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O CORPO EM LACAN E EM DELEUZE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL?

The body in Lacan and Deleuze: a possible dialogue?

RESUMO:

Este texto surge de um estudo do corpo por meio da interlocução entre Gilles Deleuze e Jacques-Lacan acerca do conceito de évènement. O intuito primordial é efetuar aproximações e distanciamentos entre o pensamento filosófico, no que se refere ao conceito de évènement e a clínica de Lacan, a partir de sua proposta do sintoma como um acontecimento de corpo. Essa conversação avançará através de uma revisão bibliográfica da noção deleuziana de corpo sem órgãos e da noção lacaniana de corpo-saco, com vistas a uma apreensão das principais acepções, a fim de cingir o que vem a ser um évènement.

Palavras-chave:
évènement; acontecimento de corpo; corpo sem órgãos; corpo-saco

Abstract:

This text starts from a study of the body through the dialogue between Gilles Deleuze and Jacques-Lacan about the concept of évènement. The primary purpose is to make approximations and distances between philosophical thought, with regard to the concept of évènement and Lacan’s clinic, based on his proposal of the symptom as a body event. This conversation will advance through a bibliographic review of the Deleuzian notion of body without organs and the Lacanian notion of body-sac, with a view to apprehending the main meanings, in order to limit what comes to be an évènement.

Keywords:
Évènement; body event; body

[...] a psicanálise não encontrou exatamente seus próprios limites, ainda não. Ainda há tanto a descobrir na prática e no conhecimento. (LACAN, 1974LACAN, J. Entrevista inédita concedida a Emílio Granzotto. Panorama, 1974. Disponível em: Disponível em: https://pontolacaniano.wordpress.com/2008/03/31/entrevista-inedita-de-jacques-lacan-a-revista-italiana-panorama-1974/ . Acesso em:02 jul. 2017.
https://pontolacaniano.wordpress.com/200...
).

Este texto nasce de uma expectativa: ao mesmo tempo que as ideias e conceitos de um filósofo e um psicanalista pareçam, à primeira vista, tão díspares pela diversidade de construtos e distintas vias epistêmicas a serem seguidas, acreditamos haver um liame comum possibilitador de um diálogo entre o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Jacques-Lacan. Este liame reside, exatamente, na noção de corpo, noção esta que Lacan já havia advertido aos psicanalistas quanto a uma atenção especial a ser recebida: “o corpo, deveria deslumbrá-los mais” (LACAN, 1972-1973/1985LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (O Seminário, 20), p. 149).

Vidal propõe a possibilidade de produção daquilo que ele nomeia de uma heterogênea relação Deleuze-Lacan. Para tanto, ele discorre sobre o pensamento deleuziano salientando a linguagem, o corpo e o acontecimento como questões que se articulam e se atravessam mutuamente. Ao acontecimento, é dado maior destaque ao ser dito que “Com Deleuze, a filosofia é acontecimento” (VIDAL, 2000VIDAL, Eduardo A. Heterogeneidade Deleuze-Lacan. In.: Alliez, Éric(org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 481), cabendo a ressalva de que um acontecimento não é a história; ele é singular, se presentifica e se inscreve para cada ser.

O intuito primordial na abordagem da complexa relação entre as ideias da filosofia de Gilles Deleuze e a psicanálise de Sigmund Freud e Jacques Lacan é efetuar aproximações e distanciamentos entre o pensamento filosófico, no que se refere ao conceito de évènement e a clínica de Lacan, a partir de sua proposta do sintoma como um acontecimento de corpo. Vale sublinhar que a demarcação que Lacan realiza do sintoma, nos anos 1950 e 1960, tende a verificar o estatuto de metáfora e, concomitante a isto, a dimensão de mensagem (LACAN, 1957/1988LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: LACAN J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.); em suma, o sintoma como uma significação dada ao Outro. A partir dos anos 1970 - sem que estas noções sejam excludentes, pois são importantes balizas clínicas a serem mantidas ao longo da condução de cada caso - presenciamos Lacan enfatizando a noção do sintoma como acontecimento de corpo (o que ressalta, como veremos, seu constante enredamento com o gozo). Portanto, o interesse maior nessa interlocução entre Lacan e Deleuze avançará por meio de uma breve revisão dos referidos conceitos, com vistas a uma apreensão dos seus principais aspectos e acepções, a fim de cingir o que vem a ser um acontecimento de corpo na perspectiva de Lacan.

Antes de iniciarmos a abordagem do évènement, faremos uma rápida explanação sobre a noção de Corpo sem Órgãos (CsO) na filosofia deleuziana, com vistas a aproximá-la da noção de corpo-saco desenvolvidada por Lacan. Iremos nos deter na proposta de corpo apresentada por Deleuze nos livros Lógica do sentido (2007aDELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.); Lógica da Sensação (2007bDELEUZE, G. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007b.) e, principalmente, nas elaborações acerca do corpo desenvolvidas por Lacan no Seminário livro 23: O sinthoma (1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23)).

