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O sainete brasileiro de Oduvaldo Vianna, um teatro popular inovador

Oduvaldo Vianna’s Brazilian Sainete, an Innovative Popular Theatre

Resumo

À diferença da crescente pesquisa sobre Oduvaldo Vianna filho, Oduvaldo Vianna pai conta com poucos trabalhos e nenhum que se centre no seu projeto de teatro reflexivo, o sainete brasileiro. Tendo em conta essa reiterada ausência, o objetivo deste artigo é recuperar o sainete brasileiro e a figura do seu esquecido dramaturgo, Oduvaldo Vianna pai. Procuramos apresentar esse gênero dramático popular menosprezado pela historiografia e entender a relação desse sainete com a sociedade e com a heterogeneidade cultural contemporâneas à sua produção.

Palavras-chave:
teatro brasileiro; sainete brasileiro; Oduvaldo Vianna pai

Abstract

Unlike the growing research on Oduvaldo Vianna Jr., Oduvaldo Vianna Sr. has few works written on his work and none that focus on his reflective theatre project, the Brazilian sainete. Given this repeated absence, the aim of this article is to recover the Brazilian sainete and the figure of its forgotten playwright, Oduvaldo Vianna Sr. We seek to present this popular dramatic genre that has been generally despised by historiography and understand the relationship that sainete bears with society and with the cultural heterogeneity contemporary to its production.

Keywords:
Brazilian Theatre; Brazilian Sainete; Oduvaldo Vianna Sr

Resumen

A diferencia de la creciente investigación sobre Oduvaldo Vianna hijo, Oduvaldo Vianna padre cuenta con pocos trabajos y ninguno que se centre en su proyecto teatral reflexivo, el sainete brasileño. Teniendo en cuenta esta ausencia reiterada, el objetivo de este artículo es recuperar el teatro y la figura de su dramaturgo olvidado, Oduvaldo Vianna padre. Buscamos presentar este género dramático popular, despreciado por la historiografía, y comprender la relación de este sainete con la sociedad y la heterogeneidad cultural contemporáneas a su producción.

Palabras clave:
Teatro brasileño; sainete brasileño; Oduvaldo Vianna padre

À diferença da crescente pesquisa sobre Oduvaldo Vianna filho (1936-1974), Oduvaldo Vianna pai, nascido em São Paulo, em 27 de fevereiro de 1892, e falecido em Rio de Janeiro, em 30 de maio de 1972, conta com poucos trabalhos e nenhum que se centre no seu projeto de teatro reflexivo, o sainete brasileiro. Tendo em conta esta reiterada ausência, o objetivo deste artigo é recuperar o sainete brasileiro e a figura desse esquecido dramaturgo; então, doravante, quando falamos de Oduvaldo Vianna trataremos apenas do pai e da sua produção, cuja presença indiscutível na cena teatral brasileira foi nutrida pelas suas múltiplas facetas.

Oduvaldo Vianna ingressou muito cedo no mercado de trabalho e exerceu diversas funções na imprensa, desde repórter até diretor geral. Combinou a profissão de jornalista com atividades artísticas profissionais no teatro, no cinema e no rádio. No entanto, como já foi mencionado, sua obra não obteve o devido reconhecimento na historiografia do teatro. Esse esquecimento responde, em parte, ao fato de que a etapa de sua criação dramatúrgica coincidiu com um período silenciado da produção teatral, pois foi uma fase caracterizada pela crítica como um teatro “de mal gosto” e sem qualidade; um momento de grande atraso em decorrência do passadismo dos dramaturgos da época (SOUSA, 1960SOUSA, José Galante de. O teatro no Brasil. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1960. 2 v.; MAGALDI, 2013MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 2013.; entre outros). Demostrando a falácia disso, pensamos que Oduvaldo Vianna gestou, nessa fase, uma proposta teatral inovadora, pois, em 1928, com o propósito de “salvar o teatro” do perigo do cinema e partindo do sainete rio-platense, criou pela primeira vez um gênero totalmente brasileiro: o teatro breve de um ato, conhecido como sainete brasileiro (ODUVALDO [...], 1928ODUVALDO Vianna volta à atividade teatral para criar o teatro paulista. Diário Nacional, São Paulo, 16 fev. 1928, capa.).

