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AUTOCONFIANÇA NAS HABILIDADES CIRÚRGICAS ADQUIRIDAS PARA LIDAR COM PACIENTES COM TRAUMA GRAVE EM CIRURGIÕES RECÉM-FORMADOS

RESUMO

Racional:

Trauma é uma das principais causas de morte no mundo e cuidados cirúrgicos adequados são críticos para determinar a mortalidade. No Chile, morte associada a trauma é a primeira causa de mortalidade na população entre 20 e 59 anos. Para lidar com esses pacientes complexos, são necessárias habilidades cirúrgicas precisas para esses procedimentos. Autoconfiança de cirurgiões recentemente graduados na Residência em Cirurgia Geral para práticas de procedimentos de trauma no nosso país não tem sido reportada.

Objetivo:

Descrever nível de autoconfiança para lidar com procedimentos de trauma em cirurgiões recentemente graduados na residência de cirurgia geral.

Método:

Estudo transversal. Foi desenhada e aplicada uma enquete em 2015, 2016 e 2017 a cirurgiões recentemente graduados para pesquisar sobre autoconfiança e habilidades cirúrgicas para lidar com cenários de trauma. Foram avaliados 18 procedimentos cirúrgicos de trauma (incluindo procedimentos cervicais, torácicos, abdominais e vasculares) usando a 5-grade Likert Scale. O número total de procedimentos feitos durante a residência foi avaliado.

Resultados:

Foram incluídos 88 cirurgiões recentemente graduados. O nível de competência foi reportado como alto em procedimentos como trauma intestinal, onde 98% sentiu-se competente ou muito competente em sua reparação. Por outro lado, em traumas complexos como dano vascular maior, até 76% reportaram não se sentirem competentes. A autoconfiança nos procedimentos esteve diretamente associada com o número de procedimentos realizados.

Conclusões:

Cirurgiões recentemente graduados na residência de cirurgia geral reportam níveis altos de confiança para lidar com traumas de complexidade baixa e média, mas um nível menor de confiança para tratar casos de complexidade alta.

DESCRITORES:
Ferimentos e lesões; Internato e residência; Cirurgia geral; Competência clínica

ABSTRACT

Background:

Trauma is one of the leading causes of death in the world and proper surgical care is critical to impact mortality. In Chile, trauma associated death ranks first as mortality cause in population between 20 and 59 years old. Appropriate surgical skills are required to deal with these complex patients. Self-confidence to practice trauma procedures after the General Surgery Residency have not been reported in our country.

Aim:

Describe the level of self-confidence to deal with trauma procedures of surgeons who recently graduated from a General Surgery Residency.

Method:

Descriptive cross-sectional study. We designed and applied a survey in 2015, 2016 and 2017 to recently graduated surgeons, to inquire about self-confidence of surgical skills to deal with trauma scenarios. Eighteen trauma surgery procedures (including cervical, thoracic, abdominal and vascular procedures) were evaluated using a 5-grade Likert scale. The number of procedures performed during the residency was also queried.

Results:

Eighty-eight recently graduated surgeons from 11 different training programs in Chile were included. The report of competencies was high in procedures such as intestinal injuries, were 98% felt competent or very competent in their repair. On the other hand, in complex traumas such as major vessel injury, up to 76% reported not being competent. Self-confidence on procedures was directly associated with the number of procedures performed during residency.

Conclusions:

Recently graduated surgeons from General Surgery Programs report high levels of confidence to deal with low and intermediate complexity traumas, but a lower level of confidence to treat high complexity cases.

