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Objetivos comuns para resistir à crise nas unidades coronarianas

PONTO DE VISTA

Objetivos comuns para resistir à crise nas unidades coronarianas

Antônio Pazin-FilhoI; Otávio Rizzi CoelhoII; André SchmidtI

IFaculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP - Brasil

IIFaculdade de Ciências Médicas - UNICAMP, Campinas, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: André Schmidt Rua Marques de Valença, 126, Alto da Boa Vista CEP 14025-490, Ribeirão Preto, SP - Brasil E-mail: aschmidt@cardiol.br, aschmidt@fmrp.usp.br

Palavras-chave: Cardiologia, Unidade de Terapia Intensiva/ organização & administração, Unidades Hospitalares/organização & administração, Capacitação

O atendimento de emergências cardiovasculares sofreu diversas alterações nas últimas décadas, motivando a reestruturação dos serviços de saúde. Atualmente, esse assunto passa por ampla discussão na American Heart Association1 e no mundo, sendo importante trazer a discussão para a nossa realidade. Entre as inúmeras modificações, as referentes às Síndromes Coronarianas Agudas (SCA) foram expressivas. Destacam-se as necessidades logísticas e estruturais das Unidades Coronarianas (UCO) com protocolos definidos de trombólise química e mecânica. A princípio, foram propostos centros de observação para pacientes com infarto agudo do miocárdio para prevenir a morte por fibrilação ventricular. A instituição da desfibrilação reduziu em 50% a mortalidade hospitalar e disseminou esse modelo assistencial. As UCO modificaram o atendimento a pacientes infartados, que passaram a ser considerados de alto risco e carentes de monitoramento constante por profissional especializado, como ocorre nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), com elevado custo2.

A proposta inicial de monitoração de pacientes infartados foi sendo estendida para o espectro das SCA e, em seguida, para a suspeita de SCA. A instituição dessa política constituiu-se na primeira crise desse modelo assistencial. A maioria dos pacientes com suspeita de SCA apresenta baixa probabilidade e risco das síndromes, principalmente em salas de urgência não referenciadas, não necessitando de internação, quanto mais em ambiente de terapia intensiva3. Dessa crise surgiram os Centros de Dor Torácica (CDT), na tentativa de sistematizar o atendimento e reduzir, assim, os custos da admissão hospitalar4.

O redirecionamento de pacientes de baixa complexidade para os CDT, somado à maior sobrevida de pacientes com SCA em razão dos procedimentos de reperfusão, culminou com o aumento da complexidade e da gravidade dos pacientes admitidos. O perfil dos pacientes passou a ser daquele com múltiplos eventos e intervenções prévias5. Além disso, pacientes com insuficiência cardíaca descompensada, choque cardiogênico, doença valvar grave, arritmias complexas, complicações de procedimentos percutâneos e infecções relacionadas a dispositivos implantáveis vêm sendo admitidos nas UCO. Isso tem motivado a melhor definição do papel do profissional atuante, implicando a capacitação distinta da formação oferecida por muitos dos centros de cardiologia do país. Somado a isso, as entidades reguladoras têm requerido que intensivistas façam parte do quadro das UCO, não sendo mais prerrogativa exclusiva do cardiologista fazer parte desse quadro.

A demanda de leitos de terapia intensiva é crescente e vem se tornando um importante problema de saúde pública no Brasil6. Embora múltiplos esforços sejam empreendidos para adequar a capacidade à demanda, várias estimativas preveem que a situação se agravará nos próximos anos, pelo envelhecimento da população, aumento de procedimentos e prevalência de afecções complexas7. De particular importância é a necessidade de profissionais especializados em terapia intensiva, sendo que uma força-tarefa norte-americana estimou um déficit da ordem de 22% em 2020, que em 2030 deverá atingir 35%7.

A realidade brasileira não difere da norte-americana no concernente a essas previsões. O censo de unidades de UTI, realizado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) em 2009, apurou que são necessários de 1 a 3 leitos intensivos/10.000 habitantes. Na maioria dos estados brasileiros, esse número é inferior a 1, atingindo cerca de 1,4 a 1,7 nas regiões mais desenvolvidas. Apesar de dados de alguns estados indicarem que o número de leitos está dentro do preconizado, com certeza a realidade é outra, o que levanta dúvidas sobre a metodologia empregada para o cálculo desse índice. Estão sendo realizados novos trabalhos que redimensionam o planejamento de capacidade e determinam prioridades para acesso ao recurso8. Essa falta de leitos resulta no direcionamento de diversos pacientes que deveriam ser atendidos nas UTI para as UCO.

