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O SISTEMA MNÊMICO DO EU: DA GUERRA À CLIVAGEM

The mnemic system of the ego: from war to splitting

RESUMO:

O sistema mnêmico do eu (Icherinnerungssystem) consiste em uma das contribuições teóricas mais originais de Sándor Ferenczi. Propomos, no presente artigo, colocar essa concepção em evidência, rastreando seus antecedentes, expondo detalhadamente sua formulação e, finalmente, seguindo seus desdobramentos. Consideramos que o antecedente da concepção de sistema mnêmico do eu localiza-se na experiência de Ferenczi com a neurose de guerra. Quanto aos seus desdobramentos, indicamos que ele participa, de maneira decisiva, na construção de um dos múltiplos modelos de clivagem desenvolvidos por Ferenczi na sua clínica do trauma.

Palavras-chave:
Ferenczi; sistema mnêmico; eu; trauma; corpo

Abstract:

The mnemic system of the ego (Icherinnerungssystem) consists of one of the most original theoretical contributions by Sándor Ferenczi. We propose, in this article, to put this conception in evidence, tracing its antecedents, exposing its formulation in detail and, finally, following its unfolding. We consider that the antecedent of the conception of the mnemic system of the ego lies in Ferenczi’s experience with war neurosis. As for his developments, we indicate that it participates, decisively, in the construction of one of the multiple splitting models developed by Ferenczi in his clinic of trauma.

Keywords:
Ferenczi; mnemic system; ego; trauma; body

INTRODUÇÃO

Dentre as concepções desenvolvidas pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933) ao longo de sua vida, propõe-se neste artigo destacar o de sistema mnêmico do eu (Icherinnerungssystem), estabelecido pela primeira vez em 1921, no texto sobre os tiques convulsivos. O sistema mnêmico do eu representa um esforço teórico notável de tratar sobre memórias sensoriais e motoras que se expressam pelo corpo a partir de uma perspectiva que passa ao largo do paradigma da linguagem e da representação1 1 Não por acaso, entendemos que esse conceito é o núcleo da teoria da impressão de Ferenczi (CÂMARA, 2018). .

Além de apresentar a construção da concepção de sistema mnêmico do eu, o presente artigo tem, como objetivo, evidenciar seus antecedentes e seus desdobramentos. Consideramos as construções teóricas relativas aos fenômenos corporais específicos à neurose de guerra como os antecedentes da concepção de sistema mnêmico do eu. Apesar de esse contexto ser o antecedente mais imediato, em seu texto de introdução ao conceito de introjeção, publicado em 1909, Ferenczi já exprimira uma intuição que, a nosso ver, é fundante da noção em tela. Segundo ele, “no início, a criança só gosta da saciedade, porque ela aplaca a fome que a tortura - depois acaba gostando também da mãe, esse objeto que lhe proporciona a saciedade” (FERENCZI, 1909/1991FERENCZI, S. Transferência e introjeção (1909). São Paulo: Martins Fontes , 1991. (Psicanálise I), p. 85, grifos no original). Nesta afirmação, pode-se depreender, ainda que sub-repticiamente, uma distinção entre sensação e objeto - distinção esta que, como veremos, se revelará essencial na formulação do sistema mnêmico do eu.

No que diz respeito aos seus desdobramentos, por fim, será indicado como o sistema mnêmico do eu ressurge na década de 1930 na teoria do trauma de Ferenczi, amiúde sob a designação de plano “subjetivo” de memória. Nesse caso, a concepção protagoniza a construção, por parte do autor, de um modelo específico de clivagem no qual há a dissociação entre os traços de memória relacionados ao eu e os relacionados ao objeto. Ferenczi busca, com isso, dar inteligibilidade a características específicas das crises neocatárticas de sujeitos com histórico de eventos traumáticos. A maior das características dessas crises é o fato de as memórias se exprimirem quase que exclusivamente por meio do corpo.

Neurose de guerra

Conforme antecipado na introdução, o antecedente mais imediato da concepção de um sistema mnêmico do eu foi a experiência de Ferenczi, na Primeira Guerra Mundial, com o tratamento de soldados que recuavam dos fronts de batalha acometidos por um quadro clínico designado, na época, como neurose de guerra (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Focando na dinâmica de adoecimento desses sujeitos, Ferenczi levantou a hipótese, em primeiro lugar, de que tal quadro poderia ser alocado em uma zona intermediária entre as neuroses de transferência e as neuroses narcísicas (FERENCZI, 1919c/1993FERENCZI, S. Psicanálise das neuroses de guerra (1919c). São Paulo: Martins Fontes , 1993. (Psicanálise III)); e, em segundo lugar, de que haveria dois tipos de neurose de guerra, cada qual análogo, respectivamente, à histeria de conversão e à histeria de angústia (fobia) (FERENCZI, 1916/1992FERENCZI, S. Dois tipos de neurose de guerra (histeria) (1916). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise II)).

