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SUPEREU E OBJETO NA EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA: POR UMA HIÂNCIA ENTRE OUVIR E OBEDECER

RESUMO:

Com base na premissa de que o supereu corresponde a um mandamento que ordena um gozo impossível, o presente trabalho investiga o destino que a psicanálise é suscetível de conferir ao imperativo superegoico. Sua problemática consiste na coalescência entre comando e obediência, bem como na abertura, a ser sustentada pelo discurso analítico, de uma hiância entre ambos. O desenvolvimento parte do emparelhamento entre ouvir e obedecer, servindo-se da hipnose, de Pascal Quignard, La Boétie e Herman 1853. A variedade vocal do objeto constitui o eixo que conduz, em uma análise, à fenda do desejo e ao sintoma que remaneja o gozo.

Palavras-chave:
objeto vocal; discurso analítico

ABSTRACT:

Based on the premise that the superego is a command that demands an impossible jouissance, this article studies the possible destiny psychoanalysis can give to the superegoic imperative. The issue raised is the coalescence between commanding and obeying, as well as the opening of a gap, as supported by the discourse of the analyst, between the both of them. The development of the study establishes a pairing between listening and obeying, recurring to the hypnosis technique, to Pascal Quignard, to La Boétie and also Herman Melville. The object’s vocal variety constitutes an axis which conducts, in an analysis, to the desire gap and to the symptom that relocates jouissance.

Keywords:
Superego; vocal object; discourse of the analyst

Nada força ninguém a gozar, exceto o supereu. O supereu é o imperativo do gozo: Goze! É o mandamento que parte de onde? É bem aí que se encontra o ponto axial que o discurso analítico interroga. (LACAN, 1972-1973/2010LACAN, J. Encore (1972-1973). Edição não comercial. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010., p. 14).

INTRODUÇÃO

O presente trabalho parte de uma interrogação sobre as possibilidades de deslocamento do imperativo superegoico na operação analítica. A problemática instaurada pelo conceito freudiano de supereu implica considerar o risco de um curto-circuito entre ouvir e obedecer: a destruição da fenda de que o sujeito é efeito. Conforme observado por Lacan (1956-1957/1995LACAN, J. As relações de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Zahar , 1995. (O seminário, 4), p. 308), na língua alemã, a audição e o ouvido (Gehör) são homofônicos em relação à obediência e à docilidade (Gehorsam). Nas línguas latinas, “obedecer” encontra sua raiz no verbo “escutar”, tendo significado, originalmente, dar ouvidos, dar crédito, crer (HOLANDA, 2010HOLANDA, R. Palavras, origens e curiosidades. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2010.).

Interrogamos, assim, em que medida a clínica psicanalítica pode operar um corte na coalescência da voz imperativa com a obediência. Se tal operação implica uma transformação no funcionamento do supereu, sua incidência sobre o imperativo não pode negligenciar os avatares do objeto na voz do supereu.

Embora as questões aqui levantadas tenham como objetivo fundamental produzir um dizer acerca da experiência analítica, para nela avançar, aposta-se também na relevância de tal debate no âmbito da pólis, quando discursos autoritários (“Eu sou, realmente, a Constituição”, enuncia o ocupante da presidência do Brasil a sua massa de seguidores) demonstram a violência de sua força de captura e convocam à obediência cega a um poder que não apenas se encarna, mas se reduz a alguém.

Assiste-se hoje a um duplo movimento de deploração nostálgica da falência da autoridade e de fascínio por derivas autoritárias oferecidas como saídas para as crises atravessadas pela civilização no século XXI. A experiência do inconsciente desvela na palavra um princípio de comando próprio ao significante. Se, por um lado, esse princípio está na base dos ditames mais insensatos, por outro, essa mesma palavra sustentada na fala em ato é a própria fonte da autoridade que se exerce tanto sobre aquele que a enuncia quanto sobre os que estão sob seu alcance: “Qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão sua própria enunciação” (LACAN, 1960/1998LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 1998. (O seminário, 7), p. 827).

O Outro é o lugar do significante - o que não implica entendê-lo como um sítio prévio. Isso significa que tal garantia de autoridade não se encontra em ninguém e, sobretudo, em nenhum outro significante localizado em outro lugar, o qual, aliás, não existe. Em termos equivalentes, não há metalinguagem, o que equivale ao aforisma “não há Outro do Outro”. Contar com um significante que não dispõe de nenhuma garantia além de sua própria enunciação é requerido daqueles que se comprometem com o discurso analítico, para, nessa via e com os recursos que lhe são próprios, tratar a voz superegoica de modo a liberar o objeto das fixações de gozo em que a repetição se exerce.