A noção de corpo sem órgãos em Deleuze

No tangente ao corpo, o que parece estar em jogo no pensamento deleuziano são os corpos que escapam à representação da linguagem, gerando a noção de Corpo sem Órgãos (CsO). Essa noção foi criada por Deleuze, com base em fontes diversas, como o conceito de substância em Spinoza, o conceito de corpo tântrico nas religiões hinduístas e, mais claramente no livro Lógica do sentido (2007a), no qual Deleuze deduz a categoria de Corpo sem Órgãos a partir do confronto entre um poema de Antonin Artaud com o estilo de Lewis Carrol. Ouçamos essa elaboração deleuziana:

Ora, as semelhanças grosseiras lançam primeiramente sua armadilha. Ocorre Antonin Artaud confrontar-se com Lewis Carrol. Ao ler a primeira estrofe do Jabberwocky1 1 É considerado um dos maiores poemas sem sentido escrito na língua inglesa e refere-se ao assassinato de uma criatura chamada “Jabberwock”. , tal como é apresentada por Artaud, tem-se a impressão de que os dois primeiros versos correspondem ainda a critérios de Carroll [...] Mas desde a última palavra do segundo verso, um deslizamento se produz e mesmo um desabamento central e criador, que faz com que estejamos em um outro mundo e em uma outra linguagem. Com espanto, reconhecemos sem esforço: é a linguagem da esquizofrenia. (DELEUZE, 2007aDELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 86).

A distinção da escrita destes dois autores e o reconhecimento de uma linguagem da esquizofrenia em Antonin Artaud permitem a Deleuze deduzir a categoria de Corpo sem Órgãos, que surge do despedaçamento do corpo de Artaud e à agressão física que as palavras reduzidas a seus valores fonéticos lhe fazem sofrer. Para o filósofo, o esquizofrênico responde com seus gritos-sopros, fusão das palavras ou das sílabas tornadas indecomponíveis, à qual corresponde o novo vivido de um corpo pleno, sem órgãos distintos. Sobre a ruptura do corpo em Artaud, Deleuze comenta:

Para ele não há, não existe mais superfície. [...] A primeira evidência esquizofrênica é que a superfície se arrebentou. Não há mais fronteira entre as coisas e as proposições, precisamente porque não há mais superfícies dos corpos. A consequência é que o corpo no seu todo não é mais que profundidade e leva, engole todas as coisas nesta profundidade escancarada que representa uma involução fundamental. Tudo é corpo e corporal. Tudo é mistura de corpo e no corpo, encaixe, penetração. (DELEUZE, 2007aDELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 89-90).

O Corpo sem Órgãos surge como uma defesa ativa e uma conquista própria da esquizofrenia, que opera numa zona dita de profundidade, onde a organização da superfície é perdida. É sobre esse ponto de ruptura da superfície que incide a característica maior dessa noção deleuziana: o Corpo sem Órgãos opõe-se menos aos órgãos do que ao organismo. Este, compreendido na acepção deleuziana como o funcionamento organizado dos órgãos em que cada um está em seu lugar, destinado a um papel que o identifica. Sua proposta é desarticular, desfazer, desconstruir o organismo, abrindo o corpo a conexões diversas e heterogêneas. Para Deleuze, “o corpo é inteiramente vivo e, entretanto, não orgânico” (DELEUZE, 2007bDELEUZE, G. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007b., p. 52). Essa disjunção entre o corpo e o organismo não se refere ao resto de uma totalidade perdida, dado que não se trata da projeção de uma imagem do corpo. O corpo sem órgãos “é o corpo sem imagem” (DELEUZE; GUATTARI, 1972DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972). Lisboa: Assírio & Alvim, 2004., p. 14), que serve de superfície para o registro de processos de produção do desejo. Se o Corpo sem Órgãos é uma conquista da esquizofrenia, ao escrever com Guattari O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972), Deleuze o extrai de uma entidade especificamente esquizofrênica, lançando-o à ideia de corpo do desejo do qual o esquizofrênico faz a experiência extrema, sendo o homem do desejo. Parece residir aí a grande crítica do Anti-Édipo lançada à psicanálise: extrair o desejo de uma categoria faltante.

A categoria de Corpo sem Órgãos surge como a expressão de um desejo positivo que possibilitaria uma experiência que excede o exercício regulado e codificado do desejo como negatividade e falta. Nesta perspectiva, o desejo é: “explorador, experimentador, o desejo vai de efeito em efeito ou de afeto em afeto, mobilizando os seres e as coisas não para si mesmos, mas para as singularidades que eles emitem e que ele destaca” (ZOURABICHVILI, 2004ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004., p. 70). Para Deleuze e Guattari, o desejo não é entendido como a representação de um objeto faltante, mas como uma atividade de produção, como um processo, como uma experimentação incessante.