Também é um problema importante a disponibilidade de profissionais capacitados para atuar em terapia intensiva. Relatório do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo em 2008 sobre as especialidades médicas evidenciou que apenas 195 médicos tinham título cadastrado de medicina intensiva, correspondendo a 0,4% dos títulos de especialista do Estado. Se considerarmos as 388 UTI cadastradas no Estado de São Paulo em 2009, obtemos uma proporção de 0,27 médico intensivista titulado por unidade. Sem dúvida, esse número não possibilita a capacitação de uma equipe médica de acordo com as normas vigentes da AMIB e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Vários são os motivos levantados para justificar a falta de intensivistas9, e não se antevê uma resolução imediata. Dados obtidos na Comissão de Residência Médica do Estado de São Paulo (comunicação pessoal) demonstram que as vagas disponíveis nos centros formadores não foram completadas entre 2009 e 2011. Mesmo que medidas corretivas sejam implementadas prontamente, pode-se antever carência de pessoal em curto prazo.

Esse problema tem sido discutido em muitas esferas, com inúmeras soluções propostas. Um primeiro aspecto discutido é a estrutura organizacional das UTI ante a escassez de profissionais. Teoricamente, três tipos de unidades podem ser propostos e estão resumidos na Tabela 1. Unidades fechadas parecem ser o modelo preferido, embora unidades híbridas tenham sido avaliadas. Quanto à presença do profissional treinado em terapia intensiva, há evidências de que a inserção de profissional em tempo parcial e alcançável a distância é uma alternativa viável. Há poucas evidências de que um profissional especializado presente ofereça, de modo contínuo, ganho adicional sobre o esquema alternativo.

Outra solução diz respeito à intensificação do treinamento em intensivismo para outros profissionais. No contexto americano, é notável que essa solução tem sido direcionada para emergencistas, havendo diretriz conjunta das sociedades médicas6. Dados recentes apontam que tal diretriz estabelecida em 2005 já teve impacto10. Em essência, o que se buscou foi diminuir as barreiras para que médicos de outras especialidades obtenham treinamento em terapia intensiva. No Brasil, observa-se justamente a tendência contrária, com medidas de proteção de classe para garantia de mercado. Essas medidas não levam em consideração as necessidades para o atendimento dos pacientes de gravidade crescente que se aglomeram em nossas UCO. É claro que o atendimento deve ser pautado em fluxo de atendimento em vez de em áreas de atuação. O que se busca, com base em modelos bem sucedidos de trauma, acidente vascular encefálico e sepsis, é assegurar um atendimento continuado.

Em suma, as UCO sofreram alteração do perfil de seus pacientes, com aumento da complexidade e gravidade, nitidamente semelhantes aos de terapia intensiva geral. Essa modificação exige que os cardiologistas em exercício nas UCO desenvolvam habilidades similares às dos intensivistas, mas essas habilidades não são reconhecidas nem tampouco testadas, sendo exigido que intensivistas estejam presentes nas UCO para que sejam reconhecidas e remuneradas pelo sistema de saúde em que estão inseridas. Em que pese essa exigência ir de encontro ao aumento da qualidade oferecida, pode-se constatar que as UTI no país, bem como profissionais formados e titulados para compô-las são escassos.

Em face disso, medidas de proteção de classe são inadequadas de modo isolado e, sem dúvida, não irão resolver esse complexo problema. A Sociedade Brasileira de Cardiologia necessita assumir seu papel diante dessa nova realidade, exercendo liderança na comunidade médica, exigindo que seus profissionais sejam reconhecidos para exercer o papel que lhes cabe nessas UCO. Naturalmente essa exigência deve ser uma atitude responsável, cabendo o estabelecimento de critérios de qualificação. A aproximação com a AMIB para o estabelecimento de critérios de formação para atuação em UCO seria uma medida responsável em relação às demandas atuais. Mais do que uma crise do perfil de pacientes internados nas UCO, estamos enfrentando uma verdadeira crise do aumento de pacientes críticos, que irá se agravar nas próximas décadas. Pelo seu pioneirismo, a Cardiologia está mais estruturada do que outras áreas em ambientes de terapia intensiva e será cobrada a exercer o seu papel na crise que se acentua.

Contribuição dos autores

Concepção, desenho da pesquisa, obtenção de dados, análise, interpretação dos dados, redação do manuscrito e revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Pazin-Filho A, Coelho OR, Schmidt A; Análise estatística: Schmidt A.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de intere

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 20/09/12, revisado em 29/10/12, aceito em 29/10/12.

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  • Correspondência:

    André Schmidt
    Rua Marques de Valença, 126, Alto da Boa Vista
    CEP 14025-490, Ribeirão Preto, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013
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