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STELLA DO PATROCÍNIO E A METÁFORA DELIRANTE

Stella do patrocínio and the delirious metaphor.

RESUMO:

Em busca de saber se o insignificante pode ou não falar, este artigo se detém na poética proferida de Stella do Patrocínio, articulando os campos da psicanálise, da teoria da literatura e da filosofia. Discute-se, para tanto, o que é simbolizável no discurso delirante, e o que permanece à margem, impedido de ser interpretado totalmente. A metáfora, enquanto elaboração do Simbólico, norteia esta investigação, ao trazer para a discussão o pensamento estruturalista das figuras de linguagem, e uma orientação pós-estruturalista, que não toma a linguagem como código, mas como fluxo, a subverter a lógica da representação.

Palavras-chave:
metáfora; metáfora delirante; Stella do Patrocínio

Abstract:

In search of whether the insignificant can speak or not, this article focuses on Stella do Patrocínio’s poetics, articulating the fields of psychoanalysis, literature’s theory and philosophy. Therefore, it discusses what is symbolizable in the delirious discourse, and what remains on the sidelines, prevented from interpreting itself. Metaphor, while elaborating the Symbolic, guides this investigation, by bringing to the discussion the structuralist thinking of figures of speech, and a post-structuralist orientation, which does not take language as code, but as flow, to subvert the logic of representation.

Keywords:
metaphor; delusional metaphor; Stella do Patrocínio

Ayúdame a no pedir ayúda

(Alejandra Pizarnik)

1 Não há a não metáfora

A relação entre linguagem e loucura permanece sendo não apenas um enigma, mas um dispositivo potente de desconstrução do projeto moderno de racionalidade, na medida em que nos provoca a rever o complexo vínculo entre pathos e cultura. Ao tornar sensíveis outras experiências do pensamento, atesta-se a existência de uma zona de vizinhança diferida entre a desrazão, a palavra e o sentido, que em diversas frentes provoca a sensatez de nossos argumentos. A obra de Freud é exemplar em nos advertir para a importância da ampliação do pensável e do pensante, como quando indica, em Neurose e psicose a semelhança entre o novo mundo construído pelo psicótico e o sonho. Do conflito entre o Eu e o mundo exterior, engendra-se o delírio, este “remendo colocado onde originariamente havia surgido uma fissura” (FREUD, 1924/2019bFREUD, S. Neurose e psicose (1924). FREUD, S. Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2019b, p. 271-278., p. 273). No mesmo ano de 1924, Freud escreve outro artigo para dizer da perda de realidade nas duas estruturas, neurótica e psicótica, que se defendem, às suas maneiras, às pulsões ameaçadoras do Isso; enquanto a primeira faria do mundo de fantasia um significado simbólico, a segunda alojaria esta elaboração fantástica na própria realidade.

O fantasiar é inerente às duas estruturas, portanto. O que alguns pensadores chamaram de Fora1 1 Na homenagem de Gilles Deleuze a Foucault, são abordadas três instâncias que formariam uma espécie de topologia diagramática do pensamento foucaultiano, da qual fazem parte o Saber (composto pelo enunciável e pelo visível), o Poder (enquanto atualização do enunciado e da visibilidade) e o Fora (âmbito do devir e das forças). A articulação desses planos corresponderia à própria subjetivação. Assim, Deleuze descreve a importância do Fora para toda essa articulação, que encontra correspondência também em Maurice Blanchot: “Se ver e falar são formas da exterioridade, pensar se dirige a um lado de fora que não tem forma. Pensar é chegar ao não-estratificado. Ver é pensar, falar é pensar, mas o pensar opera no interstício, na disjunção entre ver e falar. É o segundo encontro de Foucault com Blanchot: pensar cabe ao lado de fora, na medida em que este, ‘tempestade abstrata’, mergulha no interstício entre ver e falar. O apelo ao lado de fora é um tema constante em Foucault, e significa que pensar não é o exercício inato de uma faculdade, mas deve suceder ao pensamento” (DELEUZE, 2013b, p. 93-94). Já Blanchot diz deste lado de fora em O espaço literário enquanto prova da impossibilidade da obra, ao fazer dela uma experiência do invisível, do desaparecimento, do esquecimento, do vazio, do não-essencial, do indistinto. apenas desempenha papéis diferentes: na neurose, ele se apoia em uma “parte da realidade”, enquanto no delírio, deixando-se subjugar pelo Isso, se aloja “no lugar da realidade exterior” (FREUD, 1924/2019aFREUD, S. A perda de realidade na neurose e na psicose (1924). In: FREUD, S. Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019a, p. 279-286., p. 284). Sabemos que muito foi dito, posteriormente, dessa impossibilidade de acesso ao Simbólico na estruturação psicótica, uma vez que o sujeito, forcluído da metáfora paterna, estaria preso entre o Imaginário e o Real. Na estrutura tripartite lacaniana, o Simbólico está ligado à alternância entre ação e conhecimento, considerando que a entrada neste domínio corresponde precisamente ao campo delimitado pelo pai enquanto representante da norma e da linguagem, o que inscreve o sujeito na economia das filiações, trocas e normas. Para certo Lacan, a estrutura psicótica não disporia desta referência paterna, ao negar a castração, isto é, ao negar a própria negação. Assim, o campo da linguagem, estabelecido em torno deste lugar organizador, ficaria comprometido. Mas, alojando a fantasia na realidade, não estaria o discurso delirante provocando uma outra experiência de produção de sentido, em que o Simbólico se manifesta enquanto pós-estrutura anti-parentesco? Não seria essa interdição ou irrealização o que garantiria uma produção significante a esquivar-se dos sistemas, neutralizando os binarismos e inoperando as estruturas?

