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Barreiras de acesso à Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos do Oeste do Pará

Access barriers to Primary Health Care in remote rural municipalities of Western Pará state, Brazil

Barreras de acceso a la Atención Primaria de Salud en municipios rurales remotos del Oeste del estado de Pará, Brasil

Resumo

Analisa-se neste artigo o acesso à Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos do Oeste do Pará, discutindo barreiras e desafios ante as especificidades dos territórios amazônicos. Tratou-se de estudo qualitativo em cinco municípios com lógicas espaciais distintas, assentadas em rios ou estradas. Realizaram-se 58 entrevistas com gestores, profissionais da saúde e usuários, além de visitas a unidades básicas de saúde, em 2019. A matriz de análise contemplou: acessibilidade geográfica, acessibilidade organizacional, unidade básica de saúde como primeiro contato e Atenção Primária à Saúde na rede assistencial. Identificou-se que as barreiras de acesso geográfico envolvem grandes distâncias, tempos, custos, precárias condições de vias e transportes, com variação sazonal diferenciada, conforme fluxos fluviais ou terrestres. A acessibilidade organizacional é dificultada pela oferta insuficiente de consultas, exames, medicamentos, restrição nos dias de funcionamento e ações itinerantes, acentuadas pela elevada rotatividade profissional. As unidades básicas de saúde constituem-se como serviço de primeiro contato, todavia com procura condicionada à resolutividade e à satisfação percebidas, destacando-se a atuação do agente comunitário de saúde. O suporte da atenção especializada é precário, com dificuldades de oferta, regulação, transporte e comunicação. O cenário socioambiental amazônico requer estratégias singulares para oferta e organização dos serviços, refletidas em financiamento específico.

Palavras-chave:
acesso aos serviços de saúde; saúde rural; atenção primária à saúde

Abstract

This article analyzes the access to Primary Health Care in remote rural municipalities in Western Pará state, Brazil, discussing barriers and challenges before the specificities of Amazonian territories. This was a qualitative study in five municipalities with distinct spatial logics, based on rivers or roads. There were 58 interviews with managers, health professionals, and users, as well as visits to basic health units, in 2019. The analysis matrix contemplated: geographical accessibility, organizational accessibility, primary health care unit as first contact, and Primary Health Care in the health care network. It was identified that the geographical access barriers involve great distances, times, costs, poor road conditions, and transportation, with differentiated seasonal variation, according to fluvial or terrestrial flows. Organizational accessibility is hindered by the insufficient offer of consultations, exams, medications, restrictions on the days of operation, and itinerant actions, accentuated by the high professional turnover. The basic health units are the first contact service, but the demand is conditioned to the perceived resoluteness and satisfaction, where the performance of the community health agent stands out. The support for specialized care is precarious, with difficulties in supply, regulation, transportation, and communication. The Amazon socio-environmental scenario requires unique strategies for the supply and organization of services, reflected in specific funding.

Keywords:
access to health services; rural health; primary health care

Resumen

Este artículo analiza el acceso a la Atención Primaria de Salud en municipios rurales remotos del Oeste del estado de Pará, Brasil, discutiendo barreras y desafíos frente a las especificidades de los territorios amazónicos. Este fue un estudio cualitativo realizado en cinco municipios con distintas lógicas espaciales, ubicados en ríos o caminos. Se realizaron 58 entrevistas a gestores, profesionales de salud y usuarios, además de visitas a unidades básicas de salud, en 2019. La matriz de análisis incluyó: accesibilidad geográfica, accesibilidad organizacional, unidad básica de salud como primer contacto y Atención Primaria de Salud en la red asistencial. Se identificó que las barreras geográficas de acceso involucran grandes distancias, tiempos, costos, precarias condiciones de vías y transporte, con variación estacional diferenciada, según caudales fluviales o terrestres. La accesibilidad organizacional se ve obstaculizada por la insuficiente oferta de consultas, exámenes, medicamentos, restricción de jornadas y acciones itinerantes, acentuada por la alta rotación profesional. Las unidades básicas de salud son un servicio de primer contacto, sin embargo, con demanda condicionada a la resolución y a la satisfacción percibidas, destacándose el papel del agente comunitario de salud. El apoyo de la atención especializada es precario, con dificultades de oferta, regulación, transporte y comunicación. El escenario socioambiental amazónico requiere estrategias únicas para la oferta y organización de servicios, reflejadas en financiamientos específicos.

Palabras clave:
acceso a servicios de salud; salud rural; atención primaria de salud

Introdução

O acesso aos serviços de saúde é um tema complexo e multifacetado. A despeito das variações conceituais, é central a compreensão dos fatores que interferem na capacidade de os indivíduos receberem os cuidados adequados e de qualidade, conforme suas necessidades, em tempo oportuno. O acesso se expressa no grau de facilidade dos usuários de obterem cuidados de saúde no momento de necessidades (Russel et al., 2013 RUSSELL, Deborah J. et al. Helping policy-makers address rural health access problems. Australian Journal Rural Health , v. 21, n. 2, p. 61-71, 2013. https://doi.org/10.1111/ajr.12023. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23586567 /. Acesso em: 22 nov. 2021.
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); na disponibilidade de recursos em determinado tempo e local (Donabedian, 2003 DONABEDIAN, Avedis. An introduction to quality assurance in health care. New York: Oxford University, 2003.); e na capacidade do usuário de perceber, procurar, alcançar os serviços de saúde e se envolver com eles (Levesque, Harris e Russell, 2013 LEVESQUE, Jean-Frederic; HARRIS, Mark F.; RUSSELL, Grant. Patient-centred access to health care: conceptualising access at the interface of health systems and populations. International Journal for Equity in Health , v. 12, n. 18, p. 1-9, 2013. https://doi.org/10.1186/1475-9276-12-18. Disponivel em: Disponivel em: https://equityhealthj.biomedcentral.com/track/pdf/10.1186/1475-9276-12-18.pdf . Acesso em: 8 nov. 2021.
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).

