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Relações precarizadas, mundo traumatizado: uma retomada de Heinz Kohut e sua importância para a atualidade

Precarious relationships, traumatized world: a resumption of Heinz Kohut and its importance for today

RESUMO:

Neste trabalho, alguns elementos centrais da teorização do psicanalista Heinz Kohut serão tomados como norteadores para a circunscrição desse autor dentro de um campo de reflexão de certas questões da atualidade. Para isso, será realizado um mapeamento de algumas coordenadas do ponto de vista sociológico sobre o mundo ocidental desde a década de 1970, em uma aposta de que o autor da psicologia do self pode oferecer ferramentas importantes para uma leitura psicanalítica acerca do cenário atual.

Palavras-chave:
Kohut; narcisismo; contemporaneidade; precarização; self

Abstract:

In this work, some central elements about the psychoanalyst Heinz Kohut theorization will be taken as guiding for the circumscription of this author within a field of reflection of certain nowadays issues. For this, a mapping of some coordinates from the sociological point of view on the Western world will be carried out since the 1970s, in a bet that the author of the psychology of the self can offer important tools for a psychoanalytical reading about the current scenario.

Keywords:
Kohut, narcissism; contemporaneity, precariousness, self

Introdução

Em seu livro As novas doenças da alma, Kristeva (2002KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.) percorre a questão de saber se ainda há alma atualmente, se há uma nova modalidade de paciente, se a psicanálise clássica oferece condições de tratamento em um mundo em que parece haver uma redução da vida interior: “Porquanto uma constatação se impõe: pressionados pelo estresse, impacientes por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, os homens e mulheres de hoje economizam essa representação de sua experiência a que chamamos de vida psíquica” (KRISTEVA, 2002KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002., p. 14).

Identificando uma escassez dos componentes do tempo e do espaço necessários para a constituição do que se chama de alma, Kristeva avalia que, nas formas subjetivas pregnantes atuais, uma vida interna se vê alterada em seu processo de formação em relação a outros tempos. A autora aponta que o sujeito atual é um narcisista que não se queixa e, quando o faz, é para se comprazer na queixa. A configuração de um mundo onde o tempo e o espaço são retalhados e acelerados faz triunfar as doenças psicossomáticas. O corpo que age incessantemente na necessidade da performance midiática e, no entanto, com uma pobreza simbólica interior, é por onde algum indício de sofrimento pode ser atado. Nas palavras de Kristeva, encontramos na atualidade um sujeito narcisista, um ser de fronteira, um anfíbio.

Sublinhando a questão do narcisismo como problemática central, atrela-se a necessidade de recorrer a um exame sobre nuances relevantes no concernente a esse conceito na atualidade. Nesse sentido, uma arqueologia sobre as condições em que a vida social se estrutura é de fundamental importância na verificação de que há atualmente uma perda da eficácia dos mecanismos de proteção simbólica outrora conhecidos. A ideia aqui é menos de romantizar o passado e mais de apontar algumas mudanças estruturais no tempo e verificar alguns dos efeitos nas subjetividades. Esse contexto denota a questão do trauma inscrito no mundo neoliberal, fruto das surpresas a que o mundo atual reserva, no qual a ética do individualismo triunfa e se realça a necessidade dos esforços individuais para fugir da dimensão da precariedade relacional, do trabalho e da família.

Assim, a ideia neste estudo é privilegiar uma leitura psicanalítica das subjetividades a partir de um ponto de vista das condições sociológicas contemporâneas. Analisando o contexto em que o sujeito se situa, a atualidade do psicanalista Heinz Kohut será ilustrada para construir uma reflexão sobre os destinos do sofrimento na atualidade.

As postulações sobre as personalidades narcísicas a partir da década de 70 são um interessante vetor para tratar de uma importante questão acerca do funcionamento do sujeito atual, pois o autor realiza um trabalho metapsicológico que se insere na problemática referida às transformações do mundo ocidental advindas desse período. Identifica-se na atualidade os ecos que fazem brilhar o ethos do individualismo, de um “mundo mutante” que Kohut (1988KOHUT, H. A restauração do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988.) compõe em seus estudos sobre as personalidades narcísicas. As reflexões contidas no pensamento deste autor, cuja obra se revela de extrema atualidade, nos permitem refletir sobre as condições de sobrevivência psicológica do homem ocidental da contemporaneidade.

Trazendo a psicologia do self para perto da psicologia social, Kohut relata que “até recentemente, a ameaça dominante ao indivíduo era um conflito interno insolúvel” (KOHUT, 1988KOHUT, H. A restauração do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988., p. 204). Nesse contexto, diz o psicanalista que as crianças eram expostas a um excesso de intimidade emocional entre pais e filhos, e a dimensão do conflito entre diversas injunções impostas era o efeito. Não foi por outro motivo que a clínica psicanalítica surgiu a partir da clínica da repressão.