Com o vigor que guardam os textos capazes de suscitar efeitos de verdade em um momento do discurso muito posterior àquele em que emergiram, O discurso da servidão voluntária (LABOÉTIE, 1549/2017) dá voz a uma constatação mais lamentável que surpreendente: que homens, cidades e nações se disponham a suportar tudo e qualquer coisa de um tirano, cujo poder lhe é conferido por ninguém menos que esses mesmos homens. Essa obediência servil, que leva à mais miserável subserviência e submete a um jugo atroz, não depende de uma força maior, de um poder excepcional, mas de preferir submeter-se, ao invés de fazer face à dominação. Todo o mal e prejuízo suscetíveis de atingir o súdito só podem ser sofridos porque este não lhes impõe resistência, consentindo em experimentá-los com resignação. Recusando-se a atribuir essa inclinação à covardia, o autor a aproxima de um vício que constrange à obediência, quando bastaria nada dar ao tirano, nenhuma prerrogativa conceder-lhe, para que ele nada pudesse contra o servo.

Na servidão voluntária, trata-se, portanto, da natureza e do móbil da obediência, que compele à subordinação desmedida aquele que a ela se rende. Ela figura o caráter extrínseco do poder e da vontade que submetem aquele que obedece, assim como o sujeito se dobra aos imperativos do supereu como a uma vontade estranha. No caso subjetivo, no entanto, a obediência comporta uma exterioridade íntima, conforme desdobraremos a seguir. Na perspectiva da psicanálise, a submissão ao imperativo superegoico envolve os paradoxos da satisfação pulsional, além do princípio do prazer, nem sempre bem sucedido em opor uma barreira ao gozo. De acordo com o dever ético enunciado por Freud, lá onde o isso estava, devo advir como sujeito (Wo es war, sollIchwerden). Como romper o circuito do imperativo, que faz obstáculo a que o sujeito venha responder como tal, é a questão que se delineia para o discurso do analista enquanto este resulta da prática da análise.

1 Supereu e objeto voz

Situemos, então, a problemática concernente ao supereu. Sem eludir os paradoxos que permeiam o conceito freudiano, mas, ao contrário, buscando explorá-los, discerniremos alguns balizamentos fundamentais. Afinal, de que se trata quando se fala do supereu?

O fenômeno da alucinação, retorno no real daquilo que foi forcluído do simbólico, propicia a colocação de algumas interrogações a respeito da dimensão de imperativo que a voz pode comportar. Endereçando-se ao sujeito, com insultos e comentários desdenhosos, a voz alucinada exige obediência aos insensatos mandatos que expressa. Em que medida é possível equivocar a exigência veiculada pela tirania da voz? Cedo em sua obra, Freud dá notícias da atuação de uma voz que comenta, ameaça e censura os movimentos e atos dos pacientes por ele atendidos. Ao trabalhar o caso da Sra. P., nas Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa (1896a), conclui que as vozes, pelas quais sua paciente se sentia atormentada, originavam-se de autoacusações. Uma vez ocorrido o golpe da Verwerfung, o qual desaloja tanto o afeto quanto a representação mnêmica da esfera psíquica (FREUD, 1894/1996FREUD, S. As neuropsicoses de defesa (1894). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 3)), o afeto autoacusador retorna desde fora, como uma recriminação vinda do Outro. Circunscrever o que retorna como uma recriminação do Outro já constitui um tratamento do real, uma vez que localiza no Outro - e não no corpo ou no eu - o retorno de gozo que se impõe.

O relato da voz alucinada se destaca como ponto privilegiado para a introdução, por Freud, do supereu, instância que marca “a grande inovação da segunda tópica” (LACAN, 1971/2009, p. 166). Ao se queixarem de um estranho que observa, comenta e critica todos os seus pensamentos e as suas intenções, sujeitos psicóticos revelam uma verdade que de outro modo seria inacessível (FREUD, 1933/1996FREUD, S. As neuropsicoses de defesa (1894). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 3)): a presença de um poder onisciente que, cravado no psiquismo de todos os seres falantes, vigia as nossas ações e se satisfaz ao insultar e punir o próprio sujeito. Enquanto a descrição do supereu como instância observadora e crítica dificulta sua distinção em relação à ideia de uma consciência moral, o vínculo estreito estabelecido por Freud entre supereu e pulsão de morte promove uma ruptura onde se poderia supor uma equivalência. Esse vínculo, que deve ser destacado - Freud afirma que o supereu atinge o estatuto de “cultura pura” dessa pulsão (FREUD, 1923/1996FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)) -, fundamenta a formulação lacaniana segundo a qual o imperativo categórico veiculado pela instância crítica consiste em um imperativo de gozo (LACAN, 1972-1973/2010LACAN, J. Encore (1972-1973). Edição não comercial. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010.).

