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Do conceito de personalidade na tese de doutorado de Jacques Lacan1 Esta pesquisa foi financiada com a bolsa de pesquisa de pós-doutorado do CNPQ.

On the concept of personality in Jacques Lacan’s doctoral dissertation.

RESUMO:

O conceito de personalidade, central na tese de doutorado de Jacques Lacan, intitulada Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, parece figurar nesta obra, contudo, sem a devida clareza que sua nuclearidade exige. A complexa arquitetura deste conceito inclui sua subdivisão em três definições que, por suas vezes, aparecem em três diferentes níveis de manifestação. Neste trabalho, demonstraremos que é somente por meio de uma análise sistemática desta tríade tripla que o conceito de personalidade na Tese lacaniana pode ser plenamente elucidado.

Palavras-chave:
personalidade; paranóia; Lacan

Abstract:

The concept of personality, which is very important in Jacques Lacan’s doctoral dissertation, does not seem to be clear as it should. Its complex architecture includes its division in three definitions that appear in three different levels of manifestation. In this work, we shall demonstrate that only by a systematical analysis of this triple triad the concept of personality in Lacan’s Thesis can be completely elucidated.

Keywords:
personality; paranoia; Lacan

Sucede a nossos alunos enganarem-se em nossos escritos, por encontrarem “já presente” aquilo a que depois nos levou nosso ensino. Não será o bastante que o que ali se encontra não lhe tenha bloqueado o caminho?

Lacan, Escritos, 1966, p. 71.

INTRODUÇÃO

É bastante preciso o objetivo deste artigo: trata-se de uma explicitação e de uma análise daquilo que, em sua tese de doutorado - Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, doravante Tese -, Lacan entende por personalidade. Se o próprio título da Tese já nos dispensa da tarefa de comprovar a centralidade deste termo na obra, seu caráter nuclear não pode, por si só, nos servir como garantia de clareza ou mesmo de precisão epistemológica quanto ao uso que o então psiquiatra dele o faz.

“Na verdade”, diz Borch-Jacobsen, “sob a pena de Lacan estes termos permanecem um tanto quanto vagos” (BORCH-JACOBSEN, 1991BORCH-JACOBSEN, M. Lacan: the absolute master. Stanford: Stanford University Press, 1991., p. 22). E, se àquele que desenvolve qualquer tipo de pesquisa epistemológica, nuclearidade e vagueza conceituais aparecem como adjetivos que, tomados isoladamente, já justificam uma investigação aprofundada, a presença simultânea de ambos só pode colocar em caráter de urgência a análise do termo em questão.

Delineemos, pois, o modo de estruturação deste texto. Nossa análise se dará em três etapas, em uma tentativa de reproduzir a evolução do conceito ao longo da Tese. A princípio, avaliaremos aquilo que chamaremos de personalidade ilusória: trata-se do modo como, segundo Lacan, este termo apareceu, carregado de ilusões, no senso comum, na metafísica tradicional e na psicologia científica. Em seguida, procuraremos explicitar o esforço lacaniano de objetivação do conceito, ao que ele se refere como “definição objetiva dos fenômenos da personalidade” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 31).

Mas se, neste ponto, já teremos chegado ao fim do capítulo intitulado Posição teórica e dogmática do problema, no qual Lacan realiza a sua “Crítica da personalidade psicológica”, nem por isso teremos atingido nosso objetivo final. Resta-nos aquilo que chamaremos de personalidade paranóica. Isso porque mesmo os principais conceitos utilizados na Tese só terão sua definição completa a partir de sua confrontação sistemática com dados advindos da empiricidade: a análise de um caso de psicose paranóica, o caso Aimée.

Faz-se importante, finalmente, a ressalva de que esta tripartição do conceito lacaniano de personalidade está longe de constituir um mero artifício retórico: existe, de fato, algo que podemos chamar de uma tríade tripla estabelecida por Lacan em sua tese - até mesmo posta de modo razoavelmente explícito, em alguns trechos - mas que não é claramente tematizada. É esta tríade que estabelece uma relação de oposição entre três conceitos definidores da noção de personalidade em três níveis distintos de manifestação, que será o objeto de nossa análise.

Primeira tríade: a personalidade ilusória

Um termo “extremamente rico, mas que se presta a todos os tipos de confusão” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 20). Atentemo-nos a esta frase, pois é exatamente esse valor ambíguo, esta contribuição ao mesmo tempo providencial e desastrosa, que Lacan quer explicitar quando trata da personalidade “segundo a experiência comum”. Tal como Freud - que tinha feito questão de dar valor até mesmo à mística concepção dos sonhos como visões premonitórias1 1 “Mas tampouco se poderia rejeitar por completo a referência do sonho ao futuro, pois, após um laborioso esforço de interpretação, o sonho se apresentou como um desejo que o sonhador afigura como realizado: e quem colocaria em dúvida o fato de que os desejos humanos orientam-se predominantemente para o futuro?” (FREUD, 1907[1906]/1993, p. 7). - Lacan nunca deixará de lado aquilo que se apresenta como contribuição espontânea do pensamento popular ou de outras áreas de produção cultural.

Isto porque “a extração de todo resíduo metafísico” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 23) do conceito de personalidade já era palavra de ordem da psicologia ao menos desde Wundt. Mas aqueles que tentavam levar a cabo tal empreitada incidiam em dois erros: ou ingenuamente acreditavam “resguardar-se da metafísica ignorando seus dados” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 23) - tal como o organicista, que, ao fim e ao cabo, “erige seus conceitos em ídolos” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 316) - ou, então, acabavam por “perder de vista a realidade experimental, que as noções confusas da experiência comum recobrem” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 23).

