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Ventriculectomia esquerda parcial. Paradigmas esquecidos

Ponto de Vista

Ventriculectomia Esquerda Parcial. Paradigmas Esquecidos

Carlos A. M. Gottschall

Porto Alegre, RS

Estima-se que 7.500.000 de pessoas em nosso país sejam cardiopatas, enquanto que cerca de 30.000 submeteram-se a algum tipo de tratamento intervencionista cirúrgico ou por cateter, em 1997. Em toda essa população, foram realizados cerca de 100 transplantes cardíacos, ou seja, esse tipo de tratamento foi aplicado em 0,3% dos cardiopatas submetidos a intervencionismo. Calcula-se que um terço dos candidatos a transplante morra na fila de espera, por falta de doadores. A ventriculectomia esquerda parcial, apregoada como uma alternativa para prolongar o tempo de espera para o transplante, assim, só representaria opção terapêutica para menos de 1% dos cardiopatas necessitando de intervencionismo. Não obstante sua pequena importância como suposta solução terapêutica (comparando-se com o benefício da angioplastia, outras técnicas de intervencionismo por cateterismo ou cirurgias), a transferência da discussão sobre suas possíveis indicações e eventuais benefícios à imprensa leiga, parece ter transformado esta proposta terapêutica, de forma alguma comprovada como alternativa, no mais importante avanço da cardiologia nos últimos tempos. Assim, impõe-se discussão sobre a condução deste assunto, que, na sua aplicação, tem distorcido profundamente paradigmas ou aspectos doutrinários, pragmáticos, metodológicos e éticos.

Aspectos doutrinários - As duas generalizações mais importantes do funcionamento do músculo cardíaco dependem de: a) modificações do estiramento diastólico da fibra; b) modificações do inotropismo cardíaco. Esses comportamentos independentes, por modificações isoladas ou associadas, aumentam a potência da contração, o volume de expulsão e o débito cardíaco. No coração normal, maximamente treinado, o débito cardíaco pode aumentar cerca de seis vezes em relação ao repouso, fundamentalmente por aumento da freqüência cardíaca e da contratilidade, quase não variando o volume diastólico final em relação ao repouso. Nas inúmeras situações fisiológicas que não exigem variação do estado contrátil, o aumento do débito pode se fazer por maior distensão das fibras, o que é a base da lei de Frank-Starling 1. Através desse mecanismo, sobrecargas pressóricas ou volumétricas aumentam o volume diastólico final do ventrículo esquerdo (VE) até um ponto de equilíbrio entre pré-carga (volume diastólico final) e pós-carga (impedância aórtica), restabelecendo-se o volume de expulsão e o débito cardíaco, de modo que o coração seja capaz de devolver à circulação sistêmica todo o sangue que retornou pelas veias, sem congestionar os pulmões. Através do maior volume diastólico, mesmo com menor encurtamento sistólico, o VE consegue expulsar igual volume de ejeção que expulsaria com maior encurtamento, se tivesse menor volume diastólico. Entretanto, o preço do aumento volumétrico cavitário é gerar mais tensão parietal ventricular (lei de Laplace: a tensão na parede de uma esfera depende diretamente do raio da cavidade e da pressão interna e inversamente da espessura da parede). Assim, a hipertrofia tende a normalizar a tensão parietal ventricular.

À medida que a sobrecarga se torna excessiva ou crônica, desencadeiam-se os mecanismos permanentes que levam ao aumento de massa miocárdica 2. Quanto mais o coração aumenta a massa e o volume, menos ele se vale da contratilidade para enfrentar as necessidades funcionais, e mais do estiramento da fibra, até que o aumento de contratilidade se esgote na miocardiopatia terminal, e o coração funcione na base da máxima distensão das fibras, ou seja, de máximo volume diastólico final, volume além do qual entra na fase descendente da curva de Starling. Isto é, quanto mais estiramento menos resposta. É a fase de exaustão do mecanismo de Starling 2. Quanto mais não seja pela insuficiência de doadores, a indicação para transplante cardíaco na miocardiopatia dilatada exige presença de insuficiência cardíaca (IC) e requer que o miocárdio se encontre em distensão máxima ou quase máxima (grau funcional IV), portanto sem reserva de volume diastólico. Estando em distensão máxima e com alterações histológicas irreversíveis 3, qualquer retirada de parênquima só agregará restrição volumétrica, sem aliviar a distensão parietal.