Mundialmente, a garantia de acesso aos serviços de saúde é um desafio ainda maior para as populações rurais, exigindo políticas públicas de saúde específicas (Haggerty et al., 2014HAGGERTY, Jeannie L. et al. An exploration of rural-urban differences in healthcare-seeking trajectories: implications for measures of accessibility. Health Place, v. 28, p. 92-98, 2014. https://doi.org/10.1016/j.healthplace.2014.03.005. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24793139 /. Acesso em: 10 nov. 2021.
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), desafio que ganha singularidade na Amazônia, devido às suas características geográficas e climáticas, populacionais e de déficit de infraestrutura, aprofundando desigualdades de acesso à saúde (Garnelo, Sousa e Silva, 2017GARNELO, Luiza; SOUSA, Amandia B. L.; SILVA, Clayton O. Regionalização em saúde no Amazonas: avanços e desafios. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1.225-1.234, 2017. https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.27082016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/j77vcsPR76Hxb6zjPzD9bHS/abstract/?lang=pt . Acesso em: 15 nov. 2021.
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).

As barreiras de acesso aos serviços de saúde nas regiões rurais e remotas amazônicas são abordadas na literatura, mas não com a profundidade necessária para orientar a formulação de políticas. O objetivo deste artigo foi analisar o acesso da população à Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) em municípios rurais remotos (MRRs) do Oeste do Pará, discutindo os principais desafios e barreiras para o acesso vis-à-vis às especificidades socioespaciais de distintos territórios amazônicos. Compreender as dificuldades de acesso aos serviços de saúde do SUS nos MRRs permite orientar o desenvolvimento de políticas públicas específicas, considerando suas diversidades internas.

Percurso metodológico

Tratou-se de estudo qualitativo derivado da pesquisa nacional “Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil”, com pesquisa de campo realizada de maio a outubro de 2019, a qual estudou municípios brasileiros classificados como rurais remotos, conforme tipologia rural-urbana de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Fausto et al., 2019FAUSTO, Márcia C. R.; FONSECA, Helena M. S.; PENZIN, Valéria M. (Coords.). Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ensp, 2019. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/47633 . Acesso em: 17 jun. 2022.
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).

O contexto deste estudo são MRRs do Oeste do Pará, que compõem a 9ª Regional de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Pará, com população estimada em 2019 de 927.553 pessoas e vinte municípios, dos quais oito são classificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2021)INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). 2021. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil /. Acesso em: 30 jun. 2021.
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como MRRs.

Dentre os oito MRRs da região, foram selecionados intencionalmente cinco municípios - Prainha, Aveiro, Curuá, Rurópolis e Jacareacanga - com diferentes características socioeconômicas e geográficas: extensão territorial, presença de populações tradicionais, Produto Interno Bruto (PIB) per capita, população em situação de pobreza e localização segundo fluxos fluviais ou terrestres.

O trabalho de campo ocorreu em 2019, com entrevistas presenciais gravadas mediante questionário semiestruturado e visitas a unidades básicas de saúde (UBSs), uma localizada na sede e outra no interior, em cada município, dada a existência de condições de acesso diferenciadas. Foram analisadas 58 entrevistas com perspectivas complementares de diferentes atores: dez gestores municipais - secretários de saúde (GM1) e coordenadores de Atenção Básica (GM2) -, 11 enfermeiros (ENF1 UBS sede e ENF2 UBS interior); 12 agentes comunitários de saúde (ACS1 sede, ACS2 interior) e 25 usuários de UBS (USU1 sede e USU2 interior) (Tabela 1). Os usuários foram selecionados na sala de espera das UBSs.

Alguns autores empregam os termos acesso e acessibilidade como sinônimos e outros diferenciam os conceitos. Enquanto o acesso centra-se na existência e disponibilidade dos serviços ou entrada inicial no serviço, a acessibilidade trata da composição entre necessidades de saúde, busca pelo serviço, entrada no serviço e continuidade dos cuidados. A acessibilidade é impactada pela relação entre obstáculos e capacidade da população de superar esses obstáculos - em termos de tempo, transporte e recursos financeiros (Frenk, 1992 FRENK, Julio. The concept and measurement of accessibility. In: WHITE, Kerr L. et al. (eds.). Health services research: an anthology. Washington: Pan American Health Organization, 1992. p. 843-855. ; Travassos e Martins, 2004TRAVASSOS, Claudia; MARTINS, Mônica. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 20, supl. 2, p. 190-198, 2004. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2004000800014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/PkyrsjDrZWwzzPVJJPbbXtQ /. Acesso em: 9 jul. 2020.
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). No presente estudo, entende-se a acessibilidade como a relação entre a oferta de serviços de saúde e as características dos usuários, que influenciam a busca e a utilização dos serviços. Distinguem-se a acessibilidade organizacional referente às características da oferta de serviços e a acessibilidade geográfica relacionada a aspectos geográficos que obstruem ou aumentam a capacidade das pessoas de utilizarem os serviços (Donabedian, 2003 DONABEDIAN, Avedis. An introduction to quality assurance in health care. New York: Oxford University, 2003.; Silva Júnior et al., 2010SILVA JÚNIOR, Evanildo S. et al. Acessibilidade geográfica à Atenção Primária à Saúde em distrito sanitário do município de Salvador, Bahia. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 10, supl. 1, p. s49-s60, 2010. https://doi.org/10.1590/S1519-38292010000500005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbsmi/a/KNnhNntdkYkkLtBG39Bw7rM/abstract/?lang=pt . Acesso em: 20 out. 2021.
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; Oliveira et al., 2012OLIVEIRA, Luciano S. et al. Acessibilidade a Atenção Básica em um distrito sanitário de Salvador. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 17, n. 11, p. 3.047-3.056, 2012. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012001100021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/bQzMpnPMsBqp6K36QGzyTgS/abstract/?lang=pt. Acesso em: 1 nov. 2021.
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).

