornos psiquiátricos, compromisso com a defesa do SUS, perspectiva de extinção do hospital psiquiátrico e de seus similares excludentes e discriminativos, interlocução com movimentos sociais organizados, e uma intervenção no âmbito da cultura, possibilitando, assim, recriação das idéias sobre a figura do louco em prol do convívio entre a loucura e a cidade(9).

Os CERSAMS, peças fundamentais nesse processo, devem mobilizar profissionais de saúde mental, usuários, famílias e os movimentos sociais organizados para garantir o êxito do projeto de desospitalização gradativa. Em Belo Horizonte, o projeto está comprometido com as mudanças na assistência psiquiátrica e sua implantação tem mostrado que é possível oferecer tratamento de qualidade aos portadores de sofrimento psíquico, sem acionar os mecanismos de exclusão social. Como parte integrante da rede hierarquizada de serviços de saúde, esses centros têm papel específico de atuar na urgência psiquiátrica, oferecendo retaguarda ou referência para as unidades básicas de saúde (UBS) e apoio quando o manejo da crise parece ser impossível.

Os CERSAMS constituem, hoje, um dispositivo nuclear da proposta de atenção ao doente mental e atendem seis das nove regiões da cidade, abrindo novos espaços de interlocução entre a sociedade e as instituições no trato com a loucura. Estão, atualmente, disponíveis doze horas por dia, de segunda a segunda, atendendo os casos de urgência e fazendo acompanhamento intensivo das crises psiquiátricas não compatíveis com o atendimento nos centros de saúde.

Esses serviços dispõem de equipe interprofissional composta por assistente social, auxiliar de enfermagem, enfermeiro, psicólogo, psiquiatra, terapeuta ocupacional e pessoal de apoio administrativo. Essa equipe combina atividades como psicoterapia, medicação, oficinas, assembléias com os usuários, passeios, visitas domiciliares e orientação aos familiares.

METODOLOGIA

Para abordar o trabalho do enfermeiro na equipe de saúde mental, onde vários atores convivem e interagem, optamos por estudo exploratório de natureza qualitativa pela sua adequação à compreensão de fenômenos sociais.

Constituiu cenário deste estudo os 4 (quatro) CERSAMS existentes na rede de serviços públicos de saúde de Belo Horizonte, MG, que, no momento, estão realizando o atendimento substitutivo à rede hospitalar psiquiátrica. Foram sujeitos desta pesquisa 08 (oito) enfermeiros das equipes de saúde mental, que concordaram em participar da pesquisa.

O projeto de pesquisa recebeu a aprovação do Comitê de Ética e, na seqüência, foi feito contato com os profissionais para expor o projeto de pesquisa e solicitar a cooperação dos mesmos, deixando claro que a participação, na pesquisa, era voluntária, o anonimato seria garantido e os resultados utilizados somente para fins científicos. Após a concordância, esses assinaram o termo de consentimento e, a seguir, as entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade dos mesmos e realizadas, individualmente, nos locais de trabalho.

Os dados foram coletados através das entrevistas, utilizando um roteiro semi-estruturado, previamente testado para verificar sua clareza e adequação. As entrevistas foram gravadas, com anuência do entrevistado, no sentido de resguardar a integridade dos discursos. A coleta de dados foi encerrada quando nenhuma informação nova estava sendo acrescentada, o que denominamos ponto de saturação dos dados(10).

Após a transcrição das entrevistas, passamos a fazer a leitura e releitura exaustiva do material, organizando os relatos em determinada ordem, buscando extrair os temas relevantes expressos pelos entrevistados. Assim, as entrevistas foram recortadas e organizadas em temas que passaram a constituir as categorias empíricas(10). A construção do conjunto de categorias aconteceu a partir do referencial teórico e de leituras sucessivas do material que permitiram a compreensão dos seus significados(11). As entrevistas foram codificadas em Enf 01, Enf 02, (...) com vistas a facilitar a apresentação no texto, como, também, para garantir o anonimato dos entrevistados.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Após a extração dos temas contidos nas entrevistas, relativos ao trabalho do enfermeiro nas equipes de saúde mental, as informações foram agrupadas em 3 (três) categorias empíricas, descritas a seguir: ações do Enfermeiro no atendimento aos usuários do CERSAM, a formação acadêmica e o desempenho das atividades e ações desenvolvidas no seguimento pela equipe.