HEADINGS:
General surgery; Internship and residency; Clinical competence; Advanced Trauma Life Support Care; Wounds and injuries


Nível de competência por procedimento


INTRODUÇÃO

Durante 2013, um total de 55 milhões de pessoas morreram em todo o mundo, sendo quatro milhões (8,7%) causadas por traumas2626 Naghavi M, Wang H, Lozano R, Davis A, Liang X, Zhou M, et al. Global, regional, and national age-sex specific all-cause and cause-specific mortality for 240 causes of death, 1990-2013: A systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2013. Lancet. 2015 Jan 10;385(9963):117-71.. No Chile, o trauma é a quarta causa de morte, correspondendo a 7,5% dos óbitos de 20161616 Instituto Nacional de Estadísticas. Estadísticas vitales 2016 [Internet]. [cited 2019 Oct 14]. Available from: https://www.ine.cl/docs/default-source/demográficas-y-vitales/vitales/anuarios/2016/sintesis-vitales-final.pdf?sfvrsn=11
https://www.ine.cl/docs/default-source/d...
. No mesmo ano e em relação a pacientes com idade entre 20 e 59 anos, o número de óbitos associados a acidente de trânsito e agressão (1.889) supera outras doenças comuns, como doença cardiovascular isquêmica (1.477) e cirrose hepática (1.881)77 Departamento de Estadísticas e Información de Salud de Chile. Serie de Defunciones 2000-2016 [Internet]. [cited 2020 Apr 15]. Available from: http://deis.cl/wp-content/2017/gobCL-sitios-1.0/assets/SerieDefunciones_2000_2015.html
http://deis.cl/wp-content/2017/gobCL-sit...
. De acordo com esses dados, o trauma tornou-se a primeira causa de mortalidade em pacientes jovens com a consequente maior perda de anos de vida potencialmente produtivos22 Bächler R, Icaza G, Soto A, Núñez L, Orellana C, Monsalve R, et al. Epidemiología de las muertes prematuras en Chile en la década 2001-2010. Rev Med Chil. 2017 Mar;145(3):319-26.. Aparentemente, relatos no Brasil identificam que a população mais atingida é de homens e que as causas específicas dos traumas são as quedas e os acidentes de trânsito, com taxa crescente por acidentes de moto nos últimos anos2020 Lentsck MH, Sato APS, Mathias TA de F. Epidemiological overview - 18 years of ICU hospitalization due to trauma in Brazil. Rev Saude Publica. 2019;53:83.,3636 Trajano AD, Pereira BM, Fraga GP. Epidemiology of in-hospital trauma deaths in a Brazilian university hospital. BMC Emerg Med. 2014 Oct 31;14(1):22.. Esses números se assemelham à realidade local onde os relatos identificam os acidentes de trânsito e as lesões penetrantes como as principais causas específicas de trauma2323 Medina U E, Kaempffer R AM. Consideraciones epidemiológicas sobre los traumatismos en Chile. Rev Chil cirugía. 2007 Jun;59(3):175-84..

A mortalidade nas primeiras horas do trauma é atribuída principalmente ao sangramento de grandes vasos ou órgãos altamente perfundidos. Muitas dessas mortes são evitáveis ​​com tratamento precoce, onde as equipes pré-hospitalares e hospitalares desempenham papel importante5,33,35, 39. Em relação ao tratamento cirúrgico, a habilidade do cirurgião no controle rápido do sangramento representa a etapa crítica na redução de erros e, portanto, mortes. Essa abordagem é o foco principal dos protocolos de grandes centros de trauma1111 Gruen RL, Jurkovich GJ, McIntyre LK, Foy HM, Maier R V. Patterns of Errors Contributing to Trauma Mortality. Trans . Meet Am Surg Assoc. 2006 Sep;124(3):37-46.,2929 Oyeniyi BT, Fox EE, Scerbo M, Tomasek JS, Wade CE, Holcomb JB. Trends in 1029 trauma deaths at a level 1 trauma center: Impact of a bleeding control bundle of care. Injury. 2017 Jan;48(1):5-12.. A abordagem cirúrgica adequada também reduz o número de incapacidades por perda de membros, os dias de internação e a utilização de recursos associados ao cuidado desses pacientes33 Bergs EAG, Rutten FLPA, Tadros T, Krijnen P, Schipper IB. Communication during trauma resuscitation: Do we know what is happening? Injury. 2005 Aug 1;36(8):905-11.,1212 Gunst M, O'Keeffe T, Hollett L, Hamill M, Gentilello LM, Frankel H, et al. Trauma Operative Skills in the Era of Nonoperative Management: The Trauma Exposure Course (TEC). J Trauma Inj Infect Crit Care. 2009 Nov;67(5):1091-6..