Trata-se, assim, de uma instância que surge associada às exigências de renúncia pulsional, mas que consagra a força constante e irrenunciável da pulsão, ao ordenar uma satisfação desmedida e precipitar o sujeito no campo do além do princípio de prazer, no campo impossível de das Ding. Há um impossível em jogo no imperativo de gozo do supereu. Lacan o explicita ao marcar a homofonia, na língua francesa, entre jouis (goze) e j’ouïs (eu ouço). “Viesse a Lei a ordenar ‘Goza’, o sujeito só poderia responder a isso com um ‘Ouço’, onde o gozo não seria mais do que subentendido” (LACAN, 1960/1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 807-842., p. 836).

Elemento isolado no Complexo do Próximo, na experiência do Nebenmensch, das Ding corresponde a algo excluído no interior do sujeito, constituindo uma exterioridade íntima, de modo que o mais próximo é ao mesmo tempo o mais estranho. Daí o termo êxtimo, extimidade, cunhado por Lacan para designar esse centro excluído e em torno do qual gravitam as Vorstellungen, vale dizer, tudo aquilo que se flocula em significante. O mais próximo é a iminência intolerável do gozo. Por isso, não se sustenta a equivalência entre próximo e Outro, o qual corresponde a um terreno limpo de gozo, terreno da articulação significante que define o inconsciente (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. de um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 16)).

De acordo com Lacan, numa retomada do “bê-á-bá da verdade analítica”, ainda que o supereu possa servir de apoio à consciência moral, “ele nada tem a ver com ela no que se refere às suas exigências mais obrigatórias”, pois aquilo que exige de modo algum constitui “regra universal de nossa ação” (LACAN, 1959-1960/1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 807-842., p. 363). Explicita-se assim que o supereu, conceito psicanalítico, não pode ser reduzido à ideia de uma consciência moral - impossibilidade que, vale ressaltar, encontra-se já em Freud, evidenciada, sobretudo, na afirmação de que o supereu representa o isso e de que desempenha uma tríplice função. Enquanto representante do isso, ele se distingue por sua dimensão pulsional e pela exigência incondicional de um gozo impossível que o imperativo renova sempre com mais veemência. Já na atribuição de uma tripla função a essa instância - auto-observação, consciência moral e manutenção do ideal [Idealfunktion] (FREUD, 1933/1996FREUD, S. Novas Conferências Introdutórias: Conferência XXXI (1933). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22)) - prefigura-se a variedade de suas manifestações clínicas, suscetíveis de enfatizar o olhar que vigia, a voz que comenta, o ideal que oprime, sem abertura de um intervalo para a emergência do sujeito.

Espécie de ser superior que distribui castigos inexoravelmente, o supereu, conforme a observação freudiana, se opõe aos propósitos da análise, ao erguer “o mais poderoso de todos os obstáculos à cura” (FREUD, 1923/1996FREUD, S. Novas Conferências Introdutórias: Conferência XXXI (1933). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22), p. 62): um sentimento de culpa, que, fatidicamente inevitável (FREUD, 1930/1996), encontra satisfação na doença e no sofrimento. De acordo com Freud (1923/1996FREUD, S. Novas Conferências Introdutórias: Conferência XXXI (1933). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22)), a atuação da instância superegoica é responsável por determinar a gravidade de uma enfermidade e deve ser levada em conta em todas as formas de adoecimento psíquico (FREUD, 1924/1996FREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)). A experiência freudiana verificou que o analisante não se sentia culpado, mas doente, enquanto hoje a culpa inconsciente prolifera ali onde se escuta que ele se sente deprimido, extenuado, jamais à altura etc.Embora nem sempre tão evidentes e ruidosas, as formas de apresentação do supereu na neurose nem por isso são menos atrozes. Nesse sentido, a intervenção superegoica vai de encontro à dialética do desejo na qual se apoia a aposta de uma análise. O imperativo superegoico introduz um fator de inércia, em detrimento da dimensão do objeto perdido que incita o desejo e seus circuitos.