Do corpo sem órgãos de Deleuze ao corpo-saco de Lacan

O corpo não é um conceito exclusivo da psicanálise e nem foi descrito de maneira sistemática por Freud, resultando na inexistência de uma teoria psicanalítica unificada sobre o assunto. Contudo, é possível verificar no conjunto de sua obra a presença constante da temática do corpo. De maneira proeminente, constatamos essa presença ao início de sua carreira quando ainda era um jovem estudante de medicina e elegera, como objeto de estudo, “os problemas anatômicos, tinha escolhido o estudo das atrofias e degenerações secundárias que se seguem às afecções do cérebro nas crianças” (FREUD, 1886/1980FREUD, S. Publicações Pré-psicanalíticas e Esboços Inéditos (1886). Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim, 1), p. 36). Da anatomia do sistema nervoso à neurose histérica, é o tema do corpo que desperta o interesse acadêmico de Freud e marca um momento de decisão em que dera as costas à neurologia e se voltara para a psicopatologia, sinalizando para um outro caminho a ser construído: a psicanálise.

Constatamos na clínica psicanalítica um aumento considerável de demandas de análise que passam por questões corporais. O corpo toma a cena, seja como meio de satisfação pulsional ou como meio de expressão da dor e do sofrimento. Tendo em vista que a noção de corpo não é unívoca, é necessário delimitar os contornos do que estamos considerando como corpo no dispositivo analítico. Certamente não se trata do corpo da anatomofisiologia, mas da passagem do corpo orgânico da biologia para o corpo erógeno da psicanálise, em que o que está em jogo é uma representação psíquica e fantasmática do corpo atravessado pelo significante. Para tanto, consideramos que é o conceito freudiano de pulsão o que melhor articula a relação entre o organismo e a subjetividade, entre o corpo e o aparato psíquico, fornecendo, assim, a noção de corpo pulsional.

Embora o corpo investigado no modelo freudiano como erógeno ou mesmo orgânico não seja desconsiderado por Lacan, este buscou uma equivalência do corpo vinculado ao gozo. Chegando a afirmar que é no gozo que se supõe propriamente a experiência psicanalítica, o autor observa que a substância do corpo só se dá com a “condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza” (LACAN, 1972-1973/1985LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (O Seminário, 20), p. 35). Nessa estreita correlação entre corpo e gozo, o analista entrelaça a função do significante dizendo que o significante se situa na substância gozante. Ele vai além, afirmando que: “o significante é a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo?” (LACAN, 1972-1973/1985LACAN, J. O aturdito (1973). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003a., p. 36). Na sequência da articulação entre o corpo, o sintoma e a linguagem, o autor afirma ser esta a estrutura que recorta o corpo e que nada tem a ver com a anatomia, mas que porta a capacidade do sintoma de afetar o corpo, como bem atesta a histérica (LACAN, 1974/2003LACAN, J. Televisão (1974). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 511).

Se os corpos sem órgãos são os corpos que escapam à representação da linguagem, para Lacan é exatamente a linguagem que constitui o corpo, derivado do significante fornecido pelo Outro e incorporado pelo sujeito que o nomeia. Por essa maneira de conceber o corpo não como um dado, mas como uma construção no parlêtre, da qual deriva inclusive sua posição sexuada, assinalando o homem e a mulher por sua modalidade de gozo, compreendemos que a concepção lacaniana de corpo não condiz com uma submissão do sujeito ao organismo, aproximando-se assim à concepção deleuze-guattariana de corpo sem órgãos. Lacan é um crítico da concepção de corpo como organismo demonstrando, ora mais explicitamente, ora de maneira mais sútil, a complexidade das relações mantidas pelo sujeito com o corpo.

Ao criticar a ineficiência de certos órgãos do organismo, o autor afirma que: “o corpo dos falantes está sujeito a ser dividido por seus órgãos, o bastante para ter que encontrar-lhes uma função. Às vezes, é preciso eras inteiras para isso: um prepúcio, que adquire serventia a partir da circuncisão. Vejam o apêndice a esperá-la por séculos da cirurgia” (LACAN, 1973/2003aLACAN, J. O aturdito (1973). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003a., p. 455). No bojo da conexão restrita do corpo como organismo, Lacan desaprova a concepção aristotélica que define o indivíduo como corpo enquanto organismo e novamente se questiona sobre o que é o corpo, trazendo a resposta: “É ou não é o saber do um? O saber do um se revela não vir do corpo. O saber do um [...] vem do significante Um” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 196). O significante-mestre, S1, é o que garante a unidade do corpo e esse significante não é um significante qualquer; é dele que toda cadeia subsiste. Em ambas as falas lacanianas, o que parece estar em questão é o relevo que o autor busca dar à função da linguagem e do significante como propiciadora da constituição do corpo no ser falante.