A matriz de análise contemplou quatro dimensões: acessibilidade geográfica, acessibilidade organizacional, UBS como serviço de primeiro contato e APS na rede assistencial de saúde (RAS). A acessibilidade geográfica envolve localização do serviço de saúde e do local de moradia dos usuários, transporte, distância, tempo de viagem e custos. A acessibilidade organizacional contempla disponibilidade - volume, tipo de serviços, necessidade dos usuários e adequação funcional -, modo de organização da oferta para acolher os usuários e capacidade desses usuários de se acomodarem aos fatores de oferta (Assis e Jesus, 2012ASSIS, Marluce M. A.; JESUS, Washington L. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 11, p. 2.865-2.875, 2012. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012001100002. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1413-81232012001100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt . Acesso em: 17 jun. 2022.
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). A UBS como serviço de primeiro contato (Starfield, 2002STARFIELD, Barbara. Atenção Primária, equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços-tecnologia. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde, 2002. 726 p.) é influenciada pelos aspectos geográficos e organizacionais; e a APS na RAS visa expressar o papel da APS como centro de comunicação com toda a rede e o suporte dessa RAS à APS para um cuidado integral aos usuários.

Realizou-se análise temática de conteúdo, categorizando as falas com base nas dimensões preestabelecidas, selecionando-se trechos significativos e interpretando-se com identificação dos núcleos de sentido (Minayo, 1998MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5. ed. São Paulo: Hucitec, Abrasco, 1998.; Bardin, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Foram analisados também relatórios de campo elaborados pelos pesquisadores. A análise considerou dois tipos de territórios: Norte Águas e Norte Estradas, conforme classificação da pesquisa nacional e explicitado no contexto a seguir.

Contexto dos municípios estudados

Os MRRs estudados situam-se na região amazônica, são de pequeno porte, com mais da metade de população rural, baixa densidade demográfica, pequenas vilas/comunidades/colônias dispersas no território e baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (Tabela 1).

Tabela 1
Indicadores demográficos e socioeconômicos dos municípios rurais remotos selecionados, Oeste do Pará, Brasil, 2020

Nos MRRs classificados como Norte Águas - Prainha, Aveiro e Curuá -, o acesso geográfico ocorre predominantemente por via fluvial. São municípios mais antigos, onde a dinâmica dos rios modifica os modos de vida, molda as formas de ir e vir e possibilita a conexão entre pessoas, serviços e instituições (Schweickardt, Kadri e Sousa, 2019 SCHWEICKARDT, Júlio C.; KADRI, Michele R.; SOUSA, Rodrigo T. (Orgs.). Atenção Básica na Região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. Porto Alegre: Rede Unida, 2019.). Os três municípios têm em comum: alto percentual de população cadastrada no Programa Bolsa Família (PBF), o que demonstra haver alta vulnerabilidade social; áreas de preservação ambiental (exceto Curuá); e comunidades ribeirinhas.

Os MRRs Norte Estradas, Rurópolis e Jacareacanga caracterizam-se por desenvolvimento mais recente, a partir da expansão de rodovias, em especial as rodovias Transamazônica (BR-230) e Santarém-Cuiabá (BR-163), com grandes trechos precários e sem pavimentação. Sua criação foi motivada por projetos desenvolvimentistas e pela abertura das rodovias para escoamento de produção. Rurópolis, com mais de 40 mil habitantes, localiza-se no entroncamento dessas duas rodovias. Jacareacanga possui o maior PIB per capita da região, alto percentual de população indígena, imensa área territorial envolta em violentos conflitos de terra e ambientais especialmente relativos ao garimpo e aos empreendimentos como usinas hidrelétricas.

Resultados

Acessibilidade geográfica

Condições geográficas influenciam o acesso em todos os municípios, independentemente da maior parte do deslocamento intra e intermunicipal ocorrer por rios ou estradas de difícil trafegabilidade. As dificuldades de acesso dos usuários às UBSs envolvem distâncias e tempos longos para deslocamento; insuficiência e alto custo do transporte e acesso às comunidades ribeirinhas ou rurais condicionado à sazonalidade - época de chuvas/cheias ou de vazante dos rios.

