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AS FIGURAS CLÍNICAS DA FEIURA À PROVA DA METAPSICOLOGIA 1 1 Este artigo é resultado da tese Figuras estigmatizantes da feiura na clínica contemporânea. O papel do julgamento estético e do mal-estar social na construção imaginária e fantasmática de si, de Cristina Cernat, preparada na Université Paris Cité Sorbonne-Paris 7, sob a orientação do professor Joel Birman.

Resumo:

Neste artigo, abordamos o aspecto metapsicológico de uma pesquisa psicanalítica sobre as figuras clínicas da feiura. Se a problemática da feiura é com frequência associada à metafísica ou às normas sociais, desejamos enfatizar que o sentimento de ser feio afeta todo funcionamento psíquico. A discriminação que o feio suscita em todo mal-estar social está inconscientemente ligada a representações angustiantes, que perturbam a familiaridade egóica, ao revelar o estranho adormecido em nós. A ambivalência estética que todo sujeito sente em relação a si, acompanhada de uma tensão entre Eu Ideal e Ideal do Eu, mostra o caráter metapsicológico de tal problemática.

Palavras-chave:
feiura; Eu Ideal; Ideal do eu

Abstract:

In this article we discuss the metapsychological aspect of the psychoanalytic research on the clinical figures of ugliness. If the problem of ugliness is often associated with metaphysics or social norms, we wish to emphasise that the feeling of being ugly affects any psychic functioning. The discrimination encountered by the ugly in any social unrest, is unconsciously linked to anxiety representations, which disturb ego familiarity, by revealing the strangewithin us. The aesthetic ambivalence that every subject feels towards himself, accompanied by the tension between the ego ideal and the ideal ego, shows the metapsychological character of such a problem.

Keywords:
ugliness; ego ideal; ideal ego

Nossa proposta aqui é tratar do caráter metapsicológico desta pesquisa no campo da psicanálise e da psicopatologia, e de duas questões fundamentais: “Por que discriminamos o feio?” e “Por que há sujeitos que se sentem feios?”. Esses dois eixos de pesquisa levantaram outras questões importantes e essenciais à compreensão do funcionamento metapsicológico, em particular da construção imaginária e fantasmática de si.

1 As normas estéticas contemporâneas frente ao mal-estar social

Pareceu-nos primordial tratar dessa temática em nosso campo psicanalítico, sobretudo no mal-estar contemporâneo ocidental, no qual as preocupações estéticas ocupam cada vez mais um lugar importante. Ao seguir as exigências da imagem das redes sociais, o sujeito contemporâneo se confronta com um sofrimento estético, pois a relação com o objeto se revela assustadora. O sujeito obtém então o reconhecimento do outro, que lhe oferece uma continuidade de se sentir existir por meio dos likes das fotos postadas, o que introduz, de saída, um julgamento estetizado do outro na relação.

Verificamos há vários anos que cada vez mais pacientes vêm se consultar conosco com a queixa de se sentirem à margem de uma norma estética, imposta pela promessa ilusória da felicidade contemporânea. Ser belo constitui um paradigma do discurso social, médico e higienista que se deve respeitar hoje, na falta do qual o sujeito é considerado responsável e culpado. Como constata o sociólogo Jean-Claude Kauffmann, a beleza representa hoje “um operador de seleção social” e “um instrumento primordial de desigualdade” (KAUFFMANN, 2013KAUFFMANN, J. Aimer son corps. La tyrannie de la minceur. Paris: Pocket, 2013./2015, p. 64).

A estetização e a medicalização do corpo são, portanto, uma produção social, que define as normas a serem seguidas para embelezar e conservar o corpo. Tudo o que não se encaixa nessa normatividade é identificado através de exclusão, marginalização e estigmatização. “Os números são impressionantes. Indiscutíveis e concordantes. Eles dizem respeito primeiramente à beleza” (idem). Do ponto de vista do olhar estético e amoroso, a beleza é sempre particular, inesperada, diferente, à espera de ser revelada justamente pelo olhar. Do ponto de vista da sociedade, ela deve ser outra coisa totalmente diferente: uma norma, sem surpresa, fácil de identificar. Deve ser, assim, simples e clara, reduzível a alguns critérios, uma vez que essa beleza desempenha um papel central em todos os mecanismos de triagem social, seja para cima ou para baixo” (ibid, p. 63). Notamos então as palavras: “sem surpresa”. A estética não deve intimidar o olhar e deve regular a excitação e os afetos que provoca no sujeito. Não deve convocar o inesperado, o inaceitável, o diferente que vive em nós. Mesmo que nos afete inconscientemente, a beleza não deve despertar em nós uma excitação, uma pulsão sem limites e, portanto, sem normas. A norma estética limita a excitação que pode gerar. Da mesma forma, Jean-Claude Kaufmann fala de “uma norma fácil de identificar”, o que significa uma normatividade reconhecível por todo sujeito no jogo dos espelhos sociais, segundo a qual podemos facilmente nos identificar com nosso semelhante e rejeitar/estigmatizar todo alter ego. Assim, se marginalizamos o feio, é porque ele afeta inconscientemente nossa própria imagem de corpo. Com efeito, ele encarna o corpo cuja degenerescência, desarmonia e castração das formas revela em nós um sentimento de inquietante estranheza. De acordo com o historiador Jean Héritier, “o monstro, o disforme evoca, portanto, em cada um de nós os medos que estão no interior do próprio corpo: medo de perder a integridade corporal” (HERITER, 1991HERITIER, J. Le martyre des affreux. La dictature de la beauté. Paris: Denoël, 1991.).

