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A Pandemia de COVID-19 e a Doença Cardiovascular no Brasil: Aprendendo com os Dados

Palavras-chave
COVID-19; Doenças Cardiovasculares; Mortalidade; Mortalidade Hospitalar

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima quase 15 milhões de mortes em excesso associadas à COVID-19 no mundo em 2020 e 2021, definidas como a diferença entre o número total de mortes (por todas as causas) e o número de mortes esperadas se não houvesse pandemia.11 World Health Organization.(WHO)- 2022. Global excess deaths associated with COVID-19, January 2020 - December 2021. [online] Available at: <https://www.who.int/data/stories/global-excess-deaths-associated-with-covid-19-january-2020-december-2021> [Accessed 20 May 2022].
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No Brasil, a OMS estima 99 e 220 mortes em excesso associadas à pandemia de COVID-19 por 100.000 habitantes em 2020 e 2021, respectivamente.11 World Health Organization.(WHO)- 2022. Global excess deaths associated with COVID-19, January 2020 - December 2021. [online] Available at: <https://www.who.int/data/stories/global-excess-deaths-associated-with-covid-19-january-2020-december-2021> [Accessed 20 May 2022].
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Isso se traduziria em cerca de 680.000 mortes a mais nos dois primeiros anos da pandemia, ou seja, dezenas de milhares a mais do que as mortes por COVID-19 oficialmente relatadas no período. Muitas dessas mortes em excesso estão relacionadas à subnotificação devido à falta de testes ou a diagnósticos incorretos (mortes verdadeiras por COVID-19 atribuídas a outras condições). Outros eventos fatais foram por outras causas e de alguma forma indiretamente associados à pandemia, como as mortes por doenças não tratadas adequadamente devido ao sistema de saúde sobrecarregado. Considerando que as doenças cardiovasculares (DCV) são a principal causa de morte no Brasil,22 Oliveira GMM, Brant LCC, Polanczyk CA, Malta DC, Biolo A, Nascimento BR, et al. Cardiovascular Statistics - Brazil 2021. Arq Bras Cardiol. 2022;118(1):115-373. doi: 10.36660/abc.20200812
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é crucial desvendar o impacto da COVID-19 nas estatísticas de DCV.

Nesse contexto, Armstrong et al.,33 Armstrong AC, Santos LG, Leal TC, Paiva JPS, Silva LF, Santana GBA, et al. In-Hospital Mortality from Cardiovascular Diseases in Brazil during the First Year of The COVID-19 Pandemic. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(1):37-45. analisando dados de hospitais públicos no Brasil, relatam que o número de óbitos hospitalares por DCV em 2020 foi apenas 1,58% inferior ao esperado com base na média dos anos anteriores. No entanto, a taxa de letalidade hospitalar por DCV aumentou 13,3% em todo o ano e 18,8% de março a dezembro.33 Armstrong AC, Santos LG, Leal TC, Paiva JPS, Silva LF, Santana GBA, et al. In-Hospital Mortality from Cardiovascular Diseases in Brazil during the First Year of The COVID-19 Pandemic. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(1):37-45.

Esses achados estão de acordo com outros estudos que relataram, durante a pandemia, redução no número de pacientes que procuram atendimento médico, diminuição das internações e procedimentos por DCV, pacientes hospitalizados mais graves e, consequentemente, aumento da letalidade hospitalar por DCV.44 Jardim TV, Jardim FV, Jardim LMV, Coragem JT, Castro CF, Firmino GM, Jardim PCBV. Changes in the Profile of Emergency Room Patients during the COVID-19 Outbreak in a General Hospital Specialized in Cardiovascular Care in Brazil. Arq Bras Cardiol. 2021;116(1):140-3. doi: 10.36660/abc.20200595
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1010 Nascimento BR, Brant LCC, Castro ACT, Froes LEV, Ribeiro ALP, Teixeira RA, et al. Reduction in Hospital Admissions Associated with Coronary Events during the COVID-19 Pandemic in the Brazilian Private Health System: Data from the UNIMED-BH System. Rev Soc Bras Med Trop. 2021;54:e01742021. doi: 10.1590/0037-8682-0174-2021
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É importante ressaltar que um achado repetidamente relatado é um aumento desconfortável nas mortes domiciliares.1111 Brant LCC, Nascimento BR, Teixeira RA, Lopes MACQ, Malta DC, Oliveira GMM, Ribeiro ALP. Excess of cardiovascular deaths during the COVID-19 pandemic in Brazilian capital cities. Heart. 2020;106(24):1898-905. doi: 10.1136/heartjnl-2020-317663
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1313 Brant LCC, Pinheiro PC, Ribeiro ALP, Machado IE, Correa PRL, Santos MR, et al. Cardiovascular Mortality During the COVID-19 Pandemics in a Large Brazilian City: A Comprehensive Analysis. Glob Heart. 2022;17(1):11. doi: 10.5334/gh.1101
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Portanto, agora está claro que a pandemia impactou substancialmente o cuidado com DCV no Brasil.

