Open-access PERFURAÇÃO GÁSTRICA ASSOCIADA À PANCREATITE AGUDA: RELATO DE CASO

DESCRITORES: Ruptura gástrica; Pancreatite necrotisante aguda; Cirurgia

INTRODUÇÃO

A pancreatite aguda (AP) tem alta morbidade e mortalidade1 e a perfuração gástrica é uma rara complicação.

Os objetivos do presente trabalho foram: 1) relatar um caso com rara apresentação de AP (hematêmese) e evolução lenta para perfuração gástrica, e notável pela ausência de trombose do eixo celíaco como evidenciado por imagem; e 2) revisar AP em termos de apresentação clínica, imagem, fatores de risco, complicações e tratamento.

RELATO DO CASO

Homem com 48 anos apresentou-se com intensa dor abdominal epigástrica com um episódio de hematêmese. Ele estava com frequência cardíaca de 91 bpm, pressão arterial de 150/69 mmHg, temperatura de 37,3° C, pele pálida e membranas mucosas, abdome flácido sensível no epigástrio. Os resultados dos exames laboratoriais foram: leucócitos: 6,080 células/mm3, hematócrito 43,8%, hemoglobina 15,5 g/dl, proteína C reativa 2,3 mg/dl, creatinina 2,18 mg/dl, amilase 168 U/l, lipase 53 U/l, testes de função hepática normais, como também eletrólitos plasmáticos e testes de coagulação. TC abdominal e pélvica mostrou aumento leve da cauda do pâncreas, aumento da atenuação da gordura peripancreática e coleção pancreático-peripancreática em contato com a parede gástrica posterior (Figura 1A e B). 24 h após, os exames mostraram: leucócitos 17.830 células/mm3, hematócrito 41,7%, hemoglobina 14,6 g/dl e proteína C-reativa 36,96 mg/dl. Devido à hematêmese, foi realizada endoscopia GI superior que revelou gastrite difusa com focos necróticos.

FIGURA 1
A) TC abdominal axial sem contraste com coleção contactando a parede gástrica posterior; B) TC abdominal coronal com coleção em contato com a parede gástrica posterior.

A dor abdominal persistiu com sinais de irritação peritoneal e os exames laboratoriais de seguimento revelaram: leucócitos 9,999 células/mm3, hematócrito 44,4%, hemoglobina 15,3 g/dl, proteína C reativa 457,1 mg/dl, amilase 616 U/l, lipase 698 U/l, bilirrubina total 2,44 mg/dl, GOT/GPT 64/48 U/l e electrólitos normais. O paciente apresentava instabilidade hemodinâmica progressiva, oligúria, com aumento da creatinina, requerendo doses elevadas de noradrenalina.

Diagnosticou-se possível AP, e reavaliado mostrou dor abdominal difusa com irritação peritoneal e pressão intra-abdominal de 34 mmHg. O escore de gravidade da AP foi APACHE II 10, PCR 457; Marshall de 4.

AP, necrose gástrica e síndrome do compartimento abdominal foram diagnósticos pensados. Laparotomia exploradora foi indicada; o estômago exibia pelo menos 95% de necrose da junção gastroesofágica à região pré-pílórica, omento maior completamente necrótico, parede abdominal posterior estava fundida ao corpo do pâncreas. Quando da abertura parcial da retrocavidade omental, necrose pancreática extensa foi revelada. A limpeza cirúrgica foi realizada sem ressecção gástrica oupancreática. Os cuidados pós-operatórios foram administrados na UTI com antibióticos, hidratação, nutrição parenteral e insulina contínua por meio de bomba de infusão. A condição do paciente piorou paralelamente ao aumento dos parâmetros inflamatórios. Avaliação por equipe da cirurgia hepatobiliar e com TC de contraste abdominal e pélvico evidenciou ligeiro aumento no volume e ausência de aumento do corpo e da cauda do pâncreas (Figuras 2A e B) associado à uma coleção que se estendeu para a região posterior gástrica (Figura 2C), espessada e sem aumento (Figuras 2A e C). Não foi detectado envolvimento da área celíaca (Figura 2D) ou dos seus ramos principais. Re-exploração cirúrgica foi programada para o 8º dia do pós-operatório. Antes, efetuou-se angio-TC abdominal que afastou-se envolvimento vascular associado (Figura 3). Nova laparotomia exploradora revelou fluido livre necrotizante abundante, com mau cheiro. Cultura e limpeza cirúrgica da cavidade foram realizadaa. Decidiu-se por gastrectomia parcial longitudinal do corpo necrótic, e o paciente foi deixado com laparotomia contida (Figura 4). Novamente UTI foi necessária com ventilação mecânica por 27 dias, após o que o paciente foi transferido para a unidade de cuidados intermediários, onde permaneceu por 43 dias antes da transferência para enfermaria. Durante este período, ele foi submetido a sete limpezas cirúrgicas e exigiu esplenectomia e necrosectomia parcial da cauda do pâncreas, além de vários regimes de terapia com antibióticos. A limpeza cirúrgica final ocorreu 47 dias após a inicial e, neste momento, o saco de Bogotá foi removido e a parede abdominal fechada. Além disso, foi diagnosticada e administrada drenagem de fístula pancreatodigestiva de alto débito, e colecistite aguda litiásica (lama biliar) contornada por colecistestomia percutânea.