Nesse sentido, a socióloga Claudine Sagaert afirma que, se na nossa época a aparência corporal ocupa um lugar importante através de um trabalho rigoroso, “constrangedor e alienante” sobre o corpo, a feiura se apresenta “como uma categoria fundamental que dá sentido à existência”. “A feiura aí é, não só uma qualidade que concorre em pé de igualdade com as outras à identidade do sujeito, mas, na medida em que maximiza ou minimiza todas as outras, ela é a qualidade das qualidades, uma meta-qualidade, por assim dizer. Enquanto marcador da identidade, a feiura desempenha um papel essencial nas relações intersubjetivas, de modo que não é mais possível ser, se abstraindo dela” (SAGAERT, 2012SAGAERT, C. Beauté et laideur dans le portrait de Dorian Gray (2012). Forma. Revista d’Humanitats, v. 6. Disponível em: <http://www.raco.cat/index.php/Forma/article/viewFile/261159/348364>.
http://www.raco.cat/index.php/Forma/arti...
, p. 83-97).

Ao analisar várias figuras da feiura no mal-estar contemporâneo, constatamos que, se marginalizamos o feio, é porque ele desperta em nós o estranho que somos para nós mesmos. Ele é então fonte de uma inquietude estranha, pois marca um momento egóico no qual o sujeito não se reconhece mais (seja em seu espelho, seja na imagem que o outro lhe transmite). Ele tem dificuldade, portanto, em se projetar nisso que considera a feiura, a estranheza do outro. Daí o efeito discriminatório que a própria temática (a problemática) da feiura suscita, pois ela é fonte de tabu. É politicamente incorreto falar da feiura, é preciso desviar dela, esquecê-la, se abstrair dela. Mesmo que se esforce para ter uma atitude indiferente, o sujeito se descobre com um olhar cheio de ódio ou de piedade diante dessa visão perturbadora e angustiante. Não é por acaso que a palavra “feiura” em algumas línguas contém a raiz “ódio”. Por exemplo, em romano, o adjetivo ou o advérbio feio urât faz ressonância com o verno a urî (detestar). Analogamente, em alemão häβlich designa o feio, o disforme, o desfigurado e tem como radical haβ (der haβ, significando o ódio).

Assim, apesar do caráter sociológico dessa problemática estética, consideramos que é da ordem ética interrogá-la em nosso campo, porque, como afirmava Freud em 1921, em Psicologia das massas e análise do eu: “Na vida psíquica do indivíduo tomado isoladamente, o Outro intervém muito regularmente enquanto modelo, suporte e adversário, e por isso a psicologia individual é também, imediata e simultaneamente, uma psicologia social, nesse sentido amplo, mas perfeitamente justificado” (FREUD, 1921/2001FREUD, S. Psychologie des foules et analyse du moi (1921c). Trad. Pierre Cotet; et al. In: FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Petite Bibliothèque Payot , 2001., p. 117-217).

Se tratamos dessa problemática estética na interseção de várias disciplinas - da psicanálise, da história, da antropologia, da sociologia, da medicina contemporânea, da linguística e da moda -, é porque nos parece essencial levar em conta toda a paleta dos processos que constroem uma identidade. Isso porque, em se tratando de um funcionamento metapsicológico, revela-se capital levar em consideração a complexidade singular que caracteriza toda subjetividade psíquica.

Como já observamos, as normas estéticas constituem um sofrimento psíquico para muitos sujeitos, do qual eles precisam falar, sendo, portanto, uma questão importante a de saber como acolher esse sofrimento psíquico. A medicina sustenta um discurso higienista que serve para preservar sua cátedra, a moda constrói cada vez mais roupas com sucesso sazonal. Entre a propaganda da moda e a responsabilidade higienista, a questão que se coloca é a de saber de onde vem essa necessidade no ser de embelezar e conservar seu corpo. De onde vem essa necessidade de grandeza performativa do corpo, que chega a extremos esportivos, musculares, dietéticos, estéticos etc.? Não encontramos aqui uma vontade do ser de ultrapassar sua condição mortal?

No fundo, toda questão metapsicológica toca de certa forma o existencialismo, pelo simples fato de que o sujeito deve se libertar de sua condição de ser-para-a morte, como afirmava Heidegger, mas também porque trata da própria dificuldade de m’être (LACAN, 1972-1973/1975LACAN, J. Encore (1972-1973). Paris: Seuil, 1975. (Séminaire, 20)., p. 73)2 2 O desenvolvimento, nos diz Lacan, “se confunde com o desenvolvimento da maestria. É aí que é preciso ter um pouco de orelha, como para a música - eu sou m’être [em francês m’être se pronuncia como maître, mestre em português], eu evoluo no m’êtrise [se pronuncia como maîtrise, maestria em português], eu sou m’être de mim como do universo”. (de existir) de um sujeito com um mal-estar social. Nesse sentido, Paul-Laurent Assoun afirma: “No que tange à beleza, Freud a definiu justamente como isso sobre o que a psicanálise tem o mínimo a dizer! Com isso, ele parece querer dizer que a psicanálise da arte não pode nem quer dar conta da própria criação estética. Mas, pensando bem, o saber do inconsciente não pode evitar essa dupla experiência, por duas razões. No que diz respeito à miséria, ela aponta para uma experiência de falta, marcada por uma espécie de urgência existencial. O sujeito miserável, no próprio sentido do termo, experimenta em si uma falta que o confina no desamparo: daí resulta que esse vivido remete a um plano metafísico {...} Apenas no inconsciente a Falta é falta do Outro (ou do outro): a miséria exprime uma carência no coração do próprio sujeito...” (ASSOUN, 1989ASSOUN, P. L. Le pervers et la femme (1989). Paris: Anthropos/ Economica (2ème édition), 1996./1966, p. 90-91). É um erro considerar, portanto, a questão estética como fora do campo clínico, já que frequentemente os pacientes trazem em terapia essa miséria existencial, esse controle (maestria) impossível de si, de seu corpo, de sua imagem, de sua condição social ou mortal etc.