A experimentação e o descobrimento de Vianna das peças breves e o sainete ao modo espanhol data do início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, quando Vianna viajou para Europa como correspondente do jornal A Plateia, circulando por Espanha e Portugal, entrando em contato com o género chico, muito em voga na Espanha e na boca do povo. Já em Portugal, precisando de dinheiro para voltar, foi incentivado pelo dramaturgo André Brum a escrever seu primeiro livro de “contos humorísticos”, editado dois anos depois com o título Feira da ladra (1916). Cifrado no título dessa obra (que inclui uma secção dramatúrgica), encontramos a intenção crítico-reflexiva do autor, uma vez que batizou sua obra com o nome exótico de Feira da ladra - feira onde há tudo o que Lisboa produz, assim como sua heterogênea produção literária. Um nome que ao mesmo tempo critica o excessivo valor dado ao estrangeiro sem importar sua origem, e desprestigia e parodia as críticas destes gêneros dos bas-fonds. Como tudo que era nacional era considerado desprezível, teve que “falsificar o título” do seu livro, para que fossem lidos seus “episódios de vida tractados sem estylo e deformados de acordo com as tendencias caricaturais da época” (VIANNA, 1916VIANNA, Oduvaldo. Feira da ladra. Lisboa: Guimarães & Cª Editores, 1916., p. 4). Aí tenta refutar os argumentos contra o nacional que depois, entretanto, confirma ironicamente, visto que sua obra é “um produto nacional no sentido pejorativo da expressão” - discute então nessas paródias críticas o estatuto da arte e da cultura brasileira.

Os textos dramáticos de Feira da ladra se encontram em uma seção com o sugestivo título de “Teatro elétrico”: nome que satiriza os movimentos vanguardistas que começam a configurar-se na Europa nas primeiras décadas do século XX. Essa denominação vanguardista implica dinamismo e avanço, e se inscreve na diversidade de estilos, línguas e encenações que tomava conta das cidades, com o movimento das imagens do cinema e dos motores, junto às reivindicações operárias e das mulheres; movimentos políticos e artísticos cujas discussões em torno da língua geravam mudanças em todos os setores. Essa seção continha quatro peças breves sob diferentes denominações - a “tragédia em um ato”, intitulada Um grande médico; a “tragédia moderna em dois atos”, intitulada Um homem delicado; as “scenas da vida real”, com o título de Paz Conjugal; e o “drama doméstico em um ato e um epílogo”, intitulado O nome. Estes primeiros sainetes foram escritos para serem lidos e não representados, e iniciaram uma proposta teatral e vanguardista que trabalhava com o humor e a metateatralidade como ferramentas críticas. Assim, se vale de personagens surdas, ou com problemas de compreensão, da literalidade da expressão, dos jogos de linguagem, do circense, do absurdo e do duplo sentido para refletir sobre a sociedade e a produção dramatúrgica.

Já em 1923 e de volta no Brasil, Vianna fundou com sua mulher a Cia. Brasileira de Comédias Abigail Maia, que, por não dispor de espaço no Rio de Janeiro, embarcou para São Paulo, estreando no Teatro Apolo em janeiro de 1923. Após grande sucesso, partiram em turnê para Porto Alegre, Pelotas e, desta última, para Montevidéu e Buenos Aires. Essa companhia foi a primeira a atravessar as fronteiras, levando peças e artistas brasileiros para outro país (NUNES, 1956NUNES, Mário. 40 anos de teatro. Rio de Janeiro: Serviço Nacional do Teatro, 1956. 2 v.; FERREIRA, 2000FERREIRA, Procópio. Procópio Ferreira apresenta Procópio: um depoimento para a história do teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.; COSTA, 1999COSTA, Jeanette Ferreira da. Da comédia caipira à comédia-filme: Oduvaldo Vianna, um renovador do teatro brasileiro. 1999. 282 F. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.). E foi nesse período que Vianna iniciou seu contato e conhecimento profundos com o teatro popular rio-platense e com seus atores, dramaturgos, diretores e público. Assim, contando com a experimentação prévia de Feira da ladra e seu domínio da carpintaria teatral, e impressionado com as potencialidades daquele teatro e as similitudes que enxergava entre Buenos Aires e São Paulo, Vianna decidiu adaptar o gênero rio-platense à realidade cultural e social brasileira, explorando de modo muito profícuo seus conhecimentos dramatúrgicos. Construiu, dessa maneira, no cenário paulistano (e carioca) da década de 1920, um espaço germinal de negociação social, cultural e de classe, bem como de inovação técnica da dramaturgia.

