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Efeito favorável da terapia farmacológica otimizada da insuficiência cardíaca sobre as arritmias ventriculares

Resumos

FUNDAMENTO: Os eventos arrítmicos ventriculares têm forte impacto na mortalidade dos pacientes com insuficiência cardíaca. O benefício do tratamento farmacológico otimizado da insuficiência cardíaca na redução da arritmia ventricular não foi ainda muito bem documentado. OBJETIVO: Análise dos efeitos do tratamento farmacológico otimizado da insuficiência cardíaca sobre a arritmia ventricular. MÉTODOS: Estudo clínico com desenho não aleatorizado, envolvendo 85 pacientes consecutivos (coorte aberta), não selecionados, idade média de 63,8±12,2 anos, 42 homens, 43 mulheres, com diagnóstico de insuficiência cardíaca, classes funcionais II a IV (NYHA - New York Heart Association), FE (fração de ejeção) < 0,40, que após otimização do tratamento foram acompanhados de janeiro de 2002 a maio de 2004, quanto ao comportamento da arritmia ventricular, à admissão e ao término do estudo. RESULTADOS: No início do estudo 60% dos pacientes apresentaram mais de 1000 extra-sístoles ventriculares/24h, 100% pares e 100% taquicardia ventricular não sustentada (TVNS). Num seguimento que variou de 8 a 27 meses (20,0 + 4,8 meses) observou-se redução significativa do número total de extra-sístoles ventriculares/24h, do número de pares e do número de episódios de taquicardia ventricular não sustentada (p<0,05). Observou-se também melhora da classe funcional e do desempenho ao teste de caminhada de seis minutos. Em relação à fase anterior à inclusão no estudo observou-se diminuição das internações hospitalares (4,8 hospitalizações/paciente/ano e ao término do estudo 2,7 hospitalizações/paciente/ano) (p<0,005). CONCLUSÃO: O tratamento otimizado da insuficiência cardíaca diminuiu a ocorrência de arritmias ventriculares. A melhora da classe funcional, do desempenho físico e do número de hospitalizações podem ser atribuídas ao tratamento otimizado.

insuficiência cardíaca; arritmias cardíacas


BACKGROUND: Ventricular arrhythmic events have a strong impact on the mortality of patients with heart failure. The benefits of the optimized drug treatment of heart failure in reducing ventricular arrhythmia have not been well documented yet. OBJECTIVE: To analyze the effects of the optimized drug treatment of heart failure on ventricular arrhythmia. METHODS: This is a clinical study with a non-randomized design of 85 consecutive (open cohort) non-selected patients, with a mean age of 63.8±12.2 years; 42 were males and 43 were females. All patients had a diagnosis of heart failure (HF), NYHA Functional Class II to IV, EF < 0.40 and, after treatment optimization, they were followed from January 2002 to May 2004, regarding the ventricular arrhythmia behavior, at admission and at the end of the study. RESULTS: At the start of the study, 60% of patients presented more than 1,000 ventricular extrasystoles in 24 hours, 100% pairs and 100% nonsustained ventricular tachycardia (NSVT). During a follow-up period of 8 to 27 months (20.0 + 4.8 months) a significant decrease in the total number of ventricular extrasystoles/24 hrs, number of pairs and number of NSVT episodes was observed (p<0.05). The improvement in functional class and performance at the six-minute walk test was also observed. A decrease in hospital admissions was also observed in relation to the period prior to the study inclusion (4.8 hospital admissions/patient/year and at the end of the study, 2.7 hospital admissions/patient/year) (p<0.005). CONCLUSION: The optimized treatment of HF decreased the incidence of ventricular arrhythmias. The improvement in the functional class, physical performance and the decreased number of hospitalizations can be attributed to the optimized treatment of HF.

heart failure; arrhythmias


ARTIGO ORIGINAL

INSUFICIÊNCIA CARDÍACA

Efeito favorável da terapia farmacológica otimizada da insuficiência cardíaca sobre as arritmias ventriculares

