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Uma escola exigente: estratégias de escolarização em instituições Waldorf 1 1 Disponibilidade de dados: o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente devido à preservação do anonimato das pessoas entrevistadas. A solicitação de acesso aos dados pode ser feita diretamente aos autores, pelo e-mail: tsalevi@gmail.com

A demanding school: schooling strategies in Waldorf institutions

Resumo

Este artigo discute as estratégias de escolarização de grupos familiares culturalmente privilegiados com base na análise dos processos de escolha da escola para a prole. A pesquisa de campo foi realizada em Florianópolis/SC entre 2017 e 2019. O material mobilizado consistiu de 14 entrevistas com mães e pais que têm seus filhos matriculados em uma das sete escolas investigadas, além de oito entrevistas com professoras das instituições e a observação participante de um conjunto de 15 eventos escolares. O objetivo central foi estudar a relação entre os condicionantes sociais e culturais das famílias e as formas de escolarização dos filhos, tomando instituições Waldorf como terreno empírico. As principais conclusões apontam para a importância do capital social familiar ao longo do processo de escolha escolar, assim como de disposições compatíveis com as prescrições da Pedagogia Waldorf, com destaque a um altíssimo investimento de tempo e de energia na escolarização dos filhos e em interações com a instituição.

Palavras-chave
Estratégias de escolarização; Escolha do estabelecimento de ensino; Mobilização familiar; Relação escola-família; Escola Waldorf

Abstract

This article discusses the schooling strategies of culturally privileged family groups based on analyzing school choice processes for their offspring. The field research was conducted in Florianópolis/State of Santa Catarina between 2017 and 2019. The material consisted of 14 interviews with parents who have their children enrolled in one of the seven schools investigated, eight interviews with teachers from the institutions, and the participant observation of a set of 15 school events. The main objective was to study the relationship between the social and cultural conditioning factors of families and the ways of schooling their children, using Waldorf institutions as empirical grounds. The main conclusions point to the importance of family social capital throughout the process of school choice, and of dispositions compatible with the prescriptions of Waldorf Pedagogy, emphasizing a very high investment of time and energy in the schooling of the children and interactions with the institution.

Keywords
Schooling strategies; School choice; Family mobilization; Family-school relationships; Waldorf school

Introdução

Este trabalho procura discutir as relações entre educação e classes sociais pelo ângulo dos processos de escolha escolar operados por grupos familiares culturalmente privilegiados. Os resultados aqui expostos foram originados em investigação voltada à tentativa de apreensão dos vínculos entre certos condicionantes sociais e culturais e as formas de escolarização adotadas por famílias com filhos matriculados em instituições Waldorf.

A pesquisa de campo foi realizada em Florianópolis/SC entre 2017 e 2019. O principal material mobilizado consistiu de um conjunto de entrevistas com mães e pais (n=14) que tinham seus filhos matriculados em uma das sete escolas investigadas. Também foram feitas entrevistas com professoras (n=8) daquelas instituições e a observação participante de um conjunto de eventos escolares (n=15) como reuniões, festas e palestras.

Um dos pressupostos centrais da abordagem adotada se apoia na percepção desenvolvida, entre outras, por Monique de Saint Martin ( 1999SAINT MARTIN, Monique de. Uma boa educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 20, n. 66, p. 104-122, 1999.) , Agnès Van Zanten ( 2007VAN ZANTEN, Agnès. Reflexividad y elección de la escuela por los padres de la clase media en Francia. Revista de Antropología Social, Madrid, n. 16, 2007.) e Élisabeth Flitner ( 2004FLITNER, Élisabeth. Conditions culturelles et politiques du choix de l’école à Berlin, Éducation et Sociétés, Louvain-La-Neuve, v. 14, n. 2, p. 33-49, 2004.), de que a escolha escolar depende em grande medida da imagem que os pais têm da “boa educação”, da “boa escola” ou da “escola mais adaptada às necessidades de seu filho”. Nessa linha, não apenas critérios conscientes e explícitos influenciariam a decisão. Também critérios implícitos, como os associados à “condição educacional e social dos pais, ao significado social e cultural do sucesso escolar em dada sociedade, à estrutura do sistema educacional e a condições locais” ( FLITNER, 2004, p. 33FLITNER, Élisabeth. Conditions culturelles et politiques du choix de l’école à Berlin, Éducation et Sociétés, Louvain-La-Neuve, v. 14, n. 2, p. 33-49, 2004.), seriam determinantes no processo.

A perspectiva assumida neste trabalho toma, assim, a escolha do estabelecimento de ensino para os filhos como parte de investimentos de longo prazo inseridos em um conjunto de estratégias de reprodução social BOURDIEU ( 1993BOURDIEU, Pierre. À propos de la famille comme catégorie réalisée. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 100, p. 32-36, déc. 1993., 2002BOURDIEU, Pierre. Estrategias de reproducción y modos de dominación. Colección Pedagógica Universitaria, Xalapa, n. 37-38, p. 1-21, ene./dic., 2002.). Como todas as demais estratégias, as escolares e educativas somente podem ser compreendidas em relação com o patrimônio de recursos disponível e com as condições dos mecanismos para sua transmissão. Famílias em posições vantajosas, nesse sentido, não apenas dispõem de maior cabedal relativo de recursos, mas também de condições mais favoráveis de informação, percepção e controle dos instrumentos de reprodução – como o mercado de escolas, por exemplo. Assim, tendem a engajar maior grau de reflexividade em um processo de planificação, racionalização e individualização crescente da experiência cultural infantil NOGUEIRA ( 2005NOGUEIRA, Maria Alice. A relação família-escola na contemporaneidade: fenômeno social/interrogações sociológicas. Análise social, Lisboa, v. 40, n. 176, p. 563-578, 2005.).

À diferença das camadas sociais que no Brasil dependem do sistema público de ensino para a escolarização dos filhos, os grupos privilegiados dispõem de alternativas crescentemente diversificadas de estabelecimentos privados em um mercado escolar que favorece a segmentação não apenas entre público e privado 4 4 Dados dos censos escolares do INEP/MEC mostraram um crescimento de 16,1% para 19,1% das matrículas em escolas particu- lares de educação básica do país de 2009 a 2019. Em número de estabelecimentos, cresceram de 15% para 22% as escolas privadas dentro do total de escolas de educação básica no Brasil entre 2013 e 2019 BRASIL ( 2020). , mas também no interior do próprio espaço do sistema privado 5 5 Situação muito semelhante de segmentação é descrita por Veleda ( 2004) em estudo na Argentina. .

Caberia destacar que, embora alguns trabalhos já tenham sido feitos no Brasil a respeito da pedagogia Waldorf 6 6 A pedagogia Waldorf foi desenvolvida por Rudolf Steiner (1861-1925), embasada em sua doutrina filosófica, a Antroposofia. De forma geral, as escolas Waldorf são associativas, sem fins lucrativos, seguem o currículo dos países onde estão presentes, acrescentando disciplinas como alemão e euritmia e dando grande foco à formação artística e humanista. , raros a discutiram em perspectiva sociológica. Avançando a partir das discussões de Maria Struchel ( 1988STRUCHEL, Maria Aparecida Zaparolli. Uma escola exotérica. 1988. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1988.) – sobre os aspectos conservadores da proposta – e de Juliana Pinto ( 2009PINTO, Juliana da Silva Sardinha. A escolha de escolas Waldorf por famílias de camadas médias. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.), quanto à adesão de famílias de camadas médias com estilos de vida “em sintonia” com o que as escolas prescrevem, nesta pesquisa buscamos explorar nuances importantes das condições de adesão das famílias a essas escolas.

