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Sobre o colapso da objetalidade no discurso do capitalista

RESUMO:

O artigo refaz o percurso de Freud desde a exclusão de das Ding até o surgimento da dimensão da objetalidade por meio da constituição da realidade estruturada como fantasia. Com Lacan, coloca-se em evidência o objeto a como causa do desejo no Seminário da Angústia, no qual se discute a caducidade dos objetos que estabelecem bordas pelas quais a libido irá se deslocar em busca do objeto perdido. Enfim, aborda-se o colapso da objetalidade na vigência do discurso do capitalista. Em particular, é sublinhado o engodo desse discurso que faz supor acessível o objeto perdido na forma dos gadgets que a cada vez renovam a promessa de mais gozar.

Palavras-chave:
das Ding; objetalidade; discurso do capitalista; mais-gozar

Abstract:

The article retraces Freud’s path from the exclusion of das Ding to the emergence of the dimension of objectality through the constitution of reality structured as fantasy. In Lacan´s Seminary of Anguish, it is highlighted the concept of object taken as cause of desire, resulting from his discussion of the downfall of the objects that establish the borders through which the libido will move in search of the lost object. At the end, the collapse of objectality caused by the capitalist discourse is examined. In particular, the deception of this discourse is underlined, as it makes it seem as if the lost object is accessible in the form of gadgets that each time renew the promise of more enjoyment.

Keywords:
das Ding; objectality; discourse of the capitalist; surplus enjoyment

Da Coisa ao Objeto

A discussão sobre a origem da antítese sujeito/objeto é na realidade uma discussão sobre o advento do sujeito, ou seja, sobre a humanização do filhote de homem. O sujeito não está dado de partida. Surge como efeito de uma dupla operação que funda simultaneamente o dentro e o fora, o Ich e o não-Ich, o simbólico e o real. O artigo A negativa, de 1925, oferece subsídios para pensar esse mito de fundação.

Após algumas considerações sobre a técnica, nesse texto, Freud avança no sentido de investigar a função intelectual do juízo a partir de uma distinção entre as suas duas modalidades: o juízo de atribuição e o juízo de existência. O primeiro consiste em afirmar ou negar que uma coisa possui determinado atributo, enquanto o segundo consiste em afirmar ou negar que uma determinada representação tem existência na realidade. A novidade é que Freud propõe a anterioridade do juízo de atribuição por relação ao juízo de existência. Ele concebe que, originalmente, o juízo de atribuição se ocupou em discernir, nas coisas (no percebido), aquilo que porta o atributo “bom” e deve ser introjetado, e aquilo que porta o atributo “mau” e deve ser expulso do Ich. Nos termos dos impulsos canibalescos da fase oral primitiva, esse juízo de atribuição original traduz-se numa dupla operação de incorporação e expulsão, que funda a distinção entre o interno e o externo. O que foi introjetado é idêntico ao Ich e o que foi expulso lhe é estranho.

Expresso na linguagem dos mais antigos impulsos instintuais - os orais -, o julgamento é: ‘Gostaria de comer isso’, ou ‘gostaria de cuspi-lo fora’, ou, colocando de modo mais geral, ‘gostaria de botar isso para dentro de mim e manter aquilo fora’. Isso equivale a dizer: ‘Estará dentro de mim’ ou ‘estará fora de mim’. (FREUD, 2006FREUD, S. Um tipo especial de escolha objetal feita pelo homens. (Contribuições à psicologia do amor I) (1910). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11)/1925, p. 266-267).

Integrar alguma coisa no Ich significa fazer uma inscrição [Niederschrift] a partir de uma percepção. O aparelho perceptivo não pode produzir ele próprio um traço mnêmico, pois existe uma incompatibilidade entre as funções de percepção e memória. Enquanto a função perceptiva é completamente permeável e permite a passagem do fluxo de percepções sem sofrer alteração permanente, retornando ao estado original de disponibilidade para receber novas impressões, a função da memória fica permanentemente alterada, o percebido deixa nela uma marca. Isso implica que percepção e memória não possam se situar no mesmo estrato do psiquismo. Na Carta 52, Freud apresenta a Fliess um modelo de aparelho psíquico estratificado, no qual os traços mnêmicos passariam por sucessivas transcrições, no percurso que vai da percepção à consciência. O esquema é reproduzido abaixo (FREUD, 2006FREUD, S. Extratos dos documentos dirigidos a Fliess: Carta 52 (1896). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1)/1896, p. 282):

W é a abreviação de Wahrnehmungen [percepções]. Esse nível corresponde ao que é capturado pelos órgãos dos sentidos. Não se trata ainda de um estrato do psiquismo, pois em W não se conserva nenhum traço do percebido; há somente a sucessão de percepções brutas que, em princípio, não deixam rastro. A primeira inscrição [Niederschrift] aparece em Wz, Wahrnehmungszeichen [signos de percepção]. A partir desse ponto, o aparelho psíquico pode se representar aquilo que foi percebido, mas essas representações ainda não estão organizadas em cadeia, e sim conforme as associações por simultaneidade. Será necessária uma transcrição para o segundo estrato, o Unbewusstsein [inconsciência], para que se possa falar - com Lacan - em um inconsciente estruturado como linguagem. Já a consciência propriamente dita [Bewusstsein], que corresponde ao Eu que se reconhece como tal, esta se produzirá apenas de modo secundário, na medida em que, após nova transcrição dos traços mnêmicos para o terceiro estrato do psiquismo - o Vorbewusstsein [pré-consciência] -, o pensamento passe a se articular por meio de representações verbais.