Epotamenides Maria Good GodI; Maria da Consolação V. MoreiraII; Antonio Carlos Pereira BarrettoIII

IHospital Vera Cruz, Belo Horizonte, MG - Brasil

IIFaculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG - Brasil

IIIInstituto do Coração da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP - Brasil

CorrespondênciaCorrespondência: Epotamenides Maria Good God Rua Juiz de Fora, 115/807, Barro Preto 30.180-060, Belo Horizonte, MG, Brasil E-mail: epotamenides@uol.com.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Os eventos arrítmicos ventriculares têm forte impacto na mortalidade dos pacientes com insuficiência cardíaca. O benefício do tratamento farmacológico otimizado da insuficiência cardíaca na redução da arritmia ventricular não foi ainda muito bem documentado.

OBJETIVO: Análise dos efeitos do tratamento farmacológico otimizado da insuficiência cardíaca sobre a arritmia ventricular.

MÉTODOS: Estudo clínico com desenho não aleatorizado, envolvendo 85 pacientes consecutivos (coorte aberta), não selecionados, idade média de 63,8±12,2 anos, 42 homens, 43 mulheres, com diagnóstico de insuficiência cardíaca, classes funcionais II a IV (NYHA - New York Heart Association), FE (fração de ejeção) < 0,40, que após otimização do tratamento foram acompanhados de janeiro de 2002 a maio de 2004, quanto ao comportamento da arritmia ventricular, à admissão e ao término do estudo.

RESULTADOS: No início do estudo 60% dos pacientes apresentaram mais de 1000 extra-sístoles ventriculares/24h, 100% pares e 100% taquicardia ventricular não sustentada (TVNS). Num seguimento que variou de 8 a 27 meses (20,0 + 4,8 meses) observou-se redução significativa do número total de extra-sístoles ventriculares/24h, do número de pares e do número de episódios de taquicardia ventricular não sustentada (p<0,05). Observou-se também melhora da classe funcional e do desempenho ao teste de caminhada de seis minutos. Em relação à fase anterior à inclusão no estudo observou-se diminuição das internações hospitalares (4,8 hospitalizações/paciente/ano e ao término do estudo 2,7 hospitalizações/paciente/ano) (p<0,005).

CONCLUSÃO: O tratamento otimizado da insuficiência cardíaca diminuiu a ocorrência de arritmias ventriculares. A melhora da classe funcional, do desempenho físico e do número de hospitalizações podem ser atribuídas ao tratamento otimizado.

Palavras-chave: insuficiência cardíaca/terapia, arritmias cardíacas

Introdução

A mortalidade por insuficiência cardíaca (IC) tem-se reduzido nos últimos anos, fato atribuído à utilização de vários fármacos sem uma ação antiarrítmica primária: betabloqueadores1-5, inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA)6-9 bloqueadores dos receptores da angiotensina (BRA)10 e antagonistas da aldosterona11,12. Vários estudos confirmam que as arritmias ventriculares são marcadores independentes de risco, mas são dependentes do grau de disfunção ventricular associada13. Tem sido demonstrado que os beta-bloqueadores não só reduzem a mortalidade por progressão da doença, como também por morte súbita. Esse efeito favorável parece relacionado à ação desses fármacos na disfunção neuro-hormonal e sobre o remodelamento ventricular14,15.

Com o advento da terapia de ressincronização cardíaca – com ou sem o implante concomitante de cardiodesfibrilador implantável (CDI) –, foi observada melhora da classe funcional, dos dados hemodinâmicos, da qualidade de vida e redução das arritmias ventriculares16-20. Essas informações oriundas da terapêutica não farmacológica da IC suscitam, novamente, a discussão do significado das arritmias cardíacas no contexto da disfunção ventricular.

O benefício do tratamento farmacológico das arritmias ventriculares na IC, mediante inclusão de fármacos anti-arrítmicos, ainda é controverso21.

Neste estudo procuramos verificar se o tratamento otimizado da IC será suficiente, per se, para diminuir a ocorrência de eventos arrítmicos ventriculares.