Ações do Enfermeiro no atendimento aos usuários do CERSAM

O enfermeiro, como membro da equipe interdisciplinar, desempenha as mesmas atividades de outros técnicos da equipe de saúde mental como mostra o depoimento a seguir:

...a organização do serviço se dá da seguinte forma: dois técnicos assumem o plantão em cada turno. Um é responsável pelo plantão de acolhimento, recebendo os casos novos, e o outro, pelo plantão de referência. Este se responsabiliza pelo atendimento dos pacientes que retornam ao serviço sem estarem agendados, por questões administrativas, além de resolver as intercorrências com pacientes que por ventura aconteça (Enf 01).

O plantão de acolhimento, expresso pelo entrevistado, é a porta de entrada no serviço e oferece atendimento a todos os que o buscam e, após a avaliação da demanda individual, o usuário fica inscrito ou então é encaminhado para um atendimento mais adequado para o caso, conforme a fala abaixo:...quem acolhe o paciente pela primeira vez, geralmente fica sendo o responsável pela condução de seu tratamento, até o momento de alta (Enf 08).

O enfermeiro, plantonista de triagem, torna-se referência para os pacientes e terapeuta dos casos admitidos por ele. Essas atividades implicam na priorização do atendimento de casos graves e no compromisso com os egressos de hospitais psiquiátricos, o que é compatível com a lógica sustentada pelo movimento da reforma psiquiátrica(3). Uma outra atividade está relacionada à supervisão de enfermagem: ...é muito claro para nós que as questões técnicas de enfermagem são de nossa responsabilidade, estando ou não de plantão( Enf 03).

Cabe ao enfermeiro orientar o trabalho do pessoal auxiliar, que permanece a maior parte do tempo com o paciente. Todavia, vale ressaltar que, para um entrevistado, o caráter interdisciplinar da responsabilidade sobre o atendimento, é que faz a diferença nesse serviço:

...aqui todos os técnicos são responsáveis pela qualidade do serviço prestado e, enquanto plantonistas, se apropriam das questões de enfermagem, fazem intervenções, participando, portanto, diretamente da organização deste serviço (Enf 05).

A nosso ver essa responsabilidade aumenta o envolvimento dos membros da equipe nas diretrizes políticas e clínicas do projeto. Mesmo assim, percebemos, durante as observações de campo, que existe uma demanda natural do enfermeiro pela equipe de enfermagem, pois historicamente ele sempre coordenou o trabalho da equipe, tutelando a organização do trabalho, conforme comenta um entrevistado: ...é importante orientá-los quanto à abordagem e o acompanhamento dos usuários, sempre procurando esclarecer a doença mental e o comportamento destes, a orientação, encaminhamento e a prestação da assistência de enfermagem a fim de favorecer a remissão de debilidades orgânicas e promover o bem-estar físico, corporal, incluindo higienização corporal e oral (Enf 01).

O enfermeiro, nessa perspectiva, procura instrumentalizar a equipe de enfermagem para assistir, de forma mais adequada, os portadores de sofrimento psíquico em consonância com os princípios acordados pela equipe. As ações do enfermeiro nos CERSAMS, assim como aquelas dos outros profissionais, não são colocadas em destaque e os membros da equipe se encontram envolvidos e comprometidos com a qualidade do atendimento e a defesa dos direitos dos usuários. Isso inclui novas atividades e responsabilidades inexploradas e ainda pouco precisas para o enfermeiro(7).Nós enfermeiros, conduzimos oficinas, fazemos visitas domiciliares e abordagem ao paciente de rua quando necessário (Enf 07).