Foi essencial neste trabalho então interrogar a construção da imagem do corpo e do julgamento estético no ser humano, em ligação estreita com as normas sociais, o desenvolvimento corporal, e também os fantasmas e as angústias que estão na base de uma tensão intrapsíquica.

2 As representações psíquicas da feiura e o controle estético das angústias

Assim, mesmo se essa problemática da feiura à primeira vista representa uma questão de ordem social ou antropológica, pelo fato mesmo de interrogar o funcionamento psíquico de todo ser ela tem total pertinência para ser tratada em psicanálise. Perguntamo-nos então se a preocupação estética é um efeito de moda passageiro ou se está ancorada no funcionamento metapsicológico de todo ser. Como já ressaltamos, embora a questão se revele mais de ordem social, metafísica ou existencial, se o sujeito traz no enquadre terapêutico esse sofrimento psíquico de se sentir fora das normas, é porque se interroga sem parar sobre o que ele representa para o outro.

Se essa demanda de reconhecimento que o sujeito endereça ao outro implica também em um questionamento estético, a saber, “Sou belo ou não?”, é porque, desde o começo da vida, a mãe, amparando os cuidados maternos, não apenas nutre seu filho, mas o nomeia ao ampará-lo psiquicamente. Ela lhe confere uma imagem de base, segundo Dolto (1984DOLTO, F. L’image inconsciente du corps. Paris: éditions du Seuil, 1984.), que lhe possibilita ficar em pé e abrigar certa continuidade de se sentir existir. Isso significa que a criança se construirá enquanto sujeito dividido por uma ambivalência em relação ao outro e a si mesmo, e não clivado por uma ambivalência patógena. Essa ambivalência em relação a si mesmo cria uma tensão intrapsíquica entre a dúvida permanente de saber quem somos e se somos amados pelo Outro (lugar do significante, o significante sendo para Lacan o que um sujeito representa para outro significante).

Ao abordar o caráter metapsicológico dessa problemática, gostaríamos de enfatizar primeiramente que as representações estéticas, como toda representação, estão mergulhadas em uma ambivalência psíquica. Observamos isso na atitude que o sujeito adota quando, ao ver o feio, mesmo querendo desviar seu olhar, fica fascinado, vidrado e assustado com ele. Embora Freud não fale da feiura ou da beleza, ele nos apresenta duas vezes informações importantes para a compreensão das origens de um julgamento estético na vida psíquica. Em Mal-estar na civilização (FREUD, 1930aFREUD, S. Malaise dans la civilisation (1930a), trad. d’allemand par Aline WEIL, Paris: Petite Bibliothèque Payot , 2010./2010), ele nos deixa uma pequena nota sobre o aspecto “não estético” dos órgãos genitais. Freud aborda essa feiura subentendida dos órgãos genitais, relacionando-a com a beleza. As partes genitais só raramente são consideradas belas (ibid, p. 72). A beleza é designada como uma forma de prazer, tendo um efeito de excitação. Em A vida sexual, Freud afirma que apenas o sexo em ereção é suscetível de beleza (FREUD, 1969FREUD, S. La vie sexuelle (1969). Paris: PUF, 2009./2009); isso parece mostrar que tudo o que carrega a marca da castração, da falta, é percebido inconscientemente como representação da feiura. Portanto, devido à integração dos interditos e da censura social, a criança recalca a beleza dos órgãos genitais.

Percebemos então, graças a uma leitura psicanalítica freudiana, que as representações psíquicas da feiura estão ligadas às figuras do inquietante estranho, às percepções inconscientes de angústias de castração e à falta/ao castrado. Umberto Eco, em seu livro História da feiura (ECO, 2007ECO, U. (dir.), Histoire de la laideur. Trad. de l’italien par Myriem Bouzaher, trad. du latin et du grec par François Rosso. Paris: Flammarion, 2007.), nos dá o exemplo da imagem de um rosto cuja boca está com dentes faltando e cuja visão nos incomoda mesmo que não conheçamos seu dono. Ele afirma então que, diante da incompletude desse conjunto, nos autorizamos a dizer que o rosto da pessoa é feio. Interpretando psicanaliticamente, podemos afirmar que o que angustia o ser é a transformação corporal, pois ela é signo do retorno do recalcado. O feio está, portanto, associado inconscientemente à falta e ao castrado. A construção do belo e do estético procura encobrir essa falta perturbadora, essa deformidade inquietante do feio. No entanto, a clínica e a análise dos fantasmas nos obrigam a admitir que o belo também procura encobrir o sujo, o abjeto, o anal e tudo o que perturba a familiaridade egóica. A feiura está associada, inconscientemente, não só com o castrado e a falta, mas também com o sujo e o informe.

Freud afirma que provavelmente por trás do sentimento de inquietante estranheza se esconde sempre a angústia do complexo de castração, “... o inquietante na experiência da vida se produz quando complexos infantis recalcados são reconduzidos à vida por uma impressão, ou quando convicções primitivas superadas parecem de novo confirmadas” (FREUD, 1919/1985FREUD, S.. L’inquiétante étrangeté (1919h). Trad. B. FERON. In: FREUD, S.. L’inquiétante étrangeté et autres essais. Paris: Gallimard, 1985., p. 209-263). Em seguida, ele se pergunta quais são as situações ou as pessoas suscetíveis de despertar em nós esse sentimento de inquietante estranheza. Ele diz que um efeito inquietante se produz quando a fronteira entre fantasia e realidade se apaga. Tornamos a ter esse sentimento, por exemplo, quando não sabemos se lidamos com um ser vivo ou morto. Trata-se de situações perturbadoras que parecem ser, simultaneamente, familiares e inquietantes. In fine, o que traz esse sentimento de unheimlich é o retorno do recalcado, pois, de acordo com Freud, o que recalcamos reaparece para nós como estranho, mas, por atrás dele, se esconde um complexo infantil que outrora nos foi familiar. Assim, tudo o que provoca retorno do recalcado, o que nos foi familiar e recalcamos e retorna sob a forma do estranho, se mostra também sob a forma da feiura. A revelação do real produz uma representação inquietante, da qual o feio faz parte.

