Acessibilidade / Reportar erro

PERFURAÇÃO INTESTINAL CAUSADA PELO COVID-19

DESCRITORES:
SARS-CoV-2; Câncer colorretal; Abdome agudo; Trombose; Coloproctologia

INTRODUÇÃO

À medida que a pandemia de Coronavirus Disease - 2019 (COVID-19) se dissemina pelo mundo, novas manifestações clínicas são descobertas e relatadas. Além do quadro clínico respiratório, já foram descritas insuficiência renal aguda33 Fanelli V, Fiorentino M, Cantaluppi V. Acute kidney injury in SARSCoV-2 infected patients. Crit Care. 2020; 24(1):155., hipercoagulabilidade99 Spiezia L, Boscolo A, Poletto F. Covid-19-Related Severe Hypercoagulability in Patients Admitted to the Intensive Care Unit for Acute Respiratory Failure. Thromb Haemost. 2020; 120(6):998-1000., vômitos e diarreia55 Jin X, Lian J, Hu J, Gao J, Zheng L, Zhang Y, et al. Epidemiological, clinical and virological characteristics of 74 cases of coronavirus-infected disease 2019 (COVID-19) with gastrointestinal symptoms. Gut 2020; 69:1002-9..

O Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) já realizou mais de 8500 procedimentos cirúrgicos para o tratamento do câncer colorretal. É um dos hospitais associados à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que até o momento já tratou de mais de 3000 pacientes com COVID-19 moderada ou grave em regime de internação hospitalar.

Apresentamos um caso de perfuração intestinal provocada por isquemia secundária à trombose microcirculatória do cólon, em paciente submetido ao tratamento cirúrgico do câncer colorretal.

RELATO DE CASO

Homem de 92 anos, com diagnóstico de adenocarcinoma de reto, procurou o pronto-socorro em abril de 2020 devido ao quadro clínico de suboclusão intestinal. Apresentava antecedentes pessoais de hipertensão arterial e doença renal crônica não-dialítica. Tomografia (TC) de tórax e abdome mostrou-se sem alterações pulmonares, com múltiplas metástases hepáticas, a maior delas com 3,0 cm, e com distensão de cólon e delgado. Submetido à laparotomia exploradora, foi encontrado tumor em reto alto causando obstrução do trânsito intestinal e metástases hepáticas. Foi realizada retossigmoidectomia com fechamento do coto retal em fundo cego, e colostomia terminal.

No pós-operatório, recebia dieta e apresentava trânsito intestinal até o 3º PO, quando passou a ter tosse e febre. Investigação laboratorial mostrou aumento da proteína C reativa (PCR, Figura 1). TC de tórax revelou consolidação em base pulmonar direita. Avaliação da equipe da infectologia apontou quadro clínico e radiológico compatível com pneumonia bacteriana. Iniciada antibioticoterapia com piperacilina-tazobactam, mantida durante cinco dias, com boa resposta, passando a receber levofloxacino. Obteve alta no 8º dia de PO, com melhora clínica, queda do PCR, boa aceitação de dieta e funcionamento da colostomia.

Após dois dias, no 10º PO, ele retornou ao pronto-socorro queixando-se de dor abdominal difusa, oligúria e tosse. Ao exame abdominal apresentava colostomia não funcionante e dor abdominal à palpação, sem sinais de peritonite. Na análise laboratorial, apresentava leucocitose de 19.000 células/mm³, com 92% de neutrófilos e PCR de 110mg/l (intervalo de normalidade <5,0 mg/l), além de disfunção renal com aumento da creatinina de 1,58 mg/dl para 3,7 mg/dl e da ureia de 56 mg/dl para 110 mg/dl (Figura 1). TC de abdome demonstrou pneumoperitônio, sem coleções livres, com distensão difusa de alças de delgado. Foi indicada laparotomia exploradora, que evidenciou perfuração puntiforme em cólon descendente a 10 cm da colostomia, com peritonite fecal bloqueada por alças de delgado. Foi ressecado segmento do cólon descendente perfurado a 10 cm da colostomia, realizada lavagem exaustiva da cavidade, colostomia terminal e introduzido antibioticoterapia com meropenem.