O que está em jogo na incorporação realizada pelo juízo de atribuição original é esta inscrição dos signos de percepção, Wz. A partir desse primeiro estrato psíquico, surge a distinção entre subjetivo e objetivo, pois o organismo adquire a extraordinária capacidade de se representar o objeto, não estando mais submetido ao mero fluxo das percepções atuais. Lemos em A negativa: “A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. Surge apenas do fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem que o objeto externo ainda tenha de estar lá” (FREUD, 2006FREUD, S. Um tipo especial de escolha objetal feita pelo homens. (Contribuições à psicologia do amor I) (1910). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11)/1925, p. 267). Aquilo que se inscreve, esta marca significante incorporada pelo Ich, nos termos freudianos, é o traço mnêmico do objeto de satisfação. Precisamos então retomar a narrativa da mítica experiência de satisfação para compreender o outro lado da dupla operação de inclusão e expulsão que possibilita o advento do sujeito, pois, se o Eu-prazer inicial é fundado pela assimilação da representação do objeto, seu contorno só pode ser estabelecido a partir daquilo que é ejetado de si.

Dois postulados norteiam a elaboração de Freud a respeito do aparelho mental: 1) para tudo o que concerne aos processos psíquicos, a atividade se distingue do repouso pela presença de uma soma de excitação que, embora não mensurável, possui características quantitativas, sendo capaz de aumento, diminuição, deslocamento e descarga; 2) a função primária do aparelho psíquico é a de se livrar das excitações, sendo que o aumento geral das quantidades provoca a experiência de desprazer, enquanto sua redução coincide com a sensação de prazer. O conceito de pulsão, obscuro e indispensável, foi o constructo teórico formulado por Freud para dar conta da natureza dessas excitações.

A pulsão se situa “na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua relação com o corpo” (FREUD, 2006FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)/1915, p. 127). A pulsão responde pelas grandes urgências da vida [Not des Lebens], das quais a fome é o protótipo. Ela exerce sobre o aparelho psíquico uma pressão constante, uma exigência de trabalho que o obriga a realizar alguma ação específica no mundo de modo a fornecer à pulsão um objeto apropriado para que ela alcance seu objetivo, que é a satisfação, ou seja, a descarga da excitação em sua fonte corporal.

Ocorre que o bebê humano, prematuro e desamparado, não está em posição de realizar nenhuma ação específica. No início, ele é apenas invadido pelas excitações, com a correlata sensação de desprazer, e tenta delas se livrar por meio de ações motoras aleatórias, dentre as quais, o grito. Com isso, Freud coloca em evidência que o choro do bebê é, em princípio, meramente uma via de descarga, e uma via de descarga ineficaz diante das exigências pulsionais. Mas o grito acaba por assumir a função secundária da comunicação, na medida em que há um próximo [Nebenmensch] que o acolhe e interpreta. Um humano-ao-lado que se sente implicado no grito do infans e que realiza em seu nome a ação específica necessária para apaziguar o estado de urgência produzido pela pulsão. Ao interpretar o choro do bebê como um apelo, o Nebenmensch dá o primeiro passo no sentido de incluir o filhote de homem na ordem simbólica, e, nesse encontro com o Outro primordial, ocorre a mítica experiência de satisfação.

O Nebenmensch é, para o bebê, essa pessoa que ajuda, mas é também, simultaneamente, o primeiro objeto de satisfação e o primeiro objeto hostil. Como efeito da mítica experiência de satisfação, algo desse complexo perceptivo será introjetado e algo será expulso do Ich pelo juízo de atribuição. No Projeto para uma Psicologia Científica, Freud coloca em evidência a divisão do complexo do Nebenmensch em uma parte que pode ser compreendida, a que ele chama de atributos da coisa, e uma parte inassimilável, que corresponde à Coisa propriamente dita [das Ding]. Sobre isso, Freud afirma: “Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória [...]” (FREUD, 2006FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1)/1895, p. 384), e mais à frente no mesmo manuscrito: “[os complexos das percepções] são decompostos num componente não assimilável (a coisa) e num componente conhecido do ego através de sua própria experiência (atributos, atividade) - o que chamamos de compreensão [...]” (FREUD, 2006FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1)/1895, p. 421). A Coisa [das Ding] é aquilo que fica de fora como irremediavelmente perdido por ocasião da inscrição do traço mnêmico do objeto de satisfação. Corresponde ao que é estranho e hostil, ao que é expulso do Ich pelo juízo de atribuição.

Do artigo A negativa, Lacan extrairá os termos Bejahung e Austossung, elevando-os à condição de conceitos. Bejahung corresponde à afirmação primordial pela qual se inaugura o lugar do Outro a partir da incorporação da primeira bateria de significantes, os quais Freud, sem os recursos da linguística, concebeu como representações [Vorstellungen]. A Austossung, por sua vez, é a contrapartida da Bejahung, a expulsão que funda o real como impossível. No livro A foraclusão, Solal Rabinovitch demonstra que a dupla operação Bejahung/Austossung não diz respeito ainda ao estabelecimento das estruturas clínicas, mas sim à separação entre o Outro - tesouro dos significantes - e a Coisa - gozo para sempre perdido. Essa cisão original, que Freud imputou ao juízo de atribuição, instaura o significante para todo sujeito, fazendo do Outro um terreno limpo de gozo.