É disso, precisamente, que se trata, aqui: feita a denúncia da ilusão em que está fundado o conceito de personalidade, resta ao psicólogo a tarefa de explicar a gênese de tal construção fantasiosa. Porque “o erro não é puro nada, é uma realidade incompleta que convém repor em seu lugar” (OGILVIE, 1991OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 1991., p. 20). Em outras palavras, o fato de que uma crença seja falsa em nada altera o seu valor fenomenológico. “Que o sujeito diga ‘eu’, acredita agir, prometa e afirme” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 28): eis um comportamento humano cujo valor concreto não pode ser desprezado. Vejamos, pois, o que Lacan depreende como sendo o conceito de personalidade presente na experiência comum, na “metafísica tradicional” e na “psicologia científica”.

Antes, no entanto, algo merece ser dito a respeito desta forma de classificação. Pois não é sem valor para nossa análise que - quase como um Descartes se referindo à tradição escolástica - Lacan coloque Aristóteles, Marco Aurélio, São Tomás de Aquino e Kant sob a mesma designação, compartilhando-a, ainda, com os “místicos” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 21). Não bastasse isso, a inclusão de tal discussão em uma tese científica ainda terá de ser devidamente justificada, sendo até mesmo afirmada como desnecessária “não estivesse [a metafísica tradicional] na origem das dificuldades que a depuração científica da noção [de personalidade] apresenta” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 23).

Por sua vez, o rótulo de “psicologia científica” parece bem se identificar àquilo que Georges Politzer chamava de “psicologia clássica”2 2 Referimo-nos aqui à obra clássica de Politzer, Crítica dos fundamentos da psicologia (POLITZER, 1928/1998). Publicada cinco anos antes da Tese de Lacan, este pequeno livro marcaria indelevelmente o cenário intelectual francês, em especial a sua recepção do pensamento freudiano. “O modo como Politzer se apropriou de Freud”, com efeito, “marcou decisivamente o destino da psicanálise na França” (MARIGUELA, 2005). . Na letra do pensador húngaro, esta é, antes, uma definição negativa do que positiva: a “psicologia clássica” é o lugar dos erros, das falhas, dos procedimentos falsos, das ilusões, enfim, de tudo aquilo que não deve ser feito. Trata-se assim de, com esta denominação, recensear pressupostos epistemológicos falsos, agrupando diferentes escolas que supostamente os compartilhariam, mas que “certamente não se reconheceriam sob esse título” (GABBI, 1998GABBI JR., O. Considerações sobre a eterna juventude da psicologia: o caso da psicanálise. In: POLITZER, Georges. Crítica dos Fundamentos da Psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Unimep, 1998., p. VI).

Mas apresentemos, enfim, nossa primeira tríade, para que então possamos analisar cada um de seus elementos:

“Síntese, intencionalidade, responsabilidade, tais são os três atributos que a crença comum reconhece na personalidade” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 21, grifos do autor).

Se a personalidade, para a experiência comum, aparece como uma síntese de nossa experiência interior, não é tão somente por constituir-se como uma afirmação, uma constatação da existência de um todo, de algo uno e coeso; muito mais do que isso, ela promove a organização de todas as nossas tendências, construindo ativamente este todo. A personalidade é, assim, não uma mera constatação, mas uma função de síntese. “Ela não só afirma nossa unidade, como ainda a realiza” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 20). É evidente que, para tanto, há de se afirmar a existência de uma realidade intencional, algo que oriente o sujeito a escolher algumas de suas tendências e a renunciar a outras, estas últimas sendo sacrificadas em nome de bens que ele julga serem maiores.

Diante desta experiência primeira, os “metafísicos tradicionais” e os “místicos” deram um passo além: conferiram realidade substancial a esta função sintética, dotaram-na de validade ontológica. E, para que as escolhas de cada sujeito pudessem ser efetuadas conforme o seu juízo, postulou-se um ato de livre-arbítrio, excluído da série causal comum a todos os outros elementos do mundo. Como se este eu-substancial pudesse ser causa última de seus atos, fazendo-se exceção às determinações impostas pelas leis naturais.

Chegamos, assim, ao terceiro termo da tríade: havendo um eu-substancial que permanece no tempo e que é capaz de hierarquizar suas tendências e ações, podemos, então, responsabilizá-lo pelos seus atos. A medida da responsabilidade será, portanto, o grau de proximidade ou afastamento entre síntese e intencionalidade: é irresponsável aquele cujas intenções não se consolidam como sínteses efetuadas na realidade; por outro lado, o sujeito responsável é justamente aquele capaz de colocar sua personalidade como “garantia que assegura, acima das variações afetivas, as constâncias sentimentais” ou, então, “acima das mudanças de situação, a realização de promessas” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 21).

Diante de tal cenário, pouco potente ter-se-ia mostrado a psicologia científica. Ela, como dissemos, ou bem acreditava livrar-se da metafísica pela omissão, num “desprezo por qualquer ‘ideologia’” - desprezo este que “lhe deixará sempre ignorar seu estranho erro” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 316) - ou, não menos grave, acabava por deixar de lado o valor fenomenológico de um sujeito que se crê e se apresenta como sendo uno e autônomo. De qualquer forma, em ambos os casos, ela acaba por jogar fora o bebê com a água do banho, transformando o sujeito em nada mais do que “o lugar de uma sucessão de sensações, de desejos e de imagens” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 24, grifo do autor).

Acompanhamos, assim, até aqui, uma denúncia, feita em tom evidentemente espinosano3 3 Lembremo-nos, com Marilena Chaui, que uma das mais fundamentais operações realizadas por Espinosa em sua Ética consiste na demolição do “edifício da metafísica do possível”, sobre cujos escombros seria enfim fundada uma “ontologia do necessário” (CHAUI, 1999, p. 906). Assim, na primeira parte de seu opus magnum, Espinosa pretende demonstrar apoditicamente que tudo decorre da livre necessidade da natureza divina e que, portanto, não há, na natureza, espaço para contingência. : uma concepção de liberdade como livre-arbítrio, de responsabilidade como ato moral, apanágio de um sujeito que possui o estatuto ontológico de substância autônoma, capaz de furtar-se ao determinismo da Natureza. Mas, “enquanto Espinosa, no contexto do pensamento clássico, insiste no caráter ilusório dessa liberdade, Lacan insiste, ao contrário, na existência e nos mecanismos dessa ilusão” (OGILVIE, 1991OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 1991., p. 20).