Estes primeiros sainetes1 1 A estreia do gênero foi com O Castaganaro da festa e Sorrisos da vida. A elas seguiram: O belchior da sorte, de Alberto Vacarelli, Fazenda nova, de Rafael Rosa e Martínez Rosa, As levianas, de Afonso Schmidt, Manhãs de sol, de O. Vianna (em versão sainete), Teu amor e uma cabana, Um conto da carochinha e Terra natal, de O. Vianna, Pigmalião, de Bernard Shaw, entre outras. Em muitos casos, intercalavam-se aos espetáculos tangos, canções brasileiras, jazz e poesia sertaneja. Eram espetáculos a preço de cinema, de 80 minutos, em duas ou três sessões diárias. , montados e dirigidos por Oduvaldo Vianna, se apresentaram primeiramente em dois teatros diferentes: no Teatro Apolo, que servia a Consolação e Vila Buarque, em São Paulo, e, posteriormente, no Teatro Trianon, teatro que consolidou a comedia brasileira. Essa prática social inovadora contava com públicos heterogêneos e congregava nas suas salas as mais diversas identidades, além de provocar um debate que influenciava ideias e realidades. Segundo testemunhos dos colaboradores que trabalharam com Oduvaldo Vianna, como Procópio Ferreira, Deocelia Vianna, Oduvaldo Vianna filho, Dulcina de Moraes e muitos outros (FERREIRA, 2000FERREIRA, Procópio. Procópio Ferreira apresenta Procópio: um depoimento para a história do teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.; VIANNA, 1984VIANNA, Deocêlia. Companheiros de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1984.; VIOTTI, 1988VIOTTI, Sérgio. Dulcina: primeiros tempos, 1908-1937. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Artes Cênicas, 1988.; MORAES, 1991MORAES, Denis de. Vianinha: cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1991.), Oduvaldo Vianna se ocupava até dos mínimos detalhes na criação das personagens: corrigia dicção, gestos, posturas etc. Acompanhava e participava de todo o processo de montagem das suas peças e produções. Outrossim, enfrentando o cinema com seus mesmos instrumentos, o sainete brasileiro contou com poderosas campanhas de marketing; desde os primeiros meses de 1928, Oduvaldo Vianna publicou diversos avisos e deu entrevistas para variados jornais, marcando presença constante nas publicações periódicas até o final das montagens.

Do ponto de vista do conteúdo, essas peças discutem e apresentam problemas políticos e sociais, enfrentamentos de viés geracional, as desigualdades que enfrentam as mulheres, entre outros. Nessas discussões, o sainete brasileiro divide sua força entre as classes popular, média e alta. Iniciando com essas inclusões um afastamento cada vez maior do gênero que supostamente serviu de inspiração, o sainete rio-platense (CRUZADO, 2020CRUZADO, Alfonso Ricardo. Teatro popular rio-platense: decodificação e questionamento de desigualdades. In: FERRERAS, Norberto O. (org.) Desigualdades globais e sociais em perspectiva temporal e espacial. São Paulo: Hucitec, 2020. cap. 7, p. 177-199.). Pois, na verdade, o sainete brasileiro não só se apropria parcialmente do modelo rio-platense: de fato, o parodiava, uma vez que rapidamente se distingue dele pelas suas preferências e alcance crítico, tomando peculiaridades específicas, como o predomínio do sentimental a serviço do quadro de costumes, e não se produzem quebras constantes da quarta parede, embora as obras apostam no riso, na temática urbana ou doméstica e familiar e no contexto da atualidade, mediante diálogos com obras e eventos recentes. Não menos importante é que aparecem em cena, pela primeira vez, as figuras do imigrante italiano e dos imigrantes de outras nacionalidades, mas deixando um pouco de lado tanto a figura ridícula de fala macarrônica utilizada por Juó Bananère quanto a falta de crítica da narrativa de Alcântara Machado. Embora estereotipadas, as caracterizações do imigrante italiano no sainete de Vianna lembram mais as figuras críticas da arte do desenhista, ilustrador e cartunista brasileiro Voltolino (1884-1926).