A linha freudiana de divisão entre fora e dentro, que define o juízo de atribuição, torna-se, com Lacan, uma interseção do real e do simbólico. Desde o Projeto, Freud instalou uma divisão da realidade entre um fora primeiro (das Ding) e um dentro, onde se pudessem reproduzir ou encontrar as “qualidades” (Qualitätszeichen) do objeto perdido; em seguida, opôs e associou Bejahung (em termos lacanianos: incorporação do primeiro corpo de significantes, instauração do lugar do Outro) e Austossung, que é a sua face negativa (constituição do fora como real exterior, impossível já que perdido para sempre, para sempre inencontrável) [...]. (RABINOVITCH, 2001RABINOVITCH, S. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 25).

O desejo aparece como resíduo da mítica experiência de satisfação na medida em que das Ding resta incontornavelmente perdida. A experiência de satisfação deixa um trilhamento [Bahnung], que articula o traço mnêmico do objeto e a imagem motora do movimento reflexo que produziu a descarga. Em português claro, produz-se um elo entre a representação do seio materno e o movimento de sucção, percurso privilegiado de descarga, ativado a cada vez que ocorre um novo incremento das excitações. Quando o bebê se vê outra vez em estado de urgência, investe toda a sua energia na representação do objeto, e como ainda não dispõe de recursos para discernir entre uma lembrança e uma percepção, esse investimento dá origem a uma alucinação, levando ao movimento reflexo de sucção e ao desapontamento. Tal é o processo primário, ineficaz no que concerne à autopreservação.

No processo primário, o objeto do desejo apresenta-se de maneira alucinatória porque o investimento em seu traço mnêmico não está inibido. Em nota acrescentada às Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud demonstra que a vigência do princípio do prazer no aparelho psíquico do bebê só é possível em função dos cuidados maternos. A criança alucina o seio, ativa seus reflexos de sucção e se depara com a frustração. Mas o incremento das excitações produz uma reação de descarga - o grito - e se essa reação é prontamente interpretada pela mãe, que oferece ao bebê o seio, então ele consegue obter a satisfação que havia alucinado. Disso se conclui que, enquanto não houver uma escanção temporal entre a alucinação e a satisfação, ou seja, enquanto não houver ocasião para a experiência do desprazer, não haverá razão para que o infans se dedique ao trabalhoso procedimento do teste de realidade. Cumpre destacar, no entanto, que a impossibilidade da plena satisfação é um fato de estrutura: “É como se nossos filhos tivessem permanecido para sempre insaciados, como se nunca tivessem sugado por tempo suficiente o seio de sua mãe” (FREUD, 2006FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)/1931, p. 242). Progressivamente, a criança percebe uma discrepância entre suas exigências pulsionais, que exercem pressão constante, e o seio materno, que aparece e desaparece, o que lhe obriga, no fim das contas, a distinguir entre o seio e seu próprio corpo, que até aqui formavam uma unidade.

Embora a pulsão se caracterize por ser uma energia não ligada que pressiona para a descarga, ela só pode atingir sua finalidade mediante ação específica. Por conta de tais exigências da vida, o aparelho é então obrigado a ceder em sua tendência primária, tolerando o acúmulo de excitações de modo a se habilitar para a realização de ações complexas que visam a intervir do mundo. Freud atribuirá o desenvolvimento de todas as funções psíquicas superiores à reserva de energia proveniente do adiamento do gozo. Abstendo-se de investir grande carga de energia pulsional no traço mnêmico do objeto do desejo, o sujeito inibe o processo primário. Aquilo que era um fluxo de energia não ligada em busca do percurso mais curto para a descarga pela via motora, em virtude da acumulação, transforma-se em energia ligada, combinando alto investimento com baixa corrente de deslocamento pela cadeia de representações. O sujeito fica então em posição de realizar o teste de realidade para verificar se aquilo que ele se representa pode ser reencontrado na percepção. Este processo secundário, inibido, que configura toda atividade de pensamento, corresponde à segunda modalidade do juízo descrita por Freud em A negativa: o juízo de existência.

No Projeto, Freud demonstra de modo detalhado que o único objetivo de todo pensamento é restabelecer a experiência de satisfação. Na medida em que não há identidade entre o traço mnêmico do objeto do desejo e a percepção, a atividade judicativa se empenha em buscar um elo entre as duas representações, realizando uma espécie de tateamento experimental através da cadeia. O juízo suspende a ação motora até que o sujeito possa “se convencer”, afirma Freud (2006FREUD, S. Um tipo especial de escolha objetal feita pelo homens. (Contribuições à psicologia do amor I) (1910). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11)/1925, p. 267), de que o objeto está realmente presente. Diante da indicação de realidade, o juízo escolhe a ação motora que interromperá a atividade do pensamento para dar lugar à descarga.