É, portanto, justamente nestas funções do que chamamos de personalidade ilusória que Lacan encontrará o mais rico material para sua “definição objetiva dos fenômenos da personalidade”. É ela que lhe servirá como fundamento para aquela que talvez seja a mais ousada empreitada de sua Tese: “a tentativa de reintroduzir o sujeito no âmbito da ciência sem, com isto, abalar os alicerces da objetividade” (SAFATLE, 1997SAFATLE, V. O amor pela superfície: Jacques Lacan e o aparecimento do sujeito descentrado. Tese de mestrado, Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 1997., p. 23). Passemos a ela.

Segunda tríade: a personalidade objetiva

São duas, dirá Lacan, as fontes de conhecimento a que podemos recorrer na tentativa de reforçar os pilares frágeis do conceito de personalidade: 1ª - aquilo que é subjetivamente experimentado, ou seja, podemos realizar uma análise introspectiva; e 2ª - aquilo que pode ser objetivamente constatado, ou analisado objetivamente.

Ocorre que “a introspecção disciplinada só nos oferece perspectivas muito decepcionantes” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 24). A dita função intencional aparece, dados os seus fracassos constantes, antes como uma incapacidade: constata-se a impossibilidade de realização de uma autogestão de nossas tendências, ficando clara a impotência do sujeito em promover sua autodeterminação face às influências vindas do exterior.

Com o ocaso deste elemento da tríade, os outros dois se desvanecem imediatamente. Pois o que se torna a síntese, senão meras “tentativas de síntese, sujeitas a fracassos” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 25)? E, se não há continuidade, se não há um eu que permanece ao longo do tempo, não há como falarmos em alguém que possa ser responsabilizado pelos seus atos. A noção de personalidade, desta forma, desaparece completamente, dando lugar a uma interminável “sucessão de personalidades” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 25). Atacado em seu ponto frágil, o sujeito desmorona com uma facilidade tamanha que dá a medida da importância do seguinte alerta de Lacan:

É demasiado fácil o jogo, para a crítica psicológica, com esses novos dados da introspecção, de conceber a pessoa como o elo sempre pronto a se romper, e aliás arbitrário, de uma sucessão de estados de consciência, e de aí apoiar sua consideração teórica de um eu puramente convencional. (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 25-26).

Assim, seguindo-se a tradição legada por Bichat, tenta-se produzir conhecimento sobre o homem exigindo-se do sujeito o silêncio de um cadáver. Pois nenhuma de suas ilusões pode interessar àquele que deseja, justamente, livrar-se delas. Mas será precisamente neste ponto, no limite de seu desaparecimento, que Lacan promoverá o retorno da noção de sujeito aos domínios da objetividade. “É aqui que deve intervir o ponto de vista objetivo que devolve seu verdadeiro peso à noção que parece se desvanecer” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 26). Em tons politzerianos, o sujeito retornará como o reencontro do sentido4 4 Como bem resume Bento Prado Jr., “para Politzer, a psicanálise é, ao mesmo tempo, descoberta do sentido da subjetividade e descoberta da subjetividade do sentido” (PRADO JR., 1991, p. 22, grifo do autor). Na pena do pensador húngaro, “o fato psicológico é aquilo que sempre procura realizar uma aspiração de sentido” (SAFATLE, 2008), sentido que emerge da necessidade que tenho de “representar minha vida não apenas para mim, mas para o outro que trago pressuposto enquanto garantia de compreensibilidade de cada gesto que faço” (SAFATLE, 2008). nas palavras do paciente, outrora silenciadas.

Eis os três elementos objetivamente constatados que substituirão aquela tríade ilusória:

1. um desenvolvimento biográfico [...]

2. uma concepção de si mesmo [...]

3. uma certa tensão das relações sociais [...]. (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 31).

Por desenvolvimento biográfico, Lacan compreende “uma evolução típica” e “as relações de compreensão que aí podem ser lidas” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 31, grifo do autor). Para bem compreendermos este primeiro termo da tríade, devemos, portanto, esclarecer os dois conceitos que a compõem.

O que é chamado de “evolução típica” pode melhor ser entendido pelo termo “estruturas reativas”, que lhe é permutável na Tese. Com este conceito, Lacan opõe à contingência dos acontecimentos do mundo uma tipicidade de reação, uma forma padronizada de reação, “comum ao normal dos homens” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 26). Trata-se de uma regularidade de fundo eminentemente biológico, motivo pelo qual Lacan diz se tratar de “uma lei evolutiva, em lugar de uma síntese psicológica” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 27). Ocorre que esse fundo biológico é, em si, desprovido de sentido. Muito longe de encontrar significados no processo maturacional, Lacan encontra aí uma simples regularidade, que funciona como ocasião para que “nós observadores” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 27) façamo-la compreensível.