Desde o início de seu ensino, Lacan aborda o supereu, marcando sua especificidade em relação a outros conceitos freudianos. Mas é a partir do Seminário 10: a angústia que encontramos a formulação que nos interessa explorar. Lacan (1962/1963LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Zahar , 2005. (O seminário, 10)) situa a dimensão objetal da instância psíquica discernida por Freud, demonstrando como, de fato, o objeto a assume uma diversidade de funções - mas jamais se encontra em posição de visado pelo desejo (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1979). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 11)/1979, p. 175). É a experiência clínica, sobretudo aquela com a psicose, que leva ao prolongamento da lista freudiana de objetos, com a introdução do olhar e da voz. Do delírio de observação, Lacan extrai o objeto escópico; dos fenômenos do automatismo mental, discernidos por Clérambault, extrai o objeto vocal. Conquanto imateriais, as vozes são perfeitamente reais para o sujeito que as experiencia, constituem justamente aquilo de que ele não pode duvidar e, como tal, não admitem interpretação, exigindo daquele que as ouve um tratamento laborioso de distanciamento e especialmente de abstenção de obediência.

A voz do Outro deve ser considerada um objeto essencial. Todo analista será solicitado a lhe dar seu lugar e a seguir suas encarnações diversas, tanto no campo da psicose como, no mais extremo do normal, na formação do supereu. Ao situar a fonte a do supereu, talvez muitas coisas fiquem mais claras. (LACAN, 1963/2005LACAN, J. Introdução aos Nomes-do-Pai (1963). Rio de Janeiro: Zahar , 2005., p. 71).

Designando o objeto voz como o mais original, Lacan (1962-1963/2005LACAN, J. Introdução aos Nomes-do-Pai (1963). Rio de Janeiro: Zahar , 2005.) compara a constituição do supereu com a introdução de partículas externas no interior do aparelho vestibular dos crustáceos, numa menção a um experimento relatado por Isakower. O experimento em questão realiza-se com crustáceos, animais marinhos que introduzem em seu próprio corpo, pelo orifício auricular, grãos de areia que garantem seu equilíbrio. O experimentador substitui os grãos de areia por partículas de limalha, demonstrando que, através dessa introdução e mediante a utilização de um eletroímã, passa a ter o comando da movimentação destes animais. Em diferentes momentos de seu ensino, Lacan refere-se a Isakower para comentar esse experimento. Inicialmente destaca a ação, a partir do interior, de elementos incorporados (LACAN, 1955-1956/1985LACAN, J. As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 3)); posteriormente, explicita a centralidade de uma zona que não admite aproximação excessiva. Essa zona dita proibida constitui o campo do gozo. À ideia do vacúolo estabelecida a propósito de das Ding, acrescenta-se a proposta de uma anatomia para o vacúolo de gozo. No equivalente de órgão auditivo da dáfnia, que possui também função vestibular ou equilibratória, o recurso experimental à limalha de ferro e ao imã mostra que estes a fazem gozar, o que é comparado ao homem em sua vida moral: “O objeto a desempenha esse papel em relação ao vacúolo. Em outras palavras, é o que faz cócegas por dentro em das Ding” (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. de um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 16), p. 227).

É preciso lembrar que a citação acima fornece o contexto para a afirmação segundo a qual o mérito de uma obra de arte reside na possibilidade de agitar o vacúolo, de mexer com o campo do gozo, tal como se verifica no avatar da pulsão conhecido como sublimação. Esta é apenas uma vicissitude ou aventura da pulsão, pois a função fundamental desse objeto em relação ao vacúolo é funcionar como um lugar de captura do gozo. O objeto se conecta à função de mais-gozar em sua tentativa de recuperação de gozo. Na perspectiva do sujeito, essa captura se faz às custas da função de causa de desejo a ser cumprida pelo objeto em sua dimensão de objeto perdido.