Devido ao quadro clínico concomitante pulmonar foi encaminhado à UTI, mantido entubado com droga vasoativa, sonda nasogástrica, antibioticoterapia e nutrição parenteral. Mantinha débito elevado pela sonda nasogástrica. A partir do 1º PO recebeu terapia anticoagulante para profilaxia de eventos tromboembólicos. Foi extubado no 3º PO, recebendo alta da UTI. No 5º PO apresentou piora do quadro respiratório, com desconforto e queda da saturação de oxigênio e elevação da PCR. A TC de tórax (Figura 2), demonstrou múltiplas opacidades em vidro-fosco bilaterais. Foram observados valores de Dímero-D de 3225 ng/ml e DHL de 638 U/l. Foi coletado swab naso e orofaríngeo para pesquisa do Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2). Devido à queda da saturação de oxigênio mesmo com suplementação com máscara a 100%, foi novamente internado na UTI, de imediato submetido a intubação orotraqueal, mantido em ventilação mecânica e isolamento.

Na evolução clínica o swab resultou positivo, com piora das condições gerais: íleo adinâmico, insuficiência renal aguda com creatinina atingindo 5,0 mg/dL, necessidade de altas doses de drogas vasoativas, e de antibioticoterapia com meropenem, vancomicina e anidulafungina. Foi extubado no 28º PO após melhora do quadro respiratório. Recebeu alta da UTI no 30º PO, porém evoluiu em coma vigil, segundo avaliação do neurologista. Evoluiu ao óbito no 36º PO.

Estudo anatomopatológico da peça da reabordagem cirúrgica evidenciou alterações trombóticas da microcirculação do cólon descendente perfurado (Figura 3).

FIGURA 1
Curva de PCR sérico

FIGURA 2
TC de tórax no 5º PO

FIGURE 3
Microscopia do espécime cirúrgico: A) necrose parcial ou total da mucosa intestinal, com edema, inflamação e áreas de hemorragia (4x, H&E); B, C e D) áreas de necrose de tecido adiposo e alterações vasculares, tais como congestão e trombos em organização.

DISCUSSÃO

Relatamos caso de paciente submetido ao tratamento cirúrgico de urgência por câncer colorretal, sem sinais ou sintomas de COVID-19. No momento de sua admissão, não apresentava suspeita e não foi realizado o swab nasofaríngeo para pesquisa do vírus por RT-PCR. Entretanto, em sua evolução pós-operatória, quando passou a apresentar sinais e sintomas compatíveis com COVID-19, foi então realizado o teste e confirmada a infecção pelo SARS-CoV-2, a qual levou às complicações renais, pulmonares e gastrointestinais, que provocaram o óbito. Apesar de ter apresentado manifestações respiratórias graves, elas foram revertidas com o suporte intensivo e o tratamento multidisciplinar, sendo mais significativo para o desfecho desfavorável do caso o acometimento do trato digestivo, com perfuração intestinal, sepse de foco abdominal e disfunção de múltiplos órgãos, secundária ao processo infeccioso.

Sintomas gastrointestinais, tais como diarreia, náuseas e vômitos, são descritos em pacientes com COVID-19, e podem ocorrer até mesmo na ausência de manifestações respiratórias55 Jin X, Lian J, Hu J, Gao J, Zheng L, Zhang Y, et al. Epidemiological, clinical and virological characteristics of 74 cases of coronavirus-infected disease 2019 (COVID-19) with gastrointestinal symptoms. Gut 2020; 69:1002-9., sendo relacionados a inflamação intestinal22 Effenberger M, Grabherr F, Mayr L, Schwaerzler J, Nairz M, Seifert M, et al. Faecal calprotectin indicates intestinal inflammation in COVID-19. Gut. 2020; 69:1543-4. provocada pelo processo virótico.

Este é o primeiro relato descrito na literatura de perfuração intestinal decorrente da trombose da microcirculação, associada à infecção pelo SARS-CoV-2, com avaliação histopatológica de que temos conhecimento.

Além dos sintomas respiratórios e gastrointestinais, a infecção pelo SARS-CoV-2 produz resposta inflamatória desencadeada pela rápida replicação viral e destruição celular, recrutando macrófagos e monócitos, e induzindo a liberação de citocinas e quimiocinas, tais como IL-1 β, IL-2, IL-6, IL-7 e IFN- γ55 Jin X, Lian J, Hu J, Gao J, Zheng L, Zhang Y, et al. Epidemiological, clinical and virological characteristics of 74 cases of coronavirus-infected disease 2019 (COVID-19) with gastrointestinal symptoms. Gut 2020; 69:1002-9.. Estas citocinas induzem formação de trombina através da liberação do fator tecidual pelas células endoteliais, e por tornarem disfuncionais os mecanismos anticoagulantes naturais. Além disso, a fibrinólise encontra-se prejudicada pelo aumento do inibidor do ativador do plasminogênio 1, tornando inadequada a depuração de fibrina66 Mehta P, McAuley DF, Brown M, Sanchez E, Tattersall RS, Manson JJ, et al. COVID-19: consider cytokine storm syndromes and immunosuppression. Lancet. 2020;395(10229):1033-4.