Para entender o acontecimento (ou acometimento) da linguagem psicótica, é preciso retomar, com Lacan, a questão da articulação metafórica e metonímica do sujeito, para que se evidencie o que estaria impedido de simbolizar, e que volta ou “se aloja” no Real. No cerne das apropriações linguísticas lacanianas, assim como também em Freud, encontramos a ideia do transporte como principal dispositivo dos afetos e produções de sentido a que respondemos, e da transferência enquanto “atualização da realidade no inconsciente” (LACAN, 2008, p. 147). Tal discussão é central para compreendermos que as estruturas do pensamento se mantêm criativamente em mudança, em deslocamento pelo espaço estruturado pelo vazio. No caso de um deslizamento sem fixação, o discurso delirante se manifesta em confronto com os sistemas simbólicos do parentesco, ao mesmo tempo em que desuniformiza as relações de troca que atingem a linguagem no Real.

De todo modo, sabemos que a referência é como que isolada na concepção psicanalítica da nossa fala. Em A instância da letra no inconsciente, Lacan estabelece a ideia de uma estrutura literante pautada na concepção de que o verbo é o começo, e que o significante é espacializante, o que provoca toda forma de acesso ao saber. A epífora, usada por Aristóteles para descrever a metáfora, diz, de outro modo, desse mesmo processo de significação espacial, que opera pela transferência de sentido de um lugar para outro, do próprio para ou pelo alheio. Essa instância, ou instante da letra, que só é vista quando deslocamos o olhar, assume a dimensão de “álibi da verdade” (LACAN, 1999LACAN, J. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar , 1999. (O seminário, 5), p. 28), na medida em que testemunha a impossibilidade do sentido de apresentar-se em seu próprio lugar2 2 Curioso notar como, para abordar o Fora, Blanchot se refere ao mito de Orfeu enquanto mudança de paradigma para a obra, na medida em que sua ruína se deve do fato de ter sido olhada, de onde conclui o pensador: “A profundidade não se entrega frontalmente, só se revela dissimulando-se na obra” (BLANCHOT, 1987, p. 172). ; afinal muito pouco dele já está dado, e sua construção tem a ver mais com o ato. As associações livres e as interpretações em precipitação fazem parte do processo performativo de formação do inconsciente.

Este, estruturado como linguagem, operaria, então, a partir de dois principais procedimentos de deslocamento, que até o momento eram conhecidos na retórica como figuras de linguagem, sendo a metáfora, a lógica de “uma palavra por outra” (LACAN, 1998aLACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998a., p. 510), enquanto a metonímia responderia pelo procedimento de “palavra em palavra” (LACAN, 1998aLACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998a., p. 509). A percepção do inconsciente como vir-a-ser do sentido em movimento desbanca a ideia de um reservatório, a que estes tropos recorreriam para, no fim das contas, encobri-los com o véu dos dispositivos de negação. A rigor, Lacan recupera toda uma discussão sobre as figuras de linguagem, anterior à formação do campo da linguística, mas que, no século XVIII, ainda faz prevalecer a ideia da linguagem figurada como ornamento, acessório e desvio de um sentido primeiro, próprio e regular.

Em seu Teorias do símbolo, Tzvetan Todorov, para descrever a passagem do momento de esplendor para o da miséria da retórica, mostra como mesmo o gramático do século XVIII, César Chesneau du Marsais (referência para a Encyclopédie de Diderot), não teria sido “capaz de superar um dos paradigmas mais persistentes da cultura ocidental clássica, segundo o qual o pensamento é mais importante do que a sua expressão” (TODOROV, 2014TODOROV, T. Teorias do símbolo. São Paulo: Editora Unesp, 2014., p. 157). É em recusa a essa tradição, que dualiza o interior e o exterior, o próprio e o impróprio, o original e o derivado, que Lacan irá recorrer à linguística para mostrar como a figuração metonímica ou metafórica é a estrutura mesma da linguagem, posto que no transporte ressalta-se a ideia de que há um mais além da palavra que resta não-dito. No discurso, intercalaríamos o procedimento de substituição com o de condensação, deslocando para fazermos referência, modificando o todo que o enunciado significante sinaliza. A literalidade não seria viável, ainda que o homem fale “porque o símbolo o fez homem” (LACAN, 1998cLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998c., p. 278), inserindo-o no campo das trocas simbólicas. Assim, é figurando a linguagem que habitamo-la (ou somos habitados por ela, no delírio), é metaforizando que criamos em ato a referência, sendo que mesmo o referir-se já é sempre articulação, combinação, para não dizer substituição, através da qual se formam aquelas estruturas elementares do parentesco que constitui nossa gramática ou nosso querer-dizer. A verdade, entretanto, não é dita senão pela natureza da resistência, na qual a elipse, a suspensão, a digressão ou a ironia revelam essa exigência da movimentação significante. “É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos em dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata. Ela exige que nos mexamos. Não se pode atingi-la por uma simples habituação” (LACAN, 1998aLACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998a., p. 525).

Na perspectiva lacaniana, não há palavra primeira, signo que articularia significado mais significante, apenas uma metáfora fundadora que responde pela entrada do pai como interdição e norma, a partir da castração simbólica. O diálogo com Roman Jakobson se faz pela teoria de que na linguagem ou selecionamos ou combinamos, ou condensamos ou deslocamos. A metáfora paterna é, portanto, a origem, a representação e o substituto da lei. Quando esta função paterna é recalcada, produz-se um buraco a partir do qual algo é simbolizado, e que nos neuróticos produz-se no sintoma enquanto “via do compromisso” (FREUD, 2019bFREUD, S. Neurose e psicose (1924). FREUD, S. Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2019b, p. 271-278., p. 272). Mas, nos casos em que a função paterna falta, a função organizadora do Nome-do-pai falha em oferecer a amarração entre Imaginário, Simbólico e Real, necessária à metaforização neurótica. Este seria o entendimento estruturalista da fundação das normas, que atravessa o campo linguístico à regulação social, e que implica, portanto, em determinada comunicabilidade pela qual a cultura se organiza. Fora deste arranjo, haveria várias maneiras de se compreender a esquizofrenização da linguagem, sensível a cada vez que o discurso investe na materialidade das palavras, isto é, quando se observa certo devir-coisa da palavra, que submete o significado ao jogo formal da enunciação, e que provoca uma des-estagnação da ordem sexual e textual.