E é com o conceito de origem jaspereniana de relações de compreensão5 5 Trata-se, aqui, da distinção diltheyniana entre: por um lado, fenômenos que se conectam de um modo que é passível de ser explicado, ou seja, por relações de explicação (erklären), num regime de causalidade próprio às ciências da natureza (Naturwissenschaft); e, por outro lado, fenômenos cujas conexões podem ser compreendidas, ou seja, onde encontramos relações de compreensão (verstehen), regime de causalidade este que caberia apenas às ciências do espírito (Geistwissenschaft). Nas palavras de Lacan: “[Os estados sucessivos da personalidade] Mesmo se, quando ocorrem em outrem, nós não somos capazes de deles participar afetivamente (einfühlen), eles tem para nós um sentido (verstehen), sem que tenhamos a necessidade de neles descobrir a lei de sucessão causal que nos é necessária para explicar (erklären) os fenômenos de natureza física” (LACAN, 1932/1987, p. 38). Jaspers ressalta, entretanto, que estas relações de compreensão, embora chamadas por alguns de causalidade de dentro, “só por analogia se podem dizer causais” (JASPERS, 1983, p. 361-362). Dirá ainda que “É erro sugerir que o psíquico seja setor da compreensão e o físico, setor da explicação causal, porque não existe fato real, de natureza quer física, quer psíquica, que, em princípio, deixe de ser acessível à explicação causal; os próprios fatos psíquicos podem subordinar-se à explicação causal” (JASPERS, 2003, p. 365). Ocorre que, diz Jaspers, dada a limitação do estágio atual de desenvolvimento da psicologia, nós ainda não seríamos capazes de encontrar as conexões causais, possíveis em princípio, no campo do psíquico. Por isso, em psicologia, “o conhecimento vem a satisfazer-se [...] ainda na apreensão de conexões inteiramente diversas. O psíquico ‘resulta’ do psíquico de maneira que é para nós compreensível” (JASPERS, 1983, p. 363). Ou seja: em relação a estes dois regimes de causalidade, não haveria naquele momento possibilidade de facto, embora houvesse de jure, de se promover a subsunção completa de um a outro. que Lacan irá instalar, em uma rede de natureza social, a possibilidade de valoração dos fenômenos da personalidade. Em relação a esta rede social,

o conjunto das relações fisiológicas, das quais ela evidentemente depende, mas quanto à qual é relativamente autônoma, determina uma ordem de realidade diferente, já que não é especificamente humana. (OGILVIE, 1991OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 1991., p. 27).

Portanto, compreender, neste contexto, significa “repor um fenômeno psíquico em seu nível próprio, humano” (OGILVIE, 1991OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 1991., p. 27). E não importa que este sentido com o qual dotamos aquilo que é a pura coisa desprovida de significados seja “tão pouco fundamentado quanto a interpretação homogênea (participacionista) que dá o primitivo ao conjunto dos fenômenos naturais” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 27, grifo do autor). O que é efetivamente importante é o fato de que conseguimos, assim, recuperar a legibilidade e garantir um valor objetivo àquilo que se nos apresentava como incompreensível.

Se a noção de síntese foi substituída pela de desenvolvimento biográfico, o segundo termo daquela tríade ilusória, a intencionalidade, sofrerá um deslocamento ainda maior, dando lugar à concepção de si mesmo. Uma alteração deste porte ocorre porque “a idéia de intencionalidade não cabe nesta análise objetiva de um desenvolvimento regular que, por mais compreensível que seja, deve ser submetido às exigências do determinismo científico” (SIMANKE, 2002SIMANKE, R. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. São Paulo: Discurso Editorial, 2002., p. 68-69). De fato, Lacan deixa claro que, em uma tese científica, não pode haver lugar algum para o ato voluntário ou para o ato de liberdade moral, já que, no conhecimento científico, “o determinismo é uma condição a priori e torna tal existência contraditória com seu estudo” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 28). Não é estranho, portanto, que encontremos no determinismo absoluto de Espinosa a estratégia lacaniana para a explicação da noção comum de intencionalidade6 6 Haveria muito a ser dito sobre a importância de Benedito de Espinosa para a tese de doutorado de Lacan. Dentre todas as inúmeras referências presentes na Tese, nenhuma ocupa lugares tão importantes: utilizando-a como abertura da obra, a título de epígrafe, e como fechamento, à guisa de conclusão, Lacan posiciona toda a sua tese como uma grande glosa à proposição 57 da terceira parte da Ética de Espinosa. Uma análise detida do sentido da escolha lacaniana por esta passagem espinosana deverá ser publicada por nós em breve. Ver também: MISRAHI. Robert. Spinoza en épigraphe de Lacan. Littoral, n. 3/4, fev. 1982. Paris: Editions Erès. .

“Pois os homens têm o hábito de formar idéias universais [...], idéias que tomam como modelos das coisas” (ESPINOSA, 2007ESPINOSA, B. Ética (1675). Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 265)7 7 Trata-se do prefácio à Ética IV. . Assim, o homem pensa, dirá Espinosa a título de exemplo, que a habitação é a causa final que lhe faz construir uma moradia. Mas isto que é considerado pelos homens como uma causa final “não se trata senão do próprio apetite humano” (ESPINOSA, 2007ESPINOSA, B. Ética (1675). Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 265), não se trata, portanto, senão do desejo de habitar uma casa, de algo anterior na série causal - uma causa eficiente, portanto - e que só “é considerado causa primeira, porque, em geral, os homens desconhecem as causas de seus apetites” (ESPINOSA, 2007ESPINOSA, B. Ética (1675). Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 265).

A explicação de Lacan para o conceito de intencionalidade é perfeitamente análoga. O sujeito, que tem o apetite de orientar sua conduta “segundo as imagens mais ou menos ‘ideais’ de si mesmo” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 31), ilusiona que estes ideais são causas finais e que seus desejos são desprovidos de causa. Essa imagem ideal, entretanto, não só é uma causa eficiente como também pode ser reduzida a complexos afetivos que se prendem a ontogênese do psiquismo, complexos nos quais poderemos encontrar uma tensão interna ao eu (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.). Ora, esta tensão não é senão “o conflito do Ich e do Über-Ich” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 28), ou seja: Freud é, aqui, aquele que realizaria o projeto espinosano de construir uma explicação para a causa de nossos apetites, impedindo-nos de considerá-los causas primeiras. Pois, se já sabemos que Lacan fará questão de destacar que o sentido do fenômeno psicológico “por mais ilusório que seja [...] tem sua lei”, ele não será menos enfático ao dizer que

mérito desta nova disciplina, que é a psicanálise, é nos ter ensinado a conhecer essas leis, a saber: aquelas que definem a relação entre o sentido objetivo de um fenômeno de consciência e o fenômeno objetivo a que corresponde [...]. (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 248).