Em nosso campo de pesquisa encontramos muitas similaridades com os achados de Pinto ( 2009PINTO, Juliana da Silva Sardinha. A escolha de escolas Waldorf por famílias de camadas médias. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.) em Belo Horizonte/MG. Sua definição de “família Waldorf ideal” e “família não-Waldorf”, entretanto, nos instou a aprofundar a compreensão dos processos de adesão a essa proposta pedagógica, analisando seus condicionantes sociais e mirando uma captura mais detalhada de elementos que julgamos relevantes para o entendimento do fenômeno. Parte desses pontos surgiu com a própria realização do campo. Entre eles, destacamos: i) a importância das redes de sociabilidade e o peso da circulação de informações na elaboração dos projetos educativos; ii) o lugar da criança na família e sua proteção; iii) a explicitação das dúvidas, hesitações e vaivéns no processo de escolha do estabelecimento de ensino; iiii) o valor da mobilização familiar frente à escolarização da prole e a admiração e assimilação das prescrições da pedagogia Waldorf nos espaços domésticos.

Entendidas como uma alternativa aos modelos de escolarização privada considerados tradicionais, as escolas Waldorf caracterizam-se pela oferta de serviços que, em boa medida, se contrapõem ou recusam aquilo que outras escolas oferecem. 7 7 As escolas Waldorf podem ser pensadas sob uma ótica de “negação”, isto é, como escolas que “não têm cara de escola”. Isso porque há um sentimento, sobretudo na Educação Infantil, de que os espaços “parecem casas” e as professoras “parecem mães”. Outro aspecto dessa “negação” é o econômico. O entendimento de que as escolas são “associações sem fins lucrativos” (as mensalidades cobradas são utili- zadas para manutenção da escola) parte de uma visão de que a educação não deveria ser um bem comercializável. Esta perspectiva se ancora numa negação coletiva do caráter comercial e dos interesses e ganhos econômicos envolvidos no mercado escolar – como argumenta Pierre Bourdieu ( 2004) em relação ao mercado de bens simbólicos. Em especial, um atendimento massificado e impessoal em um ambiente padronizado, a separação entre escola e família, e um ensino pragmático, voltado à preparação do aluno para o Ensino Superior. Como veremos, as expectativas depositadas pelos pais nos estabelecimentos estudados remetem a noções centrais da Pedagogia Waldorf, como a ideia de “proteção” das crianças e a de proximidade e parceria entre família e escola.

As sete escolas pesquisadas têm diferentes tamanhos e foram selecionadas em função de sua visibilidade e relevância para a compreensão da expansão desta pedagogia na cidade de Florianópolis. A mais antiga foi fundada em 1980 e a mais recente em 2017. A escola pioneira é vista como referência para as outras iniciativas e é também a única que oferece turmas até o Ensino Médio. Três escolas oferecem Educação Infantil e Fundamental e outras três apenas Educação Infantil. Grande parte dos estabelecimentos se encontra em uma região específica da cidade (leste da ilha), caracterizada pela expansão imobiliária e a fixação de camadas sociais privilegiadas. De acordo com professores entrevistados, há uma boa comunicação entre as instituições, existindo um esforço de sincronização dos calendários e cooperação na distribuição das vagas disponíveis.

Algumas características dos grupos familiares

Situados entre os estratos sociais intermediários e superiores, mais próximos do polo culturalmente dominante do que do econômico, os casais estudados se destacam pela posse de montante expressivo de capital cultural. Tanto a mãe quanto o pai concluiu ou estava concluindo o Ensino Superior na ocasião da pesquisa, com forte predomínio de áreas das humanidades e afins. Muitos deles deram continuidade aos estudos em nível de mestrado e de doutorado. A relativa variedade de ocupações dos pais revela, no entanto, a prevalência de atividades cuja relação com o conhecimento e o saber escolar tem um caráter menos aplicado ou vinculado ao domínio econômico e do setor privado. Isto é, há forte proximidade com o universo da ciência, da educação, da cultura e da saúde, com destaque a atividades de ensino e de pesquisa ligadas ao serviço público. 8 8 Não havendo, necessariamente, correspondência entre formação e ocupação, entre as mulheres as ocupações citadas foram: “mãe”, “do lar”, pesquisadora, empresária, funcionária pública, artista, doula e terapeuta, professora da rede municipal, secretária, gerente de loja e estudante bolsista de doutorado. Entre os homens, as ocupações citadas foram: professor universitário, trabalhador da tecnologia de infor- mação, funcionário público, trabalhador em editora, trabalhador em construções com bambu, geólogo, terapeuta, padeiro e dono de restaurante.

Chama à atenção a origem geográfica desses indivíduos. A grande maioria não é natural de Florianópolis, parte vem do interior de Santa Catarina e, sobretudo, de outras capitais de estados do País. Quatro deles são estrangeiros, vindos das capitais da Argentina, Itália, Portugal e Espanha. Os grupos familiares em questão são compostos por casais heterossexuais casados ou em união estável, com média de dois filhos (apenas dois tinham três filhos). O número reduzido de filhos, a distância entre o nascimento de cada filho e, por vezes, a maternidade/paternidade “tardia”, indicam um planejamento familiar afinado com a disposição dos pais em investir tempo e dinheiro na prole, reunindo assim os recursos para lhe proporcionar o tipo de escolarização desejado.

Nessa direção, os investimentos na escolarização não se dissociam daquilo que é classificado de modo recorrente como “dedicar-se aos filhos” ou “cuidar dos filhos”. Essas noções são compreendidas pelos pais como uma oferta aos filhos – de educação, estudos, oportunidades – de algo externo à família, no sentido físico (uma instituição) e também subjetivo (valores, instrução). Na relação estabelecida com as escolas Waldorf, “dedicação” e “cuidado” aparecem como tarefas a serem divididas de modo intenso e equilibrado entre pais e instituição, com grande exigência de tempo e energia dos primeiros. Alguns diriam que as escolas Waldorf são muito exigentes... para os pais!

Como sabido, a disponibilidade de tempo para a educação dos filhos depende tanto de condições materiais de existência – econômicas e de atividades de trabalho – quanto de percepções sobre o próprio sentido ou valor da educação e de seus modos de realização. É assim, por exemplo, que pais com abundância de recursos econômicos e uma gestão flexível do tempo, mas sem uma visão “participativa” do processo educativo, podem optar por deixar a cargo da escola e de outras instâncias as tarefas de educação dos filhos, limitando sua participação a eventos formais como reunião de pais. Mais do que dispor de tempo, é preciso estar disposto a dispor dele. Ocorre que aquilo que seria uma opção por “terceirizar” a educação dos filhos, como nos disse uma professora de uma escola Waldorf, não se apresentaria, no entanto, aos casais atendidos na instituição em que atua desde 2017 – quando foi chamada para colaborar com sua fundação.

[...] muitas mães que não trabalham, que podem cuidar dos filhos. Então têm um perfil elitista, tá? E que quer ter essa participação nessa educação do filho. Eles não querem terceirizar essa educação. Eles não precisam terceirizar essa educação. E assim, de certa forma, algumas mães, não é o caso de todo mundo [...], quer muito, é importante estar realmente presente e abrir um grande espaço na vida pra fazer isso. (Entrevista com professora Vitória). 9 9 Todos os nomes próprios utilizados são fictícios.

Incluindo renúncias temporárias ou definitivas à realização de outras atividades profissionais ou de formação em outras esferas da vida 10 10 Mobilizamos aqui noção desenvolvida por Florence Passy e Marco Giugni ( 2000, p. 121) para abordar o fenômeno do engaja- mento político individual. Esferas da vida (life-spheres) podem ser definidas como regiões distintas, porém inter-relacionadas, na vida de um indivíduo, cada uma com seus próprios limites, lógicas e dinâmicas. , a experiência de uma maternidade de intensa “dedicação aos filhos” predomina entre as mães entrevistadas. O prolongamento da preocupação com os cuidados voltados às crianças também se dá na escolha de uma escolarização no modelo Waldorf e no acompanhamento do processo ao longo de vários anos. 11 11 Reuniões individuais e de turma, mutirões e festas são recorrentes, assim como o convite para atuar nas comissões de trabalho das escolas. O trabalho com campanhas de arrecadação financeira para viagens de estudos e atividades artísticas (em especial, o teatro) é demandado nos anos em que essas atividades ocorrem. No geral, é esperado o diálogo constante entre responsáveis e professoras/es das crianças e jovens. Relativamente menor, o papel dos homens não é, contudo, ausente no processo de decisão escolar nem nas atividades exigidas pela instituição.