Percebe-se que as atividades desempenhadas pelo enfermeiro estão assentadas nas decisões acordadas pela equipe. Assim, ele passa a ter papel estratégico no processo de desconstrução do fazer disciplinador, medicalizante e segregador que permeia a assistência psiquiátrica, tanto nas ações que desenvolve quanto nas relações que estabelece com a equipe, o usuário e a família, rompendo com sua prática em instituições asilares: ...percebo o enfermeiro bem integrado à equipe de saúde mental. O papel do enfermeiro para mim é como técnico de saúde mental, com participação bem definida como é de todo técnico. Já a função exercida pelo enfermeiro guarda certa especificidade no que se refere às técnicas específicas da enfermagem: trata-se da contribuição específica da enfermagem para o projeto. Portanto, a participação da enfermagem na clínica e nas diretrizes do projeto é supervisionada pelo supervisor clínico do projeto, pois, aí, já não estamos diante de um saber específico de nenhuma área e sim diante da construção de um novo saber (Enf 06).

Essa fala revela identidade peculiar com o trabalho proposto na nova modalidade assistencial, trabalho realizado de forma compartilhada, que oferece alternativas à internação do paciente no momento da "crise". Porém, resguarda uma especificidade inerente ao enfermeiro que é a supervisão do trabalho da enfermagem. No entanto, a reorientação do trabalho do enfermeiro vem exigindo dos profissionais melhor qualificação para exercer o seu papel na equipe, expressa na seguinte afirmativa: ...como um integrante de uma equipe interdisciplinar, tenho um papel mais amplo, difícil, que requer um perfil para saúde mental, para o atendimento dos pacientes em momento de crise como surto psicótico, depressão neurótica e outras crises psíquicas (Enf 05).

Apesar das dificuldades, existe o reconhecimento por parte do enfermeiro da sua importância no tratamento do paciente, quando assume a posição clínica na condução do caso, auxiliando o indivíduo no seu percurso e na construção de vínculos com o tratamento, pois tradicionalmente o atendimento clínico ao doente mental esteve sob a tutela de psiquiatras e psicólogos. A participação de outros técnicos, no tratamento, trouxe a possibilidade de outras relações e experiências com a loucura, ancoradas nas reuniões de equipe, que acontecem em todos os serviços e têm dado sustentação ao projeto.

A formação acadêmica e o desempenho das atividades

Apesar das várias tentativas de se definir o papel e delimitar as funções do enfermeiro psiquiátrico, ainda hoje, ele tem encontrado dificuldades em sua prática, principalmente após as mudanças recentes no atendimento ao portador de transtornos psiquiátricos. Várias dificuldades são de natureza técnica, como a responsabilidade pela condução clínica do caso e que interferem nas relações com a equipe, com o paciente e a família.

Nos CERSAMS, o enfermeiro é convidado a participar da nova proposta de atendimento, convocados pela variedade, pelo exotismo mesmo das situações do seu dia-a-dia(9). No entanto, para os entrevistados o processo de formação acadêmica pouco contribuiu para facilitar o desempenho de suas atividades atuais, como nos relatos a seguir: ...em termos, o trabalho da equipe se referencia na clínica psicanalítica. Eu não tive esta formação, dificultando meu desempenho nesta área (Enf 04). A disciplina teórica foi insuficiente para que eu compreendesse de uma maneira ampla o que é doença mental e seus comprometimentos. A parte prática não permitiu ver e compreender qual o papel/função do enfermeiro dentro do hospital. O que está contribuindo para que eu compreenda o doente mental e o papel do enfermeiro neste novo modelo de assistência é o curso de psicologia, (...) e devo ressaltar o próprio CERSAM (Enf 06).

Para os enfermeiros, os conteúdos teóricos e práticos da graduação foram insuficientes para instrumentalizar sua prática e a busca pela especialização passou a ser necessária para complementar sua formação. Durante muito tempo, a academia teorizou sobre a história de loucura e fundamentou a clínica na instituição hospício, sendo natural que os profissionais se sintam confusos quanto a seu papel e atribuam essa dificuldade ao seu despreparo técnico.

Considerando que não é somente o curso formal que prepara o enfermeiro para as novas funções, torna-se necessário utilizar as várias estratégias e fontes disponíveis para buscar o conhecimento relevante para enfrentar o novo, como na fala a seguir: ...a formação acadêmica viabilizou esse caminho. Mas, acredito na formação como um projeto pessoal, contínuo, envolvendo outros saberes para um novo desempenho dentro de um serviço absolutamente inovador (Enf 07). A consciência de que a Universidade representa apenas o caminho inicial no processo de formação, que deve ser contínuo, parece-nos adequada, pois incorpora a busca de novos saberes e práticas que possibilitam um fazer crítico e sintonizado com o projeto de desinstitucionalização da loucura.