Assim, o objetivo e o fim de todos os processos de pensamento é o estabelecimento de um estado de identidade, a transmissão de uma catexia, emanada do exterior, a um neurônio catexizado a partir do ego. [...] Quando, uma vez concluído o ato de pensamento, a indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um juízo de realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda essa atividade. (FREUD, 2006FREUD, S. Um tipo especial de escolha objetal feita pelo homens. (Contribuições à psicologia do amor I) (1910). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11)/1895, p. 385).

Que o juízo de realidade equivalha a uma crença, que o objetivo do juízo de existência seja convencer o sujeito da presença do objeto, são boas indicações quanto ao estatuto do princípio de realidade. Afinal, se o juízo de existência é secundário por relação ao juízo de atribuição, isso significa que o sujeito só poderá encontrar na realidade aquilo que foi previamente incorporado pelo Ich. Freud é bastante claro quanto a esse ponto: o teste de realidade busca reencontrar na percepção o traço do objeto que o Ich porta como representação. A realidade se constitui, portanto, a partir das marcas significantes que produziram o advento do sujeito. O que foi expulso na dupla operação Bejahung/Austossung - das Ding para Freud ou o real para Lacan - não pode de modo algum fazer parte da realidade, na medida em que permanece irrepresentável. Rabinovitch reconhece aí a perda da realidade, que Freud demonstra ocorrer também na neurose, e não apenas na psicose. O sujeito não tem compromisso com o mundo externo:

Assim, o juízo de existência constitui a realidade que se situa fora - só será realidade para o sujeito aquilo que ali será encontrado - mas na medida em que ela já esteja representada no dentro, em virtude do primeiro juízo, o de atribuição. Essa definição da realidade esclarece a questão, abordada em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, do desapego do Ich em relação ao mundo externo. Se a realidade é feita daquilo que o Ich pode nela encontrar de idêntico a um já representado dentro de si, ou seja, se a realidade é esse mundo imaginário ordenado pelos recortes significantes do sujeito, [...] a realidade, puro representado, ligação imaginário-simbólico, se diferencia completamente do real, que é o irrepresentável por excelência. (RABINOVITCH, 2001RABINOVITCH, S. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 25).

Na neurose, a relação entre o sujeito e o objeto tem lugar nesse mundo imaginário ordenado pelos recortes, significante ao qual Freud se refere, no artigo supracitado, como mundo da fantasia. A libido se desloca pela cadeia de representações buscando estabelecer a identidade com o objeto da mítica experiência de satisfação que, no entanto, permanece irremediavelmente perdido, de modo que a pulsão só encontra satisfação parcial. “[...] é evidente que uma precondição para o teste de realidade consiste em que objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos” (FREUD, 2006FREUD, S. A negativa (1925). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)/1925, p. 268). A parcialidade da satisfação funciona como motor do desejo, impulsionando o sujeito a continuar sua caçada infinita por um gozo que só se anuncia como assintótico. Na primeira contribuição à psicologia do amor, Freud atribui a série infindável de objetos insatisfatórios à presença, no inconsciente, de um objeto insubstituível, porém interditado: “[...] a noção de algo insubstituível, quando é ativa no inconsciente, muitas vezes surge como subdividida em uma série infindável: infindável pelo fato de que cada substituto, não obstante, deixa de proporcionar a satisfação desejada” (FREUD, 2006LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10)/1910, p. 175). Nesse artigo, ele avança que o objeto da pulsão é sempre apenas um sub-rogado do objeto original, mas a experiência do objeto original remonta a um tempo mítico, e sua ex-sistência só pode ser discernida pelo encontro faltoso com cada um de seus substitutos. Por isso mesmo, o objeto da pulsão é apresentado no artigo metapsicológico como sendo aquilo que ela porta de mais variável. Pulsão e objeto não estão originalmente atrelados; entre eles há apenas uma solda.

Tanto o esquema do aparelho psíquico na Carta 52 quanto a discussão sobre as duas modalidades do juízo em A negativa colocam em evidência que a constituição da objetalidade se dá em dois tempos lógicos: num primeiro momento, a inscrição dos signos de percepção isola a Coisa como irrepresentável, mas esse corte não é suficiente para constituir a fantasia na qual o sujeito desenvolverá sua relação com o objeto, pois a representação do objeto de satisfação mantém a libido capturada no gozo alucinatório do processo primário. Após a Austossung, expulsão primordial, será necessária a incidência da castração para que os signos de percepção sejam transcritos para o segundo estrato do psiquismo, o Unbewusstsein, possibilitando o juízo de existência que constitui a realidade.

O objeto causa do desejo

No contexto do Seminário X, Lacan apresenta o Outro como o tesouro dos significantes, anterior ao advento do sujeito, tal como Saussure define a língua. De partida, o sujeito não existe, não pode ser isolado e, embora Lacan já se refira a ele como sujeito do gozo, essa denominação só lhe pode ser conferida em um nível mítico: “O tesouro do significante em que ele tem de se situar espera desde já o sujeito, o qual, nesse nível mítico, ainda não existe. Só existirá a partir do significante que lhe é anterior e que é constitutivo em relação a ele” (LACAN, 2004/1962-1963LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10), p. 179). A operação de subjetivação ocorre na medida em que esse sujeito, ainda inexistente, dirige-se ao campo do Outro, ao qual pertencem todos os significantes. É do Outro que o sujeito recebe sua primeira mensagem: à pergunta “Quem sou eu?”, informulável pelo sujeito, o Outro responde “Tu és”, invertendo a questão sem acrescentar a ela nenhum conteúdo. O sujeito advirá então, determinado pelo significante, aqui definido como aquilo que representa o sujeito para outro significante.