Quais são os aprendizados deste diagnóstico? Em primeiro lugar, espera-se que os médicos tenham aprendido que há casos em que a investigação, intervenção ou hospitalização não podem ser adiadas. Em segundo lugar, há um grande espaço para educar os pacientes sobre os sinais de alerta de condições graves, como síndrome coronariana aguda e acidente vascular cerebral, minimizando as mortes em casa devidas ao medo do paciente de ir ao hospital. Terceiro, suavizar as consequências da pandemia só é possível com um sistema de saúde bem preparado que possa responder rapidamente às demandas do surto sem comprometer o atendimento de outras doenças mortais. O Brasil não está acostumado a desastres naturais ou pandemias, e muitos subestimaram os danos potenciais do vírus. Agora nós temos a oportunidade de aprender com a experiência, como os países asiáticos fizeram com a epidemia de SARS em 2003, e melhor nos prepararmos para futuros eventos catastróficos.

Após a fase mais crítica, pré-vacinação, da pandemia, a atenção agora se volta para outra preocupação: até que ponto o cancelamento de consultas e procedimentos médicos forçados pela pandemia afetará as DCV? O controle inadequado dos fatores de risco e as intervenções realizadas tardiamente podem adicionar outra camada ao impacto da pandemia de COVID-19 nos desfechos das DCV. O monitoramento contínuo da situação é necessário e provavelmente será abordado por estudos futuros.

Outro aspecto relevante é reconhecer que os efeitos da pandemia não são uniformes na comunidade. Marinho et al.,1414 Marinho MF, Torrens A, Teixeira R, Brant LCC, Malta DC, Nascimento BR, et al. Racial disparity in excess mortality in Brazil during COVID-19 times. Eur J Public Health. 2022;32(1):24-6. doi: 10.1093/eurpub/ckab097
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encontraram um excesso de mortalidade de 26,3% (23,3%-29,3%) entre pretos/pardos no Brasil em 2020, enquanto esse número foi de 15,1% (14,1%-16,1%) em brancos.1414 Marinho MF, Torrens A, Teixeira R, Brant LCC, Malta DC, Nascimento BR, et al. Racial disparity in excess mortality in Brazil during COVID-19 times. Eur J Public Health. 2022;32(1):24-6. doi: 10.1093/eurpub/ckab097
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Em Belo Horizonte-MG, o excesso de mortalidade em 2020 aumentou à medida que o Índice de Vulnerabilidade à Saúde piorou.1515 Passos VMA, Brant LCC, Pinheiro PC, Correa PRL, Machado IE, Santos MR, et al. Higher mortality during the COVID-19 pandemic in socially vulnerable areas in Belo Horizonte: implications for vaccine prioritization. Rev Bras Epidemiol. 2021;24:e210025. doi: 10.1590/1980-549720210025
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Além disso, Brant et al. relataram que o aumento de óbitos domiciliares por DCV em Belo Horizonte-MG em 2020 foi mais acentuado em indivíduos mais vulneráveis socialmente.1313 Brant LCC, Pinheiro PC, Ribeiro ALP, Machado IE, Correa PRL, Santos MR, et al. Cardiovascular Mortality During the COVID-19 Pandemics in a Large Brazilian City: A Comprehensive Analysis. Glob Heart. 2022;17(1):11. doi: 10.5334/gh.1101
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Identificar os subgrupos mais afetados é estratégico para definir alvos prioritários para intervenções de saúde pública e evitar o perigoso caminho de aumento das desigualdades em saúde.

Nas últimas décadas, observamos um declínio contínuo da mortalidade por DCV ajustada por idade no Brasil, embora essa queda tenha se atenuado nos últimos anos.22 Oliveira GMM, Brant LCC, Polanczyk CA, Malta DC, Biolo A, Nascimento BR, et al. Cardiovascular Statistics - Brazil 2021. Arq Bras Cardiol. 2022;118(1):115-373. doi: 10.36660/abc.20200812
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Ainda não está claro se a pandemia modificará substancialmente essa tendência. No entanto, a mudança no padrão de internações por DCV e o aumento inaceitável de óbitos domiciliares não podem ser assistidos passivamente sem perplexidade. É hora de aprender com os dados e agir para minimizar os impactos da pandemia nos desfechos das DCV.

  • Minieditorial referente ao artigo: Excesso de Mortalidade Hospitalar por Doenças Cardiovasculares no Brasil Durante o Primeiro Ano da Pandemia de COVID-19

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jul 2022
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