Ações desenvolvidas no seguimento pela equipe

Os CERSAMS vêm inaugurando um espaço de interlocução com a loucura, reinventando o trabalho clínico. O exercício da cidadania orienta todas as atividades desses serviços, sempre perseguindo a possibilidade de reinserção do portador de transtornos psiquiátricos na família, no trabalho, na vida social e afetiva, como pode ser constatado a seguir: ...o projeto foi montado com dois eixos básicos: o eixo clínico e o eixo político. Do ponto de vista clínico são oferecidos aos pacientes, de acordo com a indicação do técnico, os seguintes dispositivos: tratamento medicamentoso, psicoterapia, oficinas variadas, idas ao cinema, visitas a galerias de arte, natação, futebol, passeio a praças, parques, oficinas de dança, autocuidado, culinária e, ainda, a permanência dia. No eixo político há o incentivo à participação dos usuários nos centros de convivência e nas associações dos usuários e família de saúde mental (Enf 08).

Nas reuniões realizadas com os familiares dos usuários, questões como esclarecimento sobre a desinstitucionalização, funcionamento do serviço e tratamento do usuário são abordadas. Essa é uma tarefa difícil, pois exige a invenção de novas formas para se relacionar com a clínica e a loucura, além de prever mudanças necessárias no campo institucional. Para uma entrevistada, ...além do acompanhamento terapêutico da escuta e psiquiatria, faz-se um trabalho junto à família, quando o usuário a possui, conclamando-a a uma parceria neste processo. Se, por exemplo, o usuário não tem família, este é encaminhado para o pernoite em albergues/centro de população de rua (Enf 02). Assim, a referência/contra-referência a outros serviços, passada a crise, é fundamental para garantir a continuidade de êxito desse projeto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mudança de paradigma no tratamento do doente mental, de uma perspectiva manicomial e asilar para um tratamento ambulatorial, com o consentimento e participação do paciente e família tem se mostrado opção adequada e aceita pelos profissionais. Sob essa perspectiva, a SMSA/BH, em sua proposta de atendimento ao doente mental nos CERSAMS, incorpora os princípios internacionalmente preconizados e cria novas possibilidades de abordagem ao portador de sofrimento psíquico através de equipes interdisciplinares.

O enfermeiro, inserido nas equipes interdisciplinares, participa das atividades definidas pela equipe de saúde mental, interfere e conduz o processo de atendimento e seguimento dos portadores de transtornos psiquiátricos, como qualquer outro técnico de saúde mental, e orienta a equipe de enfermagem, atendendo às especificidades da profissão. Vive, assim, a experiência de um trabalho inovador, integrado à equipe de saúde mental, contribuindo, como qualquer outro técnico, para a melhoria do atendimento. A organização e a rotina de trabalho dos CERSAMS estão sendo construídas no dia-a-dia, de acordo com a realidade concreta dos usuários dos serviços e necessidades dos pacientes atendidos.

O processo de formação na graduação, por si só, não lhe confere o instrumental necessário à sua prática nos CERSAMS, deixando claro a necessidade da busca de conhecimentos específicos, novas habilidade e atitudes na relação com o paciente, família, comunidade e outros profissionais, para o enfrentamento das questões cotidianas do trabalho.

A criação dos CERSAMS representa proposta inovadora de implementação dos princípios da Reforma Psiquiátrica, apesar das diversas dificuldades encontradas. Inovadora, também, é a inserção do enfermeiro na equipe de técnicos de saúde mental, participando de todo o processo de atendimento/seguimento do portador de transtornos psiquiátricos. A despeito de reconhecer que muito ainda há que se fazer, acreditamos que os passos trilhados e os avanços alcançados são passíveis de ajustes, formulações e discussões, no sentido de aprimoramento.

Recebido em: 14.1.2002

Aprovado em: 9.6.2003

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Out 2003

Histórico

  • Aceito
    09 Jun 2003
  • Recebido
    14 Jan 2002
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