O esquema da divisão representa a operação pela qual o sujeito se constitui quando faz sua entrada no campo do Outro. Na primeira linha, vemos A, o grande Outro originário, e S, que é o sujeito hipotético, ainda não constituído. O quociente da divisão A / S é o $, sujeito barrado, que advém no lugar do Outro como marca do significante, e que é o único a que temos acesso na experiência analítica. No entanto, essa divisão deixa um resto, resíduo indivisível, irredutível, representado no esquema pela letra a. Lacan sublinha neste momento que esse resto é a única prova da alteridade do Outro. Tanto o sujeito marcado pela barra do significante quanto o objeto a se situam no lado esquerdo do quadro - o lado objetivo - enquanto do lado do sujeito figura o /A, grande Outro barrado, que é o inconsciente.

O esquema da divisão coloca em evidência o estatuto do objeto a. Trata-se daquilo que o sujeito porta de real irredutível, ou seja, daquilo que, no sujeito, resiste à assimilação pelo significante. Nesse sentido, o objeto a nomeia uma perda, algo de que o sujeito precisa abrir mão para advir no campo do Outro. Lacan afirma: “Ora, ele é justamente o que resiste a qualquer assimilação à função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o que, na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, como o que se perde para a significantização” (LACAN, 2004/1962-1963LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10), p. 193). A introdução do significante no real engendra uma perda. Ao real não falta nada, o que não significa absolutamente que ele seja pleno. Ocorre que é apenas por intermédio do simbólico que a falta se torna apreensível, e o objeto a foi o conceito forjado por Lacan para representar aquilo que fica de fora.

A questão é então a de saber como o significante entra no real, produzindo o advento do sujeito. O que permite que o significante se encarne é o corpo, e, a partir do momento em que o sujeito fala, ele está, pela palavra, implicado em seu corpo. Mas esse corpo não é a matéria em sua extensão, tal como o concebeu Descartes. No âmbito do discurso analítico, a concepção de corpo está diretamente articulada a uma operação de corte, pela qual se extrai o objeto a: “a maneira mais segura de abordar esse algo perdido é concebê-lo como um pedaço de corpo” (LACAN, 2004/1962-1963LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10), p. 149). Para ilustrar essa ideia, Lacan recorre à comédia de Shakespeare intitulada O mercador de Veneza, na qual o comerciante cristão Antônio aceita ser fiador de um empréstimo tomado por um amigo a Shylock, um agiota judeu. O contrato firmado entre as personagens determina que, caso o empréstimo não fosse pago, Shylock estaria autorizado a retirar de Antônio uma libra de carne para saldar o débito. Com isso, Shakespeare coloca em evidência que a nossa dívida precisa ser paga com um pedaço de corpo. Em outras palavras, o engajamento do homem na dialética significante faz com que uma parte de seu corpo seja sacrificada, separada de si, e essa libra de carne é o objeto a.

O objeto a é aquilo que nós não temos mais, on n’a plus. Ele se apresenta de cinco formas distintas, que correspondem a cinco experiências corporais de perda, enumeradas por Lacan no Seminário da Angústia: os objetos oral, anal e fálico, o olhar e a voz. Todos eles se caracterizam por serem objetos cedidos pelo sujeito, e constituem, no corpo, a reserva irredutível da libido. O corte que incide sobre os objetos a institui as zonas erógenas, que são as bordas por onde a libido irá circular. É interessante notar que a concepção do objeto a como libra de carne desloca a identificação, disseminada por Freud, entre o objeto perdido e a mãe: “A separação característica do começo, aquela que nos permite abordar e conceber a relação, não é a separação da mãe” (LACAN, 2004/1962-1963LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10), p. 135). O corte, segundo Lacan, separa a criança do seio, que não pode ser confundido com a mãe, tendo em vista que o seio, durante a amamentação, faz parte do corpo da criança. A questão decisiva então não seria a frustração decorrente da ausência materna, mas sim a cessão do seio, ao qual o bebê está apenso como a uma parte de si, e que, no fim das contas, cabe a ele agarrar ou largar.

A relação entre o bebê e o seio se estabelece a partir do movimento de sucção, e Lacan chama a atenção para o fato de que o lábio é uma borda, é o produto de um corte. De fato, a cessão do objeto a deixa no corpo um furo, e a borda desse furo tem função estruturante na constituição da zona erógena, que é a fonte corporal da pulsão. Por ser cronologicamente primeira, a pulsão oral acaba servindo de modelo para a compreensão de todas as demais pulsões parciais, e também para o complexo de castração, mas é preciso recordar que Freud não reconhece a eficácia da castração até que a perda possa ser associada ao falo. Na função do objeto a, o falo é representado por Lacan como (-φ), notação que aponta sua dimensão de objeto caduco. Muito cedo em sua elaboração, Freud associou a angústia ao coito interrompido, e Lacan parte dessa indicação para sustentar que a angústia é provocada pela disjunção entre o gozo orgástico e o exercício do órgão, o que não ocorre apenas na interrupção do coito, mas sim em qualquer ato sexual, posto que a cópula tem como contrapartida a detumescência. “O fato de o falo ser mais significativo na vivência humana por sua possibilidade de ser um objeto decaído do que por sua presença, é isso que aponta a possibilidade do lugar da castração na história do desejo” (LACAN, 2004/1962-1963LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10), p. 187) A privação é real, mas, para que ela tenha consequências na experiência do sujeito, é preciso que seja simbolizada; e essa é a função do objeto a.