Na época de vazante, algumas comunidades ribeirinhas ficam totalmente isoladas, com trajetos em que o deslocamento somente é possível em embarcações pequenas ou a pé. Nas cheias do rio, as condições de navegação e atracação das embarcações são melhores com maior proximidade aos vilarejos. Os acessos por terra - rodovias ou estradas estreitas sem pavimentação chamadas ramais/vicinais/travessões - são piores no período chuvoso, com alagamentos, riscos de deslizamento e ‘atoleiros’. Na época da estiagem, esses riscos se reduzem e o tráfego melhora; contudo, poeira intensa dificulta a visibilidade, principalmente para motos, aumentando o risco de acidentes de trânsito e problemas respiratórios.

As longas distâncias e dificuldades de deslocamento se configuram como barreiras de acesso para a população chegar aos serviços, para os profissionais acessarem seus usuários e para a gestão ofertar os serviços necessários. A elevada dispersão populacional é fator limitante para instalação de UBS em pequenas comunidades, gerando maior necessidade de deslocamentos. Por vezes, usuários acessam UBSs de municípios vizinhos limítrofes, por ser mais fácil o acesso.

Os tempos de deslocamento até a UBS mais próxima são mais longos para as comunidades do interior, com importante influência sazonal. Dependendo da época, o tempo de deslocamento até a UBS mais próxima pode triplicar. Um contraponto é a perspectiva dos usuários residentes na sede, que relatam poucas dificuldades quanto a distância/tempo de deslocamento, em geral chegando na unidade básica de saúde entre 10-15 minutos, resultado provavelmente influenciado pela seleção dos usuários entrevistados entre aqueles presentes na UBS no momento da visita, normalmente moradores próximos da UBS.

Às dificuldades de mobilidade agregam-se limitações quanto à disponibilidade de transporte, percepção que converge nas falas de gestores, profissionais e usuários. Em geral, não há transporte coletivo nas localidades e o transporte intermunicipal não é diário. O cenário frequente de irregularidade ou ausência de transportes coletivos acentua as dificuldades para a acessibilidade geográfica, agregando situações de agravamento de riscos clínicos e acidentes. Praticamente não há transportes públicos fluviais nas comunidades do interior, sendo comuns pequenas embarcações como bajaras/rabetas/canoa/casco. Os custos com combustível para embarcações do interior até a UBS de referência ou até a sede do município são altos. O regime das águas do rio, seguindo o fluxo ou contrafluxo, o tipo e peso de embarcação, a carga e o quantitativo de pessoas, impacta diretamente os tempos de deslocamento e preços de transporte. Quando há transporte nas comunidades vicinais, é insuficiente, tornando-se frequente o uso de transporte escolar para suporte de deslocamento terrestre. Há adiamento da busca pelo serviço de saúde, informado por gestores, profissionais e usuários, consideradas as dificuldades com transporte, tanto em comunidades vicinais como em ribeirinhas.

O Quadro 1 sintetiza aspectos comuns e predominantes de acessibilidade geográfica nos MRRs Norte Águas e Norte Estradas, ilustrados por falas significativas.

Quadro 1
Acessibilidade geográfica à UBS, Oeste do Pará, 2019

Acessibilidade organizacional à APS

Barreiras organizacionais de acesso estão presentes nos MRRs analisados. Nas UBSs, o número de fichas para atendimento médico e de enfermagem é preestabelecido e, frequentemente, insuficiente diante da demanda diária. Há restrições de atendimento à demanda espontânea e priorização de demanda programada com definição de turnos específicos programáticos. Quando não conseguem atendimento, usuários precisam pegar ficha e retornar à UBS em dia posterior, inclusive aqueles do interior.

As consultas, em geral, são agendadas. Nas UBSs do interior, é comum o ACS realizar o agendamento e o usuário comparecer somente no dia da consulta. A opinião dos usuários sobre a forma de agendamento é mais positiva em comparação à perspectiva dos profissionais e gestores.

As UBSs do interior, geralmente, não funcionam todos os dias da semana e nos dois turnos por dia, salvo em situações quando os médicos e enfermeiros moram na comunidade. Durante as visitas, observaram-se UBSs vazias, com oferta de consultas subutilizada e com marcada falta de medicamentos. Em UBS do interior, é frequente a oferta de atendimento apenas itinerante e sem periodicidade definida.

Outra barreira refere-se à alta rotatividade de profissionais, médicos e enfermeiros, insuficiência de ACS e técnico de enfermagem em alguns casos. Gestores explicitaram dificuldades quanto ao cumprimento de horário dos profissionais; à necessidade de reorganizar a agenda da UBS com divisão de carga horária do médico entre interior e sede; e ao compartilhamento do médico entre a UBS e o pequeno hospital municipal, medida emergencial desde a saída dos médicos do Programa Mais Médicos (PMM). O PMM foi avaliado como de impacto muito positivo no provimento, e relataram-se dificuldades de reposição importantes com a retirada dos médicos cubanos. Em um município, há desafios adicionais de fixação de profissionais para atuar em área de garimpo, por questões de violências, incluindo de gênero.

Oferta insuficiente e descontinuidade no abastecimento de insumos e medicamentos, além da ausência de coleta de exames laboratoriais na APS, foram obstáculos frequentes, intensificados em UBS do interior, tanto nas falas dos gestores como nas de profissionais e usuários. Algumas UBSs do interior não realizam coleta de preventivo por dificuldades de transporte do material coletado; outras têm demora de resultados. Essas deficiências do serviço impactam não só a qualidade e a continuidade do cuidado, mas também o orçamento das famílias de baixa renda (Quadro 2).