Para os propósitos deste artigo, interessa-nos discorrer somente sobre o tipo de neurose de guerra correlacionado à conversão histérica, o qual era permeado por um fenômeno específico: uma parte do corpo se mantinha fixada em uma dada posição, muitas vezes bizarra. Qualquer tentativa de demovê-la dessa disposição, fosse por influência de terceiros, fosse por esforço do próprio sujeito, só se fazia ao custo de um violento tremor e de incremento de angústia. Entretanto, ao fim desse esforço de movimento, a parte do corpo em tela voltava a sua posição inicial (FERENCZI, 1916/1992FERENCZI, S. Transferência e introjeção (1909). São Paulo: Martins Fontes , 1991. (Psicanálise I)). Ferenczi chegou a uma explicação desse fenômeno, isto é, a uma construção dos processos que o originaram, por meio da costura entre a narrativa verbal de seus pacientes e os gestos que eles apresentavam enquanto sintomas, tomando tanto um quanto o outro - a fala e os gestos - como formas de expressão distintas. Formas que figuravam, não obstante, duas perspectivas ou ângulos de uma mesma narrativa, de uma mesma história.

Um soldado, por exemplo, mantinha o braço contraído, apertando a mão contra o peito. Constatou-se que, estendido no chão em uma batalha, preparando-se para atirar, sofreu o impacto de uma explosão de obus, subitamente deflagrada próximo a ele. Desde então, seu braço permaneceu na mesma posição do momento imediatamente anterior à explosão, como se esta parte do corpo tivesse sido petrificada (FERENCZI, 1916/1992FERENCZI, S. Transferência e introjeção (1909). São Paulo: Martins Fontes , 1991. (Psicanálise I)). Esse caso e outros semelhantes levaram Ferenczi a conceber que a posição peculiar a que uma parte do corpo se mantém fixada seria como um monumento, uma fotografia, um instantâneo que preserva a compleição que apresentava no exato instante do choque. Em suas palavras, há “uma fixação da inervação predominante no momento da comoção (do pavor) [Erschütterung (des Erschreckens)]” (FERENCZI, 1916/1992FERENCZI, S. Transferência e introjeção (1909). São Paulo: Martins Fontes , 1991. (Psicanálise I), p. 262; 1916/1939FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren), p. 62, grifos no original).

Para articular a fixação do corpo em dada posição à experiência de choque, Ferenczi introduz um terceiro elemento: a reação afetiva do sujeito à comoção, isto é, o afeto de pavor (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Mais especificamente, ele se debruça sobre os movimentos expressivos (Ausdrucksbewegungen) que se desencadeiam na superfície do corpo quando da experiência de pavor (FERENCZI, 1916/1939FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren), p. 63). Ao ser acometido por tal afeto, o corpo fica petrificado na posição em que está naquele momento, como bem o figura, na mitologia, a visão da cabeça cheia de serpentes da medusa, e como o encena, muitas vezes de maneira cômica, os atores em uma pantomima. Os animais também esboçam essa reação quando da visão de um predador, como se, fazendo isso, fingissem estar mortos ou se tornassem indiferenciados junto à paisagem - reação designada de “mimetismo” pela biologia, cuja analogia pode ser encontrada na hipnose paterna, isto é, na coerção a entrar em um estado de sugestionabilidade por meio do terror (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. Reflexões psicanalíticas sobre os tiques (1921). São Paulo: Martins Fontes , 1993. (Psicanálise III); 1909/1991).

À medida que o afeto do pavor passa, os músculos relaxam, o corpo amolece, a pedra volta a ser carne. Não raro, solta-se um suspiro de alívio e, até mesmo, pode-se dar uma gargalhada - uma gargalhada nervosa, é verdade -, como se o pavor pelo qual se passou fosse irreal, uma bobagem, uma ilusão que ficou no passado. O elemento diferencial do pavor, na experiência de comoção traumática, seria justamente o de ele não ser liquidado. Os gestos que haviam se combinado no instante anterior à explosão desaceleraram até ficarem suspensos, como se a impressão do pavor se congelasse e passasse a refletir-se, inerte e ativa, como a expressão de um pavor permanente, de um terror do qual não se consegue recuperar ou liquidar. Mesmo que, na consciência, o sujeito já não pense no terror que experimentou, o seu corpo não se recobrou dele, como se tivesse ocorrido aí alguma sorte de clivagem.

Esses pacientes ainda não se refizeram de seu pavor (Schreck) mesmo que já não pensem conscientemente no transe por que passaram e até se mostrem, por vezes, alegres e de bom humor, como se seu espírito não estivesse torturado, de forma alguma, por tão horríveis lembranças. (FERENCZI, 1916/1992FERENCZI, S. Dois tipos de neurose de guerra (histeria) (1916). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise II), p. 263; 1916/1939FERENCZI, S. Notas e fragmentos (1939). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise IV), p. 64).

Que imagem terrível, e, no entanto, eloquente: não conseguir se refazer do susto, do pavor, do terror, como se o tempo tivesse parado ou toda a vida estivesse sentenciada a se concentrar em um instante que não passa! É como se o corpo continuasse a reagir a uma dor cuja fonte não existe mais na atualidade. O obus explodiu próximo ao soldado, soterrando-o. Ele sobreviveu e foi levado ao hospital. No entanto, seu corpo continua preso àquele momento da comoção. O terror atingiu seu paroxismo e aí ficou suspenso, não podendo se desenvolver e nem ser liquidado, como se a explosão da bomba, os gritos dos homens, os torrões de terra sendo deslocados para todos os lados e as nuvens do céu tivessem desacelerado até ficarem parados. Como se tudo isso, enfim, se tornasse um instante eterno, um instante entre o início dos acontecimentos - quando estes eram apenas iminentes -, e sua conclusão - na qual o soldado, não obstante o cenário de horror, sobreviveu.