Aspectos pragmáticos - É apregoado que a ventriculectomia esquerda parcial, ao retirar uma porção do VE 4 diminuiria a tensão parietal, reduzindo a pós-carga. Isso até pode acontecer pela diminuição de volume. Entretanto, a necessidade de o ventrículo manter um débito cardíaco já no limite inferior continua e, se o coração não possuir adequada reserva de volume diastólico, é óbvio que isso será deletério, pois o débito diminuirá mais ainda pela restrição imposta. Diminuindo de volume, o VE terá que se contrair (se conseguir) com maior encurtamento e, portanto, com maior gasto energético 2. O pequeno alívio da tensão parietal (que é conseqüência e não causa da dilatação compensatória) é sobrepassado em termos energéticos pela necessidade de maior encurtamento de um miocárdio já sem reservas. Se possuir reserva de volume e de resposta, como muitas vezes acontece, o procedimento é desnecessário. Por isso, logo após a ventriculectomia parcial, alguns índices de encurtamento parecem melhorar mas isso, provavelmente, só está antecipando novo ciclo de piora da insuficiência contrátil. Se o volume da cavidade diminuir e o indivíduo não morrer em baixo débito, para manter o mesmo volume sistólico, ou até menor, a fração de ejeção só poderá aumentar, pois, por definição, é a relação entre volume de expulsão e volume diastólico final! Essa proposta seria equivalente à indicação de retirar um pedaço de pulmão enfisematoso para melhorar o trabalho ventilatório, assim diminuindo a hiperinsuflação pulmonar, ou retirar um pedaço de rim hipertrofiado, antes de se contrair, na fase final de insuficiência renal. Em todos esses casos, o denominador comum é a retirada de parênquima, sem nada em troca. Note-se que isso é muito diferente do que excisar a parte doente do parênquima, deixando a sã, como no caso de uma aneurismectomia de ventrículo.

Critérios objetivos de indicação de transplante cardíaco por miocardiopatia obedecem rigidamente, após otimização terapêutica, a achados clínicos (como classe funcional IV da NYHA, pressão arterial sistólica <100mmHg e consumo máximo de O2 <10ml/kg/min), a achados morfológicos, (diâmetros diastólico do coração >70mm e sistólico >60mm) e a achados funcionais (fração de ejeção do VE <20%, índice cardíaco <2,2L/m2, resistência vascular sistêmica >23U Wood, pressão capilar pulmonar >16mmHg) 5,6. Indivíduos sem essas condições ainda podem apresentar razoável reserva de débito cardíaco (estamos falando de situações extremas). A literatura mostra 7 e cardiologistas com alguma experiência vêem freqüentemente pacientes com miocardiopatia isquêmica avançada, julgados inoperáveis, sobreviverem por períodos considerados impossíveis, através de tratamento clínico. Existem também excelentes resultados (sobrevida >80% em três anos) em miocardiopatas isquêmicos com fração de ejeção do VE <20%, quando submetidos a revascularização cirúrgica (pontes de safena associadas ou não com pontes de artéria mamária) 8,9. Teriam esses pacientes indicação de ventriculectomia esquerda ou a transplante cardíaco? Não: o transplante cardíaco, por tudo que envolve de aspectos éticos, psicológicos, econômicos, traumáticos, imunológicos, escassez de doadores, é necessariamente uma terapêutica de última escolha e de indicação muito precisa 5,6. A possibilidade de terapêutica como a ventriculectomia pode gerar descritérios como indicação dessa técnica em pacientes com desempenho funcional hemodinâmico muito acima do mínimo necessário para indicar transplante cardíaco. Diante disso, é lícito supor que muitos "beneficiados" por essa cirurgia apenas sobreviveram e não apresentavam, no momento, nenhuma indicação para transplante. Aqueles pacientes com indicação real apresentam mortalidade e morbidade maiores que os da fila de espera, pois a ventriculectomia esquerda parcial, nesses casos, determina aumento na incidência de morte súbita e piora da IC 10, pouco falada pelos seus defensores, o que é pior, para leigos, dando a entender que para eles o importante é o paciente sair da sala de cirurgia, ainda que dependente de assistência circulatória mecânica.