Redes de sociabilidade e busca pelo “semelhante”

Como mencionado, o acesso dos casais a informações sobre os serviços de ensino em Florianópolis aparece ligado ao estabelecimento precoce de vínculos com outros pais em situação homóloga. Em quase todos os casos pesquisados a família estava inserida, em alguma medida, em uma rede de sociabilidade onde havia pessoas conhecidas que frequentaram ou frequentavam escolas Waldorf. Servindo como fonte de informações e de ajuda, às vezes como “pontes” ( GRANOVETTER, 1973GRANOVETTER, Mark S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, Chicago, v. 78, n. 6, p. 1360-80, 1973.), oferecendo elementos para comparações e análises para embasar decisões, os integrantes destas redes são peças importantes no processo de adesão às instituições.

Van Zanten ( 2010VAN ZANTEN, Agnès. A escolha dos outros: julgamentos, estratégias e segregações escolares. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 26, n. 03, p. 409-434, dez. 2010.) chama a atenção para as redes e grupos de amigos como “informantes privilegiados” com papel importante na construção das estratégias de escolha de escolas. Entre as informações valiosas partilhadas nestes espaços estão “certas informações ‘quentes’, não comunicadas oficialmente ou difíceis de obter”. A autora se refere em especial aos critérios de recrutamento dos estabelecimentos privados, “que realizam uma seleção escolar, social e institucional frequentemente opaca para os pais”. Estas informações, segue a autora, “podem também recair sobre o procedimento concreto a seguir para ter acesso aos estabelecimentos” ( VAN ZANTEN, 2010, p. 423VAN ZANTEN, Agnès. A escolha dos outros: julgamentos, estratégias e segregações escolares. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 26, n. 03, p. 409-434, dez. 2010.).

Interessada em matricular sua filha pequena numa escola Waldorf, Lara buscou entre seus próximos e semelhantes informações a respeito. Descobriu então que era necessário “colocar o nome na fila” com antecedência, pois haveria poucas vagas disponíveis. Ao longo da pesquisa pareceu-nos intensa uma percepção sobre “falta de vagas” nas escolas Waldorf de Florianópolis e ouvimos com frequência que para conseguir vagas na Educação Infantil seria preciso inscrever-se “já desde a gravidez”, pois o tempo de espera poderia chegar a dois anos. Lara seguiu a dica recebida e garantiu que sua filha fosse chamada na escola desejada com certa rapidez:

Eu tenho muitos amigos cujos filhos estudam em escolas Waldorf, muitos. Da minha rede, assim, muitos amigos e amigas. São pessoas que eu gosto muito, pessoas que combinam, assim, com o estilo de vida da gente. E aí, quando a minha filha nasceu, eu comecei a pesquisar. E aí comecei a pegar indicações com os meus amigos. [...] Aí me falaram, “se você quer uma escola Waldorf, você vai e coloca seu nome na fila, porque tá um horror pra arrumar vaga.” (Entrevista com Lara, jornalista, estudante de doutorado em Educação).

Diferentes grupos – “de gestantes”, “sobre maternidade” ou apenas “de amigas” – têm grande destaque entre as redes de sociabilidade das mães, com características de ajuda mútua e fluxo intenso e informal de informações que, em parte, refletem um conjunto de afinidades de fundo social e cultural. Presenciais ou virtuais, os grupos aparecem como um dos espaços mais privilegiados de trocas julgadas muito úteis pelas mães, sobretudo aquelas que experimentavam uma primeira gestação. Informações sobre saúde (materna e infantil) e escolarização constituem ponto de forte interesse dos grupos, alguns deles liderados por profissionais da área de saúde como enfermeiras obstetras e/ou doulas e médicas/os, aglutinando mulheres em torno do tema da “maternidade”.

Nesses grupos fica evidenciado o compartilhamento de certos valores e de estilos de vida que guardam afinidade com a Pedagogia Waldorf, que poderíamos chamar de concepções holísticas da saúde e da vida. Assuntos como parto natural e parto humanizado, abordagens não medicamentosas, ioga, terapias auxiliares, algumas delas menos convencionais, e outros tantos elementos formam uma constelação de interesses associados ao cuidado de si e da criança em sentido amplo. A indicação entusiasmada de certo serviço ou tema pelos participantes, assim como o peso da eventual recomendação feita por algum profissional da saúde, não são aspectos irrelevantes nesses circuitos em que a percepção de segurança do estar entre semelhantes e o depósito de confiança nas pessoas das redes são centrais.

São muitas as mães que afirmam ter ouvido falar sobre a Pedagogia Waldorf pela primeira vez nesses grupos e que o “interesse pela instituição” teria surgido por conta de relatos de experiências que amigas e outras mulheres dessas redes tiveram.

Eu tenho um grupo de amigas, inclusive, elas... foi da roda de gestantes que eu frequentei, desse grupo da parteira e tal – que elas começaram a colocar os filhos na [nome da escola]. Então, elas falavam super bem da Waldorf, eu não conhecia. Não tinha a menor ideia do que era. E a partir dessas conversas, desse grupo, que eu comecei a comentar com o Felipe, a falar: “ah, mas eu acho que é interessante Waldorf e tal. Vamos ver!” (Entrevista com Patrícia e Felipe, atriz, “mãe” e administrador).

Eu tenho um grupo de mães que são... A gente faz estudos sobre maternidade, que é coordenado pela minha pediatra. E uma dessas, na verdade, duas dessas mães [que têm filhos na mesma escola que Lara] fazem parte do grupo. Então, de vez em quando a gente estuda uns livros e tal. (Entrevista com Lara, jornalista, estudante de doutorado em Educação).

Os grupos apontados, num primeiro momento, reúnem mulheres em torno de questões “naturais”, como gravidez, parto e amamentação. A continuidade do interesse em discutir e estudar sobre desenvolvimento infantil e escolarização, contudo, indica que são as mulheres/mães as principais responsáveis por esse trabalho nas famílias entrevistadas. A prevalência das mulheres como agentes centrais na organização da educação doméstica e escolar das crianças – em alguns casos, dedicando-se exclusivamente a isso – indica certos valores morais caros aos grupos familiares acessados e que vão ao encontro do que a Pedagogia Waldorf igualmente valoriza e prescreve, como também identificado por Struchel ( 1988STRUCHEL, Maria Aparecida Zaparolli. Uma escola exotérica. 1988. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1988.).

Importância da criança na família e proteção da infância

Abordando o que chamou de “civilização dos pais”, Norbert Elias ( 2012ELIAS, Norbert. A civilização dos pais. Revista Sociedade e Estado. Brasília, DF, v. 27, n. 3, set./dez. 2012.) ressalta o processo de longo prazo de transformação do valor atribuído à criança e à infância no Ocidente. No fundo desse processo que implicou diversas alterações no modo de criação dos filhos e, mais amplamente, na relação com os pais e adultos, estaria o reconhecimento do “direito de [as crianças] serem compreendidas e apreciadas em seu caráter próprio”, o que também configuraria “um direito humano” ( ELIAS, 2012ELIAS, Norbert. A civilização dos pais. Revista Sociedade e Estado. Brasília, DF, v. 27, n. 3, set./dez. 2012., P 470). A valorização da infância como período específico do desenvolvimento para a vida adulta e a “prescrição social de reconhecimento de uma considerável autonomia” das crianças frente ao poder dos pais redefiniriam em grande medida o papel destes. Nessa configuração, a importância da proteção e do cuidado geral da prole assume outra dimensão.