Mas uma análise minuciosa da apropriação lacaniana das relações entre Eu e Supereu nos dispersaria por demais. O que nos interessa aqui é sobretudo a substituição de um ato moral por uma tensão social. Esta tensão, que caracteriza a conduta do sujeito, nos leva diretamente à terceira substituição de Lacan: é a tensão das relações sociais que assume o lugar deixado pela responsabilidade moral. Isto porque aquela “aparente autonomia do indivíduo é essencialmente relativa ao grupo” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 30), ou seja, aquilo que o sujeito reconhece como uma postura ética diz respeito, na verdade, aos modos pelos quais ele “se sente afetado em relação a outrem” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 31).

Aquela tríade ilusória encontra, assim, seu valor objetivo. Valor este que só podemos encontrar nesta

atitude vital típica do ser humano que consiste não apenas em submeter-se às determinações externas, mas retomá-las numa ordem de representação que é a da linguagem e dos comportamentos que são seus corolários (Lacan dirá mais tarde, “o simbólico”). (OGILVIE, 1991OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 1991., p. 28).

Atentemo-nos, no entanto, para um importante problema: por qual motivo, senão por uma arbitrariedade, abriríamos mão de encontrar relações explicativas para as estruturas da personalidade? Por que conceder este privilégio absoluto às ditas relações de compreensão? Em outras palavras, por qual motivo o nexo causal dos comportamentos humanos é buscado por Lacan no campo do social, e não do orgânico?

Esta questão é fundamental porque, se se tratar de uma simples escolha arbitrária, Lacan não estaria senão reeditando, em um plano epistemológico, o famigerado dualismo mente/corpo que, em um plano ontológico, a tradição acostumou-se a atribuir a Descartes8 8 “Vale a pena lembrar que, em Descartes, o homem é composto por três substâncias [e não duas]: a alma, o corpo e a união substancial entre alma e corpo” (SAFATLE, 1997, p. 32). . Deixaríamos de lado, então, as relações explicativas para dar-nos por satisfeitos com uma meia-resolução fornecida pelas relações de compreensão. Assim, “a análise psicopatológica passa a identificar explicação com compreensão e, no final das contas, a contentar-se com esta última” (SIMANKE, 2002SIMANKE, R. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. São Paulo: Discurso Editorial, 2002., p. 42).

A estratégia lacaniana de resolução deste dualismo explicação/compreensão se dará pelo progressivo esvaziamento de um dos pólos da oposição. Ou seja, se demonstrarmos que a personalidade não emerge de fatores orgânicos, isto é, se demonstrarmos que ela possui uma gênese exclusivamente social, neste caso, a opção pela compreensão em detrimento da explicação deixa de ser arbitrária e passa a ser necessária. Ao mesmo tempo, a análise que se atém às relações de compreensão deixa de ser parcial e passa a ser exaustiva, motivo pelo qual “objetividade e compreensão não devem excluir-se, sob pena de mutilar a visada ‘total’ da afecção em foco” (SIMANKE, 2002SIMANKE, R. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. São Paulo: Discurso Editorial, 2002., p. 92).

Mas, na Tese, esta gênese social da personalidade ainda terá de conviver com um certo âmbito de determinação biológica, não bem esclarecido pelo autor. Lacan chega mesmo a dizer que “A personalidade [...] joga com mecanismos de natureza orgânica [...]” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 33, grifo do autor) e que, inclusive, “Ela nada mais é do que uma organização desses mecanismos” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 34).

A devida resolução deste problema, portanto, só poderá acontecer quando Lacan - tanto com seu “estádio do espelho” quanto com o estruturalismo de Lévi-Strauss - puder identificar no sujeito uma negatividade originária, uma natureza que se lhe apresenta como um vazio fundamental, eliminando definitivamente aquele fundo biológico em relação ao qual as relações de compreensão, ainda que relativamente autônomas, mantinham uma dependência obrigatória, e extinguindo, assim, qualquer possibilidade de explicação das condutas humanas por uma via fisiológica.

Terceira tríade: a personalidade paranoica

Fique claro, de saída, que não deveremos, aqui, tratar daquilo que Lacan entende como paranoia em sua Tese senão na mais estrita medida em que isto nos esclareça o significado do conceito de personalidade, que lhe subjaz. Abordar exaustivamente esta entidade nosográfica, passando pelas chaves etiológica, diagnóstica, prognóstica e terapêutica da paranoia, não só ampliaria indevidamente nosso escopo, como nos desviaria de nosso foco9 9 Destaquemos, apenas, que a cada uma dessas chaves “devem corresponder as três subdivisões da personalidade: por exemplo, no que diz respeito à causa do sintoma, ela deve ser determinada em função da história do sujeito, de sua concepção de si mesmo e de sua situação em relação àqueles que o cercam; o mesmo se dará para a manifestação do sintoma e para seu tratamento” (CHARBONNEAU, 1997, p. 14). . O que, então, devemos compreender, é o valor exemplar que, por diversos motivos, a psicose paranoica possui para a Tese.

Explicitemos, então, nossa terceira e última tríade. Como dissemos, se essa relação de oposição entre três tríades não é claramente delineada por Lacan na Tese, ele não deixa de sugeri-la de modo bastante explícito:

Nada mais surpreendente do que simplesmente cotejar:

- por um lado, os três traços essenciais da descrição kraepeliniana da psicose: 1. evolução insidiosa (schleichend) do delírio que surge, sem hiato, da personalidade anterior; 2. e 3. as duas formas maiores, “de direção oposta, mas de combinação frequente” (Kraepelin) do delírio, delírio de grandeza e delírio de perseguição;

- por outro lado, a tripla função estrutural que nossa análise isolou da personalidade [...]. (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 46).