É aí que se situa o caráter metapsicológico dessa problemática da feiura, definido pela significação subjetiva que ela toma na estruturação dos processos inconscientes de cada um de nós. A renúncia pulsional (que comporta também um caráter estético, já que nem tudo pode ser considerado belo) que o sujeito deve realizar designa o caráter universal do mal-estar social no qual o sujeito é obrigado a inscrever seu corpo e a imagem de seu corpo.

Com efeito, a renúncia estética e a divisão que a estruturação neurótica engendra no sujeito nos fazem entender que o belo não é representado psiquicamente (inconscientemente) sob uma bela forma, mas sob a forma do que encobre o horror. Consequentemente, o feio é representado psiquicamente por aquilo que não pode encobrir o horror. Assim, a representação ambivalente belo/feio se sustenta na dinâmica inconsciente do aparelho psíquico sobre a ausência/presença do que representa o castrado. Isso mostra que o julgamento estético de si, a autoestima estética, não concerne apenas uma boa ou má forma, mas o lugar do sujeito no sistema simbólico. “Se isso fala no Outro, concorde o sujeito ou não, é porque é lá onde o sujeito, por uma anterioridade lógica a todo despertar do significante, encontra seu lugar significante. A descoberta disso que ele articula nesse lugar, ou seja, no inconsciente, nos permite compreender ao preço de que divisão (Spaltung) ele foi constituído” (LACAN, 1958-1966/1999LACAN, J. La signification du phallus (1958-1966). In: LACAN, J. Ecrits II. Paris: éd. Du Seuil, 1999., p. 163-174).

Além disso, para Lacan, o julgamento estético permite colocar um limite ao fluxo destruidor do gozo e do desejo. Se a estética constitui uma barreira que detém o sujeito diante da destrutividade do desejo radical, podemos nos perguntar se o feio não é uma construção inconsciente que visa o controle do sexual e do pulsional. Se, no começo, o sexo genital era considerado belo, a feiura moral coloca então um limite a essa excitação que ele pode proporcionar. Daí a ligação que observamos entre a feiura e a moral. Consequentemente, se o feio serve para limitar os estragos da sedução do belo, nos perguntamos se o belo, a contrario, não serve para controlar as angústias provocadas pela visão do feio.

Se, com uma leitura freudiana da descoberta da diferença anatômica dos sexos ou da angústia de castração, pudemos perceber que a estética serve para mascarar a falta, a interrogação sobre as angústias de morte e de degenerescência que todo sujeito sente nos possibilitou compreender algo fundamental sobre o funcionamento psíquico do ser. Constatamos que a angústia de morte leva o sujeito a embelezar e conservar o corpo, ao mesmo tempo em que o conduz a negar a inquietante estranheza que o feio lhe transmite. Se nos protegemos tanto dessa visão angustiante é porque temos dificuldade em nos projetar na imagem que o disforme nos transmite. Tememos a degenerescência de nosso corpo, a degradação de nossa imagem, enfim, temos medo de um dia nos tornarmos imóveis, inválidos, sem proteção e dependentes plenos do outro.

Para enfrentar essa angústia de morte, o ser humano precisa do reconhecimento do outro, o que lhe confere, desde sua mais tenra idade, o sentimento de continuidade de existir, essencial, segundo Winnicott, ao desenvolvimento psicoafetivo da criança. Seduzir o outro é antes de tudo uma necessidade de se fazer reconhecer e de não se sentir sozinho frente ao desamparo que a angústia diante da morte impõe.

3 A ambivalência estética que o sujeito sente em relação a si e a tensão entre o Eu Ideal e o Ideal do eu

A clínica de diferentes terrenos (da deficiência, do câncer de mama, da adolescência, das cirurgias estéticas, do luto) nos mostrou que sentir-se feio pode ser um momento passageiro em direção à apropriação psíquica de uma transformação corporal. Qualquer coisa que lembre ao sujeito o estranho que ele é para si mesmo pode produzir um sentimento de não-reconhecimento de si e ele pode se sentir feio, envergonhado, não à altura de seu ideal egóico. Um sentimento de intrusão vem então perturbar, desequilibrar e destruir as defesas egóicas, pois, como sabemos desde Freud, o eu é uma instância psíquica que negocia a formação sintomática entre a satisfação do isso e as exigências do supereu (FREUD, 1923b/2001FREUD, S. Psychologie des foules et analyse du moi (1921c). Trad. Pierre Cotet; et al. In: FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Petite Bibliothèque Payot , 2001., p. 243-305). O sentimento de feiura representa uma intrusão no eu. A feiura, que provoca um sentimento de inquietante estranheza, se traduz no plano inconsciente nesse sentimento de intrusão que o eu vivencia quando se percebe imaginariamente em falta.

Portanto, a doença, as metamorfoses corporais com o passar dos anos, o acidente, a morte, assim como o sentimento de não estar conforme as normas estéticas, colocam a imagem construída do corpo à severa prova de reapropriação de uma nova imagem de si, vivida como intrusiva e podendo quebrar a familiaridade egóica. Isso porque o controle impossível do corpo cria um efeito de inquietante estranheza no aparelho psíquico, deforma a familiaridade egóica. A ambivalência então que o sujeito sente em relação a si, a dúvida de si provoca de uma só vez uma erupção na familiaridade psíquica do sujeito.