Métodos

Esse protocolo de estudo foi previamente aprovado pela comissão de ética em pesquisa da instituição. Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido antes de sua inclusão no estudo.

Para o cálculo do tamanho amostral admitiu-se que algo entre 30 e 50% dos pacientes com IC evoluem para morte em cinco anos após o diagnóstico6,7. Cerca da metade deles tem morte súbita, sendo em um grande percentual atribuída às arritmias ventriculares13,22. Calculou-se o poder de detecção da amostra por meio de metodologia apropriada para dados pareados (antes e depois)23. Concluiu-se que a amostra utilizada tem um poder de detecção de 99,8%.

Trata-se de um estudo clínico, com desenho não aleatorizado, envolvendo 115 pacientes consecutivos e não selecionados (coorte aberta) com diagnóstico de IC devido à disfunção sistólica, de qualquer etiologia, qualquer raça e gênero, com idade superior a 18 anos, classes funcionais II a IV (NYHA), FE < 0,40 (avaliada pela ecocardiografia transtorácica, modo M, método de Teicholz).

Foram excluídos os pacientes: que não consentiram em participar do estudo em qualquer fase do acompanhamento; passíveis de correção cirúrgica (cirurgia de revascularização miocárdica, troca valvar, em fila de transplante cardíaco, candidatos definidos ao CDI); IAM (infarto agudo do miocárdio) ou angina com menos de trinta dias de evolução; com doença concomitante que comprometia o prognóstico; com insuficiência renal (creatinina igual ou maior que 3,0 mg/dl), potássio sérico, maior que 5,5 mEq/l; insuficiência hepática, caracterizada por enzimas em valores superiores a três vezes o valor de referência; impossibilidade de acompanhamento regular; contra-indicação ou intolerância aos IECA, BRA, carvedilol e espironolactona; com arritmia ventricular que justificasse a utilização de tratamento farmacológico – a critério do investigador ou que já o houvesse recebido em visita ao setor de emergência; usuários de fármacos antiarrítmicos, cuja suspensão não podia ser assumida pelo investigador ou não admitida pelo paciente (baseada em uma orientação prévia aceita por ele ou responsável); estivessem em uso (atual ou nos últimos seis meses) de amiodarona.

Todos os pacientes receberam o tratamento otimizado da IC, segundo as recomendações da ACC/AHA (American College of Cardiology/American Heart Association), da European Society of Cardiology e II Diretrizes (Revisão) da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)24-27 incluindo como terapia padrão: IECA ou BRA e betabloqueadores em doses máximas toleradas, diuréticos e espironolactona, com ou sem digoxina. Não houve uso de nitrato e hidralazina. O período de acompanhamento mínimo era de oito meses.

Os pacientes eram agendados para serem vistos pelo investigador para avaliação e ajuste das doses dos medicamentos a cada duas semanas durante os primeiros três meses, a fim de se atingir a dose-alvo de IECA/BRA (20 a 40 mg/dia de Enalapril ou 50 a 100 mg/dia de Losartan), betabloqueador (Carvedilol 25 a 50 mg/dia) e Espironolactona (25 mg/dia). Posteriormente, os pacientes eram agendados para novas visitas a cada dois meses. Foi considerado tratamento otimizado quando o paciente tolerava, pelo menos, o limite inferior das doses preconizadas, conforme as diretrizes. Todos os pacientes foram orientados para procurar o serviço de emergência do hospital-base do estudo, em caso de piora clínica, onde também eram internados, sempre que necessário.

Foram solicitados, à admissão, e ao longo do acompanhamento (a cada dois meses): eletrocardiograma (ECG) de 12 derivações; teleradiografia (RX) de tórax; ecocardiograma Doppler transtorácico; eletrocardiografia dinâmica ambulatorial (Holter) de 24 horas; teste de caminhada de seis minutos.