A “ilha juvenil da sociedade” em que a criança é alocada por muitos anos, como diz Elias, inclui a escola. A busca por escolas que “protejam as crianças” é um dado forte em nossa pesquisa e figura, de fato, no cerne das justificativas da escolha de escolas Waldorf para a escolarização dos filhos. As expressões mobilizadas pelos pais remetem a um medo ante uma “ameaça à infância” ou uma deturpação do que se entende por “ser criança”. Não se trata, portanto, de um medo relativo a questões físicas, de segurança pública ou de violência social, mas à “preservação da ingenuidade” e ao “direito de ser criança”. A visão de escola segura teria, assim, mais a ver com a capacidade de garantir às crianças o lugar que lhe cabe nas famílias contemporâneas ( 1986ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed., Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.; 2007SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 2007.).

Acho que o comum mesmo foi de olhar pro seu filho e olhar dessa forma, assim, de querer uma coisa tão especial e que... Proteger mesmo. Que é o que a escola Waldorf faz. Ela te protege, de uma forma tão acolhedora, que outras escolas não fazem isso. Então essa questão da proteção, até na escola, eu acho que foi o ponto comum entre todos. Porque nenhum dos pais ali quis ir pra outra escola. Outro tipo de escola. [...]. Então, acho que isso é o que une esses pais. Essa vontade de proteger tanto a criança dentro do ambiente escolar quanto dentro do ambiente em casa. (Entrevista com Diana, fotógrafa, “mãe”).

Mesmo porque a infância tá sendo tão massacrada, né? Que acho que a gente colocou ela nessa escola também nessa esperança de proteção, né, da infância. Então, muitas coisas relacionadas ao consumo também, isso foi uma das coisas que a gente colocou na escola, é uma escola que você vê... O público, tudo é mais simples, menos voltado pro consumo [...]. Essa questão digital também. Então, ela não tem celular, várias crianças da sala dela não têm celular. Algumas já têm no quinto ano. A gente sabe que isso tá chegando, né, mas ela não tem celular. (Entrevista com Celeste, psicóloga, pesquisadora).

A associação entre estabelecimento escolar e “proteção” dos filhos possui sentidos mais amplos e se refere à adequação de diferentes espaços ou mundos às crianças. Em primeiro lugar, é notória a preocupação com o “mundo lá fora”, ideia que faz referência em especial, sublinhe-se, a abordagens pedagógicas “tradicionais”. Trata-se, nesse sentido, de procurar proteger a criança da “competitividade”, da “urgência de alfabetização” e de “muitos estímulos” na primeira infância.

Caberia enfatizar que, para a Antroposofia, a educação até os sete anos (Educação Infantil) deve ter como objetivo mostrar à criança que “o mundo é bom” e, de sete a 14 anos (Ensino Fundamental), que “o mundo é belo”. As escolas Waldorf buscariam, assim, resguardar as crianças dos problemas externos ao ambiente escolar, evitando que elas precisem lidar com experiências fortes, trágicas e estressantes. O espaço da escola é extremamente protegido para que dentro dele os educandos possam se sentir “seguros e felizes” ( ROCHA, 2006, p. 561ROCHA, Doralice Lange De Souza. Concepções de liberdade na educação Waldorf: um estudo de caso. Educação, Porto Alegre, v. 29, n. 3 (60), p. 551-566, 2006.).

Mas o temor expresso pelos pais também diz respeito – e isso é central – a formas de criação doméstica e a hábitos de consumo de crianças e pais que consideram condenáveis. Isto é, refere-se ao universo das “outras famílias”, que poderíamos denominar “padrão”. Associados a características do mundo contemporâneo como praticidade, rapidez, atratividade, esses hábitos são antípodas daquilo que a pedagogia Waldorf defende e é deles que os pais querem manter seus filhos afastados. O cuidado com a alimentação e com os tipos de brinquedos têm especial relevância e estão entre os pontos mais citados por nossos entrevistados. É o convívio com a criança que “chupa bala”, “come porcaria”, a criança que “tem celular”, “assiste televisão” – que, na perspectiva Waldorf, seria uma criança desprotegida e mal cuidada – que essas famílias querem evitar.

Em contraponto às experiências escolares rígidas, busca-se uma escola acolhedora; em contraponto à “preparação para o vestibular”, busca-se a “proteção da infância”; em contraponto à exposição a telas e brinquedos eletrônicos, incentiva-se o “brincar livre”. No limite, outras experiências escolares são vistas como “cruéis” com as crianças. Essa percepção mais extrema é verbalizada, por exemplo, por Diana como motivação para que liderasse a criação de uma nova escola Waldorf em Florianópolis:

Não fiz a escola pro meu filho. Eu fiz uma escola porque eu acho que todo mundo tinha que colocar a criança na pedagogia Waldorf. Não sei, eu quero proteger, assim, as crianças de uma certa forma, sabe? Tipo, até as crianças de escola pública, principalmente, eu gostaria que tivessem... [...]. Eu acho que podia ter pelo menos uma pedagogia similar, que não fosse tão cruel, assim, com as crianças. (Entrevista com Diana, fotógrafa, “mãe”).

A percepção das escolas Waldorf como espaços de “proteção da infância” sugere a busca por um ambiente muito parecido com o doméstico, este compreendido e naturalizado como espaço de “cuidado” e “abrigo” das crianças. A definição das escolas como “bolhas”, em referência ao fechamento frente “aos problemas do mundo” e a uma suposta homogeneidade entre as pessoas e seus valores, foi frequente nas falas de pais e mães entrevistados. No “ambiente Waldorf”, o convívio com o diferente não parece ser um valor central. Ao contrário, busca-se sobretudo o “próximo”, no sentido de posição social, estilo e valores, o que em boa medida também se reflete geograficamente. 12 12 São frequentes questionamentos se alunos Waldorf não tenderiam a vivenciar uma socialização mais fechada ao “mundo real” e, portanto, talvez saíssem da escola menos “preparados para a vida”, com dificuldades de inserção. Note-se que entre as estratégias de divulga- ção da pedagogia que encontramos está a divulgação de informações sobre egressos – inclusive ‘famosos’ – no Brasil e no mundo. Jonas Bach ( 2016), por exemplo, elabora um panorama dos destinos profissionais de ex-alunos Waldorf indicando grande diversidade de percursos, ainda que com leve predominância de atuações em áreas de educação e de artes.

A valorização da homogeneidade social, do estar entre iguais – experiência, sem dúvida, geradora de segurança –, é bastante indicativa dos critérios de escolha operados pelos pais. Essa procura por uma “escola diferente” tem como corolário a produção de fronteiras sociais e culturais no interior das quais os agentes se assemelham, se reconhecem, e cujos princípios de distinção tendem a ser incorporados pelos alunos.

Não consigo imaginar outra escola pra colocar minha filha. [...] Porque eu não queria que a minha filha estudasse numa escola em que as crianças não tivessem a ver com ela, que fossem crianças muito diferentes do que ela é. (Entrevista com Lara, jornalista, estudante de doutorado em Educação).

Em síntese, a lógica encontrada nas justificativas dos “pais Waldorf” corrobora o que aponta Graziela Perosa ( 2009PEROSA, Graziela Serroni. Escola e destinos femininos: São Paulo, 1950/1960. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.) em relação a outros tipos de escolas. Isto é, as escolas Waldorf oferecem para certas frações sociais uma coincidência entre as propriedades sociais das famílias e o tipo de socialização oferecido pelo estabelecimento, em um mercado no qual existem escolas “para todos os gostos”. Em um encontro vivido pelas famílias como escolha, estabelecem-se relações de extrema confiança entre as famílias e as escolas voltadas para atendê-las ( 2009PEROSA, Graziela Serroni. Escola e destinos femininos: São Paulo, 1950/1960. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.).