Contardo Calligaris é um dos que defendem, em consonância com a teoria lacaniana dos últimos seminários, que este estar preso entre o Imaginário e o Real não é o mesmo que estar terminantemente excluído do Simbólico. Há, é claro, significantes, assim como há também significação, mas o processo de estar “tomado na estrutura da linguagem” (CALLIGARIS, 2013, p. 31) se revela como um discurso à deriva, sendo o linguístico, neste caso, “relacionado a um saber sem sujeito suposto”, diferentemente da enunciação neurótica em que “o que sustenta o saber e o sujeito é sempre a referência ao pai” (CALLIGARIS, 2013, p. 29). O sujeito sem suposto saber, na nossa perspectiva, implica as palavras em uma desorquestração da cena, já não pautada pela triangulação edipiana, e para a qual são convidados aqueles que não têm papel definido. Lacan entende que a metáfora é a via para que diferenciemos quando o agente produtor está no Simbólico, isto é, na linguagem, e quando ele estaria no Real, sem estrutura e sem garantias de uma filiação simbólica - o que concorre, necessariamente, para que o drama do inconsciente não se faça enquanto representação clássica, mas performance na qual ator e público já estão indeterminados.

Tal discussão nos interessa quando observamos o uso metafórico da linguagem em obras como a de Stella do Patrocínio, cujos falatórios gravados em fitas, durante um curto período das três décadas em que esteve internada, nos provocam a rever tal condição de produção significante em uma cena bastante peculiar. Se a estrutura psicótica é o universal negativo, porque decalcada da estrutura neurótica, parece-nos que o uso da metáfora assinala o lugar da absoluta singularidade, quando o sujeito não foi ainda totalmente capturado pelo sistema das trocas e dos parentescos. Lembremos quando Barthes descreve a relação entre o eu e a estrutura: “A identificação não é de caráter psicológico; é uma pura operação estrutural: sou aquele que ocupa o mesmo lugar que eu” (BARTHES, 2003BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003a., p. 207). Se esta singularidade, por sua vez, excluída da estrutura da identificação, aloja a fantasia no lugar do Real, o sujeito é nômade no campo das filiações - o que não significa que este deambular se faça sem restrições e interdições, como veremos adiante. Haveria aí algo da ordem de uma atopia, isto é, de uma desterritorialização constante, perceptível na preferência pelas alianças intempestivas ao invés dos parentescos duradouros. Todo o mapa, no entanto, se refaz a cada lance de passos. Considerando que certo discurso, rasgado do Simbólico, não faz laço, isto não nos parece o mesmo que afirmar que não há metáfora, posto que nesses poemas a figuração da linguagem é criativa, figurando o Real a partir de um “ver como” (RICOEUR, 2015RICOEUR, P. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2015., p. 102) que, ao menos para Lacan, não seria da ordem de uma simetria dos elementos em questão, nem de uma ordenação regulada dos vetores. Aqui, a teoria-interação da qual Ricoeur nos fala, coloca em relação o irredutível dos termos emergentes, e não a estrutura de mobilização do próprio. Se todos esses mecanismos não se organizam simbolicamente em um centro, devemos nos perguntar se, fora do símbolo, não se experimentaria um devir-coisa da palavra, uma alegoria significante, em que a figuração da linguagem é a expressão de uma intraduzibilidade3 3 Entende-se o intraduzível aqui não apenas no sentido que dá Ricoeur à figura de linguagem, mas sobretudo a partir da obra de Bárbara Cassin, cuja origem no Vocabulaire Européen des filosophies: dictionaires des intraduisibles, publicado em 2004, desdobra-se em outros volumes, com o intuito de tomar a tradução como dispositivo de crítica à universalidade dos conceitos filosóficos. A edição brasileira, organizada por Fernando Santoro e Luisa Buarque, se propõe a pensar filosoficamente o funcionamento de línguas, identificadas em verbetes, a formar uma constelação de intraduzíveis, tratados como “o que não se cessa de traduzir” (CASSIN apud SANTORO; BUARQUE, 2018, p. 5). subjetiva no nível do significado, ainda que traduzível no nível da figura.

2 Rua Voluntários da Pátria

Reino dos bichos e dos animais é o meu nome foi organizado postumamente pela filósofa, poeta e psicanalista Viviane Mosé, que contou com o auxílio daquelas que transcrevem as fitas gravadas no período entre 1986 e 1989, na Colônia Juliano Moreira, onde Stella4 4 A opção por Stella, com dois “l”s, considera a pesquisa de campo feita por Anna Carolina Vicentini Zacharias, em sua dissertação intitulada Stella do Patrocínio: da internação voluntária à poesia brasileira, que narra a busca pelo seu registro de nascimento no Detran do Rio de Janeiro e confirma esta grafia. Além disso, como se trata do nome não da “autora da obra, mas do seu conteúdo” (ZACHARIAS, 2020, p. 17), conforme pontua Zacharias, optamos por recuperar este nome de registro. viveu por quase trinta anos. Originalmente, estas fitas são resultado do trabalho das estagiárias de arte e psicologia da Colônia, respectivamente Carla Guagliardi e Mônica Ribeiro de Souza, interlocutoras de Stella. Estes poemas falados (ou proferidos, diria Roland Barthes, em alusão ao dispêndio), também chamados pela própria enunciadora de falatórios, nos provocam no sentido de entender a forma de significação que se constrói a partir daquela estrutura literante, inencontrável frontalmente, que responde pelo inconsciente. No segundo texto da obra, um dos únicos consideravelmente extensos, do ponto de vista da linearidade e da narratividade (o que já marca uma diferença quanto à ideia da loucura como excesso ininteligível), é descrito o seu processo de captura e internação, o que irremediavelmente lhe inscreve em um espaço reflexivo no qual o falar e o ser falada se misturam:

Eu vim pra Colônia porque eu estava andando na Rua Voluntários da Pátria ao lado do Luís, com um óculos, vestido azul, sapato preto, com uma bolsa branca com um dinheiro dentro, porque eu ia pegar o ônibus e ia saltar na Central do Brasil, na Central do Brasil eu ia tomar uma refeição, ia tomar um ônibus na Central do Brasil que ia pra Copacabana, aí eu peguei o carro ainda na Rua Voluntários da Pátria com o Luís, ao lado do Luís, o Luís foi ao bar, eu estava ao lado do Luís, caminhando ao lado do Luís na rua Voluntários da Pátria ao lado do Luís [...]. (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 40).