O bebê, a sua majestade, que Freud identifica a partir dos cuidados da criança como investimento especial e necessário no seio da constituição da família moderna, sofre uma radicalização nesse projeto; todavia, esta majestade parece ter perdido algo de sua aura. Desta forma, a participação emocional apenas nas atividades de jogos e lazer nas horas que restam, isto para não falar das mudanças mais significativas advindas das exigências de proatividade, estresse e correria atuais, fornece ao self nuclear da criança condições de constituição distintas daquele da era da repressão.

Dito de outra maneira, na constituição da ideia de família moderna, a criança surgiu como alvo privilegiado. Nesse sentido, o meio ambiente que costumava ser considerado ameaçadoramente íntimo é agora cada vez mais distante. Se, por um lado, à criança da atualidade é conferida toda uma gama de intencionalidades, por outro, a concepção desta como um mero projeto de sucesso e empreendedorismo aos moldes de uma empresa de si mesmo, suprime o aspecto emocional como experiência de interioridade e integração. É neste sentido que a perspectiva de Kohut contém um valor inestimável na contribuição a este debate, pois ele se encarrega de enxergar estas tramas do gesto relacional.

Um diálogo atual entre o psíquico e o social

Para compreender um pouco mais as subjetividades contemporâneas, nas quais modelos outros do psiquismo foram desenhados e recolocados à literatura psicanalítica, é importante sublinhar os estudos sobre a organização do conteúdo intrapsíquico na articulação com as exigências e conjunturas sociais atuais. Este ponto é esmiuçado sob a temática desenvolvida por Ehrenberg (2012EHRENBERG, A. La société du malaise. Paris: Odile Jacob , 2012.) a respeito de uma sociedade do mal-estar. O autor disserta sobre o efeito de enfraquecimento que as transformações econômicas após a Segunda Guerra, sobretudo a partir da década de 1970, provocaram no laço social, na constatação de que o sofrimento mental deriva do contexto social. Estas transformações seriam operadas sob a égide dos valores recolhidos pela concepção de autonomia: “À primeira impressão, ela designa atualmente duas coisas: a liberdade de escolha em nome da propriedade de si e a capacidade de agir por si só na maior parte das situações da vida” (EHRENBERG, 2012EHRENBERG, A. La société du malaise. Paris: Odile Jacob , 2012., p. 12, tradução minha).

A autonomia como um valor central na determinação do comportamento é a denotação da afirmação de si na cultura individualista. Neste campo, a afirmação de si vira uma norma a ser seguida, substituindo a disciplina (eixo importante no pensamento foucaultiano na caracterização das sociedades modernas) pela autonomia.

Em um estilo de existência organizado pela disciplina tradicional, a questão que se colocava a alguém era do tipo “neurótico”: o que me é é permitido fazer? Quando a referência domina os espíritos, quando a ideia de que cada um pode se tornar alguém por si mesmo, progredindo dentro de sua própria iniciativa, torna-se um ideal inserido nos nossos hábitos cotidianos, a questão é do tipo “depressiva”: eu sou capaz de fazer? A culpabilidade neurótica evidentemente não desapareceu, mas ela tomou a forma da insuficiência depressiva. No deslocamento do permitido ao possível, a asserção pessoal, a afirmação de si no coração da sociedade democrática. A capacidade de se afirmar de maneira maestral e apropriada se torna um ingrediente essencial de socialização em todos os níveis da hierarquia social. Essa mudança da normalidade coloca o indivíduo em uma linha que vai da capacidade à incapacidade. Quando o cursor se aproxima da incapacidade, a impotência faz aparecer sua culpabilidade de não se estar à altura. É sob o modo de déficit, de insuficiência ou de desvantagem que aparece a culpa. (EHRENBERG, 2012EHRENBERG, A. La société du malaise. Paris: Odile Jacob , 2012., p. 13-14, tradução minha).

Ehrenberg localiza que, na atualidade, a questão do sofrimento psíquico, da saúde mental, das emoções, é instalada na interseção da psicologia, das neurociências e da sociologia, o que revela um campo de batalha que insere a questão do indivíduo muito além das pragmáticas terapêuticas, clínicas ou etiológicas. Essas transformações, operadas sob a égide da autonomia, designam atualmente duas coisas, na perspectiva do sociólogo francês: a liberdade de escolha em nome da propriedade de si e a capacidade de agir por si mesmo na maior parte das situações da vida, de forma que a afirmação de si se torna uma norma, porque ela é impositiva, e um valor, porque passa a ser desejada. Portanto, a ideia de norma, aqui, ganha sentidos e contornos diferenciados em relação às famosas tematizações foucaultianas sobre as sociedades disciplinares (2009). No entanto, apesar das diferenciações, a ideia do poder permanece como elemento central nessa discussão.