Pode-se dizer que, “objetivamente”, a situação acabou; mas a comoção persiste, o corpo mantém-se petrificado, e essa paralisia é a expressão de que se continua reagindo à comoção. Em outras palavras, “subjetivamente” a situação continua: tem-se, como bem o disse Ferenczi, a “existência de uma sensação privada de objeto” (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990., p. 64). Uma sensação privada de um objeto: como se o objeto, não obstante ausente, continuasse pressionando - continuasse impressionando - o corpo, e este prosseguisse expressando sua reação (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). O mundo mudou, a situação acabou, mas as marcas foram deixadas e elas continuam ativas, continuam doendo, continuam retorcendo o corpo.

A concepção de Icherinnerungssystem, ou sistema mnêmico do eu, introduzida por Ferenczi no início da década de 1920, representa uma primeira tentativa de teorizar sobre o que encontrara nos movimentos expressivos paralisados dos soldados acossados pela neurose de guerra. O fato de o corpo expressar uma impressão traumática, como se reagisse, na atualidade, a uma sensação sem objeto - isto é, contra uma sensação cuja fonte não mais existe no estado atual das coisas, mas como algum tipo de memória que insiste em permanecer ativa -, vai ser generalizado para outros fenômenos corporais, principalmente para os tiques convulsivos (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren)).

O sistema mnêmico do eu

A concepção ferencziana de sistema mnêmico do eu se insere no contexto de determinadas construções teóricas de Freud a propósito da memória. É necessário retomar essas construções - bem como as lacunas que elas deixam - para compreendermos a extensão da inovação de Ferenczi com tal concepção. Em sua primeira formulação de aparelho psíquico, concebido como uma complexificação de um sistema arco reflexo, Freud introduz, entre as extremidades motora e sensorial, uma região composta por traços mnêmicos, dentre os quais uma parte é inconsciente e outra guarda a possibilidade de se tornar consciente (FREUD, 1900/2006FREUD, S. A interpretação dos sonhos, parte 2 (1900). Rio de Janeiro: Imago, (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 5)). Entre o estímulo e a resposta, há memória, e a memória é modificada pelo estímulo que chega e modifica o estímulo que sai. Os traços mnêmicos podem se organizar de acordo com diferentes modalidades de registro, isto é, com diferentes regras de associação, de maneira que “uma única excitação, transmitida pelos Pcpt., deixa fixada uma variedade de registros diferentes” (FREUD, 1900/2006FREUD, S. A interpretação dos sonhos, parte 2 (1900). Rio de Janeiro: Imago, (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 5), p. 569). Em uma dessas modalidades, a associação da informação se dá por simultaneidade temporal ao passo que, em outra, a associação se baseia na semelhança (FREUD, 1900/2006FREUD, S. A interpretação dos sonhos, parte 2 (1900). Rio de Janeiro: Imago, (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 5)), já em uma terceira, a significação afetiva seria a regra para se associar diferentes traços, e assim por diante (FERENCZI, 1920/1992FERENCZI, S. Matemática (1920). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise IV)).

Em um de seus artigos metapsicológicos no qual busca desenvolver sua concepção do sistema inconsciente após a introdução das neuroses narcísicas na teoria psicanalítica, Freud promove um aditamento ao seu modelo de aparelho psíquico (FREUD, 1915/2010FREUD, S. O inconsciente (1915). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 12)). O autor diferencia representação da coisa de representação da palavra2 2 A tradução dos termos Wortvorstellung e Sachvorstellung para, respectivamente, “representação da palavra” e “representação da coisa” foi proposta por Paulo César de Souza em sua tradução das obras completas de Freud pela Companhia das Letras. , e afirma que algo se torna consciente se, e somente se, à representação da coisa é vinculada a representação da palavra: “O sistema Ics contém os investimentos de coisas dos objetos, os primeiros investimentos objetais propriamente ditos; o sistema Pcs surge quando essa representação da coisa é sobreinvestida mediante a ligação com as representações verbais que lhe correspondem” (FREUD, 1915/2010FREUD, S. O inconsciente (1915). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 12), p. 147, grifos nossos).

Tudo se passa, portanto, como se Freud tivesse descrito uma organização dos traços de memória relacionados aos objetos, quer dizer, frutos de investimentos objetais, e o que salta aos olhos de Ferenczi nessa formulação é o fato de Freud se dedicar unilateralmente à dimensão dos objetos, não se referindo ao domínio do eu e, portanto, aos traços de memória relacionados aos investimentos narcísicos (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). É precisamente nessa lacuna que Ferenczi vai propor o sistema mnêmico do eu. Importa indicar, a esse respeito, dois pressupostos que o autor vai inaugurar e se basear para tal postulação: em primeiro lugar, ele formaliza a concepção de dois sistemas básicos de memória, os quais dizem respeito a dois “espaços”: um relacionado aos objetos, e outro relacionado ao eu; em segundo lugar, o sistema de memória referente ao eu é anterior ao referente aos objetos, na medida em que registra processos que são anteriores aos investimentos objetais.