Em uma perspectiva estruturalista, se o que produz a metáfora delirante é precisamente a ausência da metáfora paterna, este trecho aponta para uma tentativa da voz de se reposicionar, ainda que no Real, diante da lei que falta ou do vazio negado. Para Calligaris, o momento da metáfora é um “momento fecundo”, entendido por certa psicanálise como “saída da crise” (CALLIGARIS, 2013, p. 79). Na ausência da metáfora paterna, portanto, Stella elabora a pátria enquanto eixo metonímico a partir do qual se cria uma espécie de segunda natureza, sintomático da soltura do Simbólico (como Lacan nos descreve no Seminário 23 ser próprio do processo de formação do sinthoma). O destino desse passeio, compartilhado por ela e Luís, era a Central do Brasil (isto é, o âmago, o norte, a referência primeira), mas a detenção colonizadora (na Colônia) se dá precisamente como imposição aos que, teoricamente, seriam voluntários. Lacan diz que “se o sintoma é uma metáfora, dizê-lo não é uma metáfora” (1998a, p. 532), e ainda que o psicótico esteja interditado ao sintoma porque forcluído do Simbólico, há algo na errância significante que, ao se autorreferenciar, escancara seu procedimento de revolta contra a norma ou contra a nomeação enquanto ato do Pai do Nome, como diz Lacan no Seminário 23. Aqui, observamos que a verdade histórica que se coloca no lugar da realidade recusada, testemunha algo que é da ordem da ironia da lei: os que são enviados para as Colônias, para trabalhar por elas, para justificá-las, são os involuntários da Pátria, os que estão ali sem desejo, os que não sabem o que os levou até lá. Stella não solicitou esta identificação estrutural com os patriotas, que inclui metonimicamente os capturados pela Colônia e pelo hospital psiquiátrico. Mas também é possível dizer que é através da estrutura desta captura que a poeta consegue traçar homologias entre as funções paterna, patriarcal, nacionalista e intervencionista, contra as quais sua voz de se debate.

Em uma visada pós-estruturalista, na esteira de um pensamento deleuziano, por exemplo, poderíamos dizer que o inconsciente como máquina revira as noções de estrutura, simbólico e significante, para desterritorializar o discurso delirante da representação familiar (e consequentemente de Édipo). Na base da crítica, encontra-se a percepção de que a estrutura falha na medida em que não consegue considerar as singularidades, o que justifica a perspectiva da linguagem como não-natural. O filósofo é categórico ao afirmar que o “delírio não se refere ao pai, nem sequer ao Nome do pai, mas aos nomes da História” (DELEUZE, 2013aDELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013a., p. 28). Stella nomeia a História quando se refere à Central do Brasil, à Rua Voluntários da Pátria, ao bairro Botafogo, que, conjuntamente ao eletrochoque, ao pronto-socorro e ao dinheirinho, investem o discurso delirante numa semântica social, histórica e econômica, muito mais do que edipiana. Estes nomes ou substantivos não apenas designam movimentos, acontecimentos, momentos, mas realizam-no no Real, entrelaçando subjetivação e História. Os poemas proferidos, ao se situarem no limite extremo da linguagem, mostram como, com o auxílio desse deslizamento entre repetições e diferenças, as palavras em associação a auxiliam no processo de atravessar a resistência no nível do conteúdo.

A continuidade deste texto é importante por dar a ver como, de todo modo, esse deslizamento metonímico opera com vistas a reinscrever o lugar da perda, seja no âmbito familiar, seja na narrativa histórico-mundial. A metáfora, nesse sentido, não seria uma substituição, porque nada está no lugar de outra coisa, mas uma interação que indica a conjugação quase que ao pé da letra, seguindo um fluxo que presentifica não-simbolicamente, mas alegoricamente. Mosé, quando descreve a dicção da poeta, diz que há “uma ordenação móvel fundada na afirmação de sua própria fragmentação” (MOSÉ, 2009, p. 18). Retornando ao texto de Stella, depois da saída, narra-se a perda dos óculos:

Eu perdi o óculos, perdi o óculos, perdi o óculos, que estava comigo, um óculos escuros, parecia que ele [o Luís] tinha me dado um bofetão na cara pra mim perder o óculos, o óculos pulou no chão, na rua Voluntários da Pátria, eu caí por cima do óculos e o óculos e eu ficamos no chão, aí veio uma velhinha, na porta do apartamento dela, me levantou, disse que não tinha sido nada, pra mim parar de ficar chorando, aí veio uma dona me botou pra dentro do Posto do Pronto Socorro perto da Praia de Botafogo, e lá, eu dentro do Pronto Socorro, ela me aplicou uma injeção, me deu um remédio, me fez um eletrochoque, me mandou tomar um banho de chuveiro, mandou procurar mesa, cadeira, cadeira, mesa, me deu uma bandeja com arroz, chuchu, carne, feijão, aí chamou uma ambulância, uma ambulância assistência e disse: “carreguem ela”, mas não disse pra onde, “carreguem ela”,... ela achou que tinha o direito de me governar na hora, [...] mandou: “carreguem ela”, deu ordem, “carreguem ela”, na ambulância, “carreguem ela”, carregaram, me trouxeram pra cá como indigente, sem família, vim pra cá, estou aqui como indigente, sem ter família nenhuma, morando no hospital, estou aqui como indigente, sem ter ninguém por mim, sem ter família e morando no hospital. (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 41).