Um efeito de real então emerge e o sujeito não se reconhece mais no jogo do espelho que ele trava com o olhar do Outro introjetado (olhar interno sobre si que ele carrega constantemente e que o julga permanentemente). Assim, percebemos que o sentimento de feiura aparece quando o Eu Ideal não se sente à altura de um Ideal do eu. Ou seja, a distância entre uma imagem real e uma imagem idealizada de si é tão grande que não pode haver um meio-termo de concordância e de negociação entre as duas sem a menor degradação de si e de sua imagem.

A clínica das cirurgias estéticas e reconstrutivas, que visa justamente curar uma imagem de si ruim, testemunha essa distância que existe entre uma imagem real e fantasmática de si, que conduz o sujeito a uma infinita insatisfação, apesar do sucesso operatório e da transformação conforme o desejado. Por um lado, a imagem inconsciente é muito dificilmente curável via passagens ao ato sem um trabalho terapêutico sobre si, que inicialmente serviria de acompanhamento para que o acontecimento cirúrgico não fosse vivido como um acontecimento não-integrado à temporalidade histórica e psíquica do paciente. Por outro, a imagem real pós-operatória jamais pode satisfazer as exigências superegóicas, por nunca estar à altura da grandeza estética fantasiada e desejada pelo Ideal do eu. Podemos afirmar, assim, que toda cirurgia estética é em alguma medida uma cirurgia de reparação de um sofrimento narcísico.

Constatamos então que uma tensão estética caracteriza o próprio funcionamento do sujeito e a imagem que ele tem de si, tensão com raízes na confrontação metapsicológica existente entre o Eu Ideal e o Ideal do eu. Somos tiranias entre a culpa por ser belo e a vergonha por ser feio, porque nos sentimos sempre aquém de nossas exigências superegóicas e de nossos ideais egóicos. Daí uma interrogação que influencia nossa autoestima: somos o objeto de desejo do Outro, somos amados e reconhecidos por ele?

4 O sentimento de ser feio e a busca de reconhecimento estético que o sujeito empreende com o olhar do Outro

A clínica nos mostra, por outro lado, que sentir-se feio afeta o sentimento de existência do sujeito, assim como sua falta-a-ser e a-ter, o que o leva a interrogar ontologicamente o que ele representa para o Outro. Assim, o objeto de nossa busca identitária está além do espelho, nesse ponto de ideal escolhido no olhar do Outro, ponto de onde nos vemos como objeto causa de desejo. Com efeito, quando o sujeito se vê como um objeto ao qual falta todo o brilho fálico, tem início o estado de miséria inconsciente no qual seu eu percebe a existência de sua imagem. Daí a emergência de um sentimento de vergonha, porque o sujeito se sente descoberto em sua castração e sua falta, desmascarado em sua impostura, e isso o impede de se deixar ver como tal pelo outro. Ele tem dificuldade em se afirmar, se sente repugnante ou insuficientemente belo para entrar no jogo da sedução com o olhar do outro. Vemos então que o sujeito procura fugir do olho do outro, por medo de se decepcionar por não poder ser amado por ele. Esse laço que se estabelece entre o sentir-se feio e a vergonha nos mostra, mais uma vez, a questão onto-metapsicológica que essa problemática estética ressalta em nosso campo.

A rejeição social da feiura se apresenta, portanto, como uma faca de dois gumes, que confina inconscientemente o sujeito em um círculo vicioso: por um lado, há situações em que o olhar do outro se mostra discriminatório contra o sujeito, o que lhe causa uma ferida narcísica; por outro, a clínica mostra que há também sujeitos que têm uma imagem ruim de si mesmos e que buscam inconscientemente a rejeição do outro. Dito de outro modo, perceber-se feio concerne tanto o olhar discriminatório do outro sobre o sujeito, quanto a interpretação que o sujeito dará a esse olhar do outro, do alter ego. No entanto, não se pode esquecer do olho superegóico que toma conta do sujeito internamente e que desempenha um papel fundamental na constituição da autoestima (o que também compreende a estima estética de si). Se falamos do olhar do Outro introjetado, é porque se trata da maneira pela qual a criança se viu ser vista no estádio do espelho, sendo a função desse Outro fundamental no reconhecimento de si. Eis aqui formulada a hipótese de que o sentimento de feiura nasce como produção subjetiva do olhar do outro projetado e do olhar do Outro introjetado.

Entretanto, sentir-se feio se inscreve em uma cadeia simbólica, se constitui a partir da primeira imagem que a criança encontra, como em um espelho, nos olhos da mãe (WINNICOTT, 1971WINNICOTT, D. Le rôle de miroir de la mère et de la famille dans le développement de l’enfant (1971). In: Jeu et réalité, Folio essais. Paris: Gallimard, 1975./1975) ou na nominação do Outro (LACAN, 1949/1999LACAN, J. Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique (1949). (Communication faite au XVIème congrès international de psychanalyse, à Zürich. In: LACAN, J. Écrits (tome I). Paris: Seuil , 1999., p. 93-124). Ao cuidar de seu filho, a figura materna o conduz também na construção de um si (soi) ou de um eu (je), pois, de acordo com Winnicott, se essa função de sustentação suficientemente boa fracassar, a criança perderá sua vitalidade e terá dificuldade de se sentir existir em uma continuidade, o que a conduzirá a adotar um falso self. Ele escreve sobre o assunto: “O que o bebê vê quando dirige seu olhar para o rosto da mãe? Geralmente o que ele vê é ele mesmo. Em outros termos, a mãe olha o bebê e o que seu rosto exprime está em relação direta com o que ela vê.” (WINNICOTT, 1971WINNICOTT, D. Le rôle de miroir de la mère et de la famille dans le développement de l’enfant (1971). In: Jeu et réalité, Folio essais. Paris: Gallimard, 1975./1975). Consequentemente, ser vista proporciona para a criança um sentimento primordial na sua construção psico-somato-social, a saber, o sentir-se existir.