7 Negri EM, Piloto BM, Morinaga LK, Jardim LK, Lamy CVP, El Dash SA, et al. Heparin therapy improving hypoxia in COVID-19 patients - a case series. medRxiv preprint doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.15.20067017.
https://doi.org/10.1101/2020.04.15.20067...

8 Ren B, Yan F, Deng Z, Zhang S, Xiao L, Wu M, et al. Extremely High Incidence of Lower Extremity Deep Venous Thrombosis in 48 Patients with Severe COVID-19 in Wuhan. Circulation. 2020; 142:181-3.

9 Spiezia L, Boscolo A, Poletto F. Covid-19-Related Severe Hypercoagulability in Patients Admitted to the Intensive Care Unit for Acute Respiratory Failure. Thromb Haemost. 2020; 120(6):998-1000.
-1010 Tay MZ, Poh CM, Rénia L, MacAry PA, Ng LFP. The trinity of COVID-19: immunity, inflammation and intervention. Nat Rev Immunol. 2020;1-12.. Assim, esta tempestade de citocinas66 Mehta P, McAuley DF, Brown M, Sanchez E, Tattersall RS, Manson JJ, et al. COVID-19: consider cytokine storm syndromes and immunosuppression. Lancet. 2020;395(10229):1033-4. acaba por induzir ativação da cascata de coagulação, causando fenômenos trombóticos, que podem se manifestar em diversos territórios vasculares.

Já foram descritos trombos em arteríolas na microcirculação pulmonar11 Dolhnikoff M, Duarte-Neto AN, de Almeida Monteiro RA, Silva LFF, Oliveira EP, Saldiva PHN, et al. Pathological evidence of pulmonary thrombotic phenomena in severe COVID-19. J Thromb Haemost. 2020; 18(6):1517-9. tanto em áreas de parênquima pulmonar normal quanto na do tecido danificado pelos efeitos do vírus. Estudo77 Negri EM, Piloto BM, Morinaga LK, Jardim LK, Lamy CVP, El Dash SA, et al. Heparin therapy improving hypoxia in COVID-19 patients - a case series. medRxiv preprint doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.15.20067017.
https://doi.org/10.1101/2020.04.15.20067...
de nosso Departamento de Patologia demonstrou o benefício de terapia anticoagulante para melhorar a oxigenação de pacientes críticos, conduta que foi aplicada neste caso. Encontramos na literatura relato de quadro de necrose intestinal aguda44 Gartland RM, Velmahos GC. Bowel Necrosis in the Setting of COVID-19. J Gastrointest Surg. 2020;1-2. secundária aos efeitos trombóticos microcirculatórios provocados pelo novo coronavírus. Além da trombose pulmonar e intestinal, foi observado aumento expressivo da incidência de trombose venosa profunda em pacientes internados em UTI devido à COVID-19, chegando a 85%, mesmo em uso de anticoagulação profilática88 Ren B, Yan F, Deng Z, Zhang S, Xiao L, Wu M, et al. Extremely High Incidence of Lower Extremity Deep Venous Thrombosis in 48 Patients with Severe COVID-19 in Wuhan. Circulation. 2020; 142:181-3.. Lesões cutâneas isquêmicas nas extremidades são descritas em pacientes com forma grave da COVID-19, consequentes aos distúrbios trombóticos1111 Zhang Y, Cao W, Xiao M, Li YJ, Yang Y, Zhao J, et al. Clinical and coagulation characteristics of 7 patients with critical COVID-2019 pneumonia and acro-ischemia. Zhonghua Xue Ye Xue Za Zhi. 2020; 41(0): E006..

Os trombos em arteríolas visualizados neste caso e representados na Figura 3, são semelhantes aos trombos descritos em autópsias11 Dolhnikoff M, Duarte-Neto AN, de Almeida Monteiro RA, Silva LFF, Oliveira EP, Saldiva PHN, et al. Pathological evidence of pulmonary thrombotic phenomena in severe COVID-19. J Thromb Haemost. 2020; 18(6):1517-9. na circulação pulmonar de pacientes que foram a óbito por COVID-19.