No desenrolar destas articulações realizadas por Lacan, a crítica ao corpo (somente como organismo) permanece nas considerações apresentadas, por exemplo, em O lugar da Psicanálise na medicina (1966) e Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975). Le Bloc-Notes de la psychanalyse, n. 5, 1985, p. 5-23.), em que o analista atesta a abertura provocada pela psicanálise com o deslocamento de uma causalidade orgânica para uma causalidade psíquica, assegurando o somático recortado pelo significante. Deste modo, afetado pela linguagem, o corpo, subtraído ao organismo, sofre uma perda por se verificar sexuado e mortal. O órgão do corpo assim clivado do organismo pela atividade pulsional fica subvertido pelo enxerto de um outro órgão incorpóreo, a libido, cujos representantes não são outros senão os objetos em torno dos quais a pulsão circula. Desta feita, destacamos a distinção entre o orgânico e o somático. Esse último recobre um corpo afetado pelo desejo, não se vinculando unicamente à necessidade. Lacan salienta esta distinção ao mencionar que “o fato de existir um corpo já encobre suficientes mistérios e Freud, facilitado pela biologia, marcou bastante bem a diferenciação do soma e do gérmen” (LACAN, 1975LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23)). Compreendemos o soma como sendo o corpo recortado pela pulsão e o gérmen, um modo de Lacan se referir às funções orgânicas, fisiológicas, relacionadas à necessidade, como, por exemplo, da reprodução, que se distingue, sobremaneira, do campo pulsional que marca o desejo.

Compreender as relações apontadas por Lacan entre o corpo, o gozo e a linguagem implica considerarmos a articulação do corpo com o sintoma. Isto, porque Lacan (1972-1973/1985) provoca uma mudança em sua concepção de sintoma e de pulsão, indicando a capacidade do gozo traumatizar o corpo por meio do choque da materialidade do significante sobre este. Havendo, então, o efeito do significante sobre o organismo, quando ele ganha as marcas da pulsão, ocorre a transformação do organismo em corpo e, por conseguinte, a possibilidade de ser afetado pelo gozo. Submetido às leis do significante, o corpo biológico transforma-se no corpo pulsional sinalizando para uma equação entre a linguagem e a pulsão, ou, dito de outro modo, para a materialidade da linguagem, conforme Lacan (1953/1998bLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988b.) já havia indicado na década de 1950.

Em suas notas inseridas ao final do Seminário livro 23, Jacques-Alain Miller aproxima a teoria do Real e sua relação com o corpo, desenvolvida por Lacan no último período de seu ensino, ao conceito de CsO de Deleuze e Guattari. Para Miller:

Trata-se [em Lacan] de dizer, simplesmente, que o corpo existe como saco de pele, vazio, fora e ao lado de seus órgãos. Acabo de dizer a palavra que permite captar do que se trata: fundar o lugar exato onde é conveniente inscrever a elucubração, central em O anti-Édipo, de um “corpo sem órgãos”. O corpo sem órgãos é o corpo-saco. Sua ex-sistência aos elementos que ele contém, sua consistência de continente é a do conjunto vazio. (LACAN, 1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 213-214).

Lacan vai articular o corpo sem órgãos, o corpo conjunto vazio, o corpo-saco e, do outro lado, a consistência das cordas da linguagem que o atravessam em torno de um furo. Para o psicanalista, o corpo não está atrelado a esses órgãos estranhos, modularizados, mas atrelado ao sintoma. Ele diz: “Mesmo o corpo, nós o sentimos como pele, retendo em seu saco um monte de órgãos (LACAN, 1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 63). Ao indagar: “quem sabe o que se passa com o seu corpo?”, Lacan (1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 145) afirma que a relação com o corpo não é uma relação simples em homem nenhum, exatamente porque o corpo tem furos e porque as pulsões provêm da relação com esses furos.

Ao fundar a ideia de corpo saco, o psicanalista cita a teoria dos conjuntos e afirma que o saco é o único suporte adequado ao que encerra o conjunto vazio. No desenvolvimento de suas elaborações, o autor afirma que o S1: “não constitui o um, mas o indica como podendo nada conter, como podendo ser um saco vazio” (LACAN, 1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 19). Compreendemos que essa especificidade de poder nada conter, atribuída por Lacan ao corpo-saco, aponta para reflexões fundantes relativas à teoria e à clínica psicanalítica, tais como: a perda no nível do ser correlata à sexuação e à dissimetria entre os sexos, as relações entre significante e significado e o equívoco como ab-senso2 2 “Não há sentido que não seja equívoco, e isso se chama ‘ab-senso’” (CASSIN, 2013). . Conforme cita o autor: “o significado não quer dizer nada, é apenas o signo de arbitragem entre dois significantes” (LACAN, 1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 20).