Com a letra a, Lacan retoma o real de das Ding. Há, nessa operação, um deslocamento do campo da epistemologia para o campo da ética, por meio do qual o objeto se torna um operador fundamental da análise (VIDAL, 1984VIDAL, E. A questão do objeto no campo freudiano. In: BIRMAN, J. et al. O objeto na teoria e na prática psicanalítica. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1984.). Lacan (1962-1963/2005) esclarece que designa esse objeto por uma letra, uma vez que tal notação permite reconhecer a identidade do objeto em suas diversas formas. Entrega-o aos analistas como uma hóstia e indica que, em seguida, nós nos serviremos desse pequeno a. “É nesse termo novo que vige o ponto que introduz a dialética do sujeito enquanto sujeito do inconsciente” (LACAN, 1964/1979LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1979). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 11), p. 229).

Vamos então explorar a seguinte articulação: segundo Lacan, algo se esclarece a partir do momento em que se situa a fonte a do supereu; o objeto a é uma hóstia, da qual o analista deve se servir, encarnar. Como situar a incidência do objeto no movimento da transferência? Se a posição do analista é feita substancialmente do objeto (LACAN, 1969-1970/2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 2007. (O seminário, 17)), é necessário interrogar como ela pode se destacar da intervenção superegoica. Pode-se antecipar que o lugar do semblante no discurso do analista, ocupado pelo objeto em posição de agente, é decisivo na consideração dessa operação.

2 Da obediência à hiância

No ensaio La haine de la musique (1996QUIGNARD, P. La haine de la musique. Paris, Calmann-Lévy, 1996.), Pascal Quignard explora a possibilidade de uma indistinção entre ouvir e obedecer, chegando a afirmar que “ouvir é obedecer”. Evidencia a violência decorrente do fato de os ouvidos - diferentemente de outros orifícios do corpo - não se fecharem. Referindo-se aos testemunhos de Primo Levi e de Simon Laks sobre Auschwitz, e mais especificamente sobre a presença da música no campo de extermínio, Quignard sustenta que a audição comporta algo de terrível: o poder de aniquilar, na medida em que aquilo que se ouve não se diferencia de uma pura ordem a ser cumprida. Promovendo uma abertura, o ensaio de Quignard convoca à leitura da obra de Levi.

Em É isto um homem?, livro que nasceu da urgência de contar aos outros o horror da lógica rigorosa colocada em ação no campo de extermínio, Primo Levi afirma que, ao escrever sobre a presença da música em Auschwitz, pode recriá-la em sua lembrança “já sem lhe obedecer, sem lhe ceder” (LEVI, 1947/1988LEVI, P. É isto um homem? (1988). Rio de Janeiro: Rocco, 2014., p. 71). Ele explicita o caráter antes imperativo daquilo que entrava pelos seus ouvidos. Conforme articula Levi, a música é a voz do campo e expressa a determinação em aniquilar. Infernal, a música possui um efeito hipnótico, possibilita um apagamento que antecede à morte, pois, por sua capacidade de fascinar e encantar, extingue o pensamento, o desejo e a dor; no campo, a música faz de cada pulsação uma “contração reflexa dos músculos destruídos” (LEVI, 1947/1988LEVI, P. É isto um homem? (1988). Rio de Janeiro: Rocco, 2014., p. 70). Segundo seu testemunho em Os afogados e os sobreviventes, a possibilidade de continuar pensando era a chance de “um descanso efêmero mas não embotado; ao contrário, libertador e diferencial: um modo, em suma, de reencontrar a mim mesmo” (LEVI, 2004LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 119). Cabe ressaltar a aproximação empreendida por Levi entre o efeito da música e o mecanismo que estaria em jogo no procedimento hipnótico. Nessa aproximação, revela-se um ponto comum entre ambos: a coalescência entre ouvir e obedecer, o circuito do imperativo, sustentado pelo encanto da voz.

Tal como as partículas de ferro introduzidas pelo orifício auricular da dáfnia que, no experimento apresentado por Isakower, permitem ao experimentador controlar os deslocamentos desses animais por meio de um eletroímã, a voz do hipnotizador tem o poder de atuar como um corpo estranho que tiranicamente comanda os pensamentos e movimentos do hipnotizado. Há, nesse procedimento, algo de terrível: entre o pronunciamento da ordem e o cumprimento da ação, a hipnose elide a possibilidade de dialetização; ante o dito do hipnotizador, ouvir é obedecer. Vale retomar a descrição precisa que Freud fornece acerca desse procedimento:

[...] uma pessoa é colocada em estado hipnótico e subsequentemente despertada. Enquanto se encontrava no estado hipnótico, sob a influência do médico, foi-lhe ordenado executar determinada ação num certo momento fixado após seu despertar, digamos meia hora mais tarde. Ela desperta e parece plenamente consciente e em seu estado normal; não tem lembrança do estado hipnótico e, contudo, no momento predeterminado, aparece-lhe na mente o impulso a fazer tal tipo de coisa, e ela o faz conscientemente, embora sem saber por quê. (FREUD, 1912/1996FREUD, S. Uma nota sobre o inconsciente em psicanálise (1912). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12), p. 147).

