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Novos sentidos da psicanálise

RESENHAS

Novos sentidos da psicanálise

Mariana de Toledo Barbosa

Psicóloga, mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ), doutora em Filosofia (UFRJ/ Université Paris Ouest Nanterre La Défense) e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ), mari_tb@hotmail.com

Sofrimentos narcísicos, organizado por Julio Verztman, Regina Herzog, Teresa Pinheiro e Fernanda Pacheco-Ferreira. Rio de Janeiro, Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (Nepecc-UFRJ). 321 p.

Sofrimentos narcísicos é uma coletânea financiada pelo Prodoc/Capes, com os resultados das pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (Nepecc-UFRJ), que tem como marca voltar a escuta para aspectos da clínica muitas vezes deixados em segundo plano pelo discurso hegemônico da psicanálise.

O Nepecc, que completou dez anos em 2012, realiza atendimentos individuais a pacientes e supervisões coletivas, a partir dos quais o grupo se depara com noções pouco desenvolvidas ou contempladas pelos psicanalistas, ou mesmo advindas de outras nosografias, como a psiquiátrica, que são, assim, interrogadas, descritas, detalhadas, comparadas com outras noções psicanalíticas, assumindo uma precisão de que antes não dispunham.

Tal esforço redunda em uma dupla contribuição para o campo da psicanálise: uma contribuição teórica às discussões atuais, e uma contribuição metodológica, pois o Nepecc tem, antes de mais nada, o grande mérito de empreender uma pesquisa clínica num contexto universitário.

O Nepecc nasceu de um acordo entre o Instituto de Psiquiatria e o Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, e se propõe a atender pacientes com um perfil previamente delimitado, a fim de constituir, a partir do próprio trabalho clínico, hipóteses acerca da especificidade da psicanálise contemporânea. Os casos são considerados casos da pesquisa, e não dos analistas que os acompanham semanalmente, pois os pacientes são entrevistados pelos coordenadores, assinam um termo de compromisso que os vincula à pesquisa, e as supervisões são coletivas, contando com a presença de todos os membros da equipe. Das próprias discussões de caso surgem os problemas que serão investigados teoricamente, com a vantagem de se poder, por assim dizer, testar as hipóteses levantadas, já que os atendimentos também servem para confirmá-las ou refutá-las.

Este modo de funcionamento do Nepecc, abordado no artigo assinado por dois de seus coordenadores, Verztman e Pinheiro, e intitulado "Corpo, tempo e transferência numa pesquisa clínica", induziu o grupo a se voltar para aspectos da clínica pouco explorados por outros autores, e que justamente colocavam problemas à psicanálise, demarcando os limites desta no que tange tanto ao manejo clínico, quanto à reflexão conceitual. Fica evidente, ao se apresentar sucintamente o trabalho do Nepecc, a ousadia e a originalidade das propostas condensadas nesse volume, e o grande valor delas para o campo psicanalítico.

O caráter narcísico dos sofrimentos dos pacientes é o que norteia e atribui uma unidade ao conjunto das pesquisas. Tudo começou com a proposição de uma metapsicologia da melancolia que contrastasse com a metapsicologia da histeria, à qual Freud se dedicou mais intensamente. Como sustenta Pinheiro no primeiro artigo da coletânea, "O modelo melancólico e os sofrimentos da contemporaneidade", foi a proliferação dos casos que diferiam da histeria, assim como das nomenclaturas que se aplicavam a eles, que suscitou a busca por uma metapsicologia que desse conta das ditas patologias narcísicas, sem tomá-las simplesmente como um puro negativo da histeria. O intuito era erigir uma metapsicologia que conferisse uma positividade aos sofrimentos narcísicos, em vez de apenas se limitar a discorrer sobre aquilo que eles não eram, como acontecia ao se tomar como referência a metapsicologia da histeria. Esta primeira empreitada produziu ricas observações a respeito do modo de relação dos pacientes narcísicos com seus corpos, com o tempo e com a transferência, cada um desses elementos tendo sido tema de artigos da equipe, figuram agora reunidos num artigo único, "Corpo, tempo e transferência numa pesquisa clínica", já mencionado.

Em seguida, a questão da vergonha já tendo chamado a atenção na primeira pesquisa do Nepecc, a equipe decidiu se aprofundar neste assunto e iniciou uma segunda empreitada, durante a qual foram atendidos pacientes que tinham recebido o diagnóstico psiquiátrico de fobia social, já que estes têm como característica comum uma timidez patológica. A tensão entre um diagnóstico psiquiátrico e as categorias psicanalíticas, ao invés de ceder lugar a uma confusão terminológica e conceitual, provocou o surgimento de indagações que partiram nas mais diversas direções, dando consistência a uma série de hipóteses que, articuladas de modo complexo, representam um importante avanço para a psicanálise, ao trazerem à luz um sintoma negligenciado por quase toda a literatura psicanalítica: o sintoma da vergonha.

Assim, Verztman e Zorzanelli exploraram as origens da ideia psicopatológica de timidez na medicina mental francesa do século XIX, quando se tratava do pavor do rubor ou eritrofobia, destacando a expressiva desconsideração dos elementos sociais e morais relacionados com essa manifestação psicopatológica, em prol de uma perspectiva biologizante. Venturi e Verztman, por sua vez, privilegiaram o que foi denominado por eles "as interseções da vergonha", proporcionando a aproximação deste tema em âmbitos tão distintos quanto a cultura, a subjetividade e a clínica. Sales, Herzog e Salztrager, atentando para o significante "fobia", presente no diagnóstico psiquiátrico "fobia social", colocam a pertinente pergunta a respeito da nomeação da timidez patológica como uma modalidade de fobia, guiando-se, em sua argumentação, por textos de Freud. Pacheco-Ferreira defende uma forte articulação da vergonha com a angústia, especialmente com aquela compreendida como uma sensação de alarme constante, averiguada na clínica com esses pacientes. Farah sublinha a presença do sintoma da vergonha na depressão contemporânea e percebe este arranjo sintomático como uma resposta aos ideais sociais de iniciativa e autonomia, cada vez mais pregnantes no cenário do capitalismo atual. Viana, Montes, Lessi e Caravelli optaram por valorizar o contraponto da vergonha em psicanálise: a culpa. As autoras, não se contentando somente com uma explicação segundo a qual, no mundo atual, a prevalência do sentimento de culpa é substituída por um domínio mais marcado do sentimento de vergonha, relançam o debate, escrevendo sobre os destinos da culpa na contemporaneidade.

Por fim, endossando a fertilidade que singulariza qualquer pesquisa pautada pelo primado da clínica, os dois últimos artigos já são derivações que parecem abrir novas regiões de investigação para o Nepecc. Andrade, Melo e Herzog tiram consequências técnicas das pesquisas já desenvolvidas, explorando o papel da associatividade na clínica psicanalítica atual. Já Verztman, faz um longo e precioso artigo sobre o perdão, partindo das filosofias de Arendt e Derrida, até chegar à psicanálise, confirmando a tendência do Nepecc de alçar noções geralmente deixadas à sombra ao estatuto de construtos teóricos e clínicos de alta relevância para a psicanálise contemporânea.

Qualquer leitor de psicanálise sairá enriquecido da leitura deste volume, resultado do trabalho de dez anos de uma equipe de pesquisa clínica na universidade, extremamente comprometida com o que faz.

Recebido em 16/3/2013.

Aprovado em 25/3/2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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