O conjunto vazio não é o mesmo que o nada, mas é um conjunto com nada dentro e um conjunto é sempre algo. Esta questão pode ser melhor ilustrada com a analogia: uma sacola vazia, mesmo que vazia, ainda existe; e isto não se discute. Transpondo essa analogia às elaborações lacanianas, e nos servindo das notas inseridas ao final do Seminário livro 23, por Jacques-Alain Miller, podemos supor que o corpo-saco como suporte do conjunto vazio é sempre algo que existe mesmo quando nada contém; ele é o um-a-mais, e é isso que o diferencia do corpo aristotélico.

Um corpo vazio é ainda um corpo, podendo ser inscrito por significantes que o tornariam cheio. Interpretamos que Lacan busca, com a teoria dos conjuntos, servir-se da lógica para se contrapor à noção de corpo de Aristóteles. Se, para este, o corpo é o modelo do Um, que é o indivíduo, ou seja, o um-todo-só, para Lacan, o corpo é conjunto vazio. Conforme lembra Miller nas notas desse seminário, Lacan já havia concluído em Radiofonia (1970/2003b) que o conjunto vazio é o Outro como lugar de toda inscrição significante, sendo sua primeira forma o corpo esvaziado de gozo. Nesse sentido, ter um corpo é fazer a experiência do gozo inscrito em uma superfície sem correlato subjetivo. “O sujeito, assim, é produzido como ausência, como furo. É furotraumatizado [troumatisé]” (LAURENT, 2016LAURENT, Éric. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016., p. 19). Para Laurent (2016LAURENT, Éric. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.), o que Lacan busca com a noção de corpo-saco é inscrever a unidade inencontrável (ideia de si) do corpo como conjunto vazio considerando ser na escrita desse vazio que os significantes se engancham.

O corpo, nesta acepção lacaniana, não parece se distanciar da noção do Corpo sem Órgãos, ambos se opõem menos aos instrumentos do que à instrumentalização sobre o corpo, tal como já havia sinalizado Lacan (1966)LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção lacaniana, n. 32. Disponível em: Disponível em: https://www.ebp.org.br/publicacoes/opc%CC%A7a%CC%83o-lacaniana-32/ . Acesso em:19 jun. 2017.
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a respeito do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo, indicando aquilo que o psicanalista define como falha epistemo-somática, assinalando um corte entre o saber da ciência e o desejo do sujeito. A indelével atualidade do pensamento lacaniano nesse Colóquio, sobre O lugar da psicanálise na medicina (1966), instiga ao questionamento acerca dos efeitos do desenvolvimento técnico-científico, tão presente nos dias que correm, salientando sobre a necessidade de atingir aquilo que nos afeta. São dele as palavras: “Vamos nos perguntar sobretudo em que isto concerne àquilo que existe, ou seja, nossos corpos” (LACAN, 1966LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção lacaniana, n. 32. Disponível em: Disponível em: https://www.ebp.org.br/publicacoes/opc%CC%A7a%CC%83o-lacaniana-32/ . Acesso em:19 jun. 2017.
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, p. 11). É da articulação entre o corpo e o sintoma que surge a definição de Lacan do sintoma como um acontecimento de corpo, referindo-se ao escritor James Joyce (1882-1941), no texto publicado em 1979, Joyce, o sinthoma. Como sugere o autor: “Deixemos o sintoma no que ele é: um acontecimento de corpo, ligado a que: a gente o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do, a gente o tem” (LACAN, 1979/2003cLACAN, J. Joyce, o sinthoma (1979). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003c., p. 565). A definição do sintoma com acontecimento de corpo nos convoca à apreensão de um conceito fundante para compreensão dessa noção lacaniana, o événement.

Entre Deleuze e Lacan, o événement

Buscamos um mergulho nas águas turvas da filosofia deleuziana com o propósito de um delineamento epistemológico do conceito de acontecimento, mesmo sabendo que esse ato se efetua mais na contramão da correnteza, pelo esforço que ele convoca. Contudo, esse movimento é necessário, pois pode colaborar para ampliar a compreensão do évènement como algo que afeta a subjetividade pelo seu caráter linguageiro, inserindo uma diferença no sujeito.

Entrever o acontecimento pela perspectiva de Deleuze não é em vão, nem tão pouco sem consequências pelo fato desse pensador (L’oiseau philosophique) ter alçado um vôo derradeiro, marcando ele próprio um acontecimento que não foi desprovido da fonte de mal-estar que o corpo é capaz de provocar aos sujeitos falantes.