Em 1921, Freud retoma a discussão sobre a hipnose ao explorar o fenômeno das massas. Embora anterior à emergência do fascismo como um perigo maior, Psicologia das massas e análise do eu fornece a estrutura básica de tal demagogia, conforme salienta Adorno (1951/2007ADORNO, T. Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista (1951). In: ADORNO, T. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2007.) e o próprio Lacan (1956/1998LACAN, J. Situação da psicanálise em 1956 (1956). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 461-490.). Nesse contexto, o destaque conferido por Freud à hipnose, qualificada como uma formação de massa a dois, expõe como a técnica do hipnotizador e a técnica do demagogo coincidem: em ambas, fascínio e servidão se fusionam, num mecanismo em que ideal do eu e objeto constituem um nó. Instala-se, como resultado dessa aliança, uma espécie de expropriação do inconsciente.

De acordo com a formulação freudiana, no fenômeno das massas, trata-se de uma revivescência da horda primeva, esse estado mítico anterior ao surgimento do laço social. Assim como o hipnotizador, o líder da massa evoca a presença do pai primordial, o qual dominava a horda com força absoluta. “No princípio da história humana ele era o super-homem, que Nietzsche aguardava apenas para o futuro” (FREUD, 1921/1996FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18), p. 119). Salientemos, então, que a proibição do gozo, tiranicamente imposta aos filhos, faz ecoar seu avesso, isto é, a incitação a um gozo irrestrito e, portanto, impossível. Nesse sentido, cabe destacar a indicação de Adorno (1951/2007ADORNO, T. Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista (1951). In: ADORNO, T. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2007.), segundo a qual é apenas aparente a inconsistência entre o líder tipicamente fascista e a teoria freudiana do líder como pai primitivo. Não é difícil perceber que o demagogo, ao se erguer como instrumento da lei e da ordem, materializa o comando do supereu: Goze!.

O ato inaugural de Freud, a própria invenção da psicanálise, promove um deslocamento radical na função da voz. A colocação em ato do inconsciente, que advém com a instalação da transferência, produz efeitos sobre o comando superegoico. Como bem se sabe, coincide com o nascimento da psicanálise o abandono da sedutora sugestão hipnótica por Freud, a respeito da qual ele afirma sentir uma surda hostilidade (FREUD, 1921/1996FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)). Trata-se, nesse momento inaugural da psicanálise, de um passo ético fundamental, que entendemos comportar a decisão de prescindir da tirania, da mestria da voz e da reputação lisonjeira de promover milagres (FREUD, 1925/1996FREUD, S. Um estudo autobiográfico (1925). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 20)) para dar um lugar único à fala, à dor e também à voz. Enquanto a hipnose obtinha seu êxito através da supressão da possibilidade de separação entre ouvir e responder, a psicanálise encontra-se fundada no intervalo cavado entre aquilo que se ouve e aquilo que se faz com isso que entra pelos ouvidos. Como afirma Lacan, a análise tem “estatuto medial, de aventura, na hiância aberta no centro da dialética do sujeito e do Outro” (LACAN, 1964/1979LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1979). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 11), p. 251).

Promovendo um corte naquilo que Lacan qualifica como uma “captura monstruosa” (LACAN, 1964/1979LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1979). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 11), p. 259), Freud escolhe inaugurar os trilhamentos da aventura analítica, quando, podendo lançar mão do circuito fechado da hipnose, prefere o discurso da histeria. E, por reconhecer a incompletude de seu saber, sem nunca se vangloriar da inteireza e do acabamento definitivo de seu conhecimento, segue sustentando essa escolha. Às voltas precisamente com a difícil luta contra o obstáculo da culpa, que, explicitando a onipotência das pulsões, impõe a necessidade do castigo encontrado no padecimento, Freud nota que, frente a essa pedra no meio do caminho do tratamento, o êxito terapêutico poderia advir no caso de o analista se permitir ocupar o lugar de ideal do eu, “e a isto se relaciona a tentação de desempenhar, ante o paciente, o papel de profeta, salvador de almas, redentor” (FREUD, 1923/1996FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19), p. 63). Freud é categórico: “As regras da análise são diametralmente opostas a que o médico faça uso de sua personalidade de tal maneira” (FREUD, 1923/1996FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19), p. 63). Ao ocupar o lugar do ideal, o clínico - para não dizer o analista - mobiliza uma das funções do supereu mencionada anteriormente, aquela da manutenção do ideal, não podendo, por conseguinte, propiciar o tratamento do supereu necessário ao remanejamento do gozo.