O material empírico que consubstancia a formulação de um sistema de memória relacionado ao eu foi composto por diversas questões clínicas, a começar pela neurose de guerra, através da qual testemunhara a possibilidade de haver uma memória composta por sensações e movimentos do corpo. Com a crescente observação dos pequenos atos automáticos desencadeados pelos seus pacientes durante a experimentação com a técnica ativa - que pareciam, a seu ver, serem formas de “onanismo larvado” (FERENCZI, 1919a/1993FERENCZI, S. Dificuldades técnicas de uma análise de histeria (Com observações sobre o onanismo larvado e os ‘equivalentes masturbatórios’) (1919a). São Paulo: Martins Fontes , 1993. (Psicanálise III)); e, também, com o progressivo interesse no fenômeno dos tiques (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. Fenômenos de materialização histérica (uma tentativa de explicação da conversão e do simbolismo histéricos)(1919b). São Paulo: Martins Fontes , 1993. (Psicanálise III)), Ferenczi encontrou e acumulou mais material a favor da hipótese de uma modalidade de memória que se relaciona ao eu e ao corpo, e não ao objeto - tornando, pois, urgente preencher a lacuna que Freud deixara.

Ao postular um sistema mnêmico do eu, ele busca justamente preencher essa lacuna, e utiliza particularmente os tiques para defender sua legitimidade - esses gestos, fundamentalmente corporais, que aparecem e somem como um raio, rápidos demais para serem capturados e, não obstante, visíveis o suficiente para poderem ser considerados verdadeiros “segredos públicos” (öffentlichen Geheimnisse) (FERENCZI, 1928FERENCZI, S. O problema do fim da análise (1928). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise IV)/1992; 1928/1939FERENCZI, S. Das Problem der Beendigung der Analysen(1928). Budapest: Verlag Hans Huber, 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren), p. 373). Com esta postulação, Ferenczi descreve, pois, outra modalidade de organização de traços de memória e outro plano de origem para as impressões: a tal sistema ficaria reservada a função de registrar todos os processos que acometem o eu - todas as sensações que se lhe ocorrem, todas as paixões que sofre, mas também todas as ações que exerce -, sejam elas de ordem corporal ou psíquica, caso, evidentemente, se queira distinguir ambas as esferas de experiência. Em outras palavras, a função desse sistema de memória, que se justapõe entre os demais, é somente uma: a de “registrar constantemente os processos psíquicos ou somáticos do próprio indivíduo” (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. Fenômenos de materialização histérica (uma tentativa de explicação da conversão e do simbolismo histéricos)(1919b). São Paulo: Martins Fontes , 1993. (Psicanálise III), p. 88-9).

Ferenczi estabelece uma coordenada que busca fundamentar a concepção de sistema mnêmico do eu com maior especificidade: sua articulação com o narcisismo, o que se mostra patente não apenas nas neuroses de guerra, como também, e principalmente, nos tiques (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Se a conversão histérica e o tique se assemelham por serem maneiras de o corpo se expressar, a diferença entre eles é o que legitima a suposição de um sistema de memória do eu distinto de um sistema de memória do objeto. Enquanto que, na origem de uma conversão, pode-se rastrear uma relação libidinal com um objeto que foi recalcada, o tique é eminentemente narcísico. De acordo com Ferenczi, “no tique, pelo contrário, não parece existir relação de objeto dissimulada por trás do sintoma; por conseguinte, é a lembrança do próprio traumatismo orgânico [die Erinnerung an das organische Trauma] que, neste caso, tem um efeito patogênico” (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. Fenômenos de materialização histérica (uma tentativa de explicação da conversão e do simbolismo histéricos)(1919b). São Paulo: Martins Fontes , 1993. (Psicanálise III), p. 88; 1921/1927FERENCZI, S. Psychoanalytische Betrachtungen über den Tic (1921). Leipzig/Wien/Zurich: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927. (Bausteine zur Psychoanalyse, band I: Theorie), p. 210, grifos no original). O tique se correlacionaria, portanto, à pura apresentação e atualização da lembrança de um trauma sofrido no corpo, sem estar acompanhado da lembrança do agente externo que provocou a impressão.

Posto que esse trauma não está ocorrendo no momento em que o tique se desencadeia, o que está em jogo é uma Schmerzerinnerung, uma lembrança de dor que se atualiza no presente - e, acrescente-se, registrada no sistema mnêmico do eu (FERENCZI, 1921/1927FERENCZI, S. Psychoanalytische Betrachtungen über den Tic (1921). Leipzig/Wien/Zurich: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927. (Bausteine zur Psychoanalyse, band I: Theorie)). Os tiques seriam reações motoras para lidar com sensações de uma lembrança de dor, isto é, com sensações privadas de objeto, “simples reproduções do sistema mnêmico do ego, onde falta a relação recorrente com o fator causal” (FERENCZI, 1939/1992FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren), p. 240). O mesmo se pode dizer em relação à neurose de guerra: conforme visto, as posições corporais e os movimentos bizarros dos que dela padecem seriam expressão de uma memória cuja impressão, registrada no sistema mnêmico do eu, ocorreu no momento da comoção e cuja violência petrificou o corpo como um instante que não passa, não obstante o acontecimento que causou tais reações ter, paradoxalmente, passado.

Um traumatismo deveras possante poderia provocar, tanto no tique quanto nas neuroses traumáticas, uma fixação mnêmica excessiva na atitude [Haltung]3 3 Haltung pode ser traduzido tanto por “atitude” quanto por “posição”, “postura”. Consideramos que os termos “posição” ou “postura” possuem uma conotação mais expressiva, plástica, material, quando comparados à palavra “atitude”, a qual parece ter, por sua vez, um sentido mais psicológico. que tinha o corpo no preciso momento do traumatismo, fixação que poderia ser suficientemente forte para provocar a reprodução permanente ou paroxísmica dessa atitude. (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. Fenômenos de materialização histérica (uma tentativa de explicação da conversão e do simbolismo histéricos)(1919b). São Paulo: Martins Fontes , 1993. (Psicanálise III), p. 89, grifos no original; 1921/1927FERENCZI, S. Psychoanalytische Betrachtungen über den Tic (1921). Leipzig/Wien/Zurich: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927. (Bausteine zur Psychoanalyse, band I: Theorie), p. 211).