O objeto a se distingue de todos os objetos do mundo simbólico, que são os objetos de troca, tendo em vista que é ele que institui o campo geral da objetalidade. Em um momento anterior, Lacan havia atribuído ao estádio do espelho a origem tanto do sujeito quanto do objeto. Esse estádio corresponde à operação imaginária pela qual o sujeito se identifica com a imagem unificada do corpo próprio, que se estrutura a partir da imagem do semelhante, de modo que sua identidade fica sempre alienada na imagem do pequeno outro. A individuação só seria possível então a partir do surgimento de um objeto de disputa que pudesse introduzir a noção de posse: eu me distingo do outro na medida em que um objeto ou bem é meu ou bem é dele. No Seminário da Angústia, porém, Lacan retifica sua posição, afirmando a existência de dois tipos de objeto. De um lado, estão os objetos compartilhados, os objetos de troca que desempenham a função de mediação na relação entre o sujeito e o seu semelhante. Do outro, estão os objeto a, extraídos no momento em que o sujeito faz sua entrada no campo do Outro, momento esse que é logicamente anterior ao estádio do espelho: “Com efeito, são os objetos anteriores à constituição do status do objeto comum, comunicável, socializado. Eis do que se trata no a” (LACAN, 2004/1962-1963LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10), p. 103).

A exterioridade na qual se situa o objeto a é uma exterioridade radical, anterior mesmo à constituição da fronteira entre o interior e o exterior, que ocorre no estádio do espelho. Com isso, Lacan reconhece a anterioridade do Outro por relação à operação imaginária, e a dimensão da causalidade que é engendrada pela extração do objeto. Física e filosofia tentaram em vão eliminar de seus discursos a noção de causalidade, que não obstante permaneceu irredutível e irrefutável. É impossível eliminá-la, porque a causa se funda na perda do objeto decorrente da subjetivação. Esse resto, por ter sido elidido, dá origem ao sujeito desejante, que será lançado em uma busca incessante pela parte separada de si, e a fantasia constitui o cenário no qual essa busca se realiza. O matema da fantasia proposto por Lacan, $◊a (sujeito barrado punção de a), articula a relação possível entre o sujeito e o objeto. Ambos os termos pertencem ao campo do Outro - como vimos no esquema da divisão - e o operador lógico designa uma relação que é ao mesmo tempo de conjunção (∧) - o sujeito e o objeto - e de disjunção (∨) - o sujeito ou o objeto.

Temos aqui, em ($◊a), o correspondente e o suporte do desejo, o ponto em que ele se fixa em seu objeto, o qual, muito longe de ser natural, é sempre constituído por uma certa posição do sujeito em relação ao Outro. É com a ajuda dessa relação fantasística que o homem se encontra e situa seu desejo. Daí a importância das fantasias. (LACAN, 1999LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 5)/1957-1958, p. 445).

A noção de causalidade indica que o objeto está atrás e não na frente do desejo, mas ele se reveste de envelopes imaginários aos quais o sujeito se dirige na expectativa de recuperar o gozo perdido. É nesse sentido que o pequeno a, para além de objeto perdido correlato da mortificação pelo significante, revela-se também como um condensador de gozo, na forma do mais-de-gozar. O matema da fantasia representa o ponto em que a significância se articula com o gozo, ponto em que o sujeito barrado pelo significante se conecta com o objeto, que é reintroduzido no circuito, proporcionando uma recuperação de gozo por meio da repetição. A fantasia estrutura a realidade na qual o desejo se desloca. Na tábua da sexuação, a seta que parte do $ cruzando a linha vertical em direção ao pequeno a indica que o parceiro do sujeito, aquele a quem ele se dirige, é o objeto causa do desejo. O sujeito só acede ao Outro por intermédio do objeto a: “entre dois, há sempre o Um e o a” (LACAN, 1985LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. O seminário, 20) [1972LACAN, J. Du Discours Psychanalytique. Discours de Jacques Lacan à l’Université de Milan le 12 mai 1972 (1972). Disponível em: Disponível em: https://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1972-05-12.pdf Acesso em: 26 jul 2021.
https://ecole-lacanienne.net/wp-content/...
-1973], p. 67). O gozo condicionado pela fantasia e submetido ao princípio de realidade é aquele que, no Seminário XX, Lacan chamará de gozo fálico.

[...] esse $ só tem a ver, enquanto parceiro, com o objeto a inscrito do outro lado da barra. Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio disto, de ele ser a causa de seu desejo. A esse título, como o indica alhures em meus gráficos a conjunção apontada desse $ e desse a, isto não é outra coisa senão fantasia. Essa fantasia, em que o sujeito é preso, é, como tal, o suporte do que se chama expressamente, na teoria freudiana, o princípio de realidade. (LACAN, 1985LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. O seminário, 20) [1972LACAN, J. Du Discours Psychanalytique. Discours de Jacques Lacan à l’Université de Milan le 12 mai 1972 (1972). Disponível em: Disponível em: https://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1972-05-12.pdf Acesso em: 26 jul 2021.
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-1973], p. 108).