Nossa empreitada, portanto, é menos arriscada do que parece, uma vez que nada mais fazemos do que seguir uma sugestão dada pelo próprio autor, ainda que este não a tenha levado a cabo.

Tratemos do primeiro termo: a noção comum de “síntese”, já substituída pela definição objetiva de “desenvolvimento biográfico”, deve ser agora cotejada com a evolução sem hiato que se daria entre a personalidade paranoica e a personalidade anterior. Vejamos por quê.

Sabemos que aquilo que interessa a Lacan é sobretudo a possibilidade de sustentar que existem distúrbios mentais que não podem ser satisfatoriamente explicados por correlações orgânicas ou hipóteses causais funcionais: trata-se de problemas “psicogênicos”. Neste contexto, não há exemplo melhor do que o da psicose paranoica, quadro clínico marcado pela produção de delírios (em maior número) e alucinações (menos frequentes), mas que, na grande maioria das vezes, ocorrem na ausência de qualquer déficit cognitivo aparente. Assim, dirá Lacan que:

A psicose [...] assume aí, por contraste, todo o seu alcance que é o de escapar a este paralelismo [psicoorgânico] e revelar que, na ausência de qualquer déficit detectável pelas provas de capacidade [...], e na ausência de qualquer lesão orgânica apenas provável, existem distúrbios que [...] são todos eles distúrbios específicos da síntese psíquica. (LACAN, 1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 1-2, grifo do autor).

Mas o que significa dizer que a paranoia é um distúrbio da síntese psíquica? Essa formulação parece nos dizer que há algum tipo de mal-funcionamento interno ao sujeito, algo que afete uma função de síntese que ele, sozinho, seria capaz de realizar. Mas não se trata disso, em absoluto. Se Lacan identifica a noção de “síntese psíquica” à de “personalidade”, e se, como vimos, demonstra a gênese social desta última, isso só pode significar que essa síntese é, ela mesma, um produto social. Longe de ser uma função interna ao sujeito, esta síntese ocorre e lhe é dada pelo exterior. Ou seja, não é um eu-substancial, não é uma unidade psíquica - “unidade a que os mecanismos de personalidade excedem, e em muito” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 32) -, ou mesmo uma “consciência individual” que a realiza, pois ela é, antes, o resultado complexo da interação de diversos fatores externos ao sujeito:

Em outros termos, a personalidade não é “paralela” aos processos da neuraxe, nem mesmo apenas ao conjunto dos processos somáticos do indivíduo: ela o é à totalidade constituída pelo indivíduo e por seu meio ambiente próprio. (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 345, grifos do autor).

Que essa síntese seja resultado de um processo externo ao organismo do indivíduo, ainda que dele dependa - ou seja, que ela possua uma causalidade social, ao mesmo tempo em que possui um substrato orgânico - isso só ficará realmente evidente no estudo da psicose paranoica. E é este o sentido maior do apelo de Lacan à paranoia: as alucinações e os delírios do psicótico deixam mais do que claro o modo como uma síntese psíquica se impõe ao sujeito, aparecendo-lhe como algo que vem do exterior. Se, para nós, esta síntese é percebida ilusoriamente como o fruto de uma elaboração solipsista, para ele, paranoico, ela aparece de modo Real. Como se, em um certo sentido, fôssemos nós os delirantes, e fosse a alucinação a verdade da percepção.

Não sendo, portanto, o resultado do déficit de uma função, a paranoia é uma forma possível de síntese psíquica. Ela é, logo, o desenvolvimento de uma personalidade, dirá Lacan, ou, diremos mais simplesmente, ela é uma personalidade. E é por isso que falar da paranoia “em suas relações com a personalidade” só pode ser impreciso. Com efeito, décadas mais tarde, à ocasião de republicação da Tese, Lacan dirá que “a psicose paranoica e a personalidade não têm relações, pela simples razão de que são a mesma coisa” (LACAN, 2005 apudSAFATLE, 2007SAFATLE, V. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2007., p. 26). É verdade que há um nível de implicação desta frase - nível, digamos, mais profundo - que diz respeito ao modo “como a constituição do Eu do homem moderno [...] coloca em funcionamento uma dinâmica de identificações e de desconhecimento própria à paranoia” (SAFATLE, 2007SAFATLE, V. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2007., p. 26). Mas também há um nível mais imediato: pois fato é que dizer que alguma coisa possui relações com aquilo que, na realidade, esta alguma coisa é, já constitui uma contradição - ou, no mínimo, uma má formulação merecedora de retratação.

Os segundo e terceiro termos da tríade possuem uma relação ainda mais evidente com os seus termos correlativos nas duas tríades anteriores. Vimos como Lacan substituíra a noção de intencionalidade - obrigatoriamente avessa à ciência por negar o pressuposto fundamental do determinismo - por uma concepção de si mesmo. Sabemos, ainda, que se esta concepção está na gênese da noção de intencionalidade é somente porque ela é uma concepção idealizada, algo que pode funcionar como imagem ideal, como um modelo de si-mesmo que o sujeito forma na tentativa de garantir uma perspectiva clara para a orientação de sua conduta.

Ora, é precisamente esta concepção idealizada de si mesmo que, na paranoia, volta ao sujeito na forma de um delírio de grandeza - o segundo termo da tríade paranoica. Delírio que não passaria, então, de uma proximidade excessiva entre o sujeito e sua imagem idealizada, proximidade que não lhe permite construir tal imagem sem que com ela imediatamente se identifique. Isto impossibilita que este ideal lhe sirva como a possibilidade de realização de um “progresso dialético” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 31) da sua personalidade. Diz Lacan:

as idéias de grandeza da doente [Aimée] jamais comportaram nenhuma convicção presente de transformação de sua personalidade. [...] Tendem, com efeito, a se confundir com o ideal do eu da doente. (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 255-266, grifos do autor).