Em países e locais onde não há centros de trauma disponíveis, a avaliação e o tratamento de traumas graves são realizados por cirurgião geral no departamento de emergência1414 Hepp JK, Csendes AJ, Ibáñez FC, Llanos OL, San Martín SR. Programa de la especialidad Cirugía General. Definiciones y propuestas de la Sociedad de Cirujanos de Chile Programa de la especialidad Cirugía General. Vol. 60, Rev. Chilena de Cirugía. 2008.. Nesse cenário, muitas vezes o apoio de um especialista não está disponível e o cirurgião deve atuar sozinho44 Bustamante Z. M, Espinoza G. R, Hepp K. J, Martínez C. J. Estándares de la formación del cirujano. Visión de la sociedad de cirujanos de Chile. Rev Chil Cir. 2015 Feb;67(1):102-8.. Além disso, a maior parte destes casos concentra-se fora do horário de trabalho, dificultando ainda mais a orientação de colegas mais velhos2525 Nabi H, Guéguen A, Chiron M, Lafont S, Zins M, Lagarde E. Awareness of driving while sleepy and road traffic accidents: prospective study in GAZEL cohort. BMJ. 2006 Jul 8;333(7558):75.,4040 Zafar SN, Libuit L, Hashmi ZG, Hughes K, Greene WR, Cornwell EE, et al. The sleepy surgeon: does night-time surgery for trauma affect mortality outcomes? Am J Surg. 2015 Apr;209(4):633-9..

A formação dos cirurgiões gerais durante a residência mudou nos últimos anos1818 Klingensmith ME, Lewis FR. General surgery residency training issues. Adv Surg. 2013;47:251-70.. A redução dos horários de trabalho, o aumento das preocupações com a segurança do sistema de saúde e mudança essencial para o manejo conservador do trauma e outros fatores resultaram na diminuição da exposição dos residentes a casos cirúrgicos complexos1010 Grantcharov TP, Funch-Jensen P. Can everyone achieve proficiency with the laparoscopic technique? Learning curve patterns in technical skills acquisition. Am J Surg. 2009 Apr 1;197(4):447-9.,1212 Gunst M, O'Keeffe T, Hollett L, Hamill M, Gentilello LM, Frankel H, et al. Trauma Operative Skills in the Era of Nonoperative Management: The Trauma Exposure Course (TEC). J Trauma Inj Infect Crit Care. 2009 Nov;67(5):1091-6.,3232 Reznick RK, MacRae H. Teaching Surgical Skills - Changes in the Wind. Cox M, Irby DM, editors. N Engl J Med. 2006 Dec 21;355(25):2664-9.. Em países onde a residência em cirurgia geral dura apenas três anos, como no Chile, os fatores mencionados acima podem ter impacto mais considerável do que em programas mais extensos44 Bustamante Z. M, Espinoza G. R, Hepp K. J, Martínez C. J. Estándares de la formación del cirujano. Visión de la sociedad de cirujanos de Chile. Rev Chil Cir. 2015 Feb;67(1):102-8.. Essa situação tem levado ao questionamento da competência adequada para realizar alguns procedimentos por parte dos cirurgiões gerais com autonomia ao final de seu programa de treinamento2222 Mattar SG, Alseidi AA, Jones DB, Jeyarajah DR, Swanstrom LL, Aye RW, et al. General surgery residency inadequately prepares trainees for fellowship: Results of a survey of fellowship program directors. In: Annals of Surgery. 2013. p. 440-7.. A competência pode ser entendida como a combinação dinâmica de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para executar uma tarefa com eficiência. A medida geral desses fatores é fundamental para avaliar a qualidade de qualquer programa educacional. No entanto, não existem estudos que avaliem a competência do cirurgião no tratamento de traumas graves após a graduação.