Quadro 2
Barreiras organizacionais de acesso à APS, Oeste do Pará, 2019

UBS como serviço de primeiro contato

O primeiro serviço de saúde que as pessoas procuram quando precisam é, em geral, a unidade básica de saúde. A cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) dos municípios varia entre 50% e 100%, mas há populações descobertas em todos os municípios. O outro serviço buscado é o serviço de pronto atendimento na sede, constituído por unidade mista, pequeno hospital municipal (geralmente com condições precárias) ou centro de saúde 24 horas. Procura que se justificaria, segundo gestores, por maior resolutividade do serviço, em casos de urgência ou de descontinuidades da equipe na UBS do interior. Nas áreas do interior, de população dispersa, o ACS é o primeiro a ser buscado, principalmente se não houver UBS na comunidade ou se for uma residência isolada.

A população procura o serviço que for mais perto ou de mais fácil acesso, independentemente de ser a UBS de referência, se fica em outro município ou se é hospital. É comum usuários buscarem a UBS da sede do município no mesmo dia de ida à sede para receber benefício previdenciário ou outro serviço, otimizando o deslocamento.

A preferência pelo atendimento na UBS é influenciada pela satisfação com o atendimento de enfermagem e por questões como privacidade em consultas/exames na UBS, ponto importante de destaque na fala dos usuários.

Embora o conjunto de municípios estudados seja classificado como rural remoto, a moradia na sede ou no interior condiciona o acesso da UBS como serviço de primeiro contato.

APS na rede de atenção à saúde

Os cinco municípios possuem algum tipo de estabelecimento de saúde na sede para atendimento de urgências, pequenos procedimentos e, em alguns casos, partos e cirurgias, ainda que insuficientes. Jacareacanga e Rurópolis têm pequenos hospitais municipais, com disponibilidade de leitos, e Prainha, uma unidade mista 24 horas, também com leitos. Rurópolis possui maternidade recém-inaugurada e estruturada nos moldes do Programa Rede Cegonha, com unidade de cuidados intermediários para neonatos. Em Aveiro e Curuá, essa unidade da sede é um Centro de Saúde 24 horas, com infraestrutura precária. Jacareacanga dispõe de laboratório próprio de malária e entomologia.

Toda a rede de serviços de saúde nos cinco municípios estudados é pública e pertencente ao SUS. Os municípios que possuem pequenos hospitais e unidades mistas conseguem realizar alguns procedimentos e cirurgias mais comuns. Em Rurópolis, o escopo de ações hospitalares poderia ser mais amplo, não fossem as dificuldades para contratação de médicos. Por vezes, os municípios organizam ações de mutirão de consultas com algum médico especialista, sem periodicidade.

A atenção especializada nos MRRs é insuficiente ou inexistente. O acesso a especialidades, exames especializados e internação é referenciado na região, tendo Santarém como município de referência. Dependendo da urgência, municípios vizinhos com melhor estrutura são acionados.

O agendamento de consultas especializadas e exames de apoio diagnóstico ocorre via sistema web Sisreg regional, nas secretarias municipais de saúde (SMSs), por meio de cotas por especialidade por município, comumente insuficientes e com longos tempos de espera. Com o encaminhamento médico em mãos, os usuários solicitam pessoalmente o agendamento na sede na SMS, no setor de regulação/marcação ou tratamento fora de domicílio (TFD), mesmo os que moram no interior. Os ACSs costumam avisar os usuários sobre as consultas especializadas marcadas, e a equipe, sobre o retorno do usuário ao domicílio.

Os altos custos de TFD são um desafio para a gestão, seja pelo custeio dos deslocamentos, seja por orçamentos inferiores à demanda ou pela concentração de atenção especializada no município-polo. Tal cenário impacta o trabalho dos profissionais e o tratamento dos usuários, gerando adiamentos ou não realização dos tratamentos, com custos frequentemente transferidos aos usuários quando a SMS não consegue arcar.

Apesar do alto custo mencionado pelos gestores, os cinco municípios dispõem de algum apoio aos usuários para transporte sanitário eletivo para TFD, com regularidade, ainda que insuficiente: caminhonete, voadeira ou ônibus, custeio de passagem de ônibus ou barco de linha, combustível para voadeira ou eventualmente fretamento de aeronave em casos graves, com custos insustentáveis.

As dificuldades para acesso à atenção especializada envolvem: longas distâncias até o município de referência; exacerbados tempos de espera; insuficiente número de vagas para especialistas; falta de leitos e dificuldades de localizar o usuário agendado, particularmente o do interior. Informalmente, usuários são orientados a buscar diretamente o serviço de urgência de municípios vizinhos ou de Santarém na tentativa de agilizar o atendimento.

Todos os municípios possuem algum tipo de transporte - carro, ambulância ou ambulancha - para pacientes em casos de urgências, todavia, por vezes insuficientes ou inadequados às condições de deslocamento. Nenhum dos municípios possui Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em funcionamento.

Quatro dos cinco municípios dispõem de casas de apoio, mas é comum os pacientes terem de custear alimentação e faltar vagas.

Não há qualquer forma institucionalizada de relação entre os profissionais da AB e da atenção especializada. A contrarreferência à UBS é incomum, ficando a informação dependente de receituários, resultado de exames, relato do usuário ou informes dos ACSs. Uma vez que o paciente é encaminhado ao especialista, todo o acompanhamento continua no serviço especializado.