Nosso terceiro termo, por sua vez, identificado como responsabilidade moral pelo senso comum, na primeira tríade, fora substituído, na segunda, pela noção objetiva de tensão das relações sociais, tensão que Lacan identifica no conflito entre o Eu e o Supereu freudianos. Agora, tal tensão é tornada mais do que explícita nos delírios de perseguição do paranoico. Pois, se o Supereu é composto por representações de Ideais do Eu introjetadas10 10 “Em 1932, Lacan ainda não faz a distinção entre super-ego e Ideal do eu [...]” (SAFATLE, 1997, p. 36). , aquele que o paranoico elege como agente perseguidor também é, no fundo, seu tipo ideal. Como diz Lacan, “A mesma imagem que representa seu ideal é também objeto de seu ódio” (LACAN, 1932/1987LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 254). Trata-se, assim, de uma “impossibilidade de reconhecer a dependência à alteridade sem produzir explosões de rivalidade que acabam, por exemplo, sendo projetadas para fora de si na forma de delírios de perseguição” (SAFATLE, 2007SAFATLE, V. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2007., p. 21).

De fato, o drama vivido pelo paranoico é a ocasião mais clara para percebermos que aquilo que se traveste como uma rigorosíssima consciência moral não passa de um jogo social tenso, cujas regras são formuladas a partir de exigências de satisfação insensatas, impossíveis de serem saciadas e muitas vezes contraditórias, jogo que está na base da constituição psíquica do sujeito. Ou seja, mais uma vez, mergulhado que está em uma confusão narcísica que lhe impede de tomar uma certa distância de suas relações de identificação, o paranoico põe a nu uma estrutura comum a todos. O que nos leva à nossa breve conclusão.

CONCLUSÃO

Sumarizemos, enfim, de modo esquemático, a tripla tríade construída por Lacan na Tese:

Ao longo deste texto, vimos como a plena definição do conceito de personalidade exigiu de nós uma exposição realizada em três etapas, única forma de dar conta dessa tripla oposição cuja compreensão é, de fato, exigência para a explicitação do conceito de personalidade presente na Tese. E, se bem observado cada passo desta análise, não devem restar dúvidas de que o radical processo de reordenamento das relações entre o normal e o patológico, promovido por Lacan ao longo de toda sua experiência intelectual, tem início ainda em sua tese de doutoramento de 1932. Isso porque a demonstração de que a paranoia funciona como lugar privilegiado de estudo da personalidade acaba por, de um só golpe, exacerbar o caráter ilusório das crenças do senso comum - como que caricaturizando a metafísica que lhe subjaz - ao mesmo tempo em que resguarda o valor fenomenológico de suas noções.

Ou seja, ao mesmo tempo em que comprova a noção de desenvolvimento, a paranoia denuncia a ilusão de uma síntese solipsista e permite que se inicie o aparecimento do sujeito descentrado (SAFATLE, 1997SAFATLE, V. O amor pela superfície: Jacques Lacan e o aparecimento do sujeito descentrado. Tese de mestrado, Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 1997.) lacaniano. Por outro lado, ela desmonta a noção metafísica de intencionalidade como livre-arbítrio, bem como a noção moralista de responsabilidade11 11 Lembremos que o termo “responsabilidade” não é utilizado neste artigo senão no sentido estrito dado por ele a Lacan em sua Tese de 1932, isto é, como “garantia que assegura, acima das variações afetivas, as constâncias sentimentais” ou, então, “acima das mudanças de situação, a realização de promessas” (LACAN, 1932/1987, p. 21). , justamente porque a gênese de seus delírios é perfeitamente análoga à gênese destas ilusões - sendo ambas subsumíveis à constituição do sujeito, tal como este processo é descrito na metapsicologia freudiana.

Fique claro, não obstante, que nenhuma intenção nos é mais estranha do que a de efetuar uma espécie de percepção projetiva de conceitos tardios em um cenário do qual eles ainda estão ausentes. E é aqui que devemos recuperar a advertência lacaniana que nos serve de epígrafe. Pois, muito menos performático, mas não menos importante, talvez o que esteja sendo sugerido neste trabalho é que estruturar um pensamento que seja capaz de não bloquear os seus caminhos futuros não é das tarefas mais desprezíveis.