Não há, portanto, entre o gesto petrificado da neurose de guerra e o movimento súbito e transitório do tique, uma diferença de natureza, mas tão somente de grau, e esse grau se reparte em infinitas latitudes de velocidade: “permanente” no primeiro caso, “paroxísmico” no segundo. Ambos - e os fenômenos da catatonia e da flexibilidade cérea, prototípicos de certas formas de tique, também aí se incluem -, envolvem o problema da impressão traumática, e muito particularmente o de uma impressão que se atualiza, que se expressa visivelmente no território corporal (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. Psychoanalytische Betrachtungen über den Tic (1921). Leipzig/Wien/Zurich: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927. (Bausteine zur Psychoanalyse, band I: Theorie)).

Os tiques revelam como o sistema mnêmico do eu registra não apenas sensações, como as de dor, mas também ações deflagradas pelo sujeito, como as reações motoras que são desencadeadas como forma de suprimir tais sensações (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Em seu Projeto para uma psicologia, Freud chegou a conceber que mesmo as ações motoras seriam registradas no sistema de memória (os neurônios psi), mas tal concepção não sobreviveu em seus escritos posteriores. Com efeito, ao tratar da vivência de satisfação, Freud entende que a criança, ao ser pressionada pelas moções pulsionais, executa uma série de movimentos corporais que ele qualifica como “alterações internas” (FREUD, 1895/1995FREUD, S. Projeto de uma psicologia (1895). Rio de Janeiro: Imago , 1995.). Apesar de serem ineficazes no que diz respeito à possibilidade de satisfação autônoma de seu anseio, esses movimentos (como o choro, o debater-se e diversas outras expressões emocionais) adquirem - incidentalmente, é verdade - uma função comunicativa para com o adulto. Quando este providencia à criança o que lhe falta, aquelas alterações internas, antes impotentes, apressam-se a ir ao encontro do objeto e tornam-se eficazes, uma vez que, agora, são capazes de receber o que lhe é oferecido e de dar um destino a ele.

Não somente a percepção do objeto que propiciou a satisfação é registrada como uma recordação, mas também os próprios movimentos, as próprias alterações internas que foram desencadeadas quando do encontro com tal objeto, são retidas como memória: “as notícias de eliminação reflexa realizam-se porque todo movimento, através de suas consequências colaterais, dá lugar a novas excitações sensoriais (da pele e dos músculos) que em ψ resultam em uma imagem de movimento” (FREUD, 1895/1995FREUD, S. Projeto de uma psicologia (1895). Rio de Janeiro: Imago , 1995., p. 32, grifos no original). Assim, os próprios movimentos corporais executados são registrados como traços de memória; eles próprios, enquanto expressão corporal, atuam também como impressão, uma vez que não podem ser subtraídos do campo de sensações que são percebidas, que são sentidas.

A especificidade com a qual Freud se refere sobre o movimento corporal produzir memória destaca a intenção de Ferenczi com a sua postulação de um sistema mnêmico do eu: as expressões corporais, uma vez que se desencadeiam, também são impressões (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Ao mesmo tempo em que os sintomas dos soldados acometidos pela neurose de guerra podem ser entendidos como a expressão corporal de uma impressão que ficou petrificada, essa impressão é a expressão corporal que se petrificou no momento da comoção traumática. Haveria aí uma indistinção inicial entre impressão e expressão, subvertendo assim a suposição clássica segundo a qual impressão e expressão seriam dois processos fundamentalmente distintos: conforme defendemos em outro lugar, essa mistura originária entre impressão e expressão, revelada de maneira tão cristalina pelo sistema mnêmico do eu e os fenômenos clínicos a ele correlatos, consiste em uma das características mais originais da teoria ferencziana da impressão (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.).

Os planos subjetivo e objetivo da memória

A concepção de sistema mnêmico do eu desaparece, ou melhor, fica em latência nos escritos de Ferenczi por alguns anos. Somente em sua teoria do trauma a ideia ressurge, ainda que para tratar de novos problemas clínicos, e ainda que sob novas designações. Com efeito, no Diário clínico (1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990.), Ferenczi refere-se a um plano subjetivo e outro objetivo de memória (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.; FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990.). O primeiro relaciona-se ao sistema mnêmico do eu e o segundo ao sistema mnêmico dos objetos. Ao primeiro corresponde o registro de impressões originadas do próprio corpo, do próprio eu, como as sensações e as emoções que temos - inclusive a respeito das coisas - e os movimentos corporais que desencadeamos sobre elas; ao segundo, cabe o registro de impressões, também captadas pelo corpo, mas originadas de algo que não se confunde com o eu, como as mais variadas percepções (visuais, auditivas, olfativas etc.) que travamos em relação aos objetos.