Discussão: barreiras de acesso

Elementos variados e conjugados interferem sobremaneira na acessibilidade geográfica aos serviços de APS. Se por um lado a cheia dos rios favorece a mobilidade para os ribeirinhos, esse mesmo fenômeno torna-se empecilho para deslocamentos em comunidades vicinais. Norte Águas e Norte Estradas são territórios influenciados por fatores ambientais e climáticos que moldam a acessibilidade geográfica em vários sentidos, com mais desvantagens para populações do interior, se comparadas às residentes na sede dos MRRs. Essas ‘duas amazônias’, Norte Águas e Norte Estradas, se mesclam em características de infraestrutura que impactam o acesso geográfico e a organização dos serviços de saúde. Portanto, respostas para melhorias em acesso, territorialização, organização da oferta e transporte precisam ser específicas, de modo a captar as características de cada contexto e responder às necessidades em saúde locais.

Serviços de APS nem sempre estão presentes nos MRRs nas áreas mais distantes, isoladas e com populações esparsas. Essa é uma realidade dos contextos rurais remotos também em outros países, o que tem motivado a proposição de modelos assistenciais específicos para o enfrentamento da tirania da distância e da falta de serviços disponíveis para populações que vivem nessas localidades (Russell et al., 2013 RUSSELL, Deborah J. et al. Helping policy-makers address rural health access problems. Australian Journal Rural Health , v. 21, n. 2, p. 61-71, 2013. https://doi.org/10.1111/ajr.12023. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23586567 /. Acesso em: 22 nov. 2021.
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).

Preocupações sobre estratégias de territorialização estão presentes no discurso dos entrevistados, visto as distâncias, população esparsa e equipes incompletas. É necessária alguma flexibilização conforme a ida do usuário do interior à sede, com garantia de atendimento e não podendo se restringir às ações programáticas. No Brasil, esses modelos de territorialização da APS não conseguem ser contemplados em incentivos federais com padrão uniforme de UBS no território; precisam de territorialização específica com planejamento local, participação social e incentivos adequados às especificidades.

Os obstáculos geográficos limitam a mobilidade e impactam a capacidade das populações de acessarem serviços de saúde oportunamente (Wong e Regan, 2009 WONG, Sabrina T.; REGAN, Sandra. Patient perspectives on primary health care in rural communities: effects of geography on access, continuity and efficiency. Rural and Remote Health , Austrália, v. 9, n. 1, p. 1-12, 2009. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19298094 /. Acesso em: 13 out. 2021.
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; Haggerty et al., 2014HAGGERTY, Jeannie L. et al. An exploration of rural-urban differences in healthcare-seeking trajectories: implications for measures of accessibility. Health Place, v. 28, p. 92-98, 2014. https://doi.org/10.1016/j.healthplace.2014.03.005. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24793139 /. Acesso em: 10 nov. 2021.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24793139...
; Kulig et al., 2008 KULIG, Judith C. et al. How do registered nurses define rurality? Australian Journal Rural Health , v. 16, n. 1, p. 28-32, 2008. https://doi.org/0.1111/j.1440-1584.2007.00947.x. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18186719 /. Acesso em: 8 nov. 2021.
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). Diante das dificuldades, usuários criam alternativas para enfrentá-las, como a concentração de serviços e compras, por satisfação, conveniência ou busca por maior qualidade - outshopping (Sanders et al., 2015SANDERS, Scott R. et al. Rural health care bypass behavior: how community and spatial characteristics affect primary health care selection. Australian Journal Rural Health , v. 31, n. 2, p. 146-156, 2015. https://doi.org/10.1111/jrh.12093. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25219792 /. Acesso em: 24 out. 2021.
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; Whitehead et al., 2019WHITEHEAD, Jesse et al. Spatial equity and realized access to healthcare: a geospatial analysis of general practitioner enrolments in Waikato, New Zealand. Rural and Remote Health , Austrália, v. 19, n. 4, p. 1-13, 2019. https://doi.org/10.22605/RRH5349. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31623444 /. Acesso em: 19 out. 2021.
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). Entre usuários de comunidades mais distantes, é prática comum a concentração de atividades como banco, mercado e consulta na UBS, em um único dia, mas essa particularidade não se reflete na oferta de consultas e acolhimento pela UBS nesses mesmos dias. O controle de gastos com deslocamentos (tempo/dinheiro) é central na definição do momento de busca pelo serviço de saúde: imediata, tardia ou desistente.

Embora a UBS seja indicada como serviço de primeiro contato dos usuários, as características do território remoto complexificam essa busca, e a percepção dos usuários altera conforme resolutividade percebida do serviço, acessibilidade, características do atendimento, vínculo com o ACS e hábitos de busca do cuidador tradicional.

Barreiras organizacionais derivam dos modos e condições de funcionamento dos serviços, em diferentes contextos rurais, sendo recorrente a associação entre distância, características da comunidade, disponibilidade de recursos humanos e atributos da prática profissional, como observado por Kulig et al. (2008 KULIG, Judith C. et al. How do registered nurses define rurality? Australian Journal Rural Health , v. 16, n. 1, p. 28-32, 2008. https://doi.org/0.1111/j.1440-1584.2007.00947.x. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18186719 /. Acesso em: 8 nov. 2021.
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) no caso canadense.