A função do objeto a no movimento da análise requer mais uma vez a retomada de Psicologia das massas (FREUD, 1921/1996FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)). Lacan (1964/1979FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)) ressalta que, enquanto a hipnose se define a partir da confusão do ideal (I) com o objeto a - confusão que faz operar a função do hipnotizador -, a operação analítica tem como mola fundamental a manutenção da distância entre esse significante distinto (I), que promove a identificação, e o ponto de falta, no qual o sujeito deve se reconhecer. Chamado para encarnar o ideal e conduzir da demanda à identificação, fazendo-se então cúmplice da face de tapeação que há na transferência, o analista tem, ao contrário, que tombar da idealização “para ser o suporte do a separador” (LACAN, 1964/1979FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19), p. 258). Lacan indica que o desejo do analista deve tender para um sentido contrário à identificação, ou seja, para uma recondução à demanda, plano em que pode se presentificar a pulsão. Uma vez que a idealização promove a identificação do sujeito ao objeto enaltecido (LACAN, 1959-1960/1998, p. 136), ao se ausentar do ideal e fazer-se representante da perda, o analista tem o poder de promover o avesso da massa: a diferença absoluta, “aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele” (LACAN, 1964/1979FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19), p. 260).

Vemos, então, que a operação analítica pode reservar ao supereu o destino de um trânsfuga1 1 Trata-se aqui da retomada de um termo utilizado por Lacan no escrito Kant com Sade: “[...] sabemos agora que o humor é o trânsfuga na comicidade da própria função do ‘Supereu’” (LACAN, 1962/1998, p. 780). : lá de onde o supereu comandava, advém a função que sustenta uma abertura para o desejo e para o remanejamento do gozo. “É lá onde estava o mais-de-gozar, o gozar do Outro, que eu, na medida em que profiro o ato analítico, devo advir”. (LACAN, 1969-1970/2007LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 2007. (O seminário, 17), p. 62).

3 Nem obedecer nem desobedecer

O que se interpõe entre a ordem e a obediência? Em relação ao eventual papel da desobediência, um personagem literário nos guia, o escriturário Bartebly, de Herman Melville. Recém-admitido no emprego, aplica-se a suas tarefas silenciosa e ininterruptamente, com um jeito apagado e mecânico, sem manifestar gosto por elas. Na primeira oportunidade em que é convocado pelo chefe a realizar com ele a conferência de um documento, de maneira moderada, porém firme, o escriturário nega-se a executar a tarefa solicitada - aliás, bastante coerente com suas atribuições -, declarando reiteradamente “Prefiro não fazer”. Sem justificativa alguma, alega apenas sua preferência por não fazer o que lhe é ordenado.

Bartebly é alguém que não cumpre as ordens que lhe são ditadas. Recusa-se a fazer a conferência dos documentos, dizendo “prefiro não”, até levar seu patrão à exasperação. Sua desobediência e descaso para com a autoridade de seu chefe são incompreensíveis, inadmissíveis, por não manifestar raiva, impaciência, insolência ou qualquer sentimento humano. Enquanto o dono do escritório conclui, na ausência de inquietação ou impertinência, por uma resistência passiva e obstinada, o escrevente não cede, mostra-se inflexível, permanecendo no escritório e negando-se a partir, mesmo quando é despedido. Cabe ao patrão abandonar o imóvel que abrigava seu escritório para ver-se livre do funcionário que não obedece e tampouco concorda em partir. Resta ao ex-empregado a segregação na prisão municipal como vadio ou o asilo dos pobres, à espera da morte para a qual se deixa arrastar.

Ao final da novela, um relato trazido a título de vaga informação pelo narrador, que é seu ex-chefe, leva o leitor a reencontrá-lo em um tempo anterior de sua vida, no exercício de uma função subalterna na Seção de Correspondência Extraviada. O extravio das cartas perdidas, destinadas à destruição pelo fogo, ressoa, na pena do autor, o das vidas sem esperança. O desencontro entre, de um lado, as notícias de vida trazidas pelas cartas, suas promessas de encontro e felicidade, e, de outro, a sorte dos que morreram desassistidos, sem as receber, são o signo da desesperança, da vida extraviada.