Ora, a estreia da Companhia Abigail Maia - Raul Roulien de Sainetes, após muita publicidade nos jornais, aconteceu no dia 11 de maio de 1928, com Os sorrisos da vida e O castagnaro da festa, no Teatro Apollo, em São Paulo (A ESTRÉA [...], 1928A ESTRÉA da Companhia Brasileira de Sainetes no Apollo. Diário Nacional, São Paulo, p. 2, 12 maio 1928.). De fato, a Companhia - que depois de várias negociações se estabelece com o nome consagrado no palco de Abigail e o de Roulien, quem em 1928 se apresentava como “o notável galão amoroso do gênero ligeiro” - chegou a estrear 35 peças entre a temporada em São Paulo e no Rio de Janeiro, sendo, muitas delas, peças traduzidas, adaptadas e reescritas do teatro do Rio da Prata .2 2 Além das reescritas e traduções, Vianna escreveu o inovador Folha caída (abordando o divórcio), o já mencionado O castagnaro da festa (com os excluídos imigrantes), Manhãs de sol (adaptado como sainete), Um conto da carochinha, Terra natal, Ao cair da tarde, A vida é um sonho. Mesmo após o fim da sua companhia de sainetes em 1929, nunca se afastou totalmente deste gênero, pois na década de 1930 continuou escrevendo sainetes como Os amigos do peito (1931) e Noite de baile (1938), e, por fim, quando o regime instaurado pelo golpe militar de 1964 o destituiu da direção do setor de radioteatro da Rádio Nacional (1964), Vianna retomou a produção dramatúrgica através de um sainete brasileiro de óbvia denúncia política, intitulado Boa Noite General.

Os sorrisos da vida se inspirou livremente na exitosa peça em três quadros, La borrachera del tango, de Elías Alippi e Carlos Schaefer Gallo, estreada pela Companhia Muiño-Alippi na temporada de 1921 e representada 324 vezes consecutivas. Foi adaptada e traduzida por Oduvaldo Vianna em parceria com Raul Roulien. Parodiando o sentido moralizante do teatro, Vianna se valeu do lema final da peça (“os sorrisos da vida”) para o título. Deste modo, manteve a base da ideia da peça que o inspirou, mas retirou a tragédia e conseguiu trabalhar a comicidade e obter um final mais conciliador. Mesmo assim, dos sainetes brasileiros, Os sorrisos da vida é o único que expõe cruamente a vida do imigrante e a esperança de sucesso em consequência do sacrifício e do trabalho. Como em outros sainetes, temos a valorização moral do trabalho e a recompensa do esforço com a riqueza. Oduvaldo Vianna e Raul Roulien reafirmam, desse modo, que São Paulo se fez com o trabalho de milhares de homens e mulheres imigrantes.

A dramaticidade dos diálogos dos sainetes “reescritos” supera a dos sainetes escritos totalmente por Vianna. O humor e os lugares comuns das falas fazem parte do projeto do dramaturgo brasileiro, que pretende criticar usando a paródia, e não a sátira e a tragédia, tendo em conta o gosto do povo brasileiro. Nessas peças, os conflitos de classe aparecem de um modo mais explícito quando comparadas com aquelas criadas inteiramente por Vianna; os conflitos não estão ausentes no teatro brasileiro, mas, nas peças traduzidas, a imoralidade das classes ricas em diferentes sentidos e graus é exposta de maneira mais impiedosa, e contraposta às atitudes das classes populares, a fim de valorizá-las.