Portanto, este estudo tem como objetivo descrever o nível de autoconfiança para lidar com procedimentos traumáticos de cirurgiões recém-formados pela residência em Cirurgia Geral.

MÉTODOS

Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética institucional com o número 170318009

Ferramentas de avaliação

Foi realizado estudo transversal descritivo. Uma pesquisa de autoavaliação foi elaborada e aplicada. A primeira seção continha questões do tipo Likert relacionadas a 18 procedimentos cirúrgicos de trauma nas áreas cervical, vascular, torácica e abdominal (Figura 1)2121 Likert R. A technique for the measurement of attitudes. Arch Psychol. 1932;22 140:55.. Os participantes foram solicitados a relatar sua avaliação sobre o grau de competência (muito incompetente - incompetente - intermediário-competente - muito competente) para realizar esses procedimentos de trauma sendo assistidos por um residente do primeiro ano (um exemplo pode ser visto na Figura 2). Os procedimentos listados foram selecionados de acordo com os casos de traumas frequentes e de acordo com a recomendação da Sociedade Chilena de Cirurgia de habilidades cirúrgicas mínimas exigidas para cirurgião geral1414 Hepp JK, Csendes AJ, Ibáñez FC, Llanos OL, San Martín SR. Programa de la especialidad Cirugía General. Definiciones y propuestas de la Sociedad de Cirujanos de Chile Programa de la especialidad Cirugía General. Vol. 60, Rev. Chilena de Cirugía. 2008.,3131 Ramos JP, Ottolino PR, Muñoz CA, Ruiz JE, Arenas CE, Salazar FP, et al. Primer registro de trauma en Chile. Análisis de 2 años en el Complejo Asistencial Hospital Dr. Sótero Del Río. Rev Cir (Mex). 2020 Mar 2;73(1).. Lesão cerebral traumática e trauma ortopédico foram excluídos porque nenhum deles é tratado pelos cirurgiões gerais. A segunda seção avaliou o número médio de procedimentos cirúrgicos realizados durante a residência em sete cenários de trauma (Tabela 1).

FIGURA 1
Nível de competência por procedimento. A porcentagem de cada nível de competência para cada procedimento é apresentada de acordo com os autorrelatos

FIGURA 2
Exemplo de pesquisa aplicada. Este formato foi aplicado a todos os 18 procedimentos cirúrgicos de trauma

TABELA 1
Número de procedimentos realizados durante a residência

A pesquisa foi entregue por e-mail a 115 cirurgiões gerais recém-formados de todas as universidades do país entre os anos de 2015 e 2017. A pesquisa foi enviada anualmente e respondida entre 1-3 meses após a graduação.

Análise estatística

A análise estatística foi descritiva e realizada usando RStudio® (2019 v1.2.5001 na base R, Boston, EUA).

RESULTADOS

Responderam à pesquisa 88 cirurgiões recém-formados (71%) de 11 programas diferentes. Destes, 31 se formaram em 2015, 29 em 2016 e 28 em 2017. A Figura 1 resume os resultados da primeira seção da pesquisa, e a Tabela 1 da segunda seção.

O trauma cervical concentra os níveis mais baixos de competência. Nesse segmento anatômico, menos de 25% relatam nível aceitável de competência para tratar lesões da traqueia, esôfago ou artéria carótida. Em contraste, no trauma torácico, o nível de competência relatado foi intermediário, com 60% dos participantes declarando nível aceitável de competência para o trauma torácico e pulmonar. No trauma abdominal, o nível de competência relatado foi alto na maioria dos procedimentos, como reparo intestinal e colônico, ruptura intraperitoneal da bexiga e esplenectomia, onde mais de 70% dos cirurgiões relataram alto nível de competência. A observação anterior coincide com um elevado número de laparotomias realizadas durante a residência (Tabela 1). Por fim, no trauma complexo de membro, o nível de competência era intermediário e representado principalmente pelo trauma da artéria femoral superficial.