Na França, pelo menos, Ehrenberg enxerga na narrativa do sofrimento psíquico o objeto de um discurso do “mal-estar na civilização”, realizando uma reinscrição da temática do mal-estar tal qual desenvolvida por Freud. No entanto, o autor insere a problematização do mal-estar dentro do cenário sócio-político atual. Esta reinscrição enlaça uma relação na qual muitos clínicos e teóricos, dentre os quais podemos inserir a autora utilizada no início deste trabalho para ilustrar a composição de ideias às quais este estudo faz referência, Kristeva (2002KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.), naquilo que Safatle (2018SAFATLE, V. Em direção a um novo modelo de crítica: as possibilidades de recuperação contemporânea do conceito de patologia social. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), em um íntimo diálogo das teorias políticas com a psicanálise, trata de patologias do laço social que se desenvolvem, como as adicções, as compulsões, o stress pós-traumático, dentre outras, diferentemente daquele mal-estar freudiano, no qual a repressão era fruto do caráter irredutível entre as demandas do individual e do social.

Do mesmo modo, para Ehrenberg, no campo organizacional, as organizações patronais, os sindicatos e as direções de recursos humanos são mobilizados pelo padecimento do mundo do trabalho e pelo stress, que seriam a expressão de novas pressões resultando em transformações do modo de gestão. De um modo geral, um sofrimento psíquico sem fim está posto por todo lado. As regras sociais se transformam e, em consequência, o indivíduo deve cada vez mais se apoiar em suas capacidades individuais, o que favorece o esgotamento psicológico.

Disto, resulta este excesso de patologização da vida cotidiana, da qual a biologização da vida social é seu correlato. As depressões, as ansiedades e seus espectros são palavras de ordem do vocabulário psicopatológico que sintetizam o esgotamento de uma vida privada e centralizada em si mesma. E, para cada descrição psicopatológica, um remédio que se insurge como pílula salvadora.

Esta trama se articula à ideia do declínio do homem público em benefício do privado (SENNETT, 1988SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.) e que se revela em uma classe de patologias posta em evidência por psicanalistas desde os anos 1930 e 1940, mas que se adensaram após as transformações do mundo após a Segunda Guerra: as patologias narcísicas. Caracterizadas por uma dinâmica subjetiva diferenciada em relação às neuroses “clássicas”, ditas neuroses de transferência (histeria, neurose obsessiva, fobia), as patologias narcísicas se situam menos no domínio do conflito psíquico.

O pressuposto básico dessa classe de patologias foi se lançando a partir da ideia de que o indivíduo se tornou narcísico (LASCH, 1979LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago Editora , 1979.), na afirmação de que Édipo deixou lugar a Narciso (HERZOG; PACHECO-FERREIRA, 2014HERZOG, R.; PACHECO-FERREIRA, F. (orgs.). De Édipo a Narciso: a clínica e seus dispositivos. Rio de Janeiro: Cia de Freud / UFRJ; Brasília: CAPES PRODOC, 2014.). Ehrenberg (2012EHRENBERG, A. La société du malaise. Paris: Odile Jacob , 2012.) afirma que essas patologias compõem a grande neurose contemporânea, que intercruzam as transformações da clínica e das mudanças sociais. Trata-se, na atualidade, não mais de “liberar o indivíduo dos constrangimentos que o impedem de se tornar ele mesmo, mas de lhe subtrair as seduções mórbidas dos ideais que o constrangem a se tornar ele mesmo” (EHRENBERG, 2012EHRENBERG, A. La société du malaise. Paris: Odile Jacob , 2012., p. 22, tradução nossa). Assim, a síntese que opõe as neuroses de transferência às atuais patologias é colocada por Ehrenberg da seguinte forma:

Do impedimento a se tornar si mesmo à obrigação de sê-lo, este deslocamento engendraria uma nova subjetividade: a subjetividade liberada. De que? Dos interditos e dos conflitos neuróticos que eles engendrariam. A subjetividade reprimida sofria das neuroses de transferência, a subjetividade liberada sofreria das patologias do ideal. A elas se agregam as tensões levantadas pelos valores e normas da autonomia. Aumenta a responsabilidade individual à medida que a sociedade perde, digamos, sua autoridade sobre os indivíduos, relaxando os constrangimentos de enquadramento dos comportamentos que sofriam tradicionalmente. Os sofrimentos do ideal se apresentam, então, como o preço dessa perda de autoridade, desse declínio de obrigação social. Eles seriam, aos valores da autonomia, aquilo que a neurose clássica era àqueles da disciplina. (EHRENBERG, 2012EHRENBERG, A. La société du malaise. Paris: Odile Jacob , 2012., p. 22, tradução minha).

Existem diferenças particulares que o sociólogo identifica entre os contextos francês e americano. Por exemplo, Ehrenberg sustenta que o conceito de autonomia divide os franceses, enquanto une os americanos. Outro aspecto é que a personalidade ou o self ocupa nos EUA o lugar que a instituição ocupa na França. Se, do ponto de vista americano, o conceito de personalidade é uma instituição, na França, o apelo a uma personalidade é uma desinstitucionalização. Entretanto, a despeito das diferenças, existiria uma mudança do espírito das instituições que marca a contemporaneidade, de uma maneira geral.

A configuração individualista americana aparece simbolizada no American Way, que, do ponto de vista da personalidade, é descrita como o self, que Ehrenberg concebe como, antes de ser um conceito psicológico ou filosófico, uma categoria cujas origens são sociais, uma espécie de representação coletiva da sociedade americana, e não apenas uma questão de um estado mental ou de expressão individual.