A busca pela escola certa: child-matching e frustrações

As formas de compreensão e de expressão dos pais sobre outras abordagens pedagógicas e espaços escolares foram analisadas a partir de narrativas em que os entrevistados reconstruíram as reflexões e as ações que os teriam levado a matricular os filhos em escolas Waldorf. Ao relatarem seus interesses, critérios de decisão e experiências efetivas de visita e/ou matrícula em diferentes escolas, mães e pais indicavam o espaço dos possíveis em termos de tipos de estabelecimentos, pedagogias e também bairros e valores monetários. O exame mais detido do percurso do conjunto de famílias na procura da instituição escolar adequada aos filhos revela muitos pontos de interesse sobre investimentos mentais, expectativas nutridas e experiências concretas conhecidas no processo de child-matching. 13 13 Ideia que consiste na busca de ajustamento entre as características da instituição escolar e as características da criança, levando em consideração elementos como ethos, orientação acadêmica e tamanho daquelas e personalidade, interesses e aspirações destas. A qualidade do estabelecimento, nesses casos, não é dada em si mesma e rankings ou listas de desempenho em avaliações públicas não são tão relevantes ( BALL; BOWE; GEWIRTZ, 1996).

Quando perguntados sobre o que buscavam ao visitar escolas, mães e pais com frequência citaram o que “não queriam” ou o que “não gostaram”. Expressavam assim uma diferença em que os gostos “se afirmam de maneira totalmente negativa, pela recusa oposta a outros gostos” ( BOURDIEU, 2008, p. 56BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2008.). As expressões de rejeição a determinados estabelecimentos apontaram especialmente o desagrado com a arquitetura escolar, a estética e a organização dos ambientes, a presença de televisões, a postura das profissionais e a comida oferecida.

As percepções sobre uma escola concreta a partir de contatos diretos mais ou menos intensos, que refletem em parte o que Ball et al. ( 1996BALL, Stephen J.; BOWE, Richard; GEWIRTZ, Sharon. School choice, social class and distinction: the realization of social advantage in education. Journal of Educational Policy, London, v. 11, n. 1, p. 89-112, 1996.) denominam “‘sensação’ de uma escola”, são em alguns casos indicadas como fatores decisivos sobretudo para a exclusão de certos estabelecimentos. Os dois trechos expostos a seguir estão entre os casos de maior explicitação e detalhamento do que teria desagradado às entrevistadas no ambiente de algumas das escolas visitadas. O descontentamento apresentado se refere antes de tudo à organização dos espaços e a elementos materiais, como a presença de grades nas salas e carpetes nos parquinhos.

Queria que fosse escola que tivesse espaço aberto. Eu não queria que fossem escolas confinadas. Porque eu visitei várias escolas que eram assim, ó [faz um gesto com as mãos], eram um monte de quartinho, sabe? Então, assim, umas coisas minúsculas, assim, esse quartinho aqui, quartinho de trocar, esse quartinho aqui de comer, esse quartinho aqui é o quartinho de não sei quê. Eu não gostei disso. Eu não gosto dessas coisas. [...] nas escolas que eu fui que era um monte de salinha, tinha algumas que tinham uns pátios, mas as crianças não ficavam nos pátios. Aí cê chegava numa sala, tudo tinha portão, sabe? Parecia que as crianças tavam numas jaulinhas. Todas as salas tinham portãozinho pra criança não ir pra lá. Eu olhava, assim: “mas o que que tem lá? Não tem nada lá do outro lado”. Entendeu? Não tem problema nenhum a criança ir ali do outro lado. Muitas gradinhas, assim. Aí eu não gostei. (Entrevista com Lara, jornalista, estudante de doutorado em Educação).

Por mais que eu ainda não tivesse convívio com a pedagogia [Waldorf], mas eu não queria um parquinho acarpetado pro meu filho. Eu já sabia o que eu queria. Eu queria uma infância verdadeira, eu queria contato, eu queria vida pro meu filho. (Entrevista com Teresa, engenheira, empresária).

Tais referências sinalizam parte dos critérios que os entrevistados afirmam ter julgado importantes ao visitar algumas instituições e dizem ter relembrado quando solicitados a explicar suas escolhas de então. O que foi apontado como “negativo” (espaços apertados, elementos de proteção como grades e carpetes, televisão, alimentação industrializada, entre outros pontos) está ausente nas escolas onde as crianças foram matriculadas. De fato, são elementos malvistos e desaconselhados pela Pedagogia Waldorf e por seus seguidores. Também outras demonstrações de descontentamento, de dificuldades e de diversas emoções relativas à escolarização da prole emergiram na reconstituição do processo pelos pais, assim como na observação de eventos em que havia mães e pais interessados em vagas. 14 14 Priorizamos eventos onde houvesse a apresentação da pedagogia para pessoas interessadas em matricular seus filhos ou que já estavam em listas de espera. Assim, foram observados eventos denominados “Palestras introdutórias à Pedagogia Waldorf”, “Que escola você sonha para suas crianças?”, “Portas abertas”, entre outros. A existência de “longas listas de espera” figura como principal fonte de descontentamento e foi citada numerosas vezes, com referência a diferentes escolas e níveis de ensino. Essa, porém, não era a única fonte de dificuldade de mães e pais que

queriam matricular ou já tinham seus filhos matriculados em escolas Waldorf.

A necessidade de harmonizar diferentes perspectivas, projetos e desejos familiares – não necessariamente formulados com clareza e, por vezes, conflitantes – em decisões cujos impactos nos filhos tendem a ser intensos e duradouros pode ser geradora de sofrimento e dúvidas ( 1996BALL, Stephen J.; BOWE, Richard; GEWIRTZ, Sharon. School choice, social class and distinction: the realization of social advantage in education. Journal of Educational Policy, London, v. 11, n. 1, p. 89-112, 1996.). Como destacado em diversos estudos ( NOGUEIRA, 1998NOGUEIRA, Maria Alice. A escolha do estabelecimento de ensino pelas famílias: a ação discreta da riqueza cultural. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 7, p. 42-56, 1998.; VAN ZANTEN, 2007VAN ZANTEN, Agnès. Reflexividad y elección de la escuela por los padres de la clase media en Francia. Revista de Antropología Social, Madrid, n. 16, 2007.; VINCENT, 2017VINCENT, Carol. ‘The children have only got one education and you have to make sure it’s a good one’: parenting and parent–school relations in a neoliberal age. Gender and Education, v. 29, n. 5, p. 541–557, jul., London, 2017.), a combinação da importância dada à criança e a pressão que recai sobre mães e pais quanto ao sucesso escolar dos filhos pode fazer a decisão de optar por um ou outro estabelecimento ser muito complexa e difícil.

Celeste, por exemplo, relatou que todo o processo de decisão sobre a escolha da escola de sua filha primogênita foi “muito difícil” e a deixou “muito preocupada”, chegando até a “passar mal”. Ao longo da entrevista, descreveu com detalhes este processo e as diferentes formas que o casal encontrou para acompanhar e tentar controlar a escolarização das filhas.

Fiz uma visita. Nós dois. Eu e meu marido fomos conversar com pais que tinham colocado na [nome da escola Waldorf], que eram colegas nossos, e como é que é, né? O que eles estavam achando. Fomos conversar com pais do [escola não Waldorf], ou seja, né? Fui fazendo um processo. É muito difícil [com ênfase]. Quando eu fui colocar minha filha aqui ao lado, na escola aqui, no dia da matrícula eu passei muito mal [risos]. Eu disse: “ai, minha filha, minha filha na escola”, de preocupação. Eu fiquei tonta. Sabe, assim? Aí você vai, você deixa, e fica... É todo um processo. Entrar na escola... é um processo. E agora, escolher também se ia pra lá ou ia pra cá, também foi um processo pra gente bem difícil, né? Vai, não vai, vai, não vai! Enfim, na verdade, eu cheguei a fazer a matrícula lá [escola não Waldorf], e também porque tinha a história da vaga, como ela não era de uma escola Waldorf, tinha que ter a vaga, se ia ter a vaga, não ia ter a vaga. (Entrevista com Celeste, psicóloga, pesquisadora).

Em duas escolas também observamos reuniões abertas destinadas a mães e pais interessados. Muitos desses eventos tiveram falas de pessoas emocionadas, por vezes relatando dificuldades vividas e experiências ruins com a escolarização da prole em outras instituições; por vezes, descrevendo como a Pedagogia Waldorf foi responsável por “grandes transformações nas vidas” e como gerou “muitas coisas positivas”. Tais situações são apresentadas aqui no intuito de retomar a dimensão da responsabilidade parental sobre a experiência escolar (exitosa) da prole.