A análise de especialidade mostra que os níveis mais baixos de competência estão concentrados em procedimentos vasculares, especialmente naqueles que envolvem lesões da artéria subclávia, veia cava ou aorta. Em contrapartida, os procedimentos gastrointestinais são os que relatam os níveis mais elevados de competência, especialmente os mais comuns, como as lesões do intestino, cólon e baço. No entanto, há exceções, como o trauma da cauda do pâncreas e duodeno, onde o grau de competência foi inferior a 25%.

A Tabela 1 resume a quantidade de procedimentos de trauma realizados por cirurgiões recém-formados durante o período de residência. Um número crítico de participantes realizou grande número de laparotomias de emergência (82% realizaram cinco ou mais), e apenas um pequeno número raramente participou deste procedimento (18% fez entre 0 e cinco laparotomias). Na região torácica, observamos que 75% realizaram pelo menos uma toracotomia de emergência. No entanto, apenas 20% realizaram mais de dois reparos pulmonares ou cardíacos devido ao trauma. O trauma vascular concentra a menor exposição para os residentes. Nessa área, o percentual de residentes que realizaram alguma correção aórtica é de 79%, e em outros procedimentos como fístula arteriovenosa e ponte vascular, o número de casos realizados por residentes é baixo (apenas 10% realizaram pelo menos cinco de cada procedimento).

DISCUSSÃO

O trauma está associado à alta taxa de morbimortalidade, sendo fundamental o manejo rápido e padronizado com controle precoce do sangramento1515 Instituto Nacional de Estadísticas. Anuario de Estadisticas Vitales 2012.,2929 Oyeniyi BT, Fox EE, Scerbo M, Tomasek JS, Wade CE, Holcomb JB. Trends in 1029 trauma deaths at a level 1 trauma center: Impact of a bleeding control bundle of care. Injury. 2017 Jan;48(1):5-12.. O tratamento dos pacientes muitas vezes é realizado por cirurgiões gerais no pronto-socorro de hospitais gerais44 Bustamante Z. M, Espinoza G. R, Hepp K. J, Martínez C. J. Estándares de la formación del cirujano. Visión de la sociedad de cirujanos de Chile. Rev Chil Cir. 2015 Feb;67(1):102-8.. Além disso, há preocupação crescente com a qualidade de algumas habilidades cirúrgicas adquiridas durante o treinamento em residência1818 Klingensmith ME, Lewis FR. General surgery residency training issues. Adv Surg. 2013;47:251-70.,2222 Mattar SG, Alseidi AA, Jones DB, Jeyarajah DR, Swanstrom LL, Aye RW, et al. General surgery residency inadequately prepares trainees for fellowship: Results of a survey of fellowship program directors. In: Annals of Surgery. 2013. p. 440-7.,3030 Peets A, Ayas NT. Restricting resident work hours. Crit Care Med. 2012 Mar;40(3):960-6.,3434 Strumwasser A, Grabo D, Inaba K, Matsushima K, Clark D, Benjamin E, et al. Is your graduating general surgery resident qualified to take trauma call? A 15-year appraisal of the changes in general surgery education for trauma. J Trauma Acute Care Surg. 2017 Mar;82(3):470-80.. Isso justifica a necessidade de investigar o nível de habilidades de gerenciamento de trauma de cirurgiões recém-formados.

Até onde sabemos, não há estudos locais anteriores avaliando esta questão; portanto, realizamos um estudo descritivo como primeira exploração da situação atual. Além disso, a utilização de um inquérito como ferramenta de avaliação permite-nos aumentar de forma rentável a amostra obtida e, consequentemente, a representatividade dos resultados. Essa abordagem é útil em países com uma ampla variedade de programas de treinamento.