A capacidade de se autogovernar é o centro da perspectiva da formulação da autonomia do indivíduo. Na perspectiva de Ehrenberg, isso teria a ver com o nascimento da democracia nos EUA, noção que balizaria uma tripla fundação do self americano, a partir do puritanismo, liberalismo e romantismo.

Nessa engrenagem, o marketing se tornou o instrumento de controle social, numa roldana que faz triunfar a venda de serviços, no lugar da produção, que caracterizara o capitalismo do século XIX. Assim, tudo vira um bem a ser consumido atualmente, nas operações internas às sociedades de controle (DELEUZE, 1990DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1990, p. 219-226.), que, poderíamos dizer, caracterizam-se pelo modelo neoliberal de gerenciamento. Nesse chave interpretativa, o neoliberalismo não é apenas abordado enquanto um modelo socioeconômico, mas é também, e sobretudo, entendido como uma engenharia social, gestora do sofrimento psíquico, na qual “categorias morais e psicológicas são constantemente utilizadas como pressuposto silencioso da ação econômica” (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento humano. Belo Horizonte: Autêntica , 2021.). Este é solo social, político e econômico em que se inserem as problemáticas referidas a um mal-estar na atualidade.

O que ocorre na atualidade, na caracterização do que Bauman (1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.) denomina como pós-modernidade, é uma supervalorização da liberdade individual. Ela seria o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados, numa referência pela qual as normas supraindividuais devem ser medidas. Não significa que os ideais modernos de ordem, beleza e pureza da modernidade, elencados por Bauman e que permitem realizar uma alusão à organização das sociedades disciplinares (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2009.), tenham sido abandonados. O que acontece é que esses ideais e praticamente toda a dimensão do vivente passam a ser balizados pela lógica do esforço individual. Nessa referência, o Estado teria que ser mínimo para o indivíduo ser maximizado.

Assim, na atualidade, seguindo a lógica do mal-estar na pós-modernidade, de Bauman, inscreve-se uma configuração reversa da perspectiva do mal-estar enunciado por Freud, pelo qual “os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade” (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 10). Se o ideal de pureza da era moderna era norteado pelo ideal de um Estado robusto, que detinha a possibilidade e capacidade da gerência sobre o indivíduo, moldando-o, norteado pelos valores nacionalistas, e um forte enquadramento institucional, a instituição, na atualidade, não se encontra em declínio, mas é o próprio indivíduo que se assemelha a um funcionamento institucional. Cada indivíduo passa a ser compreendido aos moldes de um funcionamento de uma empresa.

A exorcização de todo o mal

Uma outra faceta da atualidade, que, na descrição de Bauman, é sintetizada em torno da ideia de pós-modernidade, a tendência a coletivizar e centralizar as atividades de “purificação” tende a ser diminuída ou praticamente extinta. Em substituição, a estratégia passa a ser de desregulamentação e privatização. Bauman identifica um declínio da função do Estado em sua antiga tarefa de promover um modelo de ordem. A ordem atual passa a ser configurada pela lógica do mercado, fazendo com que um número sempre crescente de pessoas deixe suas seguranças e necessite buscar seu lugar na lógica da não fixação espacial, seduzidas pelas propostas de aventura e opções abertas.

Nessa mudança de disposição, são ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos, e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e sempre novas experiências. [...] Quadros de competição se sobrepõem ou colidem, excluindo toda oportunidade de um mapa de levantamento topográfico “oficial” e universalmente aglutinante. No entanto, uma vez que cada esquema de pureza gera sua própria sujeira e cada ordem gera seus próprios estranhos, preparando o estranho à sua própria semelhança e medida - o estranho agora, é tão resistente à fixação como seu próprio espaço social. (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 23).

Os estilos e padrões de vida passam a ser livremente concorrentes, impondo às subjetividades uma eterna sedução pelas infinitas possibilidades e constantes renovações promovidas pelo mercado consumidor. E, nessa lógica, aqueles que não se encaixam, são a “sujeira” da pós-modernidade. O critério de pureza passa a ser atualmente não o encaixe na disciplina, que conferia um lugar dentre outros na massa preparada para a produção, mas a aptidão de participar do jogo consumista, no qual os deixados de fora, os consumidores falhos que não têm os recursos requeridos, são os anormais “impuros” ou os marginalizados do sistema e da lógica neoliberal, os refugiados, aqueles que não se encaixam nesse modelo.

No modelo pautado pela desregulamentação e privatização, há um esforço constante pelo despojamento de toda interferência coletiva no destino individual, e a definição de liberdade é contagiada em função do poder de escolha do consumidor. Assim, o indivíduo pós-moderno (nomenclatura de Bauman) tem uma chance de romper com tudo o que, por um lado, traz segurança, mas, por outro, lhe aprisiona nas tramas da repressão. Porém, por um outro viés, ele possui não apenas a liberdade de escolha, mas o imperativo de ser livre, e isso tem relação com sua identidade, praticamente restrita pela lógica do consumismo, deixando de lado a solidez de uma identidade marcada por princípios fortemente consolidados e passando a adotar uma filosofia de flexibilização.