Portanto, a mãe não apenas cuida de seu filho. Em seus olhos, a criança se sente existir, o que lhe confere sustentação e fundamento identitário para exibir um verdadeiro self. O fato de não se sentir amado diminui a autoestima, como já afirmava Freud em Para introduzir narcisismo (FREUD, 1914cFREUD, S. Pour introduire le narcissisme (1914c). Trad. Jean Laplanche. In: FREUD, S. La vie sexuelle. 2009./2009, p. 79-105). Assim, sentir-se rejeitada ou abandonada pela mãe também pode provocar na criança desde a mais tenra idade uma diminuição da autoestima (o que também compreende a estima estética).

A busca estética se caracteriza, assim, por processos de semelhanças e de diferenciações, marcando a divisão da imagem de si do sujeito entre uma representação real de si e uma imagem idealizada à qual ele gostaria de corresponder. O Ideal do eu pode estar na origem de conflitos internos, segundo Jean-Claude Liaudet. “Na medida em que o eu não se reconhece no Ideal do eu, na medida em que tenho o sentimento de que eu não sou como deveria ser, eu vou me desvalorizar. Temos aí uma das fontes da falta de confiança em si3 3 É preciso ressaltar que, para Jean-Claude Liaudet, a confiança em si não representa apenas um bem, “um capital” que o sujeito pode possuir no mal-estar atual. Representa, de saída, uma qualidade para se conhecer e se aceitar como tal. A confiança em si constitui um sentimento de segurança que dá ao sujeito a possibilidade de contar com suas próprias forças e recursos para agir e amar. , que resulta de um Ideal do eu forte demais. A barra foi colocada alto demais, como se diz” (LIAUDET, 2004LIAUDET, J. Croire en soi ou la confiance perdue et retrouvée. Paris: éditions l’Archipel, 2004., p. 3). Se o sujeito integrou ideais poderosos, profundamente enraizados em si enquanto modelos estéticos fundamentais para agradar e se sentir existir no olhar do Outro, ele tenderá a se desvalorizar mais esteticamente e a apresentar uma falta de confiança em suas capacidades estéticas.

Além disso, no momento atual em que a estetização da imagem ocupa um lugar importante na relação que o sujeito estabelece com o outro, podemos supor que uma frágil autoestima pode se alojar em uma sintomatologia que ganha conotação estética ou estetizada.

Ademais, a clínica nos mostra cotidianamente que a criança se constrói a partir de processos de identificação e de diferenciação do outro, o que implica no fato de que, ao se comparar com os outros, ela pode se julgar inferior a eles, por não corresponder às expectativas que supõe que o outro tem em relação a ela. Além disso, o olhar do grupo na adolescência influencia também as escolhas estéticas de alguns de nós, mesmo que a escolha do grupo se baseie no modelo do grupo familiar. É por isso que o olhar estético do sujeito sobre si deve ser analisado a partir de uma multiplicidade de processos psicológicos, sociais e corporais, cujo entrelaçamento está na base de toda estruturação imaginária e fantasmática de si.

Falar de toda essa paleta de processos não significa, porém, que a problemática da feiura não seja de ordem metapsicológica. Podemos perceber justamente o contrário, já que o sujeito é, antes de qualquer coisa, um ser social, por ter necessidade do outro para se construir. E a maneira como ele se verá ser visto por esse outro será essencial na construção de uma imagem (estetizada) de seu corpo.

5 A anatomia fantasmática frente à angústia de ser disforme - paradigma de toda construção intrapsíquica

Abordamos, assim, a questão do ponto de vista de uma anatomia fantasmática de si, porque os fantasmas desempenham um papel determinante na construção subjetiva da percepção estética de si. Analisamos vários fantasmas que nos parecem fundamentais na formação do julgamento estético (esse olhar estético do sujeito sobre si e sobre o outro). Trata-se de fantasmas de contágio, de imortalidade e de sedução, que se encontram em ligação estreita com as angústias de castração, de degenerescência e de morte. Elas incitam o sujeito a se autoconservar, a preservar sua carne, a embelezar seu corpo e a querer ser o objeto causa do desejo do outro. Constatamos, assim, que a dismorfofobia (o medo de ser disforme) está fortemente ligada às angústias de castração, de degenerescência e de morte. O medo de tornar-se feio ou disforme é efetivamente um medo que deriva dessa impossibilidade inconsciente que todo sujeito apresenta, como afirmava Freud, de representar sua própria morte. São essas angústias que nos conduzem a querer rejeitar e estigmatizar o feio. É nossa própria angústia diante do desconhecido da morte, ou, sobretudo, do depois da morte, que nos leva a nos preservar, nos embelezando, seguindo as instruções higiênicas, conservando nosso corpo etc. A angústia de morte desempenha um papel determinante na construção imaginária e fantasmática de si. Levantamos, assim, mais um aspecto metapsicológico desse estudo da estética em psicanálise: todo funcionamento psíquico é construído a partir de uma angústia de morte, assim como gira em torno da tensão psíquica entre pulsão de vida e pulsão de morte.

Resta, no entanto, uma última questão a ser evocada, a da posição ética do psicólogo quanto aos riscos que o apagamento do sentimento de feiura ou da síndrome dismorfofóbica coloca, apagamento que os terapeutas de orientação cognitivo-comportamental propõem aos pacientes. Se sentir-se feio pode se configurar como a única maneira de um ser se sentir existir nos olhos de um outro, erradicar subitamente esse sintoma pode constituir uma violência psíquica, um risco de disparar um mecanismo de defesa, causando um colapso psíquico. O que o sujeito é capaz de criar para poder exprimir seu sofrimento estético, seu mal-estar existencial ou sua miséria psíquica? Isso porque sentir-se feio é um afeto sempre acompanhado no aparelho psíquico por toda uma paleta de processos (psíquicos, sociais, ontológicos etc.), assim como por outros afetos, outros sentimentos. Daí a importância de levar em conta o sujeito não apenas em sua sintomatologia, mas em sua complexidade psíquica e singular.