Aspectos metodológicos - Demonstrar a superioridade de uma conduta médica sobre outra é um dos problemas mais complexos em metodologia biológica, a não ser que o fato seja evidente. Demonstrar a superioridade de uma conduta sobre outra requer vários pressupostos: se faz com respeito à bioética, amostragem randomizada e suficiente, protocolos prospectivos, grupos controles para tratamentos alternativos adequados, observação isenta, análise estatística apropriada e conclusões pertinentes 11. As casuísticas da cirurgia de Batista são absolutamente limitadas para qualquer conclusão consistente 12,13, pois misturam tudo: miocardiopatias, cardiopatia isquêmica, valvulopatias, congênitos, e até técnicas cirúrgicas consagradas, como plastia mitral associada! Sabe-se que por si só a plastia mitral pode melhorar o paciente. Os indivíduos estudados deveriam ser agrupados aleatoriamente em séries perfeitamente comparáveis quanto à idade, sexo, tipo de cardiopatia, grau funcional, consumo de O2 e os desfechos (end points) deveriam ser clínicos (mortalidade, morbidade, qualidade de vida, eventos associados ou recorrentes), demonstrados com absoluta significância estatística por vários centros, e não apenas resultados de exames. Para uma resposta definitiva isso requer tempo e critério. Por exemplo, mesmo após anos de ensaios clínicos randomizados e prospectivos, ainda se questiona a supremacia da angioplastia primária sobre o uso de trombolítico no tratamento do infarto agudo do miocárdio, bem como tantas outras questões não resolvidas por estudos internacionais prospectivos.

O cientista tem que ser isento e estar pronto a rediscutir seus resultados. Atitude dogmática serve para religião, não para ciência. Preconceitos e apriorismos aos críticos só evidenciam despreparo e fragilidade do cientista.

Aspectos éticos - A arena para a discussão científica deve estar situada nos congressos médicos, nas apreciações objetivas e isentas, na análise de publicações bem revisadas, no seguimento criterioso de casos. Considero a transferência de uma discussão especializada, sem comprovação científica, para o âmbito do público leigo inapropriada. Cientistas publicam seus trabalhos em revistas científicas sérias, não em jornais ou revistas leigas. Só a falta de crítica pode explicar que simples comentário 14 em revista estrangeira seja considerado como aceitação de um método não comprovado cientificamente. Um conhecimento científico só deve ser divulgado como verdade no meio leigo quando absolutamente comprovado. Enquanto não, sua divulgação para um meio acrítico só serve de marketing e publicidade, duas atitudes incompatíveis com a ciência honesta, pois podem induzir pessoas ou colegas mal preparados a optarem por tratamento capaz de prejudicar o paciente.

Concluindo, a proposta terapêutica de ventriculectomia parcial como uma espera para o transplante cardíaco, antes de ser aceita como uma razoável alternativa, necessita ou modificar paradigmas consagrados ou explicar como pode se harmonizar com eles.

Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul/Fundação Universitária de Cardiologia

Correspondência: Carlos A. M. Gottschall – Rua Prof Ulisses Cabral, 1110 – 91330-520 – Porto Alegre, RS

Recebido para publicação em 20/2/98

Aceito em 17/8/98

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Out 1998

Histórico

  • Aceito
    17 Ago 1998
  • Recebido
    20 Fev 1998
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