Mais do que a venda mercadológica da proposta de liberdade e felicidade, é a imposição de ser livre e feliz que organiza muitas da coordenadas da atualidade. Com esse constrangimento a uma intensa e imperiosa demanda de ação, tudo passa a ser cortado pelo registro do tempo e, assim, na impossibilidade de viver o sofrimento e de elaborá-lo psiquicamente, o indivíduo pós-moderno acaba por se lançar à busca pelo novo, pelo que é arriscado.

A segurança moderna encontra resistência para sobreviver nos novos tempos. Atualmente, vive-se intensamente o risco em detrimento da rotina, que outrora trazia a estabilidade. Para Bauman, o indivíduo pós-moderno deixa de lado a solidez de uma identidade marcada por princípios modernos fortemente consolidados e passa a adotar um ideal de flexibilização de sua identidade:

Atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso. (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 155).

Apesar das distinções teóricas que marcam os pensamentos, pensadores e contextos, pode-se pensar que a descrição de Bauman pode ser remetida à articulação entre a atual fase do capitalismo e a ordem social que tem como resultado novas formas de subjetivação, algo que Sennet (1999SENNETT, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.) denomina de “corrosão do caráter”. Nessa perspectiva, o próprio senso de caráter pessoal é modificado de acordo com o novo capitalismo, na medida em que novos sentidos e significados são atribuídos ao trabalho. A nível de evolução histórica, Sennet percebe mudanças radicais na organização do trabalho desde o modelo do fordismo até os dias atuais. A bandeira da liberdade é um importante vetor que estaria na base deste deslocamento, uma vez que pela nova ordem do capitalismo, através da flexibilização, seria possível encontrar uma linha de fuga frente ao rígido mecanicismo fordista.

Na contramão da noção de flexibilidade atrelada à ideia de liberdade, Sennet postula que “na verdade, a nova ordem impõe novos controles, em vez de simplesmente abolir as regras do passado - mas também esses novos controles são difíceis de entender. O novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível.” (SENNET, 1999SENNETT, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999., p. 10). No lugar da rotina, a nova retórica da linguagem da flexibilidade promove um maior dinamismo na economia. Na visão do autor, a busca por esta flexibilidade aliada à repulsa com relação à rotina burocrática produziu novas estruturas de poder e controle, que tem sua manifestação na reinvenção descontínua de instituições, na especialização flexível de produção e na concentração de poder sem centralização.

Os desdobramentos destes três elementos sugerem um ritmo econômico que se baseia na concepção de uma constante mobilização, que não permite a fixidez, mas, ao contrário, o eterno risco: “correr riscos pode ser, em muitas circunstâncias diferentes, um teste de alta carga de caráter. [...] O risco vai se tornar uma necessidade diária enfrentada pelas massas” (SENNET, 1999SENNETT, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999., p. 94). Arriscar-se significa neste contexto mais do que uma aventura em busca de novas possibilidades, mas é uma exigência necessária para a sobrevivência no mercado. Assim, há uma modificação na relação espaço-temporal, pois há uma imposição pela busca dos lugares que oferecem as melhores condições de trabalho. É a perda mesma do referencial de continuidade que se revela esfacelada, cuja instabilidade desorienta a ação em longo prazo, impossibilitando a projeção num futuro distante. É esta ideia que autoriza Sennet a argumentar sobre a corrosão do caráter e, apesar das descontinuidades inerentes, mas trazendo as perspectivas de Ehrenberg e Bauman, nos conduz a uma aproximação das configurações narcísicas da personalidade.

Kohut e as personalidades narcísicas

A dimensão de uma composição psíquica robusta, a nível de um eu inflado, porém frágil por outro lado, encontra na leitura das personalidades narcísicas um respaldo que define boa parte dos funcionamentos subjetivos atuais. Kohut (1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971.) lança a ideia de um self grandioso. A pertinência desta ideia recai na formulação da equação entre um processo de compensação narcísica dos sujeitos nas formas de fixação em fases anteriores da organização da vida psíquica, em uma tentativa de lidar com a ausência de um olhar cuidadoso do outro, nuançando, portanto, um aspecto da dimensão do trauma relacional na atualidade.

Kohut (1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971.) sistematiza um estudo amplo e complexo acerca dos fenômenos de transferência nos quadros que denomina de personalidades narcísicas. A questão da transferência será importante na medida em que uma reversão em relação aos investimentos libidinais é um ponto crucial na novidade trazida por Kohut. Cunha (2016CUNHA, E. Destinos contemporâneos do narcisismo: atualidade de Heinz Kohut. In: BIRMAN, J. (org.) Amar a si mesmo e amar o outro. São Paulo: Zagodoni Ed., 2016.) sustenta que a primeira e talvez mais importante dedução de Kohut seja a da suposição da existência de um vínculo transferencial forte, mas no qual o analista vira um suporte ao próprio narcisismo do paciente, e não propriamente investido como objeto. Assim, é fundamentalmente a questão da alteridade que se coloca aqui pelos efeitos narcísicos de sustentação do self.