REFERÊNCIAS

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  • CHARBONNEAU, M. A. Science et metaphore: enquete philosophique sur la pensee du premier Lacan. Québec: Presses de l’Universite Laval, 1997.
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  • FREUD, S. El delirio y los sueños en la “Gradiva” de W. Jensen (1907 [1906]). Buenos Aires: Amorrortu, 1993. (Obras completas)
  • GABBI JR., O. Considerações sobre a eterna juventude da psicologia: o caso da psicanálise. In: POLITZER, Georges. Crítica dos Fundamentos da Psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Unimep, 1998.
  • JASPERS, K. Psicopatologia Geral: Psicologia compreensiva, explicativa e fenomenológica (1913). Atheneu: São Paulo, 2003.
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  • OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
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  • PRADO-JR., B. Georges Politzer: 60 anos da Crítica dos Fundamentos da Psicologia. In: PRADO JR., B. (org.). Filosofia da psicanálise São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • SAFATLE, V. O amor pela superfície: Jacques Lacan e o aparecimento do sujeito descentrado. Tese de mestrado, Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 1997.
  • SAFATLE, V. Anotações de aula relativas ao curso A constituição da racionalidade da clínica psicanalítica: o caso Jacques Lacan, ministrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 2008.
  • SAFATLE, V. Lacan São Paulo: Publifolha, 2007.
  • SIMANKE, R. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. São Paulo: Discurso Editorial, 2002.
  • Esta pesquisa foi financiada com a bolsa de pesquisa de pós-doutorado do CNPQ.
  • 1
    “Mas tampouco se poderia rejeitar por completo a referência do sonho ao futuro, pois, após um laborioso esforço de interpretação, o sonho se apresentou como um desejo que o sonhador afigura como realizado: e quem colocaria em dúvida o fato de que os desejos humanos orientam-se predominantemente para o futuro?” (FREUD, 1907[1906]/1993, p. 7).
  • 2
    Referimo-nos aqui à obra clássica de Politzer, Crítica dos fundamentos da psicologia (POLITZER, 1928/1998). Publicada cinco anos antes da Tese de Lacan, este pequeno livro marcaria indelevelmente o cenário intelectual francês, em especial a sua recepção do pensamento freudiano. “O modo como Politzer se apropriou de Freud”, com efeito, “marcou decisivamente o destino da psicanálise na França” (MARIGUELA, 2005).
  • 3
    Lembremo-nos, com Marilena Chaui, que uma das mais fundamentais operações realizadas por Espinosa em sua Ética consiste na demolição do “edifício da metafísica do possível”, sobre cujos escombros seria enfim fundada uma “ontologia do necessário” (CHAUI, 1999, p. 906). Assim, na primeira parte de seu opus magnum, Espinosa pretende demonstrar apoditicamente que tudo decorre da livre necessidade da natureza divina e que, portanto, não há, na natureza, espaço para contingência.
  • 4
    Como bem resume Bento Prado Jr., “para Politzer, a psicanálise é, ao mesmo tempo, descoberta do sentido da subjetividade e descoberta da subjetividade do sentido” (PRADO JR., 1991, p. 22, grifo do autor). Na pena do pensador húngaro, “o fato psicológico é aquilo que sempre procura realizar uma aspiração de sentido” (SAFATLE, 2008), sentido que emerge da necessidade que tenho de “representar minha vida não apenas para mim, mas para o outro que trago pressuposto enquanto garantia de compreensibilidade de cada gesto que faço” (SAFATLE, 2008).
  • 5
    Trata-se, aqui, da distinção diltheyniana entre: por um lado, fenômenos que se conectam de um modo que é passível de ser explicado, ou seja, por relações de explicação (erklären), num regime de causalidade próprio às ciências da natureza (Naturwissenschaft); e, por outro lado, fenômenos cujas conexões podem ser compreendidas, ou seja, onde encontramos relações de compreensão (verstehen), regime de causalidade este que caberia apenas às ciências do espírito (Geistwissenschaft). Nas palavras de Lacan: “[Os estados sucessivos da personalidade] Mesmo se, quando ocorrem em outrem, nós não somos capazes de deles participar afetivamente (einfühlen), eles tem para nós um sentido (verstehen), sem que tenhamos a necessidade de neles descobrir a lei de sucessão causal que nos é necessária para explicar (erklären) os fenômenos de natureza física” (LACAN, 1932/1987, p. 38). Jaspers ressalta, entretanto, que estas relações de compreensão, embora chamadas por alguns de causalidade de dentro, “só por analogia se podem dizer causais” (JASPERS, 1983, p. 361-362). Dirá ainda que “É erro sugerir que o psíquico seja setor da compreensão e o físico, setor da explicação causal, porque não existe fato real, de natureza quer física, quer psíquica, que, em princípio, deixe de ser acessível à explicação causal; os próprios fatos psíquicos podem subordinar-se à explicação causal” (JASPERS, 2003, p. 365). Ocorre que, diz Jaspers, dada a limitação do estágio atual de desenvolvimento da psicologia, nós ainda não seríamos capazes de encontrar as conexões causais, possíveis em princípio, no campo do psíquico. Por isso, em psicologia, “o conhecimento vem a satisfazer-se [...] ainda na apreensão de conexões inteiramente diversas. O psíquico ‘resulta’ do psíquico de maneira que é para nós compreensível” (JASPERS, 1983, p. 363). Ou seja: em relação a estes dois regimes de causalidade, não haveria naquele momento possibilidade de facto, embora houvesse de jure, de se promover a subsunção completa de um a outro.
  • 6
    Haveria muito a ser dito sobre a importância de Benedito de Espinosa para a tese de doutorado de Lacan. Dentre todas as inúmeras referências presentes na Tese, nenhuma ocupa lugares tão importantes: utilizando-a como abertura da obra, a título de epígrafe, e como fechamento, à guisa de conclusão, Lacan posiciona toda a sua tese como uma grande glosa à proposição 57 da terceira parte da Ética de Espinosa. Uma análise detida do sentido da escolha lacaniana por esta passagem espinosana deverá ser publicada por nós em breve. Ver também: MISRAHI. Robert. Spinoza en épigraphe de Lacan. Littoral, n. 3/4, fev. 1982. Paris: Editions Erès.
  • 7
    Trata-se do prefácio à Ética IV.
  • 8
    “Vale a pena lembrar que, em Descartes, o homem é composto por três substâncias [e não duas]: a alma, o corpo e a união substancial entre alma e corpo” (SAFATLE, 1997, p. 32).
  • 9
    Destaquemos, apenas, que a cada uma dessas chaves “devem corresponder as três subdivisões da personalidade: por exemplo, no que diz respeito à causa do sintoma, ela deve ser determinada em função da história do sujeito, de sua concepção de si mesmo e de sua situação em relação àqueles que o cercam; o mesmo se dará para a manifestação do sintoma e para seu tratamento” (CHARBONNEAU, 1997, p. 14).
  • 10
    “Em 1932, Lacan ainda não faz a distinção entre super-ego e Ideal do eu [...]” (SAFATLE, 1997, p. 36).
  • 11
    Lembremos que o termo “responsabilidade” não é utilizado neste artigo senão no sentido estrito dado por ele a Lacan em sua Tese de 1932, isto é, como “garantia que assegura, acima das variações afetivas, as constâncias sentimentais” ou, então, “acima das mudanças de situação, a realização de promessas” (LACAN, 1932/1987, p. 21).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2020
  • Aceito
    11 Nov 2021
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