A distinção decisiva entre esses dois planos, desta maneira, é que um se refere a experiências internas e outro a experiências externas, um ao eu e outro àquilo que não é eu. Certamente, essa distinção é problemática, posto que nenhuma experiência interna pode ser provocada sem estar em relação com uma externa e, também, uma vez que nenhuma experiência externa pode se dar sem produzir repercussões vividas como uma experiência interna. Entretanto, a neurose de guerra, os tiques e também o trauma levaram Ferenczi a fazer essa distinção - basta recordar-se daquilo que ele chama de “sensação sem objeto” -, mas não sem ressalvas.

Com efeito, segundo ele, uma impressão que temos constitui “uma unidade completa de sentimento”, quer dizer, encontra-se simultaneamente registrada tanto no plano subjetivo quanto no objetivo de memória, e os traços de ambos estão associados, ou melhor, misturados entre si (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990., p. 105). Em outros termos, uma mesma impressão é envolvida pelos dois planos de memória, isto é, está registrada em ambos os sistemas mnêmicos, de acordo com suas regras singulares de registro. Cada plano registra um aspecto dentre os diversos que uma mesma impressão apresenta, e o aspecto relaciona-se precisamente a que lugar a impressão se fez presente.

Se os sistemas mnêmicos do eu e do objeto podem ser divididos segundo o critério de onde acontecem os processos, o que dá sentido a essa diferenciação é o fato de cada qual ter seus modos particulares de rememoração ou, conforme entendemos, seus modos particulares de expressão (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). O sistema mnêmico do eu - o plano subjetivo de memória - manifesta-se por meio da expressão de sensações, afetos, sentimentos e movimentos corporais, visto envolver o registro dessas qualidades que se originam do corpo, mesmo que devido a um objeto (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990./1990; 1939/1992). Assim, a atualização do plano subjetivo se dá pelos modos de expressão da imaginação e, principalmente, dos gestos corporais (FERENCZI, 1913/1992FERENCZI, S. O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios (1913). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise II)). O sistema mnêmico do objeto - o plano objetivo de memória - evoca percepções dos objetos, mas não das sensações por eles provocadas. Dado que esse plano refere-se a experiências destacadas do eu, sua expressão se faz privilegiadamente pela consciência e pela linguagem verbal (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990.).

Essa divisão não é arbitrária, estando, pelo contrário, em perfeita consonância com o modelo ferencziano de desenvolvimento dos sentidos de realidade: a linguagem representa o primeiro modo de expressão a se desenvolver quando do pleno reconhecimento da realidade dos objetos, isto é, das coisas que não obedecem à vontade da criança (o qual Ferenczi também designa como fase de projeção) (FERENCZI, 1913/1992FERENCZI, S. O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios (1913). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise II)). É verdade que as formas de expressão anteriores à linguagem são constituídas devido a catástrofes quanto à onipotência; entretanto, elas estão muito mais envolvidas por um modo de vida monádico, caracterizado predominantemente pela experiência de onipotência e pela reduzida capacidade do objeto de não obedecer às vontades da criança (no qual a fase de introjeção é soberana) (FERENCZI, 1913/1992FERENCZI, S. O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios (1913). São Paulo: Martins Fontes , 1992. (Psicanálise II)).

Não por acaso, para Ferenczi e conforme exposto acima, o sistema mnêmico do eu (ou plano subjetivo da memória) se constitui e se desenvolve em um período anterior ao sistema mnêmico do objeto (ou plano objetivo da memória). O primeiro se complexifica nas fases introjetivas e ancora os modos de expressão sensorial e gestual, ao passo que o segundo se desenvolve nas fases projetivas e baseia o modo de expressão verbal (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Assim, ter consciência de alguma “experiência interna”, tal como uma sensação ou um movimento - principalmente no sentido de concebê-los em palavras neutras, isto é, de expressá-los pela linguagem verbal adulta - consiste em separá-los do eu e entendê-los como algo do mundo externo (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990./1990). Abarcar, portanto, uma sensação pela linguagem, é projetar essa sensação para fora, é colocá-la fora de si; em suma, é torná-la de certa maneira um objeto, como bem o entende, aliás, Freud (1923/2011FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19)).

Uma vez que há uma interpenetração de ambos os sistemas ou planos - ou, dito de outra maneira, uma vez que uma mesma impressão localiza-se neles simultaneamente -, pode-se tanto sentir uma recordação ou desenvolvê-la por movimentos corporais quanto descrevê-la com o uso das palavras. Desta forma, o que a distinção entre os dois planos de memória nos possibilita pensar especificamente em relação à clínica é o fato de estarem relacionados a diferentes modos de expressão: o subjetivo, com a imaginação e o gesto, o objetivo, com a linguagem. Entretanto, ambos os planos de memória - subjetivo e objetivo - e todas as formas de expressão que os atualizam originam-se de uma mesma impressão, e essa impressão tem uma natureza somente: uma natureza material.

Essa nuance é decisiva para se entender a radicalidade do monismo ferencziano, mesmo em seus últimos trabalhos devotados ao trauma: os diferentes modos de expressão e os diferentes aspectos da impressão são, no final das contas, corporais, ainda que, no caso destes últimos, se originem de diferentes lugares. Se toda uma tradição de pensamento tende a identificar a linguagem ao psíquico e os outros modos de expressão - principalmente a repetição e as ações motoras indesejáveis - ao corporal, a posição de Ferenczi é outra: o uso dos termos “psíquico” e “corporal” estão relacionados, na verdade, a diferentes modos de expressão que atualizam planos distintos de memória - o plano objetivo, em relação ao primeiro, o plano subjetivo, em relação ao segundo (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Entretanto, esses planos são apenas ângulos que captam diferentes aspectos de uma mesma impressão, como uma máquina fotográfica que retrata o mesmo objeto a partir de duas perspectivas distintas.