Kohut fornece uma contribuição essencial no estudo do narcisismo e das personalidades narcísicas, sobretudo no que diz respeito às relações de objeto. Adotando uma postura bastante singular, Kohut não supõe a existência de uma dinâmica em que as relações de objeto excluem o narcisismo. Esta postura de exclusão esteve presente no discurso psicanalítico desde Freud (1914/2006FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)), na medida em que o narcisismo era compreendido como um investimento libidinal que faria recluir a energia libidinal em oposição e em detrimento dos investimentos objetais.

Supondo dois eixos distintos com relação ao narcisismo e aos objetos, Kohut elenca experiências narcísicas intensas que se relacionam com objetos, ou, em outras palavras, a objetos que são eles próprios vivenciados como parte do self. Esses objetos, os chamados por Kohut de self-objetos, serão trazidos nesta discussão como forma de ilustrar como o outro pode ser capturado narcisicamente para a sustentação de seu self, de forma a conferir sobrevivência psíquica frente à fragilização dos laços sociais. O fato de Kohut construir uma teorização a partir de um circuito autônomo do narcisismo realça o quanto este conceito se revela de extrema importância, não apenas para a leitura da psicanálise sobre as subjetividades, mas permitindo um diálogo com as ciências sociais, de um modo geral. O estatuto do narcisismo, nesse contexto, ganha notoriedade por conta do contexto histórico em que Kohut está produzindo.

Sobre a leitura de Kohut acerca das personalidades narcísicas, é interessante notar que o solo histórico de seus estudos equivalem às descrições da cultura do narcisismo (LASCH, 1979LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago Editora , 1979.) que localizam as coordenadas sociológicas das descrições das chamadas patologias contemporâneas. Nessa leitura, os pacientes referidos aos distúrbios narcísicos de personalidade “estão sofrendo de perturbações específicas na esfera do self e na daqueles objetos arcaicos catexizados com libido narcísica (self-objetos) que ainda estão em íntima conexão com o self arcaico (isto é, objetos que não são vivenciados como separados e independentes do self)”. (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 18).

A psicopatologia desses pacientes narcísicos refere-se a uma fixação em um período bastante antigo do desenvolvimento psíquico. Kohut postula que estes pacientes narcísicos permaneceram fixados em configurações arcaicas grandiosas do self e/ou em objetos arcaicos, superestimados e narcisicamente catexizados. Ou seja, o efeito patogênico exercido de objetos incestuosos nas neuroses de transferência tem aqui o correlato com o efeito dessas configurações arcaicas.

Entretanto, Kohut e sua leitura sobre os pacientes com perturbações narcísicas da personalidade se inscrevem em um campo diferente dos chamados pacientes fronteiriços, pois aqueles conseguiram em essência um self coeso e constituíram objetos arcaicos idealizados coesos. Com efeito, para Kohut, os pacientes narcísicos não estão seriamente ameaçados pela possibilidade de uma desintegração irreversível do self arcaico, nem recorreriam aos delírios, ou, quando ocorreria, seria em um nível temporário e restitutivo.

O paciente narcísico descreverá sensações de vazio e depressão sutilmente vivenciadas, e no entanto pervasivas, que, em contraste com as condições nas psicoses e nos estados fronteiriços, são aliviadas tão logo a transferência narcísica tenha se estabelecido - mas que se tornam intensificados quando o relacionamento com o analista é perturbado. (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 29).

Kohut aponta que esta sintomatologia, aliada a outras queixas semelhantes, é indicativo de um esgotamento da atividade do ego, porque este “tem de se fortificar contra as reivindicações irreais de um self grandioso arcaico, ou contra a intensa fome de um poderoso fornecedor externo de autoestima e outras formas de sustentação emocional na área do narcisismo” (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 29). Neste sentido, a articulação entre o esgotamento da atividade do ego como ponto metapsicológico sublinhado é algo de extrema relevância para os dias atuais, em que se demanda um ritmo intenso à atividade do ego.

Por outro lado, no entanto, esses sintomas não são rigidamente estabelecidos, ao contrário do caso psicopatológico que se localiza anteriormente à área do self coeso, como acontece nas psicoses e casos fronteiriços. De qualquer forma, não constituem um self coeso e bem delimitado como nas neuroses de transferência, nas quais a questão se refere a conflitos estruturais sobre impulsos libidinais incestuosos e dirigidos a objetos da infância que se tornaram diferenciados do self. Kohut estabelece, em suma, que as configurações narcísicas “(1) podem estar insuficientemente catexizadas e são, portanto, sujeitas à fragmentação temporária; e (2) mesmo que estejam suficientemente catexizadas ou hipercatexizadas e retenham, assim, sua coesão, não estão integradas com o resto da personalidade” (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 31.).