Stella é testemunha dessa dessubjetivação que sofre, mostrando-se consciente de que não há um lugar próprio, voluntário, e um lugar impróprio, involuntário, pois não há a perfeita junção do símbolo (do grego, symbollon, “colocar junto”). A poeta faz delirar o campo social por se mostrar consciente do jogo de dominação e da alternância consideravelmente arbitrária entre sorte e azar, e como o significante, mais do que arbitrário, é arbitragem nesse processo. Seu discurso irrompe o descontínuo no contínuo que a arrasta, mas que ela também trabalha por arrastar, inconcluindo o final em termos de uma ausência absoluta de familiaridade. A elaboração não tem como finalidade ajustar-se a uma ordem preestabelecida, considerando que a preposição “sem” se associa à falta. Este bloco de devir, que altera a lógica estruturalista das séries, assim como a do encadeamento, afirma-se na simultaneidade expressa pela ambiguidade dos significados estabelecidos a partir do eletrochoque, em que o “carreguem ela” pode se referir tanto ao deslocamento (metafórico) quanto à condensação (metonímica), isto é, tanto ao ato de ser locomovida quanto ao fato de sofrer uma descarga elétrica.

O carregamento é uma disseminação a encontrar diferentes fontes de energia. O carregamento enunciativo se dá, portanto, a partir do alheio e do múltiplo, da repetição e da iteração. É o Fora enquanto acaso que alimenta sua linguagem. Em outro poema, este “carregar” entrelaça libido e linguagem, como forma de abastecimento: “Só depois da relação sexual é que eu posso carregar/ tudo pela língua e pela boca” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 92). O sentido é elástico e só se determina pelo corpo em ação, pela língua que fala, e não como contemplação ou fixação intelectual. Ainda que se trate de uma palavra dicionarizada, essa elasticidade nos aponta para a condição de neologismo do significante na medida em que seu sentido é reconfigurado a cada novo uso. A metáfora é, portanto, descontínua em relação à estrutura do texto, mas contínua na disseminação de posições frente ao saber e à ignorância de uma palavra em deslocamento. Na penúltima seção da obra, que reúne poemas marcados pela frustração de se ver enclausurada, ela mesma trata de mostrar o avesso (ou o peso) dessa energia em alimentação:

Tô carregada de uma relação total

Sexual

Fodida

Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum

(DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 118).

Neste uso polissêmico do termo “carregamento”, não há ausência de significantes, mas uma “ausência de pontuação” (CALLIGARIS, 2013, p. 82). Isto é, dentro deste saber psicótico, haveria uma incidência maciça e ameaçante da qual o sujeito tenta a todo custo se defender, e que se faz notar “não pela falta de significante”, mas no testemunho afoito e aguerrido “de uma agressividade no eixo da confrontação imaginária” (CALLIGARIS, 2013, p. 82). De um sentido para o seu avesso, ou seja, do “fodido” enquanto ambiguidade do próprio ato, há apenas uma torção entre o investimento e o dispêndio, a satisfação sexual e a perda do desejo. Se considerarmos ainda que estes poemas são frutos de transcrições, a ausência de pontuação nos instiga outras indagações, como o que pode se referir à condição indecidível da fala em sua circularidade.

Este processo próprio dos tropos, de desencadear opostos, também nos remete ao ensaio de Freud, Sobre o sentido antitético das palavras primitivas, no qual, através do estudo de Ensaios de linguagem, do linguista K. Abel, é abordado o contexto da língua egípcia no qual as palavras não exprimiriam o significado próprio, mas a relação entre as suas diferenças. Essa língua da equivocidade em muito se assemelha portanto à errância da língua delirante, na qual a metáfora se revela experiência de um descódigo ou de uma sintaxe movente. O carregamento da escrita no corpo é de tal intensidade que abre no Real a experiência de contrários. O devir da palavra associa diferenças, como no seguinte poema: “Me transformei com esse falatório todinho/ Num homem feio” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 135). Sabemos com Lacan que, na mulher, estaria o gozo não-todo, assim como, para Stella, o não dar espaço à perda (seja em termos de linguagem, seja no âmbito do cognoscível) seria próprio de uma experiência de “homem feio”.

Daquele doloroso relato delirante de sua captura, em que o que cai é uma certa naturalidade da perspectiva, um olhar e não só ser olhada, concluímos que a metáfora é que parece fazer o sujeito, porque a palavra não é mais da ordem de uma relação entre presença e ausência. Mais do que impossibilitado de metaforizar, o discurso delirante é presa dessa figura de linguagem que provoca a desterritorialização, na qual o significante está para além do sujeito, para além do princípio de sua função. Dispendioso é, portanto, este gasto improdutivo da energia das palavras, que se revela em aliança com o “todo mundo” e com o “gozo nenhum”. De algum modo, quando o carregamento é total, Simbólico, Pátrio, goza-se apenas nas estruturas, mas não singularmente, nos deslocamentos, nas dobras dos significantes. Por isso, enquanto obra, seus poemas parecem fitar a desobra, revelando como o sentido mais próprio se constitui do não-sentido que o sustenta, naquela borda antitética potencial de toda palavra.

Para dizer, só é possível não-tudo dizer. Na seguinte estrofe de outro poema, esse embaraço se coloca de modo enfático: “O hospital parece uma casa/ O hospital é um hospital” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 43). No primeiro verso, a metáfora se insinua, revela-se enquanto um “ver como”, uma associação domiciliar, doméstica, mas é sobre-determinada no verso seguinte pelo grau de crença no significante enquanto objeto de comunicação no Real. Se a voz diz que mora no hospital, como o hospital não seria uma casa? Entre um e outro, há aquela “relação da mensagem consigo mesma”, de que fala Lacan, no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1998bLACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998b., p. 544), em que o furo que emerge não pode se deixar ver, e é então que a homologia decai e o Real como impossível fala. A autorreferencialidade, ou grau zero da metáfora em que a figurabilidade tende a zero, se sobrepõe à significação do vazio, e se converte em ritornelo, ora marcando a importância da finalidade sem fim das palavras, ora sendo exaustivamente carregada pelo descarrilhamento metonímico que responde pelo “todo mundo”. A mensagem aqui não pode ser desvinculada dessa precipitação de um verso ao outro.