Nessa perspectiva, Maria Alice Nogueira ( 2005NOGUEIRA, Maria Alice. A relação família-escola na contemporaneidade: fenômeno social/interrogações sociológicas. Análise social, Lisboa, v. 40, n. 176, p. 563-578, 2005.) aponta que a família contemporânea experiencia uma sentimentalização das relações em detrimento de suas funções instrumentais, como reprodução e descendência, por exemplo. Vê-se um alargamento da responsabilidade parental em relação aos filhos e estes podem chegar a ser tomados como espelhos, “onde os pais veem refletidos os acertos e erros de suas concepções e práticas educativas, os quais costumam se fazer acompanhar de sentimentos de orgulho ou, ao contrário, de culpabilidade” ( NOGUEIRA, 2005, p. 572NOGUEIRA, Maria Alice. A relação família-escola na contemporaneidade: fenômeno social/interrogações sociológicas. Análise social, Lisboa, v. 40, n. 176, p. 563-578, 2005.).

Como sabido, arrependimento e culpa são elementos potenciais em qualquer tomada de decisão. E as decisões escolares têm sido vividas como grandes decisões entre camadas sociais privilegiadas. A dúvida sobre o “acerto” nas escolhas realizadas está presente em boa parte das narrativas. E não é incomum a referência a um sentimento de “culpa” e de “arrependimento” inicial, gerador de fortes dúvidas, mas que se dissipa após algum tempo de experiência, como descrito a seguir por Lara.

Em meio ao processo de início da escolarização de sua filha, aos dois anos de idade, Lara relata que a trocou de escola, dizendo ter se “arrependido logo em seguida”. Ela indicou que, por conta das características individuais da filha (que “já falava, enquanto seus colegas ainda não”), sentiu que talvez tivesse feito uma escolha errada:

Então eu fiquei um pouco arrependida. Eu achei que eu tinha me precipitado. Falei: “acho que a gente errou”. Ela tava super bem no [Escola 1], a gente mandou pra [Escola 2] e agora ela tá entediada. Eu achava que ela tava entediada. Chegava em casa eu perguntava pra ela o que ela tinha feito, ela desconversava, não falava nada. Então eu fiquei meio assim, né? [...] Então pra mim foi uma coisa difícil. Aí eu fiquei mal. Achei que eu tinha feito, achei que eu tinha errado. Mas aí foi indo, foi indo. Ela gosta muito das professoras. E aí hoje eu acho que eu fiz a escolha certa. (Entrevista com Lara, jornalista, estudante de doutorado em Educação).

Para autores como Ball et al. ( 1996BALL, Stephen J.; BOWE, Richard; GEWIRTZ, Sharon. School choice, social class and distinction: the realization of social advantage in education. Journal of Educational Policy, London, v. 11, n. 1, p. 89-112, 1996.), tal situação se dá em meio à tarefa que determinadas famílias – definidas por eles como privileged/skilled choosers – se propõem a realizar, procurando um “encontro” entre as especificidades de suas crianças e uma escola que as acolha.

Vimos na pesquisa que em uma mesma família essa busca por um child-matching teria considerado as “diferenças” entre duas irmãs, indicando grande esforço de análise, de reflexividade e de acompanhamento individualizado das experiências escolares e, de forma mais ampla, educativas, das filhas. Para Celeste, uma escola pode ser ideal para a primogênita, mas não para a caçula:

Mas a gente ficou pensando muito qual seria. Então, a gente colocou no [escola Waldorf] porque eu achava que o [escola Waldorf] ia propiciar uma experiência mais feliz pra minha filha. Uma experiência mais calorosa, né? E ela gosta muito da escola. E eu sei que é a escola certa pra ela. Eu não sei se vai ser a escola certa pra outra. Mas pra essa eu sei que é a escola certa. Vai a favor da [nome da filha]. Vai a favor das habilidades que ela tem, da sensibilidade que ela tem. (Entrevista com Celeste, psicóloga, pesquisadora).

Ao longo da entrevista Celeste explicou por que considerava que a escola da filha mais velha talvez não fosse ideal para a filha mais nova, naquele momento com três anos de idade. Ela indicou que a caçula era “mais rápida e mais curiosa” e que provavelmente o estabelecimento não ofereceria para ela as respostas que ansiaria, no tempo que gostaria. De todo modo, Celeste utilizou o momento da entrevista para refletir sobre isso, sem ter nenhuma decisão tomada.

Diluição de fronteiras: casa e escola, admiração e trabalho

Parte relevante do trabalho professoral em escolas Waldorf é a explicação para mães e pais das práticas em sala de aula e suas justificações pedagógicas – baseadas na Antroposofia. Além disso, professoras e professores investem em conhecer profundamente cada criança, o que envolve conhecer também seus responsáveis. As escolas estabelecem canais de comunicação (publicações, palestras, reuniões, festas) e meios para o engajamento das famílias em seus espaços, tornando-as corresponsáveis pelo sucesso do trabalho pedagógico. Por trás disso está o que a Pedagogia Waldorf chama de “escola como extensão da casa”, ideia materializada em um esforço coletivo que visa a promover uma experiência “coerente e harmoniosa” para as crianças.

Entretanto, ao escutarmos relatos de grandes transformações em nível pessoal e de mudanças na rotina e no ambiente doméstico, a partir das prescrições da escola e do trabalho de agentes nela envolvidos, poderíamos também sugerir a ideia de “casa como extensão da escola”. 15 15 Alguns exemplos vistos na pesquisa que indicam a “entrada” da Pedagogia Waldorf na rotina familiar: inclusão de rituais, músicas, histórias, orações e brinquedos de materiais “naturais” e exclusão de telas, brinquedos eletrônicos e de plástico. Sugestão de atividades extra- curriculares “terapêuticas” e contraindicação de atividades como balé e futebol. Sugestão da medicina antroposófica e forte indicação que as crianças durmam mais cedo. Ao longo da pesquisa pareceu-nos que, nos casos em que havia certo desajuste, um esforço de adaptação era esperado das famílias em busca do que Pinto denominou “demanda de congruência entre o habitus familiar e o ethos escolar” ( 2009, p. 13PINTO, Juliana da Silva Sardinha. A escolha de escolas Waldorf por famílias de camadas médias. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.).

No trecho abaixo uma professora discorre sobre o trabalho professoral ser mais “fluido” quando as famílias “pegam junto”. Ou seja, caso a criança tenha em casa uma experiência muito diferente daquela prescrita pela escola, o trabalho em sala de aula seria mais difícil. No entanto, a professora ressalta que é preciso saber lidar com essas situações, em que a família não necessariamente vai se “adaptar” ou transformar seus hábitos em função do que a escola está pedindo.

Claro que a criança vai melhor, ela vai se desenvolver mais naturalmente. O outro [aluno] vai te despender mais atenção, mais trabalho do professor, né? Quando tem um encaixe que a família tá pegando junto, tá trabalhando junto, flui tudo muito melhor. Quando não tem, despende mais trabalho da gente e mais trabalho da família também, porque não é fácil. Não é fácil lidar, né? Se a família percebe que a escola pode ser um apoio e aproveita esse apoio, todo mundo cresce, né? Mas não é sempre que acontece e a gente tem que ter a tranquilidade de saber que vai lidar com todas essas situações diferentes. (Entrevista com professora Bianca).

A partir dessa profunda aproximação e diluição das fronteiras entre casa e escola, vimos professoras que sugerem práticas, indicam rotinas ideais e propõem soluções para problemas apresentados por mães e pais. Estes constroem relações de admiração e grande confiança com as professoras de seus filhos, as quais lhes oferecem dados e interpretações sobre os comportamentos e o “desenvolvimento” das crianças de forma detalhada.