Os resultados mostram que, em nosso meio, cirurgiões recém-formados relatam alto nível de competência para realizar procedimentos de baixa complexidade, como procedimentos abdominais (anastomose intestinal, reparo colônico e esplenectomia). Ao contrário, procedimentos de alta complexidade, como trauma cervical ou lesões vasculares, são os que apresentam os níveis mais baixos de competência relatada. Esse achado é relevante, pois o choque hemorrágico é a principal causa de morte potencialmente evitável em traumas graves1515 Instituto Nacional de Estadísticas. Anuario de Estadisticas Vitales 2012.,2929 Oyeniyi BT, Fox EE, Scerbo M, Tomasek JS, Wade CE, Holcomb JB. Trends in 1029 trauma deaths at a level 1 trauma center: Impact of a bleeding control bundle of care. Injury. 2017 Jan;48(1):5-12.. A Figura 1 resume os resultados de acordo com cada procedimento e pode ser usada como referência para estudos futuros ou comparativos.

Apesar do debate que envolve a associação entre o número de casos realizados por um residente e as competências adquiridas, neste estudo, a percepção de competências foi proporcional ao número de procedimentos realizados2727 Nygaard RM, Daly SR, Van Camp JM. General Surgery Resident Case Logs: Do They Accurately Reflect Resident Experience? In: Journal of Surgical Education. Elsevier Inc.; 2015. p. e178-83.. A exposição dos cirurgiões em treinamento a cenários de trauma deve ser aumentada a fim de melhorar sua competência na área. Provavelmente, períodos mais longos de residência podem ser solução potencial para superar essas barreiras (como estender a residência de três para cinco anos).

O baixo nível de competência e a reduzida exposição aos casos de trauma também têm sido relatados na literatura internacional. Um estudo de 15 anos nos Estados Unidos demonstrou diminuição no número de casos de trauma gerenciados por residentes de cirurgia geral3434 Strumwasser A, Grabo D, Inaba K, Matsushima K, Clark D, Benjamin E, et al. Is your graduating general surgery resident qualified to take trauma call? A 15-year appraisal of the changes in general surgery education for trauma. J Trauma Acute Care Surg. 2017 Mar;82(3):470-80.. No Canadá, falhas no treinamento cirúrgico do trauma também foram detectadas. Pelo menos 20% de sua população não tem acesso a um centro de trauma com cirurgiões especializados em trauma, o atendimento também é prestado por cirurgiões gerais em hospitais locais99 Engels PT, Bradley NL, Ball CG. The current state of resident trauma training: Are we losing a generation? Can J Surg. 2018;61(3):153-4.,1313 Hameed SM, Schuurman N, Razek T, Boone D, Van Heest R, Taulu T, et al. Access to trauma systems in Canada. J Trauma - Inj Infect Crit Care. 2010 Dec;69(6):1350-61.,2222 Mattar SG, Alseidi AA, Jones DB, Jeyarajah DR, Swanstrom LL, Aye RW, et al. General surgery residency inadequately prepares trainees for fellowship: Results of a survey of fellowship program directors. In: Annals of Surgery. 2013. p. 440-7..