FIGURA 2
A) TC abdominal axial sem realce do corpo e da cauda do pâncreas; B) TC abdominal axial reforçada sem realce do corpo e da cauda do pâncreas; C) TC abdominal coronal reforçada com parede gástrica sem espessamento e coleção.

FIGURA 3
Angio-CT, axial MIP, sem envolvimento vascular

FIGURA 4
Espécime cirúrgico ressecado: gangrena gástrica devido à gastrite necrotizante

Após 70 dias, o paciente foi transferido para enfermaria, onde permaneceu por mais 36 dias. Ele progrediu para melhor condição geral, e nutrição parenteral continuou a ser necessária devido à presença da fístula; o débito diminuiu progressivamente. Jejunostomia à Witzel foi realizada sem incidentes. Após 21 dias de alimentação por ela, o teste de azul de metileno para alimentação oral foi negativo. Assim, iniciou-se a dieta por via oral, com boa tolerância e o paciente foi com alta hospitalar.

Atualmente, 17 meses após, foi realizada colecistectomia laparoscópica mais colangiografia intra-operatória (que não produziu imagens sugestivas de colangiolitiase). A evolução final foi favorável, dieta normal e insulinoterapia

DISCUSSÃO

Entender o contexto do paciente requer compreensão da classificação da pancreatite, que define três graus de gravidade: leve aguda, moderadamente grave aguda e grave aguda. A classificação constante é necessária devido à natureza dinâmica da doença, sendo importante a gestão multidisciplinar7. A terminologia desta classificação inclui insuficiência temporária de órgãos, insuficiência orgânica persistente e complicações locais ou sistêmicas. A insuficiência de órgãos é considerada temporária durante as primeiras 48 h e persistente a partir de 48 h3,4. As complicações locais incluem coleções de líquido e coleções necróticas agudas, enquanto as complicações sistêmicas podem estar relacionadas à exacerbação das comorbidades subjacentes.

Em nosso serviço, os valores utilizados para classificar os pacientes como graves são PCR>150 e APACHE>85. Esta estratégia foi adotada como uma modificação do UK guia clínico, mais agressivo na gestão, e possível para os pacientes que apresentem e satisfação um de dois critérios de admissão até 48 h2. Durante os últimos anos, introduzimos o uso sistemático da pontuação Marshall na admissão. Entretanto, ao contrário dos outros dois critérios, não apresentou qualquer associação com a mortalidade, mas está associada à entrada UTI6.

As perfurações entéricas são complicação rara da pancreatite aguda e envolvem doença subjacente grave7. Este envolvimento geralmente ocorre em casos de pancreatite necrotizante grave. A necrose gástrica relacionada a ela é rara, porque a perfusão se origina na área celíaca8. As causas da necrose gástrica podem ser vasculares, tóxicas, inflamatórias, mecânicas, infecciosas, autoimunes ou idiopáticas8. Em relato de caso publicado em 2012, apenas dois casos estavam associados à pancreatite aguda8,9.

Neste contexto, qualquer complicação vascular em torno da aorta e do tronco celíaco deve ser excluída. Neste caso, as estruturas vasculares foram examinadas através de TC abdominal com contraste na fase arterial (Figura 2D) e posteriormente com angio-CT abdominal, que descartou alteração celíaca ou aórtica (Figura 3). Outra potencial causa envolve a origem da necrose da coagulação extravascular disseminada, o que explicaria por que não houve evidência de trombose detectada pela angio-TC.

Outro ponto a enfatizar é a raridade desta apresentação clínica. Na literatura, há apenas um caso em que um paciente com perfuração gástrica devido à pancreatite inicialmente apresentava hematêmese10. Em outro caso relatado, uma úlcera gástrica perfurada simulou pancreatite, o que enfatiza a importância da imagem para definir a causa11.

Para este paciente, que estava em estado grave com disfunção de múltiplos órgãos, necrose gástrica, com alguma vitalidade gástrica, necrose pancreática e peripancreática, inicialmente decidiu-se realizar gastrectomia parcial e necrosectomia pancreática e planejado várias limpezas da cavidade durante a evolução. Esta abordagem poderia ser considerada “controle de danos” para pancreatite grave. Diferencia-se com os tratamentos administrados em alguns relatos, que incluem gastrectomia total, anastomose esofagojejunal, pancreatectomia esquerda, colecistectomia e esplenectomia8. As operações subsequentes incluíram esplenectomia pela necrose esplênica e necrosectomias pancreáticas e peripancreáticas. Durante a evolução, uma fístula gástrica apareceu e posteriormente fechou espontaneamente. Para garantir o fechamento desta fístula, jejunostomia alimentar foi importante para o manejo nutricional. Desde a alta, os exames endoscópicos não revelaram lesões na mucosa gástrica ou áreas estenóticas.

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  • Fonte de financiamento:
    não há

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2016
  • Aceito
    10 Jan 2017
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