Dados relativos às internações hospitalares foram anotados, quanto à freqüência e quanto à causa, sendo nesta última, classificadas como motivadas por piora da IC, por arritmia cardíaca ou outra causa. Os óbitos foram classificados como sendo súbitos, dentro ou fora do hospital, por piora da IC ou por outra causa (cardiovascular ou não).

A análise estatística comparativa das arritmias ventriculares levou em conta a primeira avaliação à admissão no estudo e, a última, ao final do estudo; ou a última visita antes da morte. Para comparação das arritmias ventriculares à admissão e após o tratamento otimizado da IC foram utilizados o teste de McNemar para as variáveis categóricas binárias (bigeminismo, trigeminismo, pares) e o teste Homogeneidade Marginal para as variáveis categóricas ordinais: extra-sístoles isoladas e taquicardia ventricular não-sustentada (TVNS). Os três testes são adequados para comparação de dados pareados, nesse caso, o mesmo paciente sendo avaliado em dois momentos diferentes. Ainda foram avaliadas as várias combinações de tipos de arritmias ventriculares que os pacientes apresentaram e o percentual geral de melhora ou piora desses pacientes. O nível de significância foi de 5% e foi utilizado o software SPSS 12.0.

Resultados

Dos 115 pacientes admitidos com diagnóstico de IC, 12 foram excluídos na fase inicial do estudo. Os motivos principais foram: falta de adesão às orientações e dificuldades de acompanhamento por mudança de domicílio. Outros nove foram excluídos na fase de otimização do tratamento. E ainda mais nove pacientes foram excluídos durante o acompanhamento por não tolerarem a manutenção ou progressão das doses dos fármacos, ou por terem sido considerados para o uso de anti-arrítmico ou terapia de ressincronização cardíaca com ou sem o implante do CDI. Completaram todo o período de acompanhamento, 85 pacientes. As características demográficas e clínicas dos pacientes, à admissão, estão descritas na Tabela 1. Eram anotados à admissão no estudo: os dados relacionados à etiologia da IC, as manifestações clínicas, a classe funcional, dados do Ecodopplercardiograma, da monitorização hemodinâmica de 24 horas (Holter), o teste de caminhada de seis minutos, uso de fármacos.

O tempo médio de acompanhamento destes 85 pacientes foi 20,0±4,8 meses (mínimo de 8 e máximo de 27 meses).

Como pode ser visto na Tabela 2, 100% dos pacientes, à admissão, tinham arritmia ventricular de complexidade variável. Ao analisarmos a Tabela 3 observa-se que houve diferenças estatisticamente significativas entre o número de extra-sístoles ventriculares (ESV) isoladas/hora à admissão e após o tratamento otimizado (valor-p<0,05). Houve uma diminuição mais expressiva dentre os pacientes que apresentaram extra-sístoles em número maior que 1000 ESV/h à admissão.

Os resultados mostram que houve diferença estatisticamente significativa entre os pacientes que apresentaram pares de extra-sístoles ventriculares à admissão e após o tratamento otimizado (valor-p<0,05). Dentre os pacientes que apresentaram pares à admissão, 30% passaram a não o apresentar na conclusão (Tabela 4).

De acordo com a Tabela 5, houve diferença estatisticamente significativa entre o número de TVNS/24h à admissão e após o tratamento otimizado (valor-p<0,05). Entre os pacientes que apresentaram TVNS entre 4 e 10/24h à admissão, 41% passaram a ter até 3/24h na conclusão. Daqueles com TVNS entre 11 e 50/24h, à admissão, 81% passaram a ter menores valores na conclusão. Houve ainda uma melhora de 83% entre os pacientes que apresentaram TVNS maiores que 50/24h, à admissão.

De forma mais simplificada, foi comparada a presença de TVNS no início e no fim do estudo, evidenciado na Tabela 6. Os resultados demonstram que houve diferença estatisticamente significativa entre o percentual de pacientes que apresentaram TVNS à admissão e após o tratamento otimizado (valor-p<0,05). Percebe-se que dos pacientes que apresentaram TVNS à admissão, 31% passaram a não o apresentar na conclusão. Embora sem significância estatística, 24% dos pacientes aumentaram o número de TVNS/24h em relação aos dados da admissão.