Ainda, em distinção às neuroses de transferência, Kohut afirma que, nestas, a angústia de castração é a principal fonte de desconforto, seguida do medo da perda do amor do objeto e, por último, o medo da perda do próprio objeto, enquanto nas perturbações narcísicas da personalidade a ordem é invertida, sendo o medo da perda do objeto o principal fantasma. Os distúrbios narcísicos de personalidade situam-se como uma perturbação do equilíbrio do narcisismo primário por inevitáveis falhas do cuidado materno, estabelecendo uma imagem grandiosa e exibicionista do self. Assim, resta uma fixação naquilo que Kohut denominou o self grandioso, em contrapartida ao abandono da perfeição anterior por um self-objeto admirado, onipotente: a imago parental idealizada.

Dessa forma, o acento da leitura acerca das transferências nos distúrbios narcísicos de personalidade ocorre sob a forma: (i) das transferências que surgem da mobilização terapêutica da imago parental idealizada - a transferência idealizadora; (ii) das que surgem a partir da mobilização do self grandioso - referidas em geral como transferências especulares. A despeito das diferenças entre estas modalidades de transferência, o importante é o apontamento de que em ambas há graves traumas narcísicos e as regressões necessárias ao despertamento destas perturbações se localizam no estágio do self fragmentado, que corresponde à fase evolutiva à qual Freud referiu como autoerotismo.

Cabe detalhar um pouco mais a leitura kohutiana sobre os processos básicos de internalização do domínio narcísico. Enquanto a criança idealiza a figura do genitor, a configuração idealizada abre-se para correção e modificação pela experiência real, e uma gradual percepção dos defeitos e limitações dos pais retira uma parte da libido idealizadora das imagos parentais no emprego da formação de estruturas controladoras de impulsos. Entretanto, a decepção edipiana maciça com o genitor (normalmente do mesmo sexo) leva à idealização do superego.

Levando em consideração a ocorrência de eventos traumáticos, o ambiente será total ou predominantemente narcísico, o que quer dizer que, a despeito das catexias objetais que ocorrem, as vicissitudes do setor narcísico ficam perturbadas. A imago parental idealizada permanece vulnerável através de todo o intervalo de seu desenvolvimento inicial, que compreende o “(a) estágio de formação do self-objeto idealizado arcaico, para o (b) tempo da maciça reinternalização do aspecto idealizado da imago parental edipiana” (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 49). Este período termina quando da formação de um superego nuclear idealizado:

A modificação das catexias idealizadoras arcaicas (sua dominação, neutralização e diferenciação) é alcançada por sua passagem através do self-objeto idealizado; e o resultado individualmente específico desse processo terá sido, naturalmente, determinado em parte pelas reações emocionais específicas do objeto que a criança idealiza. (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 49).

Essa formulação psicodinâmica que sublinha a importância metapsicológica da relação da criança com o ambiente aproxima a leitura de Kohut daquela dos autores que deram ênfase à intersubjetividade, como Ferenczi, que apostou, dentre outras inúmeras contribuições, na questão da forma como a criança é acolhida em sua pulsão de morte (FERENCZI, 1929/1992FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-52. (Psicanálise IV)). Ou seja, a ênfase aqui recai no aspecto da relação entre a criança e seu entorno. Esta perspectiva marca diversas formulações teóricas, tais como podemos também observar na aposta que Winnicott faz no ambiente como fundamental para o desenvolvimento emocional primitivo (WINNICOTT, 2000WINNICOTT, D. Desenvolvimento emocional primitivo. In: WINNICOTT, D. Da pediatria à psicanális e. Rio de Janeiro: Imago, 2000. (Obras escolhidas)), ou na teorização sobre a falha básica, de Michael Balint (2014BALINT, M. A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. 2 ed. São Paulo: Zagodoni, 2014.).

Se há um equilíbrio emocional nas relações objetais estabelecidas precocemente, ficará menos traumático para o psiquismo lidar com a perda objetal em momentos posteriores. Entretanto, privações traumáticas e perdas de objetos até o período edipiano podem interferir seriamente na estruturação do próprio aparelho psíquico.

A criança tem capacidade de tolerar as primeiras separações temporárias da mãe, sabendo que pode encontrá-la se seu anseio ficar muito intolerável, e uma separação não será tolerada se sentir que sua mãe tornou-se irremediavelmente perdida. Então, o objeto idealizado torna-se essencialmente realista, e a internalização ideal não ocorre, ficando a criança fixada em um self-objeto arcaico. O psiquismo recorre a uma intensa procura e fica dependente de certos objetos que são buscados como um substituto para os segmentos que faltam na estrutura psíquica. Kohut chama a atenção, entretanto, que esses não são objetos, estritamente falando, uma vez que não são amados ou admirados por seus atributos. Neste sentido, “eles não são desejados mas são necessários a fim de substituir as funções de um segmento do aparelho mental que não havia sido estabelecido na infância” (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 51).