As prescrições são validadas por “significados maiores”, relativos à cosmovisão antroposófica. Isto é, as explicações sobre as fases do desenvolvimento infantil, as diferentes necessidades de cada época e as “soluções” para determinados problemas são apropriadas da obra de Rudolf Steiner ou de interpretações sobre sua obra realizadas por seguidores. 16 16 Um exemplo é o livro A Pedagogia Waldorf: caminho para um ensino mais humano, de Rudolf Lanz, com mais de dez edições. O curso de formação para professores Waldorf transmite tal conjunto de conhecimentos, sendo a base das práticas em sala de aula e das prescrições transmitidas para o ambiente doméstico.

Patrícia descreveu algumas das práticas que seu filho trouxe da escola para casa e elaborou a importância de ambos os espaços “andarem juntos”. Em seu depoimento, ela reproduz a ideia de “harmonia e coerência” na experiência da criança e enxerga com bons olhos a “parceria” que se cria entre ela e a professora do filho.

Mas muitas coisas [foram incorporadas na rotina]. Tipo, na hora da refeição, a gente canta musiquinha que eles cantam aqui [na escola]. Então, a gente agradece o alimento que tá ali na mesa. A historinha que ele conta aqui, que tem a velinha depois que apaga, então a gente agora tem a velinha também em casa. Ele vai, conta a historinha, depois apaga a velinha. É tudo ele que traz assim, sabe? É muito, muito fofo. E também tem vários assuntos que a gente... Porque se a casa e a escola não andam juntas, é muito difícil. Ele aprende uma coisa aqui, em casa eu aplico outra coisa. Então, eu procuro sempre andar junto com a escola. [...] Então, a gente trabalha junto, assim. Qualquer coisa que ela [professora] me fale, eu falo com ela e a gente vai andando lado a lado, assim, bem legal. (Entrevista com Patrícia e Felipe, atriz, “mãe” e administrador).

A ideia de “parceria” entre família e escola ganha força quando constatamos a alta demanda por participação e mobilização de mães e pais na “construção da escola” da prole. 17 17 Essa “construção” tem mais de um sentido. Por vezes, é física e acontece em mutirões para reformas dos estabelecimentos; por vezes, é administrativa ou criativa, realizada em comissões de trabalho e na organização de eventos. Isso acontece de diferentes formas em diferentes estabelecimentos, mas, em comum, as instituições têm grande abertura para a entrada das famílias no espaço escolar e fazem esforços para transmitir suas visões por meio de palestras, grupos de estudos, reuniões individuais e de turma e outras atividades para adultos.

Durante a observação de um evento em uma das escolas investigadas constatamos que mães e pais, ao relatarem “aprender muito”, expressaram um sentimento de gratidão pelas aprendizagens que a escola lhes proporcionou – segundo eles, advindas das dificuldades e das alegrias de criar e manter o estabelecimento. 18 18 Fundado por um grupo de famílias um ano e meio antes do evento observado. Notamos um sentimento geral de que os processos coletivos são “engrandecedores”, com reconhecimento da importância do que estava sendo feito e a menção a emoções como “orgulho”, “carinho”, “admiração” e “comprometimento”. Distanciando-se de uma relação instrumentalizada, essas mães e pais interpretavam a escolarização de seus filhos como fruto de um “trabalho coletivo” e produzido “com as próprias mãos”.

Nesse sentido, uma das mães afirmou que “é muito legal não se sentir cliente” e ressaltou a importância de se envolver nos processos e “não comprar pronto”. 19 19 A positivação do “fazer com as próprias mãos”, em contraponto à negativação do “comprar pronto”, também pode se estender a alimentação, brinquedos, vestimentas, entre outros elementos. Há aqui um rechaço à ideia de “consumir” uma escola, entendendo a experiência de “apenas pagar mensalidades” como uma comercialização (condenável) da educação. Trabalhar para construir a “melhor escolarização possível” para a prole se estabelece, portanto, como algo moralmente superior do que “apenas comprar”. E é um investimento que as famílias – sobretudo as mães – estão dispostas a fazer, tendo em vista a dedicação e a preocupação com a vida dos filhos de modo geral. 20 20 Destacamos que a alta mobilização de grupos familiares de camadas médias em função da escolarização da prole está longe de ser algo exclusivo das escolas Waldorf. Flávia Fialho ( 2012) e Diana Mandelert ( 2005) apresentam situações homólogas em tipos de estabeleci- mentos privados diferentes. Investimentos condicionados a situações econômicas, a formações culturais e a arranjos familiares que permitem e incentivam o engajamento, tanto nas atividades de construção e manutenção das escolas quanto no acompanhamento e controle das atividades das crianças.

Considerações finais

Procuramos mostrar neste trabalho que a análise dos processos de escolha da escola para os filhos não pode ser desvinculada dos exames das condições de existência dos grupos familiares, em especial dos recursos econômicos e culturais de que dispõem e que são determinantes nas estratégias de reprodução social que colocam em ação. A objetivação desses elementos exige, por sua vez, atenção ao conjunto mais amplo de recursos ao alcance das famílias – sobretudo um capital de relações sociais mobilizável – e aos contextos concretos em que as ações e negociações se desenrolam.

Marcada por forte diversificação da oferta no polo privado do sistema de ensino, a crescente segmentação do espaço escolar brasileiro nas últimas décadas tem ampliado as possibilidades de escolha do estabelecimento de ensino aos grupos sociais que não dependem da escola pública. A essa diversificação do mercado educacional corresponde uma complexificação nos processos de tomada de decisão operados por mães e pais com filhos em idade escolar, confrontados com diversidade crescente de estabelecimentos, “métodos” e “propostas de educação”. Tal situação pode constituir desafios a pais e mães que, em certos contextos, se veem frente à necessidade de realizar escolhas que procurem compatibilizar certos desejos de escolarização com as ofertas escolares disponíveis.

Centrada em um espaço empírico relativamente restrito, nossa investigação tentou reconstituir parte das condições de opção por um universo escolar com características peculiares vivenciadas por casais em posições sociais privilegiadas, sobretudo culturalmente. Os achados são bastante contundentes, em primeiro lugar, em apontar como o processo de escolha escolar está longe de constituir uma decisão “natural”, fácil de ser tomada ou isenta de dúvidas e de frustrações. Bem dotados de recursos culturais e próximos ao universo da ciência e das humanidades, os casais estudados se caracterizam pelo alto investimento de tempo na gestão do cuidado parental. Tem destaque nesses arranjos a dedicação materna e o papel central da mãe na aquisição de informações e nas negociações sobre o projeto de escolarização dos filhos.

O investimento nesse processo se vincula de modo direto ao grau de investimento que os pais estão dispostos – no sentido sociológico do termo – a fazer no que consideram, antes de tudo, um ato de cuidado com seus filhos em todas as dimensões do indivíduo. A intensa mobilização familiar detectada nas famílias que matricularam seus filhos em instituições Waldorf é, de fato, o traço mais marcante entre as características observadas pela pesquisa.

Interessados em estabelecimentos que escapassem a modelos escolares padrão ou voltados ao desenvolvimento de certas habilidades bastante valorizadas no Brasil entre frações sociais superiores (como a aquisição precoce de idiomas estrangeiros e o foco no desempenho, por exemplo), esses casais apresentavam concepções de educação menos afins àquelas associadas a noções como competência, desempenho e competitividade. Ao recusarem relações em princípio menos exigentes e mais confortáveis que as escolas tradicionais requerem, via de regra, de pais de alunos, eles aceitaram – por vezes com algum espanto e não sem queixas – apostar em um modelo de relação escola-família que lhes demanda muito. Um modelo, como vimos, longe de parecer viável a qualquer família.