Analisando todas as combinações dos tipos de arritmias ventriculares encontradas entre os 85 pacientes avaliados à admissão (Tabela 2) e à conclusão (Tabelas 3 a 6), observa-se que a maioria dos pacientes (55%) apresentava todos os tipos de arritmia (ESV, bigeminismo, trigeminismo, pares e TVNS). De uma forma geral, 53% dos pacientes melhoraram as arritmias, sendo que 33% dos pacientes permaneceram com a mesma característica da admissão e apenas 14% pioraram. É importante enfatizar que essa taxa de piora não teve significância estatística. De acordo com o teste estatístico, pode-se afirmar que a melhora dos pacientes após o tratamento otimizado foi significativa.

Houve melhora significativa da CF (classe funcional) da IC e do teste de caminhada de seis minutos, (Tabela 7) quando comparamos os dados da admissão com aqueles ao término do estudo (p < 0,001).

Não foi observada diferença significativa quanto aos parâmetros ecocardiográficos ao término do estudo (Tabela 7).

Observou-se diminuição significativa do número de hospitalizações, quando comparados à admissão (4,8 hospitalizações/paciente/ano) e ao término do estudo (2,7 hospitalizações/paciente/ano) (p<0,005). Ocorreram 27 mortes (31,8%) ao longo do seguimento. Não houve correlação significante entre a mortalidade e a ocorrência de arritmias ventriculares, sendo que a maioria dos óbitos deveu-se à progressão da IC. Assim, 23 dos 27 pacientes que morreram por piora da IC não tiveram, concomitantemente, piora das arritmias ventriculares.

Discussão

Os resultados do presente estudo mostraram que, nos pacientes sob tratamento otimizado da IC, houve diminuição significativa das arritmias ventriculares. Este achado tem relevância clínica e prática.

Considerando que a literatura brasileira é escassa no assunto, o presente estudo analisou prospectivamente uma população de pacientes com IC, sintomáticos, com arritmia ventricular documentada e com características gerais muito similares àquelas que vemos habitualmente em ambulatórios e consultórios. A amostra estudada foi constituída de pacientes com cardiomiopatia dilatada, isquêmica e chagásica em proporções similares (cerca de 1/3 dos pacientes para cada etiologia).

O reconhecimento da IC como uma disfunção neuro-hormonal fez com que os betabloqueadores e os IECA passassem a constituir a base do que chamamos de tratamento otimizado24-26. Desde os primeiros estudos com os IECA e, posteriormente, com os betabloqueadores, começaram a surgir evidências de uma melhora da qualidade de vida, diminuição das internações hospitalares e o aumento da sobrevida dos pacientes que utilizaram essa estratégia terapêutica1-10. Paralelamente, surgiram evidências da redução da morte súbita sem a utilização de fármacos com efeito antiarrítmico primário5,11-12. A utilização da terapêutica otimizada da IC, não apenas no Brasil, tem sido freqüentemente subutilizada, sob o argumento de que os pacientes, notadamente aqueles em CF III e IV da NYHA, não tolerariam as doses preconizadas dos medicamentos com efeitos na redução da mortalidade28-30. Os pacientes mais graves são, exatamente, aqueles que não recebem os medicamentos nas doses preconizadas pelas diretrizes para o tratamento da IC.

No presente estudo, para se ter a certeza de que a condução do tratamento estaria de acordo com o protocolo do estudo, todos os pacientes, nesta população, foram acompanhados, regularmente, pelo mesmo observador, já que em uma situação grave como a IC, em que a arritmia ventricular está presente na imensa maioria dos casos, muitos deles poderiam ter a terapêutica alterada ou descontinuada. Essa atitude tem um aspecto essencial (embora, reconheça-se, possa ser um viés) em um estudo que procura analisar o comportamento da arritmia ventricular em pacientes com IC.