6 A insatisfação estética como condição ontológica do ser

Uma grande lição metapsicológica pode então ser tirada dessa pesquisa, a de que a insatisfação estética é uma condição ontológica do ser. Devido à conflitualidade psíquica entre pulsão de morte e pulsão de vida, entre a culpa por ser belo e a vergonha por ser feio, entre si e o outro, entre o familiar e o estranho, entre o isso e o supereu, entre inconsciente e consciente, o ser humano é incitado a se julgar esteticamente e a se sentir sempre aquém de suas exigências superegóicas, de seu Ideal do eu. Todos nós temos momentos em que nos sentimos estranhos a nós mesmos, momentos nos quais duvidamos de nós mesmos e de que podemos causar o desejo no outro.

“Na verdade”, afirma Nasio, “nosso eu é um conjunto de imagens de si instáveis e frequentemente contraditórias” (NASIO, 2013NASIO, J. A. Mon corps et ses images. Le corps est la voie royale qui mène à l’inconscient! (2007). Paris: éd. Payot & Rivages (première édition poche), 2013., p. 81). Nosso aparelho psíquico deve se apropriar permanentemente das mudanças que o corpo orgânico sofre e a questão que se coloca é sobre como ele procede, se prefere a repetição ao imprevisível, o sentido ao caótico acaso? Como o real do corpo e a doença somática afetam nossa imagem do corpo? Como se posicionar frente à castração e à condição mortal?

Sentir-se amar representa uma necessidade existencial para todo ser, por oferecer um sentido à existência e ao sentimento de ser-no-mundo. Além disso, para Jean Oury (2008OURY, J. Essai sur la création esthétique. L’imaginaire esthétique comme facteur d’intégration biopsychologique. Paris: Hermann, 2008.), a imersão no controle estético não pode ser reduzida ao mecanismo anal, como é descrita com frequência pela psicanálise, porque a busca estética é fundamentalmente um projeto existencial, “um motor da conotação estética” da vida. Trata-se de um projeto existencial que se endereça ao outro, ao Outro e que visa implementar um conjunto de processos psíquicos para atingir o ato estético (OURY, 2008OURY, J. Essai sur la création esthétique. L’imaginaire esthétique comme facteur d’intégration biopsychologique. Paris: Hermann, 2008.).

No entanto, sempre dividido devido à estruturação neurótica, todo sujeito pode em um momento dado duvidar de si e do amor que o outro lhe reserva. Quem nunca experimentou na vida essa experiência do espelho, na qual o sujeito se vê e não se reconhece mais? Quem nunca teve a sensação estranha de não ser como os outros, de se sentir inferior às normas impostas pela exigência estética social? Não é acerca de um espelho que Freud nos relata uma experiência pessoal de inquietante estranheza? As representações da feiura testemunham então essa tensão ambivalente que todo sujeito sente em relação a si, entre ser um familiar e um estranho para si mesmo, tensão que encontra suas raízes no próprio fato de que o ser é constituído a partir de processos de semelhanças e de diferenciações. Portanto, há sempre um outro/Outro na base de nossa construção identitária, imaginária e fantasmática.

As representações da feiura testemunham, assim, esse inquietante estranho que somos para nós mesmos e a ignorância que está no fundamento de nosso Eu (Je) no estádio do espelho, como já sublinhava Lacan. No fim das contas, o que procuramos no espelho se não assegurar a existência de nossa identidade, justificá-la, significá-la junto ao Outro, nos olhos do qual nos supomos objeto causa de seu desejo? “Quem se olha em um espelho corre um risco, pois o espelho é tanto um instrumento de conhecimento quanto um instrumento de ignorância, ou ainda, instrumento da inquietante estranheza. Não é acerca de um espelho que Freud nos relata uma experiência pessoal de Unheimlich?”, ressalta Simone Korff-Sausse (2001FREUD, S. Psychologie des foules et analyse du moi (1921c). Trad. Pierre Cotet; et al. In: FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Petite Bibliothèque Payot , 2001./2010, p. 20).

Em 1921, em Psicologia das massas e análise do eu, Freud observa: “Produz-se uma sensação de triunfo quando alguma coisa no eu coincide com o Ideal do eu. Também podem ser compreendidos como expressão da tensão entre eu e ideal o sentimento de culpa (e o sentimento de inferioridade)” (FREUD, 1921c/2001, p. 117-217). Em 1933, Freud fala que a psicanálise faz muito pouco uso da noção de complexo de inferioridade, mas não se deve separá-la do complexo de culpa, pois esse sentimento deve ser compreendido pela tensão que existe entre o eu e a exigência superegóica. Ademais, afirma o psicanalista, suas raízes profundas são eróticas (FREUD, 1989FREUD, S. Nouvelles conférences d’introduction à la psychanalyse. Trad. R. M. Zeitlin. Paris: Gallimard, 1989., p. 91-92). Finalmente, podemos afirmar que existe em cada um de nós uma tensão entre o eu e o supereu, entre o Eu Ideal e o Ideal do eu. E é muitas vezes por causa desse conflito interno que o sujeito não consegue se sentir à altura do Ideal do eu.

7 Conclusão

Como podemos constatar, o ser humano nunca está inteiramente satisfeito com sua imagem, encontrando-se dividido entre uma imagem real e uma imagem idealizada/fantasiada de si, entre um Eu Ideal e um Ideal do eu. Essa é efetivamente uma grande lição metapsicológica que podemos tirar da problemática das representações psíquicas da feiura em nosso campo analítico.