Gostaríamos de destacar, por fim, que aquilo que poderíamos chamar de processo de engajamento em escolas Waldorf não deve ser tratado de forma homogênea. Se os dados desse estudo apontam uma adesão parental que parece acontecer aos poucos – em geral liderada pela mãe –, com tendência à intensificação ao longo do tempo, caberia examinar os casos de frustração, crítica e saída do modelo institucional. Nesse sentido, seria possível à análise explorar com mais detalhes o sucesso ou insucesso no processo de identificação dos grupos familiares com a pedagogia Waldorf. Acreditamos que esse elemento da identificação com a proposta Waldorf seja mais decisivo para a continuidade do processo de escolarização do que em outras instituições.

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  • 4
    Dados dos censos escolares do INEP/MEC mostraram um crescimento de 16,1% para 19,1% das matrículas em escolas particu- lares de educação básica do país de 2009 a 2019. Em número de estabelecimentos, cresceram de 15% para 22% as escolas privadas dentro do total de escolas de educação básica no Brasil entre 2013 e 2019BRASIL. Censo da educação básica 2013: resumo técnico. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Brasília, DF: INEP, 2014. BRASIL ( 2020BRASIL. Censo da educação básica 2019: resumo técnico. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Brasília, DF: INEP, 2020.).
  • 5
    Situação muito semelhante de segmentação é descrita por Veleda ( 2004VELEDA, Cecilia. Les classes moyennes et le système éducatif en Argentine: perceptions et attentes, Éducation et sociétés, v. 14, n. 2, p. 85-100, 2004.) em estudo na Argentina.
  • 6
    A pedagogia Waldorf foi desenvolvida por Rudolf Steiner (1861-1925), embasada em sua doutrina filosófica, a Antroposofia. De forma geral, as escolas Waldorf são associativas, sem fins lucrativos, seguem o currículo dos países onde estão presentes, acrescentando disciplinas como alemão e euritmia e dando grande foco à formação artística e humanista.
  • 7
    As escolas Waldorf podem ser pensadas sob uma ótica de “negação”, isto é, como escolas que “não têm cara de escola”. Isso porque há um sentimento, sobretudo na Educação Infantil, de que os espaços “parecem casas” e as professoras “parecem mães”. Outro aspecto dessa “negação” é o econômico. O entendimento de que as escolas são “associações sem fins lucrativos” (as mensalidades cobradas são utili- zadas para manutenção da escola) parte de uma visão de que a educação não deveria ser um bem comercializável. Esta perspectiva se ancora numa negação coletiva do caráter comercial e dos interesses e ganhos econômicos envolvidos no mercado escolar – como argumenta Pierre Bourdieu ( 2004BOURDIEU, Pierre. O mercado de bens simbólicos. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5. ed., São Paulo: Perspectiva, 2004. cap. 3, p. 99-182.) em relação ao mercado de bens simbólicos.
  • 8
    Não havendo, necessariamente, correspondência entre formação e ocupação, entre as mulheres as ocupações citadas foram: “mãe”, “do lar”, pesquisadora, empresária, funcionária pública, artista, doula e terapeuta, professora da rede municipal, secretária, gerente de loja e estudante bolsista de doutorado. Entre os homens, as ocupações citadas foram: professor universitário, trabalhador da tecnologia de infor- mação, funcionário público, trabalhador em editora, trabalhador em construções com bambu, geólogo, terapeuta, padeiro e dono de restaurante.
  • 9
    Todos os nomes próprios utilizados são fictícios.
  • 10
    Mobilizamos aqui noção desenvolvida por Florence Passy e Marco Giugni ( 2000, p. 121PASSY, Florence; GIUGNI, Marco. Life-spheres, networks, and sustained participation in social movements: a phenomenological approach to political commitment. Sociological Forum, Hoboken, v. 15, p. 117-144, 2000.) para abordar o fenômeno do engaja- mento político individual. Esferas da vida (life-spheres) podem ser definidas como regiões distintas, porém inter-relacionadas, na vida de um indivíduo, cada uma com seus próprios limites, lógicas e dinâmicas.
  • 11
    Reuniões individuais e de turma, mutirões e festas são recorrentes, assim como o convite para atuar nas comissões de trabalho das escolas. O trabalho com campanhas de arrecadação financeira para viagens de estudos e atividades artísticas (em especial, o teatro) é demandado nos anos em que essas atividades ocorrem. No geral, é esperado o diálogo constante entre responsáveis e professoras/es das crianças e jovens.
  • 12
    São frequentes questionamentos se alunos Waldorf não tenderiam a vivenciar uma socialização mais fechada ao “mundo real” e, portanto, talvez saíssem da escola menos “preparados para a vida”, com dificuldades de inserção. Note-se que entre as estratégias de divulga- ção da pedagogia que encontramos está a divulgação de informações sobre egressos – inclusive ‘famosos’ – no Brasil e no mundo. Jonas Bach ( 2016BACH JR, Jonas. Como vivem os alunos Waldorf. Curitiba: Lohengrin, 2016.), por exemplo, elabora um panorama dos destinos profissionais de ex-alunos Waldorf indicando grande diversidade de percursos, ainda que com leve predominância de atuações em áreas de educação e de artes.
  • 13
    Ideia que consiste na busca de ajustamento entre as características da instituição escolar e as características da criança, levando em consideração elementos como ethos, orientação acadêmica e tamanho daquelas e personalidade, interesses e aspirações destas. A qualidade do estabelecimento, nesses casos, não é dada em si mesma e rankings ou listas de desempenho em avaliações públicas não são tão relevantes ( BALL; BOWE; GEWIRTZ, 1996BALL, Stephen J.; BOWE, Richard; GEWIRTZ, Sharon. School choice, social class and distinction: the realization of social advantage in education. Journal of Educational Policy, London, v. 11, n. 1, p. 89-112, 1996.).
  • 14
    Priorizamos eventos onde houvesse a apresentação da pedagogia para pessoas interessadas em matricular seus filhos ou que já estavam em listas de espera. Assim, foram observados eventos denominados “Palestras introdutórias à Pedagogia Waldorf”, “Que escola você sonha para suas crianças?”, “Portas abertas”, entre outros.
  • 15
    Alguns exemplos vistos na pesquisa que indicam a “entrada” da Pedagogia Waldorf na rotina familiar: inclusão de rituais, músicas, histórias, orações e brinquedos de materiais “naturais” e exclusão de telas, brinquedos eletrônicos e de plástico. Sugestão de atividades extra- curriculares “terapêuticas” e contraindicação de atividades como balé e futebol. Sugestão da medicina antroposófica e forte indicação que as crianças durmam mais cedo.
  • 16
    Um exemplo é o livro A Pedagogia Waldorf: caminho para um ensino mais humano, de Rudolf Lanz, com mais de dez edições.
  • 17
    Essa “construção” tem mais de um sentido. Por vezes, é física e acontece em mutirões para reformas dos estabelecimentos; por vezes, é administrativa ou criativa, realizada em comissões de trabalho e na organização de eventos.
  • 18
    Fundado por um grupo de famílias um ano e meio antes do evento observado.
  • 19
    A positivação do “fazer com as próprias mãos”, em contraponto à negativação do “comprar pronto”, também pode se estender a alimentação, brinquedos, vestimentas, entre outros elementos.
  • 20
    Destacamos que a alta mobilização de grupos familiares de camadas médias em função da escolarização da prole está longe de ser algo exclusivo das escolas Waldorf. Flávia Fialho ( 2012FIALHO, Flávia Barros. Mobilização parental e excelência escolar: um estudo das práticas educativas de famílias das classes médias. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.) e Diana Mandelert ( 2005MANDELERT, Diana da Veiga. Pais na gestão da escola: mudam as relações? Uma análise sociológica de uma instituição judaica. 2005. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.) apresentam situações homólogas em tipos de estabeleci- mentos privados diferentes.

Editado por

Editor:

Profa. Dra. Marília Pinto de Carvalho

Tsamiyah Levi

é estudante de doutorado em educação na Universidade Estadual de Campinas, mestre em sociologia política e licenciada em ciências sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Ernesto Seidl

é doutor e mestre em ciência política e bacharel em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professor titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2021
  • Revisado
    08 Fev 2022
  • Aceito
    22 Mar 2022
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