A partir de observações com pacientes monitorados pelo Holter, já se demonstrou que a retirada abrupta do betabloqueador expõe o paciente a uma situação de risco adicional. A suspensão abrupta do bloqueio beta-adrenérgico e o aumento do tônus vagal31 influenciam a variabilidade da freqüência cardíaca e predispõem ao aumento de arritmias ventriculares32. Utilizou-se neste estudo, o betabloqueador carvedilol, uma vez que a literatura pertinente assinala um perfil mais adequado desta substância, mesmo para o paciente com acentuada disfunção ventricular33.

O estudo RALES11– que utilizou a espironolactona, um antagonista da aldosterona – demonstrou diminuição das hospitalizações e da mortalidade (total e súbita) na IC, embora sem evidências definitivas para o seu uso em pacientes em CF II11. O estudo EPHESUS12 utilizou um antagonista seletivo da aldosterona (eplerenona)12 e mostrou diminuição de hospitalizações e mortalidade (total e súbita) em pacientes pós-infarto com fração de ejeção menor que 0,40. Considerando que não há evidências de um efeito desfavorável, optamos por prescrever a espironolactona, na dose de 25 mg/dia, para todos os pacientes.

Os ensaios clínicos envolvendo a terapia de ressincronização cardíaca têm mostrado que, paralelamente com a melhora dos parâmetros hemodinâmicos que avaliam a função ventricular, tem sido observada a redução importante de todas as formas de arritmia ventricular16-20. Essa constatação aponta para um fato já documentado, mas não completamente elucidado, de que a arritmia ventricular talvez seja muito mais a expressão da gravidade da IC e da disfunção ventricular subjacente e que a melhora desta conduz à melhora da arritmia21,22. Por considerar que pacientes submetidos à terapia de ressincronização cardíaca poderiam ter o comportamento da arritmia ventricular modificado em função desta modalidade terapêutica, optamos por não incluir, nesta amostra, pacientes portadores desse dispositivo.

Uma série de publicações, em nosso meio, como a de Mady34, já documentava que pacientes (no caso, chagásicos) em classes funcionais III e IV (NYHA), e com FE < 30% têm uma sobrevida muito baixa. Os trabalhos de Rassi Jr. e cols.22, Laranja e cols.35, De Paola e cols.36, estudando populações de pacientes chagásicos, apontavam para o mau prognóstico relacionado com a presença de arritmia ventricular, bloqueio átrio ventricular e fibrilação atrial nesses pacientes, embora não analisassem, especificamente, pacientes com IC e, muito menos, sob tratamento otimizado. Rassi Jr. e cols.22 demonstrou que a associação de TVNS e disfunção ventricular estão relacionadas a um prognóstico reservado, quando comparadas com os pacientes com somente um dos achados. Esse mesmo autor também demonstrou que a presença de TVNS ao Holter, em uma população de 424 pacientes chagásicos, acompanhados ambulatorialmente por um longo período, mostrou-se uma variável independente associada com maior risco de morte22. Esse mesmo achado já foi documentado, tanto no Brasil, quanto em publicações estrangeiras, para pacientes com outras formas de cardiomiopatia (dilatada e isquêmica)13,21.

Quando no presente estudo se analisou a arritmia ventricular observou-se que, em grau variável, todos os pacientes apresentavam-na, à admissão. Essa constatação levou-nos a refletir se os nossos pacientes já não seriam mais graves, à admissão, e isso poderia ter influência quanto aos desfechos clínicos. Quando analisamos a arritmia ventricular, ao término do estudo, notamos que houve diferença significativa na sua ocorrência. Adicionalmente, observamos uma diminuição significativa do número de episódios de TVNS ao término da observação, e é reconhecido na literatura que o comportamento das TVNS é o marcador independente relacionado com um desfecho clínico desfavorável (ocorrência de taquicardia ventricular sustentada e morte súbita)22.

Com base nos nossos dados e, levando-se em consideração o comportamento do número de episódios de TVNS/24h, pode-se postular que provavelmente é o tratamento otimizado da IC que tem um efeito favorável na redução da arritmia ventricular.