O estudo macroscópico da peça cirúrgica demonstrou um segmento de cólon medindo 4,5 cm em comprimento, com sua serosa contendo material fibrinoso. A parede intestinal era adelgaçada e demonstrava uma área de perfuração focal. A mucosa era hemorrágica. Nos achados microscópicos, observaram-se alterações no padrão isquêmico, com necrose parcial ou total da parede intestinal e áreas de perda de mucosa, edema, inflamação e hemorragia. Na subserosa, necrose do tecido adiposo com congestão e vários trombos vasculares em organização (Figura 3). Provavelmente, a trombose microcirculatória intestinal observada no caso descrito levou à isquemia da parede do cólon, culminando com perfuração intestinal, que provocou necessidade de reabordagem cirúrgica.

Tendo em vista a observação das potenciais complicações provocadas pelo COVID-19 no pós-operatório, a comissão de controle de infecção hospitalar passou a realizar o swab para pesquisa do SARS-CoV-2 em todos os pacientes antes do procedimento cirúrgico de urgência. Em operações eletivas, o teste é realizado 48 h antes do procedimento, e caso positivo suspende-se o procedimento sempre que possível.

REFERENCES

  • 1
    Dolhnikoff M, Duarte-Neto AN, de Almeida Monteiro RA, Silva LFF, Oliveira EP, Saldiva PHN, et al. Pathological evidence of pulmonary thrombotic phenomena in severe COVID-19. J Thromb Haemost. 2020; 18(6):1517-9.
  • 2
    Effenberger M, Grabherr F, Mayr L, Schwaerzler J, Nairz M, Seifert M, et al. Faecal calprotectin indicates intestinal inflammation in COVID-19. Gut. 2020; 69:1543-4.
  • 3
    Fanelli V, Fiorentino M, Cantaluppi V. Acute kidney injury in SARSCoV-2 infected patients. Crit Care. 2020; 24(1):155.
  • 4
    Gartland RM, Velmahos GC. Bowel Necrosis in the Setting of COVID-19. J Gastrointest Surg. 2020;1-2.
  • 5
    Jin X, Lian J, Hu J, Gao J, Zheng L, Zhang Y, et al. Epidemiological, clinical and virological characteristics of 74 cases of coronavirus-infected disease 2019 (COVID-19) with gastrointestinal symptoms. Gut 2020; 69:1002-9.
  • 6
    Mehta P, McAuley DF, Brown M, Sanchez E, Tattersall RS, Manson JJ, et al. COVID-19: consider cytokine storm syndromes and immunosuppression. Lancet. 2020;395(10229):1033-4.
  • 7
    Negri EM, Piloto BM, Morinaga LK, Jardim LK, Lamy CVP, El Dash SA, et al. Heparin therapy improving hypoxia in COVID-19 patients - a case series. medRxiv preprint doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.15.20067017
    » https://doi.org/10.1101/2020.04.15.20067017
  • 8
    Ren B, Yan F, Deng Z, Zhang S, Xiao L, Wu M, et al. Extremely High Incidence of Lower Extremity Deep Venous Thrombosis in 48 Patients with Severe COVID-19 in Wuhan. Circulation. 2020; 142:181-3.
  • 9
    Spiezia L, Boscolo A, Poletto F. Covid-19-Related Severe Hypercoagulability in Patients Admitted to the Intensive Care Unit for Acute Respiratory Failure. Thromb Haemost. 2020; 120(6):998-1000.
  • 10
    Tay MZ, Poh CM, Rénia L, MacAry PA, Ng LFP. The trinity of COVID-19: immunity, inflammation and intervention. Nat Rev Immunol. 2020;1-12.
  • 11
    Zhang Y, Cao W, Xiao M, Li YJ, Yang Y, Zhao J, et al. Clinical and coagulation characteristics of 7 patients with critical COVID-2019 pneumonia and acro-ischemia. Zhonghua Xue Ye Xue Za Zhi. 2020; 41(0): E006.
  • Fonte de financiamento:

    não há

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2020
  • Aceito
    25 Jul 2020
Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva Av. Brigadeiro Luiz Antonio, 278 - 6° - Salas 10 e 11, 01318-901 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (11) 3288-8174/3289-0741 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaabcd@gmail.com