O retorno aos significantes que dão contorno ao Real, como nessa reincidência da casa e do hospital, pode ser entendido como involuntarismo da linguagem, mas não como um parasitismo ou uma insistência no significante despótico. Na poesia, podemos entender o involuntário com base em técnicas de ritmo, como a da palavra-puxa-palavra, tão comum às rimas, assonâncias, aliterações na poesia. Em versos como “Eu já falei em excesso em acesso muito e demais” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 133) ou “Correndo um processo/ Sendo processada” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 89), observa-se a incidência dessa espécie de constrangimento formal, que sinaliza a impossibilidade de liberdade total na linguagem, posto que se constata uma dinâmica própria do ritmo (ou da memorização). Ao mesmo tempo, é por essa espécie de associação livre, mais notadamente formal, que se vence a resistência do significado, sem que a dificuldade de fazer sentido se anule. Lacan diria que, no delírio, trata-se de uma “linguagem sem dialética” (1998cLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998c., p. 281). Se entendemos a dialética como o processo que culmina na síntese, concordamos que aqui se trata de um devir muito próprio a cada um desses retornos, da ordem uma subjetivação não-familiar, antissistêmica, investida na linguagem e pela linguagem. É como se Stella estivesse no interior do exterior, e pudesse infamiliar-se na língua-mãe que (a)porta, apropriando-se de sua desapropriação.

3 Eu sou Stella do Patrocínio, muito bem patrocinada

Deleuze é provocativo quando afirma que “o significante não nos serve pra nada” (2013aDELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013a., p. 32). O filósofo também condena a metáfora, descrevendo-a como “procedimento deplorável, sem importância real” (2013aDELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013a., p. 43-4). Se seguimos tal perspectiva, da linguagem enquanto fluxo e não como dialética da representação, podemos afirmar que é da metáfora que Stella do Patrocínio se vale para dizer de um acesso ao insignificante e ao irrepetível que funda cada ato de fala. Ou de um discurso indireto livre que faz ver a tendência à polifonia, uma vez que o poeta “é a coisa mais impoética, porque é sempre algo distinto de si” (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008., p. 117). Por isso, nascer, para ela, teria a marca da desimportância, pois é só através desse faltar a si que algum significante teria algo a dizer. À semântica da nomeação, soma-se todo um léxico composto por “forma”, “formatura”, “formação”, “formar” que, referindo-se à própria experiência linguística, enfatiza o que não se completa, este nascimento que não cessa de não nascer, esta voz que não para de se indeterminar, como no seguinte poema:

Eu não queria me formar Não queria nascer Não queria tomar forma humana Carne humana e matéria humana Não queria saber de viver Não queria saber da vida Eu não tive querer nem vontade pra essas coisas E até hoje eu não tenho querer nem vontade pra essas coisas. (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 69).

A metáfora do nascimento é sobreposta pelo nascimento da metáfora enquanto via para o não querer saber. Stella repete a cena do nascimento para dizer do seu desejo de não nascer, isto é, para descriar ou desconstruir o desejo de significação e autossignificação como fundante. É como se o nascimento devesse ser sem objeto (ou, ao menos, que ela não deveria ser o objeto nascido). As frases aparentemente retomadas, recomeçadas, performatizam no Real, sintomaticamente, o que ficou interrompido no Simbólico. “Eu não tinha formação/ Não tinha formatura/ Não tinha onde fazer cabeça/ Fazer braço, fazer corpo/ Fazer orelha, fazer nariz/ Fazer céu da boca, fazer falatório/ Fazer músculo, fazer dente” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 74), escreve Stella sobre este espaço informe, no qual se vê habitando e sendo por ele habitada. O humano aqui só suporta a si mesmo se suportar sua inconclusão. A poeta recusa a teoria das origens, recusando a concepção de que tudo já tenha sido dado e que no princípio é o narcisismo. A fragmentação do corpo, desconstruído, desfuncionalizado, é da mesma ordem da fragmentação do saber, por onde a metáfora atesta o seu avizinhar-se do não-saber, do não-formado ou, por que não, do imemorial. Natureza e cultura se indeterminam na medida em que a figuração da linguagem condiciona o sujeito a se refazer precisamente onde cessa sua humanidade: “Antes eu era um macaco, à vontade,/ Depois passei a ser um cavalo/ Depois passei a ser um cachorro/ Depois passei a ser uma serpente/ Depois passei a ser um jacaré” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 106). Nesse sentido, é possível falar de uma ordem de insignificantes tornados significantes justamente pelo eterno retorno que realizam, à vontade, e não por vontade, onde o ser está para além da recusa ou da aceitação.

Aquela estrutura do parentesco e da aliança que se estabelece no Simbólico é confrontada por uma comunidade que se estende extra-especificamente ou contra-Natureza. Stella desloca a Esfinge (que recebe de Édipo a resposta da especificidade do humano) para Antígona ou para Medeia, que rejeitam a ideia de uma natureza dada, e reagem contra suas próprias passividades: “Se eu pegar a família toda de cabeça pra baixo/ E perna pra cima/ Meter tudo dentro da lata de lixo e fazer um aborto/ Será que acontece alguma coisa comigo?” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 123). A voz no poema parece querer abortar a família, isto é, abortar a própria origem, desfuncionalizando a obrigatoriedade da hereditariedade sanguínea e do discurso ser histórico familiar. A linguagem não se quer transmissão, mas insignificação: pluralização involuntária dos processos de nomeação e de atribuição. Trata-se de mudança, e não de articulação dialética. É como se a poeta se encontrasse apenas nos desencontros, se familiarizasse apenas aos desvios. São várias as recorrências desse ego dissolvido (o que Deleuze junto a Espinosa chamariam de imanência) em seus poemas: “Não sou eu que gosto de nascer” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 71); “Eu não existia/ Não tinha uma existência” (ibidem, p. 72); “Eu não nasci criança, nasci já velha” (ibidem, p. 72); “Eu não sou da casa, não sou família” (ibidem, p. 83). Ao mesmo tempo, no ato de metaforizar o próprio sobrenome, percebe-se como é na insignificância de um comum, no desapossar-se do que ela possui sem escolher, que algo do íntimo revela seu máximo despertencer-se:

Eu sou Stela do Patrocínio Bem patrocinada Estou sentada numa cadeira Pegada numa mesa nega preta e crioula Eu sou uma nega preta e crioula Que a Ana me disse. (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 58).