Se nosso corpo representa ao mesmo tempo algo de familiar e de estranho, é porque nossa imagem nunca está integralmente adquirida e enquanto tal. Sempre ignoramos quem somos. Por um lado, porque não podemos ver integralmente nosso corpo, então não podemos saber qual imagem nossa transmitimos aos outros. Mesmo nos olhando em um espelho, muitas vezes só notamos nosso rosto. “Por definição, a aparência é o que é imediatamente perceptível à vista: reconhecemos aqui a imagem escópica. A aparência é também o que percebemos em oposição à realidade de nós mesmos, que nos escapa: reconhecemos de novo a imagem escópica, mas com uma distinção primordial em relação à realidade, da qual ela só oferece uma visão, uma leitura e uma tradução. A passagem obrigatória pelo ‘instrumento, o corpo, ou melhor, o mediador organizado entre o sujeito e o mundo’ só fornece uma descodificação sensorial, uma visão do corpo, e o esquema corporal permanece ‘uma abstração de um vivido do corpo em três dimensões da realidade’. Isso faz da imagem, não A realidade, mas uma realidade” (LOLLINI, 1990LOLLINI, M. F. L’irréparable outrage. La psychothérapie analytique face à la chirurgie esthétique. Paris: éditions Universitaires, 1990., p. 14). Com efeito, nós não nos vemos, mas nos percebemos no espelho, nos imaginamos nos olhos do outro. Por outro lado, uma paciente que recorreu a uma cirurgia estética falava em sessão desse efeito de inquietante estranheza que teve ao se olhar no espelho em uma manhã e perceber de súbito a mudança corporal que suas nádegas haviam sofrido, pois antes ela só reparava no seu rosto.

Analogamente, para o psicanalista Gérard Bonnet, nossa imagem interna não se reduz a uma simples imagem, pois se constrói no tempo a partir de “um certo número de elementos que foram retidos e privilegiados à medida que progredíamos na existência”. “A forma dos olhos, uma curva dos lábios, uma maneira de avançar o queixo, uma cor de cabelos, mas também a entonação particular da nossa voz, nosso odor, nosso toque, nosso gosto, nossas ambições: nossa imagem é um ícone vivo, feito de um grande número de traços únicos” (BONNET, 2013BONNET, G. La tyrannie du paraître. Faut-il se montrer pour exister? Paris: EYROLLES, collection Comprendre & Agir, 2013., p. 167). Além disso, para ele, a imagem que temos de nós mesmos será bela se corresponder à ideia que formamos de nós mesmos. Com efeito, um ideal ao qual queremos que nossa imagem corresponda não representa algo de incomparável ou maravilhoso, nem algo que deve ser ditado pelos cânones em voga, e sim um ideal concebido internamente, construído com frequência a partir dos critérios próprios de cada um de nós. Isso mostra que a imagem de si é sempre uma interpretação fantasiada e idealizada que deforma a imagem real de si. Ela resulta de um afeto subjetivo que carregamos em relação a nós mesmos.

Podemos, portanto, sublinhar que a preocupação estética de si não é apenas uma questão contemporânea, social, metafísica ou filosófica, mas, antes de tudo, uma questão metapsicológica que concerne à construção fantasmática e imaginária, e à estruturação psíquica de cada um de nós. E se é o social que define as normas estéticas, podemos da mesma forma nos perguntar: O que constitui o social? Quem define as normas sociais? Elas não são uma resposta às angustias do ser, um controle da pulsionalidade, uma solução que encontramos para enfrentar a familiaridade estranha que nos habita? Se admitimos a hipótese de que o belo é uma construção que visa o controle das angústias que o feio desperta em nós, assim como o feio é uma construção que visa limitar os danos da sedução do belo, podemos então afirmar que o próprio social é uma criação coletiva que o ser humano encontrou para compensar uma função paterna de proteção. O aparelho social cumpre, desse modo, uma função de controle das angústias e do pulsional transbordante do ser humano.

Os processos sociais se encontram, assim, entrelaçados aos processos psíquicos e corporais, estando intrinsecamente ligados. Abordar, portanto, a problemática da feiura sem levar em conta a complexidade desse entrelaçamento significaria ignorar a singularidade subjetiva e histórica na qual o sentimento de ser feio se inscreve. O caráter metapsicológico dessa problemática exige inclusive uma abordagem transdisciplinar, pois, para tratar do sofrimento psíquico e do mal-estar existencial de um sujeito, não se pode ignorar o mal-estar social no qual ele o inscreve ou no qual ele se inscreve.

REFERÊNCIAS

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  • WINNICOTT, D. Le rôle de miroir de la mère et de la famille dans le développement de l’enfant (1971). In: Jeu et réalité, Folio essais. Paris: Gallimard, 1975.
  • 1
    Este artigo é resultado da tese Figuras estigmatizantes da feiura na clínica contemporânea. O papel do julgamento estético e do mal-estar social na construção imaginária e fantasmática de si, de Cristina Cernat, preparada na Université Paris Cité Sorbonne-Paris 7, sob a orientação do professor Joel Birman.
  • 2
    O desenvolvimento, nos diz Lacan, “se confunde com o desenvolvimento da maestria. É aí que é preciso ter um pouco de orelha, como para a música - eu sou m’être [em francês m’être se pronuncia como maître, mestre em português], eu evoluo no m’êtrise [se pronuncia como maîtrise, maestria em português], eu sou m’être de mim como do universo”.
  • 3
    É preciso ressaltar que, para Jean-Claude Liaudet, a confiança em si não representa apenas um bem, “um capital” que o sujeito pode possuir no mal-estar atual. Representa, de saída, uma qualidade para se conhecer e se aceitar como tal. A confiança em si constitui um sentimento de segurança que dá ao sujeito a possibilidade de contar com suas próprias forças e recursos para agir e amar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2015
  • Aceito
    10 Jun 2016
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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