A clivagem dos planos de memória

Cabe questionar de que maneira a concepção de sistema mnêmico do eu - o qual levou Ferenczi, uma década após sua enunciação, a conceber dois planos de memória intimamente relacionados a diferentes modos de expressão - contribuiu para a sua teoria do trauma. Ou, antes disso, interrogar que acontecimento clínico o fez revisitar essa concepção. O fenômeno em questão foi a emergência das crises ditas histéricas quando da mudança da técnica ativa para a neocatártica, ou da migração de uma postura analítica eminentemente direcionada para a tensão para outra na qual predomina, de forma geral, o relaxamento; e, de forma específica, em que predomina a sinceridade do analista quanto aos afetos que o atravessam (FERENCZI, 1930/1992FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19)).

Essas crises envolviam explosões emocionais, dores lancinantes, gritos de socorro, desencadeamento de movimentos corporais descontrolados, agonias insuportáveis e até gargalhadas maníacas (FERENCZI, 1930/1992FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19)). Mergulhado nesse estado, o paciente parecia estar em outro tempo e outro espaço, vivendo, na atualidade do momento e na crueza do corpo, eventos antigos de violência e de crueldade, isto é, “um verdadeiro pesadelo alucinatório, onde ele converte em atos, palavras e gestos, uma experiência interior ou exterior” (FERENCZI, 1939/1992FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren), p. 250, grifos nossos).

Ao acordarem das crises, os pacientes não se recordavam do que tinha acontecido. Evidentemente, deviam sentir-se, como se diz, com os “nervos em frangalhos”, com os músculos em exaustão e o corpo dolorido, com a garganta arranhada e a sensação de terem chorado copiosamente por horas, com a maquiagem borrada e o rosto inchado. Ao tomarem ciência do que ocorrera e, em sessões posteriores, escutarem as construções de que tal acontecimento poderia ser a apresentação de um evento traumático real, não conseguiam adquirir convicção quanto a essas construções comunicadas por Ferenczi (FERENCZI, 1930/1992FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19); 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990.; 1939/1992FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren)). Os pacientes haviam entrado em um estado de transe - em um estado de exceção - do qual, quando saíam, pareciam não ter sequer entrado, apesar de as marcas visíveis e latejantes do que haviam passado há poucos minutos lhes mostrarem o contrário. A esse respeito, Ferenczi desenvolve a seguinte hipótese:

Se o paciente realiza um mergulho catártico até à fase do vivenciado, então, nesse transe, ele ainda sente os sofrimentos, mas nem sempre sabe o que se passa. Dessas séries de sensações de objeto e de sujeito, somente o lado sujeito é acessível. Se ele desperta do transe, a evidência imediata logo se dissipa; o trauma é de novo apreendido unicamente do exterior por reconstrução, sem o sentimento de convicção. (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990./1990, p. 73, grifos nossos).

Essa hipótese leva Ferenczi a conceber um modelo de clivagem, conforme acessada pela experiência da neocatarse, a partir da distinção entre os planos de memória subjetivo e objetivo. Reside aí a contribuição que a concepção de sistema mnêmico do eu traz para a construção de sua teoria do trauma (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990./1990; 1939/1992FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren)). No desenrolar das crises histéricas, somente o plano subjetivo se atualiza com toda crueza no processo analítico, ao passo que o plano objetivo parece estar ausente. Isso significa dizer que a memória do evento traumático se expressa pelo corpo, mais especificamente pelos movimentos corporais e por lampejos de sensações (como nojo, repugnância e até prazer) que se desencadearam durante a experiência de violência. Contudo, sem haver a recordação, passível de ser descrita em palavras, da imagem do abusador, de sua fala, de suas ações e de todas as circunstâncias naquele momento envolvidas.

Daí Ferenczi dizer que “os sintomas histéricos parecem ser apenas, quanto ao essencial, auto-simbolismos, ou seja, simples reproduções do sistema mnêmico do ego [nur Reproduktionen des Ich-Erinnerungssystems], onde falta a relação recorrente com o fator causal” (FERENCZI, 1939FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren)/1992, p. 240; 1939FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren), p. 221, grifos nossos). A ausência do fator causal é justamente a ausência da expressão da memória do plano objetivo. Foi visto anteriormente que, tanto na neurose de guerra quanto nos tiques, Ferenczi se refere a uma “sensação sem objeto”, e é na atualização de uma memória somente pelo plano subjetivo (ou pelo sistema mnêmico do eu) que essa sensação sem objeto, que essa sensação sem causa, tem lugar. Em suas palavras: “Em certos momentos do traumatismo, o mundo dos objetos desaparece total ou parcialmente: tudo se torna sensação sem objeto [objektlose Sensation]. Na verdade, a conversão é apenas uma recaída no modo de reação puramente corporal, subjetivo” (FERENCZI, 1939/1992FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren); 1939, p. 268; p. 271, grifos no original).

Se as crises neocatárticas consistiam na ativação de impressões do plano subjetivo de memória, seria possível evocar também o plano objetivo e, mais que isso, trazê-los concomitantemente em cena? Ao proceder com a técnica de análise de crianças em seus pacientes adultos, Ferenczi encontrou vestígios de lembranças do plano objetivo que, enquanto tal, eram expressadas através de palavras (FERENCZI, 1930/1992FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19); 1931/1992; 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990.), logrando obter, assim, “informações a respeito da causa exógena dessa comoção psíquica, sensação ou defesa” (FERENCZI, 1939/1992FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren), p. 250).