Pela recorrência de certos termos, alguns significantes claramente lhe cobram mais, cobrando sua passividade, enquanto outros patrocinariam sua atividade. A menção ao sentar-se na cadeira não necessariamente obedece a uma lei de gênero: pode-se dizer dessa posição como uma referência à submissão ao trabalho como empregada, mas também como insubmissão poética, falatória. Não seria na associação entre gênero e geração que Stella provoca as determinações simbólicas de um universal dicotômico genérico, provocando, por conseguinte, toda a estrutura da alienação? Como nos mostram estes versos, a poeta sabe que ser nega, preta e crioula impõe um preço determinado historicamente por questões de raça e de sexo. Há, por isso, uma negociação nas palavras com as denotações em série, o que coloca em movimento a ideia de uma transação na qual estão implicados tanto o significado quanto o veículo, tanto a verdade quanto o modo dela se manifestar. Frisemos que se trata de transação, e não de transmissão. O contexto sócio-econômico de sua posição de filha de empregada doméstica, cujas lembranças estão entrelaçadas à casa onde a mãe enlouquecera trabalhando, determina permanentemente esse desejo de ruptura com algo que não lhe financia. Há uma distinção nítida entre o poder enquanto posse e o poder enquanto patrocínio. Nesse sentido, é bem pouco metafórico o seguinte poema:

Nessa família que eu estou não ganho pagamento Não ganho ordenado Não posso comprar um guaraná uma coca-cola um maço de cigarros Uma caixa de fósforos Porque eu não ganho pagamento Não ganho ordenado de quinhentos milhões e quinhentos mil cruzados. (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 64).

Stella põe sob os olhos, tal como Aristóteles pensou ser tarefa da metáfora, a relação no Real entre a imposição do ordenamento e o não pagamento pelo cumprimento das tarefas (que não são só de palavras). O ganho, quando disseminado, se revela perda. Se, para alguns, esta realidade seria metafórica, o poema nos parece fazer sentido precisamente por sua provocação ao que viria a ser a literalidade de uma ausência de ordenado. É curioso pensar que em A metáfora viva, Paul Ricoeur, deseje traçar um caminho desta figura de linguagem como pensamento em ato. Para o filósofo francês, haveria uma sobrelevação do sentido na metáfora, que a alçaria ao nível do mito, não no sentido da imitação, mas de desvios que “pertencem à grande tarefa de dizer o que é” (RICOEUR, 2015RICOEUR, P. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2015., p. 74). Stella diz o que é, ao valer-se da metáfora como dito impossível. Sabemos que não há metáforas no dicionário. O que torna a interação substantiva ou a copulação linguística uma metáfora tem a ver com o que, no encontro, é da ordem do impossível de prever. “Eu me confundi comendo pão ganhando pão” (DO PATROCÍNIO, 2009PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009., p. 96), escreve Stella sobre este Real que, “como ato” (RICOEUR, 2015RICOEUR, P. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2015., p. 75) é necessariamente sem lei, se quisermos organizar perdas e ganhos.

A filosofia da metáfora de Ricoeur enquanto busca por uma “enunciação viva” (2015RICOEUR, P. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2015., p. 127) diz respeito também a este atravessamento da fantasia, assim como das identidades, em busca de uma significação performativa, de uma transmissão que não seja da ordem da tradição, mas que não deixa de ser o avesso dela. É preciso emudecer, não se formar, não ter onde fazer a cabeça, abortar, para que quem fale “carregue” a impossibilidade mesma da fala. É como “interanimação das palavras” (2015, p. 127) do eixo sintagmático da língua que se passa a entender na metáfora o inorgânico dos signos isolados, tal como os românticos sinalizaram o que posteriormente entendemos como unheimlich. Com Schelling, Freud pode se aprofundar no termo e declarar que o “familiar [heimlich] é uma palavra cujo significado se desenvolveu segundo uma ambivalência, até se fundir, enfim, com seu oposto, o infamiliar [unheimlich]” (FREUD, 2019cFREUD, S. O infamiliar/ Das Unheimliche; seguido de O Homem da Areia (1919). Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019c., p. 49). Nesse sentido, a indefinição entre o que está aparentemente vivo e pode não estar, contribui para o que aqui perscrutamos em termos de uma enunciação viva, metafórica, decorrente do processo que Freud descreve como comum ao infamiliar, e que diz respeito ao retorno “aos tempos nos quais o Eu ainda não havia, rigorosamente, se separado do mundo exterior e dos outros” (FREUD, 2019cFREUD, S. O infamiliar/ Das Unheimliche; seguido de O Homem da Areia (1919). Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019c., p. 73).

4 A par dos desordenados

Assim, podemos dizer que, em Stella, o orgânico ou o familiar não são especificamente o natural, mas extra-especifícamente o que testemunha a dobra entre a passividade e a atividade, a dessubjetivação e a ressubjetivação; em suma, o apropriar-se de sua expropriação. Por meio desses poemas proferidos, observa-se, portanto, o gesto de recarregar a palavra de sua potência de disseminação, recriando nascimentos, interligando o pessoal ao histórico, o gênero à opressão. Se retomamos Ricoeur, vimos que o teórico busca em Shelley a ideia da linguagem como “vitalmente metafórica” (2015, p. 128), no sentido de uma vitalidade via figuração porque deixa em aberto aquela separação originária da condição linguística de nossa subjetivação. A associação que o filósofo propõe entre vida e metáfora, em Stella, acaba por aproximar acontecimento e sentido na produção de uma significação animada pelo esgarçar das fronteiras entre o humano e a inteligibilidade, e que resgata o vital fora das formas padronizadas, normativas, reguladas, mas dentro mesmo da cisão entre saber e dizer.