Embora o déficit de profissionais de saúde ocorra em todo o mundo, nas áreas rurais é mais significativo. No Brasil, usuários deixam de comprar algo importante para cobrir gastos com saúde, especialmente medicamentos (Álvares et al., 2017 ÁLVARES, Juliana et al. Acesso aos medicamentos pelos usuários da Atenção Primária no Sistema Único de Saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, n. 2, supl. 2, p. 20s, 2017. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2017051007139. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-89102017000300318&script=sci_abstract&tlng=pt . Acesso em: 17 jun. 2022.
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). Carências materiais e de profissionais em áreas rurais foram sinalizadas em estudos australiano e africano, resultando em desabastecimento e interrupções do cuidado na APS (Grobler et al., 2015 GROBLER, Liesl et al. Interventions for increasing the proportion of health professionals practicing in rural and other underserved areas. Cochrane Database of Systematic Reviews, v. 6, p. 1-20, 2015. https://doi.org/10.1002/14651858.CD005314.pub3. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6791300 /. Acesso em: 15 dez. 2021.
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). A indisponibilidade de profissionais ou serviços gera menor resolutividade na APS, dificultando seu papel de porta de entrada preferencial (Almeida, Fausto e Giovanella, 2011 ALMEIDA, Patty F.; FAUSTO, Márcia C. R.; GIOVANELLA, Ligia. Fortalecimento da Atenção Primária à Saúde: estratégia para potencializar a coordenação dos cuidados. Revista Panamericana de Salud Publica, Washington, v. 29, n. 2, p. 84-95, 2011. Disponível em: https://scielosp.org/article/rpsp/2011.v29n2/84-95 /. Acesso em: 17 jun. 2022.
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). Em contextos rurais remotos amazônicos, há o agravante do elevado custeio de logística, associado a baixa densidade demográfica, baixas coberturas assistenciais e deslocamentos longos (Garnelo, 2019GARNELO, Luiza. Especificidades e desafios das políticas públicas de saúde na Amazônia. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 35, n. 12, p. 1-4, 2019. https://doi.org/10.1590/0102-311X00220519. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/vb3KBsxsHwPFM3kd3JfwDpN/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2021.
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).

O escopo de ações no interior de todos os MRRs apresentou-se limitado/seletivo, salvo algumas exceções de UBS, além de um atendimento médico muitas vezes itinerante. Modelos itinerantes ou visitas periódicas são frequentes em comunidades rurais remotas em diferentes países (Carey et al., 2018 CAREY, Timothy A. et al. What principles should guide visiting primary health care services in rural and remote communities? Lessons from a systematic review. Australian Journal Rural Health, v. 26, p. 146-156, 2018. https://doi.org/10.1111/ajr.12425. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29845693 /. Acesso em: 9 dez. 2021.
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), visando a melhores resultados em saúde e menores custos na assistência. Contudo, em geral, estão associados a outros modelos de intervenção, com atendimentos contínuos (Wakerman et al., 2008 WAKERMAN, John et al. Primary health care delivery models in rural and remote Australia: a systematic review. BMC Health Services Research, v. 8, n. 276, p. 1-10, 2008. https://doi.org/10.1186/1472-6963-8-276. Disponível em: https://bmchealthservres.biomedcentral.com/articles/10.1186/1472-6963-8-276#citeas . Acesso em: 1 jul. 2020.
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). Há necessidade, portanto, de qualificar iniciativas como os atendimentos itinerantes nos municípios rurais remotos, para garantia do cuidado contínuo, com financiamento específico que possibilite visitas periódicas, tanto para remuneração de profissionais como para apoio de transporte. Um modelo de sustentabilidade para a APS com as particularidades do território amazônico, pautado em intersetorialidade e financiamento específico, torna-se crucial para a melhoria do acesso (Fausto et al., 2022 FAUSTO, Márcia C. R. et al. Sustentabilidade da Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.605-1.618, 2022. https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.01112021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zZdBtL6QPw35vSPYz75XRPv/abstract/?lang=pt . Acesso em: 8 abr. 2022.
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).

As barreiras de acesso se agravam quanto ao acesso à atenção especializada, ambulatorial ou hospitalar. O suporte da rede de atenção especializada à APS, em geral ofertada na região de saúde com suporte via TFD, não está garantido, embora haja esforço da gestão municipal. Uma vez que o município não consegue sozinho arcar com apoio logístico para garantir acesso à atenção especializada, o ônus acaba transferido aos usuários, particularmente os que residem no interior. Situação semelhante ocorre em comunidades rurais dos Estados Unidos, do Reino Unido, de países africanos, Austrália e Canadá, evidenciando concentração desproporcional desses serviços em centros urbanos (Gruen et al., 2003 GRUEN, Russell L. et al. Specialist outreach clinics in primary care and rural hospital settings. Cochrane Database of Systematic Reviews, v. 4, p. 1-60, 2003. https://doi.org/10.1002/14651858.CD003798.pub2. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9016793 /. Acesso em: 10 nov. 2021.
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). Nos casos aqui analisados, políticas públicas para enfrentar tal situação demandam o envolvimento dos outros entes da federação, além do município.

Buscar cuidados especializados também pode consumir muito tempo, fazendo com que pacientes e parentes abandonem sua atividade laboral por longos períodos, o que causa novos impactos econômicos e para a saúde (Ensor e Cooper, 2004ENSOR, Tim; COOPER, Stephanie. Overcoming barriers to health service access: influencing the demand side. Health Policy and Planning, Oxford, v. 19, p. 69-79, 2004. https://doi.org/10.1093/heapol/czh009. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/14982885 /. Acesso em: 17 jun. 2022.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/14982885...
). A insegurança de viajar longos trechos em estradas com péssimas condições interfere na busca pelos cuidados necessários na atenção especializada (Wong e Regan, 2009 WONG, Sabrina T.; REGAN, Sandra. Patient perspectives on primary health care in rural communities: effects of geography on access, continuity and efficiency. Rural and Remote Health , Austrália, v. 9, n. 1, p. 1-12, 2009. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19298094 /. Acesso em: 13 out. 2021.
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).