No entanto, a rejeição da tragédia para esse novo gênero se faz totalmente explícita no final de Os sorrisos da vida, que muda o final da peça-fonte rio-platense (a morte trágica do protagonista) para terminar de modo conciliador. Oduvaldo Vianna percebeu que as características trágicas originárias do sainete rio-platense o obrigariam a assumir um olhar preciso sobre as relações de poder. Teria que apontar para uma dimensão real da tragédia brasileira da qual quase ninguém sairia impune. Por isso, preferiu a comédia rápida com efeitos leves, como ele mesmo terminou descrevendo seu sainete. Ou seja, o afastamento do tragicômico está relacionado com a resistência à leitura da dimensão trágica que tem a vida no país nesse período. Vianna acreditava que, ocultando a tragédia, garantiria a leveza das suas peças e atrairia um público mais numeroso.

Embora seu sainete não tenha alcançado totalmente a inovação genérica proposta inicialmente, impôs uma dicção e uma fala brasileiras, numa dramaturgia que até então tinha uma dicção lusa; trouxe as classes populares aos holofotes de modo menos estereotipado e foi escola para muitos atores brasileiros.

A peça principal do cartaz de estreia do sainete brasileiro foi O castagnaro da festa, de autoria de Oduvaldo Vianna, sainete em três quadros reproduzindo cenas e tipos populares da vida paulistana entre 1920 e 1925, que foi escrito por Oduvaldo Vianna especialmente para essa estreia de 11 de maio de 1928 e obteve críticas favoráveis rapidamente em ambas as cidades. O espetáculo completo, sem divisão em sessões e com espetáculos musicais extras, contou com a apresentação de Alvaro Moreyra no Teatro Apolo, quem discursou sobre os problemas do teatro brasileiro. Já os artistas que assistiram aos ensaios reconheceram rapidamente as características positivas do sainete, como se podia observar em jornais como o Diário Nacional na edição 246 de 1928, na qual Leopoldo Froes declarou que o que assistiu não foi teatro, mas vida. Bastos Tigre, por sua vez, declara: “[i]sto é teatro. Se todos os autores e artistas brasileiros fizessem o que acabo de assistir neste ensaio, o teatro brasileiro, seria um dos melhores do mundo”.

Assim, O castagnaro da festa é a primeira obra que Oduvaldo Vianna escreve para seu projeto, e a que inclui todos os princípios essenciais da sua proposta: a de um teatro reflexivo com a cara do país, um teatro realmente paulistano, brasileiro, inovador e que se oponha tanto ao cinema quanto ao teatro existente até aquele momento, condensando brevemente todos os conflitos que depois serão abordados de modo mais individualizado pelas outras peças. O enredo se passa num cortiço da “rua Caetano Pinto” com “tipos verdadeiros do período”. É uma peça de ambiente popular paulista considerada pela crítica do período como uma fotografia naturalista da época, e a eleição da rua encerra uma chave de leitura fundamental, pois essa rua, cujo nome homenageia um antigo proprietário de terras da região, se encontra no coração do Brás, principal e pioneiro bairro operário da São Paulo do início do século XX, e espaço onde Oduvaldo Vianna nasceu. Essa rua era um centro de sociabilidade operária, pois estava pontuada por fábricas, associações, moradias populares, diversos cortiços, concentrava população imigrante e ficava a poucas quadras da Hospedaria dos Imigrantes. Para o dramaturgo, nela se assentam o paraíso e os agentes de desenvolvimento da cidade.