As clássicas questões kantianas são consideradas por Lacan um esforço de tudo racionalizar. Não se furta a elas, não obstante, talvez por constituírem ocasião para cernir aquilo a que nos introduz o discurso do analista. Os avatares do objeto recolocam questões: o que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar?

Sendo o saber inconsciente aquele que concerne à psicanálise, o saber que se elabora na experiência analítica não comporta conhecimento. Não pode ser objeto de apropriação, não vem a ser possuído. Conforme a descoberta do inconsciente, só pode ser sabido aquilo que possui estrutura de linguagem. Quanto ao que fazer, Lacan (1973/2003LACAN, J. Televisão (1973). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 2003, p. 508-543.) ressalta que a ética é relativa ao discurso e que a ética do bem-dizer foi extraída de sua prática. Por isso, não parecia acreditar que tal ética pudesse prosperar em outros laços discursivos. No que concerne ao que é permitido esperar, a resposta preliminar é que assistiu à esperança em um futuro radiante levar pessoas ao suicídio. Essa articulação entre esperança e ato suicida insinua para o segundo uma patologia da primeira, sempre dependente da casuística, conforme é exigido da análise de toda passagem ao ato suicida. Sendo o único ato passível de êxito sem falhas, ele remete à primeira pergunta, pois este ato toma o partido de nada saber. Daí a necessidade de infletir a questão: de onde esperar? Que cada um espere aquilo que lhe agradar ou aprouver, disse Lacan (1973/2003LACAN, J. Televisão (1973). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 2003, p. 508-543.). Diríamos nós: esperar sim, mas de modo ativo, esperar não do Outro, mas do desejo engajado.

Ao lado da fé e da caridade (ou amor), a esperança constitui uma das três virtudes teologais. Enquanto virtudes, consistem em qualidades morais, exclusivamente humanas, que dotam o homem de disposições para fazer o bem, à proporção que fundamentam a ação moral. Podem ser consideradas sintomas, cujo aspecto positivo - “isso permite que as coisas não caminhem tão mal” (LACAN, 1974LACAN, J. A terceira (1974). Opção lacaniana, n. 62, p. 11-36, 2011., p. 30) - reside em promover a submissão ao princípio de realidade, vale dizer, à fantasia. A análise exige vários passos além desse estado do sintoma, estado aquém da interpretação.

A esperança não é eficaz, pode ser fútil e não é o caso de consentir nela, pois é capaz de adiar ou eludir o desejo ao qual se acede não sem custo. Nessa direção, Paulo Freire forja o “esperançar”. Ao invés da esperança da espera, a esperança do esperançar é exercício do desejo. Uma vez que se trata do laço do discurso, não se acede a ele por conta própria, sem Outro, embora cada passo seja dado às próprias custas. A chance depende da boa hora (LACAN, 1973/2003LACAN, J. Televisão (1973). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 2003, p. 508-543., p. 541), jogo de palavras com o termo felicidade (bonheur) que remete à contingência e ao encontro.

A título de conclusão

A esperança depende da confiança, da aposta. Por conseguinte, trata-se de saber o que o discurso analítico pode prometer a cada um, vale dizer, passar a limpo o inconsciente do qual se é sujeito, o que implica considerar uma dupla submissão: aos significantes e ao objeto que lhes escapa e no qual o gozo se aglutina.

Como o trânsfuga, que significa desertor em plena guerra ou político que deixa um partido em prol de outro, ou mesmo alguém que abandona sua religião ou seus princípios, os avatares do objeto na experiência psicanalítica exigem em relação ao supereu algo da ordem da deserção. Esta propicia a hiância entre ouvir e obedecer, que, por sua vez, não se traduz em mera desobediência, mas na revisão daquilo que é suscetível de fazer autoridade para o sujeito.

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  • 1
    Trata-se aqui da retomada de um termo utilizado por Lacan no escrito Kant com Sade: “[...] sabemos agora que o humor é o trânsfuga na comicidade da própria função do ‘Supereu’” (LACAN, 1962/1998LACAN, J. Kant com Sade (1962). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 776-803., p. 780).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2020
  • Aceito
    20 Jan 2021
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