A vivacidade da metáfora delirante de Stella do Patrocínio sinaliza, portanto, este sentido não-realizado, mas cujo ato provoca um acontecimento de linguagem nos limites da própria inteligibilidade. No limite, ainda, do falatório e da poesia, do ritmo da fala e da ausência de pontuação. A incidência da linguagem figurada preserva o caráter evanescente e negativo do inconsciente, alheio a qualquer possibilidade de afirmação da verdade em seu lugar próprio - o que não quer dizer que não haja um ter-lugar da verdade. O desconhecimento assim como o involuntarismo prevalecem como indicações, mas não como desvelamentos, pois é na condição trópica (e atópica) da linguagem no Real, de seu desordenamento, que se torna possível conviver na infamiliaridade, atestando a realidade de um Fora que transborda toda a dualidade metafórica, toda descontinuidade entre o próprio e o impróprio. O significante, assim como também o insignificante, valem como elementos de um mais que necessário, e não só contingente, desacordo com o que o Real nos dita, necessariamente e de modo disseminado.

REFERÊNCIAS

  • AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.
  • BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso São Paulo: Martins Fontes, 2003a.
  • BLANCHOT, M. O espaço literário Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
  • DELEUZE, G. Conversações São Paulo: Editora 34, 2013a.
  • DELEUZE, G Foucault São Paulo: Brasiliense, 2013b.
  • FREUD, S. A perda de realidade na neurose e na psicose (1924). In: FREUD, S. Neurose, psicose, perversão Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019a, p. 279-286.
  • FREUD, S. Neurose e psicose (1924). FREUD, S. Neurose, psicose, perversão Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2019b, p. 271-278.
  • FREUD, S. O infamiliar/ Das Unheimliche; seguido de O Homem da Areia (1919). Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019c.
  • LACAN, J. A angústia Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (O seminário, 10)
  • LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 1998a.
  • LACAN, J. As formações do inconsciente Rio de Janeiro: Zahar , 1999. (O seminário, 5)
  • LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 1998b.
  • LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem. In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 1998c.
  • PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
  • RICOEUR, P. A metáfora viva São Paulo: Edições Loyola, 2015.
  • TODOROV, T. Teorias do símbolo São Paulo: Editora Unesp, 2014.
  • ZACHARIAS, A. C. V. Stella do Patrocínio: da intervenção involuntária à poesia brasileira. Dissertação (Mestrado), Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas: [s.n.], 2020.
  • 1
    Na homenagem de Gilles Deleuze a Foucault, são abordadas três instâncias que formariam uma espécie de topologia diagramática do pensamento foucaultiano, da qual fazem parte o Saber (composto pelo enunciável e pelo visível), o Poder (enquanto atualização do enunciado e da visibilidade) e o Fora (âmbito do devir e das forças). A articulação desses planos corresponderia à própria subjetivação. Assim, Deleuze descreve a importância do Fora para toda essa articulação, que encontra correspondência também em Maurice Blanchot: “Se ver e falar são formas da exterioridade, pensar se dirige a um lado de fora que não tem forma. Pensar é chegar ao não-estratificado. Ver é pensar, falar é pensar, mas o pensar opera no interstício, na disjunção entre ver e falar. É o segundo encontro de Foucault com Blanchot: pensar cabe ao lado de fora, na medida em que este, ‘tempestade abstrata’, mergulha no interstício entre ver e falar. O apelo ao lado de fora é um tema constante em Foucault, e significa que pensar não é o exercício inato de uma faculdade, mas deve suceder ao pensamento” (DELEUZE, 2013bDELEUZE, G Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013b., p. 93-94). Já Blanchot diz deste lado de fora em O espaço literário enquanto prova da impossibilidade da obra, ao fazer dela uma experiência do invisível, do desaparecimento, do esquecimento, do vazio, do não-essencial, do indistinto.
  • 2
    Curioso notar como, para abordar o Fora, Blanchot se refere ao mito de Orfeu enquanto mudança de paradigma para a obra, na medida em que sua ruína se deve do fato de ter sido olhada, de onde conclui o pensador: “A profundidade não se entrega frontalmente, só se revela dissimulando-se na obra” (BLANCHOT, 1987, p. 172).
  • 3
    Entende-se o intraduzível aqui não apenas no sentido que dá Ricoeur à figura de linguagem, mas sobretudo a partir da obra de Bárbara Cassin, cuja origem no Vocabulaire Européen des filosophies: dictionaires des intraduisibles, publicado em 2004, desdobra-se em outros volumes, com o intuito de tomar a tradução como dispositivo de crítica à universalidade dos conceitos filosóficos. A edição brasileira, organizada por Fernando Santoro e Luisa Buarque, se propõe a pensar filosoficamente o funcionamento de línguas, identificadas em verbetes, a formar uma constelação de intraduzíveis, tratados como “o que não se cessa de traduzir” (CASSIN apud SANTORO; BUARQUE, 2018, p. 5).
  • 4
    A opção por Stella, com dois “l”s, considera a pesquisa de campo feita por Anna Carolina Vicentini Zacharias, em sua dissertação intitulada Stella do Patrocínio: da internação voluntária à poesia brasileira, que narra a busca pelo seu registro de nascimento no Detran do Rio de Janeiro e confirma esta grafia. Além disso, como se trata do nome não da “autora da obra, mas do seu conteúdo” (ZACHARIAS, 2020ZACHARIAS, A. C. V. Stella do Patrocínio: da intervenção involuntária à poesia brasileira. Dissertação (Mestrado), Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas: [s.n.], 2020., p. 17), conforme pontua Zacharias, optamos por recuperar este nome de registro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2020
  • Aceito
    20 Set 2021
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