Iniciativas na Política Nacional de Atenção Básica reconheceram oficialmente ações em curso na Amazônia, como custeio para ESFs ribeirinhas e fluviais (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde, 2017. ). Embora representem avanço de acessibilidade à APS, desafios como financiamento insuficiente, curta permanência na comunidade, baixo envolvimento do ACS e modelo de atenção voltado à demanda espontânea não facilitam o acesso dos mais vulneráveis e replicam rotinas dos espaços urbanos, não combatendo as desigualdades em saúde (Garnelo et al., 2020GARNELO, Luiza et al. Barriers to access and organization of primary health care services for rural riverside populations in the Amazon. International Journal for Equity in Health, v. 19, n. 54, 2020. https://doi.org/10.1186/s12939-020-01171-x. Disponível em: https://equityhealthj.biomedcentral.com/track/pdf/10.1186/s12939-020-01171-x.pdf . Acesso em: 12 nov. 2021.
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).

Estudos de revisão sinalizam que barreiras de acesso aos serviços de saúde podem gerar consequências aos cuidados em saúde, tais como: usuário tendo que reiniciar, desistir ou adiar sua busca por cuidados de saúde; agravamento na sua condição de saúde; busca de cuidados em hospital, independentemente do tipo da demanda, dentre outros prejuízos (Houghton, Bascolo e Del Riego, 2020HOUGHTON, Natalia; BASCOLO, Ernesto; DEL RIEGO, Amalia. Monitoring access barriers to health services in the Americas: a mapping of household surveys. Revista Panamericana de Salud Publica , Washington, v. 44, p. 96, 2020. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.96. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32821258 /. Acesso em: 11 nov. 2021.
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; Franco, Lima e Giovanella, 2021FRANCO, Cassiano M.; LIMA, Juliana G.; GIOVANELLA, Ligia. Atenção Primária à Saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 37, n. 7, p. 1-22, 2021. https://doi.org/10.1590/0102-311X00310520. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/VHd6TxVVpjzyJRtDWyvHkrs/abstract/?lang=pt . Acesso em: 10 abr. 2022.
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; Sousa et al., 2022SOUSA, Amandia B. L. et al. Primary health care in the Amazon and its potential impact on health inequities: a scoping review. Rural and Remote Health, Austrália, v. 22, n. 1, 2022. https://doi.org/10.22605/RRH6747. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34973683 /. Acesso em: 18 out. 2021.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34973683...
).

Uma importante fragilidade do sistema de saúde observada em nosso estudo é a ausência de comunicação entre APS e atenção especializada, aspecto que poderia melhorar o acesso, com a oferta de cuidado em saúde mais integrada, oportuna e coordenada pela APS (Almeida et al., 2018 ALMEIDA, Patty F. et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 1, p. 244-260, 2018. https://doi.org/10.1590/0103-11042018S116. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/N6BW6RTHVf8dYyPYYJqdGkk/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 jun. 2022.
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).

Em geral, observou-se convergência na perspectiva de gestores, profissionais e usuários entrevistados, mas houve limitações no estudo: os usuários do interior entrevistados captados na recepção da unidade básica de saúde foram aqueles que moravam mais perto da UBS e não aqueles com maiores dificuldades de acesso. E os resultados dos MRRs do Oeste do Pará podem, em alguns pontos, ser insuficientes para permitir generalizações para toda a Amazônia, com diferentes realidades intrarregionais.

Considerações finais

As barreiras geográficas não podem ser obstáculos à interiorização de políticas públicas e à garantia do direito ao acesso a serviços de saúde do SUS ou justificar piores condições de saúde e acesso (Garnelo, 2019GARNELO, Luiza. Especificidades e desafios das políticas públicas de saúde na Amazônia. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 35, n. 12, p. 1-4, 2019. https://doi.org/10.1590/0102-311X00220519. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/vb3KBsxsHwPFM3kd3JfwDpN/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2021.
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). O reconhecimento das especificidades geográficas deve informar o planejamento e a formulação de estratégias inovadoras que promovam a superação dos desafios impostos pelo espaço natural, lidando com as distâncias amazônicas de forma sustentável, preservando o meio ambiente.

O cenário socioambiental amazônico é heterogêneo e multifacetado e requer estratégias singulares para reduzir barreiras de acesso que considerem a diversidade geográfica, social e cultural das populações desses territórios, além de políticas intersetoriais que abarquem aspectos de infraestrutura como transporte, pavimentação, energia elétrica e internet para as comunidades do interior.

Referências

  • Financiamento

    Fonte de financiamento do trabalho de campo: Ministério da Saúde e Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ligia Giovanella e Aylene Bousquat são bolsistas de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Juliana Gagno Lima foi bolsista de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • Aspectos éticos

    O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (CEP/Ensp/Fiocruz), conforme Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) n. 92280918.3.0000.5240, de julho de 2018, e parecer n. 2.811.790, de agosto de 2018.
  • Apresentação prévia

    Este artigo é resultante da tese de doutorado em Saúde Pública, intitulada Acesso e organização da Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos do Oeste do Pará, de autoria de Juliana Gagno Lima, defendida em 2021 na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2022
  • Aceito
    28 Jun 2022
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