O encargo de analisar a concepção deleuziana de linguagem, presente na obra Lógica do sentido (DELEUZE, 2007a), testemunha de uma época em que o filósofo era tributário de certos aspectos da teoria de Lacan, objetiva circunscrever a noção de événement na filosofia de Deleuze com o uso que Lacan fez desse termo ao definir, no final de seu ensino, o sintoma como acontecimento de corpo.

Lacan cita Deleuze em momentos cruciais de sua obra: Aturdito (1973), Radiofonia (1970), quando anuncia aquilo que ele chamará, em Joyce, o sinthoma (1979), de “acontecimento de corpo” e que, no Seminário, livro 20 (1972-73), chamou de afecção designando o efeito corporal do significante. Em Radiofonia, ao salientar a importância do simbólico, Lacan menciona que este constitui o corpo por se incorporar nele. Nesse momento, o autor rende elogios aos estóicos que, através do termo incorpóreo, assinalam o modo segundo o qual a linguagem é capaz de marcar o corpo.

Tomando o évènement a partir dos paradoxos do sentido, compreendemos com Deleuze que os incorporais: “não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos” (2007a, p. 5). Ele cita o exemplo dado por Emile Bréhier (1928) sobre o escalpelo que, ao cortar a carne, não produz sobre o corpo uma propriedade nova, mas um novo atributo, o de ser cortado. O atributo não designa nenhuma qualidade real. Sendo expresso por um verbo, significa que não é um ser, mas uma maneira de ser, simplesmente um resultado, um efeito não classificável entre os seres. Os estóicos distinguem dois planos de ser: o profundo e a superfície, sendo esse último o plano dos incorporais. O filósofo destaca que o que há de mais essencial ao corpo são os acontecimentos, tais como: crescer, diminuir, ser cortado...

Deleuze questiona: “o que querem dizer os estóicos quando opõem à espessura dos corpos estes acontecimentos incorporais que se dariam somente na superfície, como um vapor nos campos?” (DELEUZE, 2007aDELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 6). Parafraseando o autor, nós questionamos: não seria esse também um problema para Lacan, ao se deter nas elaborações sobre o corpo/corpse? O psicanalista responde: “Não é o que se dá com toda carne. Somente das que são marcadas pelo signo que as negativiza elevam-se, por se separarem do corpo, as nuvens, águas superiores, de seu gozo, carregadas de raios para redistribuir corpo e carne” (LACAN, 2003aLACAN, J. Televisão (1974). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 407). A operação de separação ou negativização entre corpo e carne é dada pelo significante, a operação de saída e reingresso do gozo no organismo é dada pelo trabalho da letra e lalangue, sendo que a operação de contagem ou enumeração do gozo fica a cargo do trabalho do número e da formação de conjuntos (DUNKER, 2011DUNKER, C. I. L. Corporeidade em psicanálise: corpo, carne e organismo (2001). In: RAMIREZ, H. H. A; ASSADI, T. C; DUNKER, C. I. L. (orgs.). A pele como litoral: fenômeno psicossomático e psicanálise. São Paulo: Annablume, 2011.).

Ao situar o simbólico como aquilo que dá existência ao corpo, Lacan se refere aos incorporais afirmando que o simbólico faz o corpo por se incorporar nele. Em suas palavras: “Daí o incorpóreo que fica marcando o primeiro, desde o momento seguinte à sua incorporação. Façamos justiça aos Estóicos, por terem sabido, com esse termo, o incorpóreo, assinalar de que modo o simbólico tem a ver com o corpo” (LACAN, 1970/2003bLACAN, J. Radiofonia (1970). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b., p. 406). Anteriormente, o psicanalista já havia feito menção à capacidade dos incorporais em afetar o corpo do falasser. São dele as palavras:

Guattari é sagaz ao levantar a questão de por onde o efeito da linguagem se impõe ao corpo, pelo que cabe ao ideal, por um lado, e ao objeto a, por outro. É um pathos para o ideal uma corpoisificação [corps(e)ification]. É no objeto a que o gozo retorna, mas em que a ruína da alma só se consuma por um incorpóreo. (LACAN, 1970/2003bLACAN, J. Radiofonia (1970). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003b., p. 310).

Cabe aqui sublinhar que o objeto a é, precisamente, aquilo que surge como um resíduo, um “resto” que se dá pela operação da linguagem sobre o corpo. Assim, Lacan o define: “o objeto a é algo de que o sujeito para se constituir, se separou como órgão [...] É então preciso que isso seja um objeto - primeiramente, separável - e depois, tendo alguma relação com a falta” (LACAN, 1964/1990LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. (O seminário, 11), p. 101). Todo o mérito de Lacan quanto ao chamado objeto a - a seu ver, sua única invenção na psicanálise - reside no fato dele, freudianamente, propor a subjetividade sobre a qual a psicanálise opera como regulada, sempre, por um elemento que lhe é íntimo (interno) e, ao mesmo tempo, estranho, alheio (externo). Daí, a localização paradoxal do sujeito e, por extensão, a problemática do corpo, quanto ao objeto: exclusão interna.