Como a diminuição da exposição a este tipo de caso é inevitável, novas estratégias devem ser buscadas e implementadas no treinamento de habilidades traumáticas para residentes de cirurgia. Em outras áreas cirúrgicas, como a laparoscópica, o treinamento tem sido complementado com programas baseados em simulação1717 Jarufe N, Barra M, Varas J. Centros de simulación quirúrgica regionales y certificación a distancia (telesimulación). Una innovación pionera en el mundo conducida por la Sociedad de Cirujanos de Chile. 2018.. Esses programas têm demonstrado encurtar a curva de aprendizado e a transferência das habilidades adquiridas para a sala de cirurgia66 Castillo R, Buckel E, León F, Varas J, Alvarado J, Achurra P, et al. Effectiveness of Learning Advanced Laparoscopic Skills in a Brief Intensive Laparoscopy Training Program. J Surg Educ. 2015 Jul;72(4):648-53.,88 Egle JP, Malladi SVS, Gopinath N, Mittal VK. Simulation Training Improves Resident Performance in Hand-Sewn Vascular and Bowel Anastomoses. J Surg Educ. 2015 Mar;72(2):291-6.,3838 Varas J, Mejía R, Riquelme A, Maluenda F, Buckel E, Salinas J, et al. Significant transfer of surgical skills obtained with an advanced laparoscopic training program to a laparoscopic jejunojejunostomy in a live porcine model: feasibility of learning advanced laparoscopy in a general surgery residency. Surg Endosc. 2012 Dec 26;26(12):3486-94.. Em cirurgia de trauma, existem alguns cursos de treinamento como o ATLS, amplamente utilizado em nosso meio, mas que foca em habilidades gerais e não na aquisição de competências cirúrgicas2424 Miyasaka KW, Martin ND, Pascual JL, Buchholz J, Aggarwal R. A Simulation Curriculum for Management of Trauma and Surgical Critical Care Patients. J Surg Educ. 2015 Sep;72(5):803-10.,2828 Ortiz Figueroa F, Moftakhar Y, Dobbins IV AL, Khan R, Dasgupta R, Blanda R, et al. Trauma Boot Camp: A Simulation-Based Pilot Study. Cureus. 2016 Jan 20;8(1):e463.. Outros cursos, como o ATOM, ASSET (ACS) ou DQT (da Panamerican Society of Trauma), possibilitam a aquisição de habilidades cirúrgicas, mas são menos disponíveis e muitas vezes estão associados às questões éticas e custos elevados dos animais11 Ali J, Ahmed N, Jacobs LM, Luk SS. The Advanced Trauma Operative Management course in a Canadian residency program. Can J Surg. 2008 Jun;51(3):185-9.,1919 Kuhls DA, Risucci DA, Bowyer MW, Luchette FA. Advanced surgical skills for exposure in trauma: A new surgical skills cadaver course for surgery residents and fellows. J Trauma Acute Care Surg. 2013 Feb;74(2):664-70..

Os achados deste trabalho, baseados em relatos pessoais, revelam oportunidade para aprimorar os programas de treinamento cirúrgico. Essa situação deve continuar a ser estudada com avaliação objetiva das habilidades cirúrgicas por meio de testes estruturados3737 Van Hove PD, Tuijthof GJM, Verdaasdonk EGG, Stassen LPS, Dankelman J. Objective assessment of technical surgical skills. Vol. 97, British Journal of Surgery. 2010. p. 972-87.,4141 Zayyan M. Objective structured clinical examination: The assessment of choice. Vol. 26, Oman Medical Journal. 2011. p. 219-22.

CONCLUSÃO

Em suma, os cirurgiões recém-formados no Chile relatam alto nível de competência cirúrgica para tratar casos de trauma de baixa e intermediária complexidade, mas baixo para tratar os de alta complexidade, como aqueles com comprometimento vascular ou em localização cervical. Isso deve motivar a avaliação objetiva dessas competências, e novas soluções curriculares devem ser propostas para adquirir as competências em falta.

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  • Financiamento:

    Este estudo foi financiado pelo Chilean Research Grant Fondecyt Regular n° 1171908 from Conicyt
  • Mensagem central

    Cirurgiões gerais recém-formados podem não estar preparados para lidar com traumas cirúrgicos complexos que chegam ao departamento de emergência de hospitais gerais.
  • Perspectivas

    Este estudo é o primeiro a explorar a autoconfiança de cirurgiões recém-formados no manejo de cenários de trauma cirúrgico. O treinamento em cirurgia mudou nas últimas décadas. A ampla menor exposição dos residentes e outros fatores têm levantado o questionamento sobre sua prontidão para realizar alguns procedimentos cirúrgicos, incluindo traumas. O baixo nível de confiança para resolver casos complexos detectados revela oportunidade de aprimorar o currículo atual.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2020
  • Aceito
    18 Set 2020
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