Quanto ao comportamento da CF da IC, esse estudo mostrou uma melhora significativa ao término do estudo e esse achado pode ser atribuído ao efeito do tratamento otimizado da IC. Ao lado da redução das arritmias constatamos uma redução nas hospitalizações indicando melhora clínica com a otimização do tratamento. A mesma melhora, ao final do estudo, foi observada na performance física, avaliada pelo teste de caminhada de seis minutos.

Quanto ao acompanhamento ecocardiográfico, os dados – à admissão e ao término do estudo – não mostraram diferença significativa quanto à FE e diâmetro diastólico final do VE. Esse resultado concorda com os dados da literatura, em que avaliações seriadas da FE podem ser empregadas no seguimento dos pacientes, mas a correspondência dessas medidas com a estimativa da sobrevida é limitada37.

Na presente casuística, ocorreram 27 mortes (31,78% da amostra) entre os 85 pacientes que tiveram acompanhamento completo, o que confirma o fato de que a IC, independente da cardiopatia subjacente e a despeito dos avanços obtidos com o tratamento otimizado, continua sendo doença muito grave, com alta mortalidade. A principal causa de morte foi a progressão da doença e não a morte súbita. Além disso, 23 dos 27 pacientes que morreram por piora da IC não tiveram, concomitantemente, piora das arritmias ventriculares. Esse fato merece uma reflexão, já que a literatura reporta que cerca de 40% dos pacientes com IC morrem subitamente, sendo um grande percentual em decorrência de arritmias ventriculares. Na nossa casuística as mortes predominaram por progressão da doença e menos por morte súbita. O presente estudo não teve como objetivo avaliar desfechos de mortalidade, devido ao tamanho da amostra. Entretanto, poderíamos interrogar, se o fato desses pacientes estarem com o tratamento otimizado, incluindo o uso de betabloqueadores e espironolatona (fármacos com efeito na redução de mortalidade total e súbita) teria reduzido a morte súbita pela redução das arritmias ventriculares.

Os nove pacientes que foram retirados da análise comparativa – depois da fase de otimização do tratamento, por algum tipo de intolerância medicamentosa, e que também foram acompanhados – evoluíram para a morte num prazo médio de 12 meses. Esses pacientes tiveram maior número de hospitalizações, com permanência hospitalar, em média mais prolongada, quando comparados com os pacientes que completaram o seguimento. Sete deles faleceram por piora da IC, dois por morte súbita, uma hospitalar e outra no domicílio. A má evolução desses nove pacientes era fato clínico esperado, já que a própria condição de intolerância à terapêutica otimizada, cujos resultados benéficos já estão comprovados, os colocava num subgrupo de prognóstico pior28-30, 33.

Os resultados do presente estudo vêm destacar e confirmar a importância do tratamento clínico otimizado na melhora das arritmias ventriculares com reflexos na morbidade dos pacientes com IC. Também, em acordo com a literatura atual, aponta para o fato de que as arritmias ventriculares, provavelmente, sejam a tradução da disfunção ventricular subjacente e que, embora o distúrbio do ritmo possa ser mais ou menos expressivo num paciente individual, não temos, até o momento, dados para recomendar a inclusão de antiarrítmico, rotineiramente, ao tratamento otimizado.

Conclusões

O tratamento clínico otimizado da IC influenciou favoravelmente a ocorrência de arritmias ventriculares, sendo que a maioria das mortes foi relacionada à progressão da IC, a qual não estava relacionada ao comportamento das arritmias ventriculares. A melhora da CF, do desempenho físico e a diminuição das hospitalizações, deve ser atribuída ao tratamento otimizado da IC.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de tese de doutorado de Epotamenides Maria Good God pela USP-SP.

Artigo recebido em 21/02/08; revisado recebido em 15/04/08; aceito em 07/05/08.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      07 Maio 2008
    • Revisado
      15 Abr 2008
    • Recebido
      21 Fev 2008
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