Deleuze (2006DELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.) tece elogios a Lacan ao mencionar que o psicanalista foi exemplar ao assimilar o objeto a (chamado pelo filósofo de objeto virtual) à carta roubada de Edgar Alan Poe, em O seminário sobre A carta roubada (LACAN, 1988LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: LACAN J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.c). Para Deleuze, a perspicácia do psicanalista foi mostrar que os objetos reais (a carta, por exemplo), em virtude do princípio da realidade, estão submetidos à lei de estar ou não estar em algum lugar, enquanto o objeto a, ao contrário, “tem a propriedade de estar e de não estar onde ele está. Aonde ele vai” (DELEUZE, 1968/2006DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007a., p. 152). Para Deleuze, o objeto a de Lacan corresponde ao incorporal, possuindo a capacidade de ser incorporado a objetos reais. O filósofo diz: “Eles podem corresponder a partes do corpo do sujeito ou de uma outra pessoa, ou mesmo a objetos muito especiais do tipo brinquedo, fetiche” (DELEUZE, 1968/2006DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007a., p. 151). Nesta acepção filosófica, o objeto a lacaniano só existe como fragmento de si mesmo e só é encontrado como perdido, sendo que, para Deleuze, esse objeto, tal como na experiência física, corresponde à incorporação do puro fragmento capaz de alterar a qualidade dos outros objetos.

Dito isso, retomemos a resposta ao questionamento de Deleuze acerca dos incorporais como vapor nos campos: os acontecimentos operam uma cisão totalmente nova da relação causal que remete sempre à linguagem. Essa dualidade nova entre os corpos e os acontecimentos incorporais conduz a uma subversão da filosofia: os estóicos produzem a reviravolta radical do platonismo. Há uma destituição da profundidade, salientando os acontecimentos na superfície que são coextensivos à linguagem. O filósofo define o incorpóreo como o sentido que é como “um vapor movendo-se no limite das coisas e das palavras” (DELEUZE, 1968/2006DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007a., p. 225). Uma emanação que sobrepuja a linguagem ao mesmo tempo que a habita, possibilitando ao corpo ser afetado por ela.

Seria essa a lógica do sentido que nomeia a obra do filósofo? Avancemos um pouco mais e ouçamos Deleuze definir o sentido: “é o exprimível e o atributo do estado de coisas” (1969/2007, p. 23). Ora, se o acontecimento é o atributo (o incorporal) e o sentido é o atributo das coisas, podemos supor que uma lógica do sentido diz respeito a uma lógica do acontecimento? Parece que sim, dado que não podemos perguntar qual é o sentido de um acontecimento, pois este é o próprio sentido. A esse respeito, ouçamos o filósofo: “que esta teoria não seja separável de paradoxos explica-se facilmente: o sentido é uma entidade não existente, ele tem mesmo com o não-senso relações muito particulares” (DELEUZE, 2007aDELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., p. 2).

O filósofo afirma que o acontecimento mantém uma relação essencial com a linguagem, não aquela que designa as coisas, mas uma linguagem que está na fronteira entre as proposições e as coisas. Seria essa da ordem de um elemento linguajeiro, fora de sentido, próxima de lalangue? Reservemos mais esta suspeita e continuemos na trilha deleuziana que conduz a esse tênue vapor incorporal que se desprende dos corpos, remete à superfície e, consequentemente, ao acontecimento. Deleuze lembra a expressão marcante de Paul Valéry: “o mais profundo é a pele” para marcar uma significativa passagem: “é seguindo a fronteira, margeando a superfície que passamos dos corpos ao incorporal” (2007a, p. 11). Nesta acepção, os acontecimentos concernem mais aos corpos, cortando-os e mortificando-os ao percorrerem sua extensão sem profundidade. Todavia, não nos enganemos com esse aparente privilégio dado aos efeitos da superfície, pois o que Deleuze busca em sua lógica, nessa época ainda celebrando as núpcias da linguagem com o inconsciente, é apresentar uma série de paradoxos que formam a teoria do sentido.