A análise kohutiana classifica o relacionamento com o objeto idealizado em três grupos, de acordo com a fase evolutiva durante a qual o impacto principal do trauma foi vivenciado: num primeiro grupo, perturbações muito precoces no relacionamento com o objeto idealizado levariam a uma fraqueza estrutural generalizada, e uma personalidade assim marcada sofreria do que o autor chama de uma vulnerabilidade narcísica difusa. Posteriormente, perturbações traumáticas, mas ainda pré-edipianas, podem interferir com o estabelecimento da estrutura básica controladora, canalizadora e neutralizadora de instinto, do aparelho psíquico. Fantasias e atos pervertidos seriam formas muito evidentes de manifestação sintomática dessa falha estrutural. Finalmente, se a gênese da perturbação se relaciona ao período edipiano, ou mesmo pré-edipiano tardio, então a idealização do superego estará incompleta, resultando em que a pessoa estará sempre à procura das figuras ideais externas, das quais deseja obter a aprovação e a liderança que seu superego, insuficientemente idealizado, não pode fornecer.

Um aspecto importante a ser ressaltado recai no fato de que a perturbação traumática do relacionamento com o objeto idealizado tem a atribuição de ser conferida a um ponto específico do desenvolvimento inicial da criança. No entanto, o efeito do trauma só pode ser compreendido de forma complexa quando se é também levada em consideração a existência de um estado de disposição para ser traumatizado. Assim, Kohut avalia que, na transferência idealizadora, a revivência terapêutica dos estágios tardios da imago parental idealizadora (por exemplo, a decepção de um menino com seu pai) pode se situar sobre a base mais profunda de uma decepção precoce com a mãe idealizada, a qual pode ter sido causada pela desconfiança de sua empatia e de seus estados depressivos. Desta forma, as transferências idealizadoras referem-se a fixações narcísicas que apontam para os aspectos narcísicos do objeto idealizado antes de sua internalização final, isto é, antes da consolidação da idealização do superego.

Então, se acompanhamos a reflexão kohutiana sobre as transferências idealizadoras, no sentido de que “um evento externo dramático - tal como a morte ou a prolongada ausência de um dos pais, ou a doença ou o desamparo de um dos pais, bem como doenças graves da criança, que imediatamente demonstram o poder limitado dos pais” (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 77) -, isto parece se configurar, portanto, como “a principal causa da perturbação relevante na infância” (KOHUT, 1971KOHUT, H. Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971., p. 77).

Este tipo de trama remonta às injunções de quando se há um desequilíbrio provocado por perturbações traumáticas muito precoces no relacionamento com o self-objeto idealizado arcaico. Uma tentativa de restabelecimento do equilíbrio psíquico é necessária, e este recurso se inscreve como um recuo às esferas narcisicamente vivenciadas.

Conclusão

A persistência da temática do narcisismo como conceito utilizado nos referenciais, tanto psicanalítico quanto sociológico, recai no pressuposto da identificação de uma certa configuração psíquica que se apresenta constantemente na clínica atual, e, por isso, a atualidade de Heinz Kohut. A aproximação da questão do narcisismo na psicanálise e no discurso das ciências se mostra de forma fecunda, como pode-se observar na tomada de empréstimo da própria ideia de narcisismo, um conceito psicanalítico, para a extrapolação das consequências na leitura de Lasch, em sua obra A cultura do narcisismo (1979LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago Editora , 1979.). Como desenvolve Mizrahi:

A crença na possibilidade de o ambiente social atender ao indivíduo - em vez de vê-lo, como no regime neoliberal, sob suspeita de uma dependência negativa a ser combatida por medidas que lhe cobrem autonomia - encontra na psicanálise de Kohut um poderoso aliado, ainda inexplorado. (MIZRAHI, 2017MIZRAHI, B. Winnicott, Kohut e a teoria da intersubjetividade: uma psicanálise do pertencimento frente à precariedade contemporânea dos vínculos. Cad. Psicanál. (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 39, n. 36, p. 11-29, jan./jun., 2017., p. 22).

Esse debate sobre o narcisismo revela as facetas do indivíduo atual nos rumos de um paradoxo em relação ao projeto performático, na medida em que se visa a capacitação e maximização da potência de si aos moldes de uma empresa bem sucedida, inserida na lógica da produtividade e proatividade, por um lado, e, por outro, este indivíduo narcísico sucumbe às exigências demasiadas desse projeto performático, recaindo-se numa “fatiga de ser si mesmo” (EHRENBERG, 2000EHRENBERG, A. La fatigue d’être soi. Dépression et société. Paris: Odile Jacob, 2000.).

A proposta desse estudo foi justamente a de trazer a contribuição de um teórico que olhou como quem olha num microscópio a dinâmica do gesto relacional e formulou teorizações psicodinâmicas e metapsicológicas inovadoras e interessantes de serem resgatadas. A inovação está remetida aos processos de revitalização dos laços, necessários em meio a contextos de precarização e traumas que ameaçam tanto a subjetividade quanto a ordem da alteridade. Se é lançado um olhar mais amplo comparativamente em relação à clínica dita clássica, verificar-se-á como o psiquismo se esforça para sobreviver animicamente em meio a configurações estruturais sociais diversas.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2020
  • Aceito
    28 Set 2021
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