De fato, Ferenczi relata ter conseguido estabelecer contato com os pacientes durante as crises neocatárticas e adquirido, a partir de perguntas muito simples a respeito dos motivos pelos quais o corpo adquiria essa ou aquela compleição, imagens do agressor, como se, de uma bruma pesada, começassem a surgir lentamente contornos de sua expressão facial tomada pela paixão (FERENCZI, 1939FERENCZI, S. Über zwei Typen der Kriegshysterie (1916). Budapest: Verlag Hans Huber , 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren)/1992). Outros pacientes conseguiam, em uma zona de transição entre o sonho e a vigília, vislumbrar, lá do alto, uma criança sendo violentada pelo adulto, mostrando assim que, de alguma maneira, alguns aspectos objetivos da impressão foram mais ou menos registrados e passaram por modificações fantasmáticas, graças ao processo primário (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário clínico. (1932) São Paulo: Martins Fontes, 1990.).

Entretanto, após esses estados de exceção, o plano objetivo enfraquecia até o ponto de apagar-se quase que inteiramente, como se a terrível bruma tivesse engolido mais uma vez as lembranças das circunstâncias externas da agressão, assim como acontecera com os elementos do plano subjetivo. Os pacientes não conseguiam sustentar o mínimo resquício de convicção quanto à memória do plano objetivo, como se as imagens recordadas não tivessem acontecido com elas, mas com outrem (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.). Surgia aí, para Ferenczi, uma evidência clara a respeito da clivagem, tanto no sentido de uma clivagem da personalidade, quanto no de uma divisão radical da impressão traumática entre os planos subjetivo e objetivo: devido a essa clivagem, se o plano objetivo aparece, ele não se comunica com o plano subjetivo e vice-versa. Ou se tem um puro sentir ou um puro saber; ou eu sofro e não sei o que me agrediu, ou não sofro e sei que alguém agrediu um outro que não eu (CÂMARA, 2018CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.).

Considerações finais

O sistema mnêmico do eu - concepção formulada em 1921 a partir de fenômenos clínicos os mais diversos, como os tiques e os sintomas corporais de sujeitos com neurose de guerra - desempenha um papel decisivo na formulação de um modelo específico de clivagem nos últimos anos de vida de Ferenczi. Importa sublinhar que a ideia de clivagem comporta, na teoria ferencziana do trauma, diversos modelos, dentre os quais o tratado neste artigo, segundo o qual haveria uma dissociação de dois planos de memória, o subjetivo e o objetivo. Esses dois planos seriam relacionados, respectivamente, a experiências do eu e a eventos referentes ao objeto. Ademais, cada qual envolveria diferentes modos de expressão, sendo que o plano subjetivo, herdeiro do sistema mnêmico do eu, se manifestaria por meio de processos sensoriais e movimentos corporais.

Observa-se que, neste modelo, baseado que foi nas crises neocatárticas, tais processos e movimentos não são entendidos por Ferenczi como fenômenos que estão no campo do “irrepresentável”; pelo contrário, eles são acolhidos como modos de expressão singulares, os quais atualizam um plano de experiência e de memória muito particular, e que possuem o mesmo direito de existir quanto a linguagem verbal. Dito de outra forma, a sensorialidade e a motricidade não são concebidas comparativamente à linguagem, como se esta fosse um padrão ou um referencial a partir do qual aquelas devem ser lidas; pelo contrário, o sistema mnêmico do eu protagoniza uma psicanálise das superfícies, das sensações, do movimento. Em suma, essa concepção materializa, seja em seus antecedentes, seja na sua formulação, seja, enfim, nos seus desdobramentos, um gesto singular de Ferenczi: o de entender o corpo em toda sua potência, o que inclui, sem dúvida alguma, os aspectos sensoriais e motores do sofrimento e, também - é preciso não esquecer -, da vida.

REFERÊNCIAS

  • CÂMARA, L. Modulações do corpo: expressão e impressão na teoria ferencziana. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018.
  • FERENCZI, S. Das Problem der Beendigung der Analysen(1928). Budapest: Verlag Hans Huber, 1939. (Bausteine zur Psychoanalyse, band III: Arbeiten aus den Jahren)
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  • FREUD, S. A interpretação dos sonhos, parte 2 (1900). Rio de Janeiro: Imago, (2006). (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 5)
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  • FREUD, S. Projeto de uma psicologia (1895). Rio de Janeiro: Imago , 1995.
  • 1
    Não por acaso, entendemos que esse conceito é o núcleo da teoria da impressão de Ferenczi (CÂMARA, 2018).
  • 2
    A tradução dos termos Wortvorstellung e Sachvorstellung para, respectivamente, “representação da palavra” e “representação da coisa” foi proposta por Paulo César de Souza em sua tradução das obras completas de Freud pela Companhia das Letras.
  • 3
    Haltung pode ser traduzido tanto por “atitude” quanto por “posição”, “postura”. Consideramos que os termos “posição” ou “postura” possuem uma conotação mais expressiva, plástica, material, quando comparados à palavra “atitude”, a qual parece ter, por sua vez, um sentido mais psicológico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2020
  • Aceito
    12 Ago 2021
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