No desenrolar destes paradoxos, Deleuze distingue o sentido e a significação, mencionando que é mais fácil dizer o que o sentido não é do que precisar o que ele é. Retomando a coextensão entre o acontecimento e a linguagem, um novo paradoxo é desenvolvido e nomeado por Deleuze de “Paradoxo de Lacan” (2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23)a, p. 43), ao citar o comentário que o psicanalista faz no Seminário sobre A carta roubada (LACAN, 1988LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: LACAN J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.c). Ele diz: “Da instância paradoxal é preciso dizer que não está nunca onde a procuramos e, inversamente, que nunca a encontramos onde está. Ela falta em seu lugar” (LACAN, 1988cLACAN, J. O seminário sobre A carta roubada (1956). In: LACAN J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988c., p. 43). Portanto, dos paradoxos do sentido deleuzianos, temos o “Paradoxo de Lacan” que, conforme abordamos anteriormente, refere-se ao objeto a tido, pelo filósofo como incorporal.

Interessa-nos salientar esse paradoxo, tendo em vista que, ao acentuar a dimensão fora de sentido do sintoma, advindo com a surpresa capaz de gerar o acontecimento de corpo, podemos inferir que o que está em jogo é a relação entre letra e significante. Na Conferência de Genebra (1975), Lacan assinala a escrita no corpo, essa que não é da ordem do signo, mas da assinatura, o que remete à dimensão do enigma. A escrita no corpo se distingue da dimensão significante apontando para a escrita do real, assim como consideramos ocorrer em certos sintomas que acontecem no corpo e suscitam a exploração de noções, como escrita, letra, significante e lalangue, abrindo vias de exploração futura. Por enquanto, extraímos da noção lacaniana de corpo-saco a dialética que os pacientes apresentam frequentemente: o corpo marcado ora pelo vazio, ora pelo excesso, significantes que marcam o corpo e aquilo que não se inscreve indicando um furo.

Considerações nada conclusivas

Apesar das aproximações entre o Corpo sem Órgãos de Deleuze/Guattari e o corpo-saco de Lacan, consideramos que há um distanciamento muito grande entre a filosofia de Deleuze e a teoria-prática lacaniana. Tal diferença acarreta posicionamentos clínicos inconciliáveis em muitos aspectos. Embora possuindo a característica comum de uma crítica da representação, trata-se de duas formas distintas de se pensar o inconsciente e o desejo e, portanto, a própria subjetividade. Tal diferença, que se aprofunda a partir de O anti-Édipo, acompanhará o desenvolvimento de toda a filosofia ulterior de Deleuze, trazendo consequências teóricas divergentes daquelas defendidas pela Psicanálise.

A afinidade entre Deleuze e Lacan reside no pensamento crítico de ambos ao paradigma representacional da filosofia clássica. Contudo, o limite dessa aproximação é rompido com a crítica deleuziana à lógica do significante e ao recurso da estrutura simbólica de Lacan. Apesar de pontuais aproximações conceituais entre estes autores, há aí também um distanciamento marcado pela perspectiva clínica com a qual a psicanálise opera. Trata-se de pensamentos díspares que acarretam em pontos de vista divergentes, um centrado na visão edipiana não-imaginarizada a e outro proveniente da crítica a esse modelo.

Essas elaborações, embora permaneçam enigmáticas e campo aberto à pesquisa, têm sido úteis como referencial teórico, abrindo vias de estudo acerca das vicissitudes contemporâneas do sintoma na Psicanálise, além de possibilitar esclarecer a problemática relativa à passagem, no processo analítico, do sintoma ao sinthoma. Tendo em vista que todo psicanalista cedo se depara, em seu fazer cotidiano, com as inúmeras e distintas possibilidades do corpo ser afetado pelo dizer, cabe indagar: se é necessário um corpo para apresentar um sintoma, como distinguir, na clínica contemporânea, entre as diferentes incidências do sintoma no corpo? Como pensar o corpo nas expressões sintomáticas da atualidade e suas convergências ou dissidências quanto ao acontecimento de corpo?

A articulação entre a filosofia deleuziana e a psicanálise lacaniana conduz ao encontro com a ruptura, com a diferença e com aquilo que claudica. Mas, quem disse que a conciliação é necessária, quando é exatamente a separação, o corte e o distanciamento que podem nos alçar à condição de sujeitos? Seria o limite entre o pensamento desses dois autores da ordem de uma fronteira, propícia aos caos e a um território de indefinição, ou aos moldes de um litoral que delineia dois estofos distintos que ora se aproximam, ora se distanciam? O fato é que essa zona de indiscernibilidade nos coloca na posição de entre outros, nos convocando ao devir da escrita e da criação de algo que falta. Que seja este o lugar da hiância onde a questão do desejo se coloca para o sujeito, bem como para o psicanalista.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    É considerado um dos maiores poemas sem sentido escrito na língua inglesa e refere-se ao assassinato de uma criatura chamada “Jabberwock”.
  • 2
    “Não há sentido que não seja equívoco, e isso se chama ‘ab-senso’” (CASSIN, 2013CASSIN, Bárbara. O ab-senso ou Lacan de A a D. In: BADIOU, A.; CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2020
  • Aceito
    31 Ago 2021
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