O Discurso do Capitalista

O Seminário O avesso da Psicanálise consiste em um esforço de Lacan no sentido de circunscrever as configurações do laço social por meio da teoria dos discursos. O discurso é uma estrutura sem palavras que regula tudo aquilo que pode surgir, do modo contingente, como enunciação. Protege a fala da derrapagem metonímica maníaca do significante, permitindo que, entre o sujeito e o Outro, estabeleçam-se modalidades estáveis de relação.

O discurso articula linguagem e gozo, é aparelho de gozo uma vez que responde à impossibilidade da relação sexual engendrando práticas de recuperação de gozo que alimentam o laço social.

Os matemas dos quatro discursos radicais representam quatro configurações possíveis do laço social. Eles se escrevem a partir de quatro posições fixas, nas quais giram os quatro elementos que compõem o discurso. A posição 1 corresponde à função do agente, que comanda o discurso, e a posição 2 é o lugar do Outro, a quem o agente se endereça, e onde se realiza um trabalho. Entre o agente e o Outro há a barreira do impossível, de modo que cada discurso consiste em uma modalidade específica de fracasso da relação. Na posição 3, inscreve-se aquilo que se produz ou aquilo que se perde em um discurso, e, na posição 4, aparece o elemento que corresponde à verdade da estrutura discursiva em questão. Entre as posições 3 e 4, há a barreira da impotência, que impede que aquilo que foi perdido seja reassimilado no discurso. Os elementos que giram nessas quatro posições são o S1, significante-mestre, o S2, saber organizado em cadeia, o objeto pequeno a, causa do desejo e mais-de-gozar, e o sujeito divido pelo significante.

O Discurso do Mestre é o discurso do inconsciente. Nesse matema, observa-se uma escrita semelhante àquela que Lacan produziu no esquema da divisão, e que descreve a operação pela qual o sujeito barrado advém no lugar do Outro como marca do significante. Aqui, é o significante-mestre que ocupa o lugar de agente, e ele se endereça ao Outro estruturado como linguagem, como cadeia do saber. A marca deixada por S1 em S2 engendra a queda do objeto, representada pelo pequeno a na posição da perda, e, dessa extração, resulta o advento do sujeito no lugar da verdade. A barreira da impossibilidade que separa S1 de S2 promove uma escanção cuja consequência é que o significante nunca possa representar inteiramente o sujeito para outro significante. E a barreira da impotência, ao estabelecer uma disjunção entre o objeto a e o sujeito barrado, permite a constituição da fantasia que, como vimos, corresponde à própria realidade. É, portanto, a renúncia pulsional, o deixar cair do objeto caduco, que conduz ao advento do sujeito do inconsciente, sujeito do desejo, que poderá então buscar alguma recuperação de gozo, engajando-se no tateamento experimental pela cadeia simbólica constituída pela fantasia.

Será na Conferência de Milão, em 1972, que Lacan introduzirá, não exatamente um quinto discurso, mas uma variação do Discurso do Mestre, concebida como o discurso do mestre moderno e designada como Discurso do Capitalista. Para obtê-lo, é necessário inverter, partindo do discurso do mestre, as posições do significante-mestre e do sujeito barrado. Além disso, Lacan altera a disposição das setas que indicam o fluxo discursivo, para demonstrar que o Discurso do Capitalista é circular, no qual não há perda, não há entropia. A figura abaixo permite visualizar esta característica:

O primeiro traço que salta aos olhos é o fato de que, no Discurso do Capitalista, não há relação entre o agente e o Outro, o que coloca em questão seu próprio estatuto discursivo. A relação aqui é entre S1 e S2, cuja escansão, presente em todos os quatro discursos radicais, fica suspensa. Daí, a hipótese da incompatibilidade entre o Discurso do Capitalista e o discurso do inconsciente. Além disso, chama a atenção a seta que leva o objeto pequeno a até o sujeito barrado, sugerindo a conjunção entre esses termos. Se a fantasia se caracteriza precisamente pela dupla relação de conjunção e disjunção entre sujeito e objeto, como vimos anteriormente, então surge a questão de discutir a constituição da fantasia e da realidade no âmbito do Discurso do Capitalista.

O capitalista está representado no matema pelo significante-mestre, que se esconde no lugar da verdade. Ele alça o sujeito barrado, que representa o consumidor, à posição de agente do discurso, dando a ele a ilusão de estar no comando da operação de consumo. Aí mora a astúcia do capitalista: oferecendo ao operário o produto de seu trabalho na forma de mercadoria, ele faz com que o trabalhador fique implicado no discurso com o seu próprio gozo, faz com que ele deixe de oferecer resistência ao capitalismo, tornando-se o próprio motor desse discurso circular. O capitalista age em comunhão com o discurso da ciência, transformada em tecnociência e inscrita como S2 no lugar do trabalho, e o fruto desse casamento são os gadgets, os pequenos objetos produzidos pela ciência e ofertados no mercado para consumo. O objeto perde então sua dimensão de objeto perdido, causa do desejo, e passa a se oferecer nas prateleiras como promessa de gozo, anunciando a possibilidade de forclusão da castração.

Trata-se, evidentemente, de um engodo. Uma relação entre sujeito e objeto que não esteja bloqueada nem pela barreira da impotência nem pela barreira da impossibilidade, o objeto enfim acessível que procuraria ao sujeito a plena satisfação, só tem existência na propaganda capitalista. Na prática, o gadget é efêmero e captura o consumidor em uma relação compulsiva. Como nenhuma mercadoria produz o efeito esperado de suspender sua barra, o sujeito acaba se lançando vorazmente em um deslocamento metonímico maníaco, no qual é sempre o próximo lançamento que estará finalmente habilitado a suturar sua falta. Quanto mais se bebe, mais se tem sede, mal-entendido exaustivo que encontra seu fundamento no próprio estatuto do objeto mais-de-gozar. Em francês, a expressão plus-de-jouir joga com o equívoco da partícula plus, que pode ser lida simultaneamente como “mais” ou como “não mais”. Nesse sentido, o objeto a, quando deixa de fazer função de objeto causa do desejo para se apresentar como condensador de gozo na forma do mais-de-gozar, engendra, ao mesmo tempo, um gozo a mais e uma falta-de-gozar. Na realidade, o que Lacan demonstra, com a escrita do Discurso do Capitalista, é que os objetos do consumo prometem gozo e entregam falta. E o operário, distraído de sua exploração pela possibilidade de gozar da mercadoria, coloca a si a exigência de trabalhar mais para gozar mais, mas tudo o que ele colhe com esse empenho é sua cota na distribuição da falta-de-gozar.

A forclusão da castração não é, portanto, alcançável pela via do Discurso do Capitalista. O discurso do mestre moderno não tem como efeito uma desarticulação psicótica da realidade que é estruturada pela fantasia. No entanto, ao deslocar a relação do sujeito com o Outro para engajá-lo em uma relação compulsiva com os gadgets produzidos pela tecnociência, esse não-discurso compromete a possibilidade do laço social e a dimensão da objetalidade, cujo apagamento impede a emergência do sujeito do desejo. O desejo, assim como o laço, supõe a falta, supõe a renúncia pulsional. Um objeto que se oferece como mercadoria, pretensamente disponível, rebaixa o desejo à dimensão da necessidade, na medida em que há sempre um objeto que lhe corresponde. É nesse sentido que falamos em um colapso da objetalidade onde há a vigência do Discurso do Capitalista. Em Lacan, passeur de Marx, Pierre BrunoBRUNO, P. Lacan, Passeur de Marx. Toulouse: Éditions Èrès, 2010. nos lembra que é o amor que faz suplência à inexistência da relação sexual. Quando o capitalismo promete a forclusão da castração, quando anuncia a possibilidade de existência da relação sexual, o resultado é que o amor caduca.

Considerações finais

Partindo do Projeto para uma Psicologia Científica, da Carta 52 e do artigo A negativa, buscamos refazer o percurso freudiano que vai da exclusão de das Ding, da Austossung primordial, ao surgimento da dimensão da objetalidade por meio da constituição da realidade estruturada como fantasia. Com Lacan, vimos a formulação do conceito de objeto a como causa do desejo no Seminário da Angústia, no qual se discute a caducidade dos objetos que estabelecem as zonas erógenas como bordas em torno de um furo, pelas quais a libido irá se deslocar em busca do objeto perdido. E, por fim, discutimos o colapso da objetalidade ocasionado pela vigência do Discurso do Capitalista.

Esse colapso não é sem consequências. Na contemporaneidade, deparamo-nos na clínica com acontecimentos de corpo que, diferentemente dos sintomas freudianos, parecem não revelar uma significação fálica. São sintomas que não demandam nada, nos quais a dimensão de satisfação pulsional se sobrepõe à dimensão de mensagem cifrada, o que dificulta a entrada em análise e o estabelecimento da transferência pela via da suposição de saber. Trata-se de um efeito do Discurso do Capitalista que, aliado à tecnociência, levou o objeto ao zênite da cultura. Fica então a exigência de retomarmos a discussão em um trabalho futuro, no qual possamos abordar esses efeitos na clínica.

REFERÊNCIAS

  • BRUNO, P. Lacan, Passeur de Marx Toulouse: Éditions Èrès, 2010.
  • FREUD, S. A negativa (1925). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)
  • FREUD, S. A perda da realidade na neurose e na psicose (1924). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19)
  • FREUD, S. Extratos dos documentos dirigidos a Fliess: Carta 52 (1896). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1)
  • FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12)
  • FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)
  • FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1)
  • FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)
  • FREUD, S. Um tipo especial de escolha objetal feita pelo homens. (Contribuições à psicologia do amor I) (1910). Rio de Janeiro: Imago , 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11)
  • LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10)
  • LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 5)
  • LACAN, J. Du Discours Psychanalytique Discours de Jacques Lacan à l’Université de Milan le 12 mai 1972 (1972). Disponível em: Disponível em: https://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1972-05-12.pdf Acesso em: 26 jul 2021.
    » https://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1972-05-12.pdf
  • LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. O seminário, 20)
  • LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17)
  • RABINOVITCH, S. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2021
  • Aceito
    24 Set 2021
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