A peça se mostra totalmente inovadora quanto à montagem. Trazia várias notas para o cenógrafo e detalhadas descrições dos ambientes e os movimentos das personagens. Os cenários foram efetuados com grandes detalhes, ao passo que objetos emprestados dos verdadeiros trabalhadores populares foram levados à cena. Quanto às personagens, estão listadas por ordem de aparição no início da peça, sem nenhum tipo de caracterização, possivelmente por se tratar de figuras populares dos mercados e das ruas de São Paulo, de fácil reconhecimento no cotidiano da cidade. Na primeira cena desfilam em seus afazeres, lembrando as fotos feitas por profissionais do período, de estúdios como o Photographia Tondella em Recife e o Vincenzo Pastore em São Paulo. Pela primeira vez, então, são imigrantes diversos: portugueses, italianos, alemães, turcos etc. São todos pobres: vendedores ambulantes de frutas, castanhas assadas, pipoca, pirulitos, jornais, além de alfaiates, consertadores de panelas, mascates, guardas e donas de casa. A presença dessas personagens é a característica fundamental para a dramaturgia popular, pois o contexto exigia algum tipo de representação das forças de propulsão das grandes cidades.

A primeira imagem que se vê no cenário é a seguinte legenda, em preto e com letras de fogo: “São Paulo! A América do Norte da América do Sul! - Que cresce como gigante de Scott, para orgulho da raça intrépida dos bandeirantes”. A declaração, contando com o poder da letra, constrói uma nova mitificação e elevação de São Paulo e de seu poder em comparação com o restante da América Latina, apresentando a cidade como modelo do nacional. De modo paródico e crítico, emulando os olhares brasileiros de alguns setores das elites, São Paulo não é comparada com a Europa, como acontecia no restante da América, mas com os Estados Unidos.3 3 A figura mitologizada do gigante de Scott faz referência a uma figura importante, mas controversa das ferrovias norte-americanas: Thomas A. Scott (1823-1881). Mediante esta figura de um “robber baron” (empresário que propositalmente explora os outros para acumular sua fortuna) a peça critica as atitudes do poder frente às personagens populares da sociedade, assim como os Estados Unidos e seus interesses na América Latina. Esta imagem remite a ideia de São Paulo como locomotiva do Brasil, ao mesmo tempo que troca o foco da industrialização para os imigrantes como força do desenvolvimento e crescimento da cidade e da nação.

Imediatamente depois, uma escuridão completa cobre o teatro. Poderíamos ler essas trevas como a destruição pela luz da inexatidão da declaração anterior. A luz da verdade mostra a multifacetada e heterogênea São Paulo através de um cenário pintado com arranha-céus vistos do Viaduto do Chá. Nesse cenário aparecem os dizeres: “... no meio do egoísmo mercantil do seu comércio...”. Dizeres que constroem uma crítica ao capitalismo e às elites burguesas do período e sua ignorância. Rasga-se o cenário anterior rapidamente e surge, cheio de sol, visto do Carmo, o bairro do Brás, cheio de chaminés fumegantes, junto com outra legenda: “... e as chaminés fumegantes das suas fábricas....”. Com o rasgo do cenário, se poderia ler a força transcendente e a importância dos arrabaldes esquecidos que tomam o espaço na cena seguinte. Depois da paisagem tomada pelo egoísmo humano, aparece o bairro do Brás cheio de sol, como se fosse a terra prometida - mas invadida pelos monstros das chaminés. Em meio a esse ambiente adverso, há um cortiço harmônico.

Esse cenário some e dá lugar a um pano de gaze transparente com um coração, um pedaço de lua, um trovador que canta e um casal de namorados num portão em que se lê: “... tem também, os seus sorrisos e as suas lágrimas de amor [esta frase condensa a ideia tragicômica original deste gênero popular] nas páginas humildes dos pequenos romances vividos nas noites de luar dos arrabaldes...”. A luz exterior vai diminuindo, enquanto a de trás do tecido aumenta e surge o verdadeiro cenário oculto atrás do tule, à medida que os seus desenhos vão se amortecendo: um cortiço da rua Caetano Pinto aparece. Esse telão transparente transmite todo seu cinismo, satirizando os melodramas franceses.

Esse constante rasgar dos cenários, pouco comum no teatro, parodia o espetáculo popular por excelência, o circo, equiparável, no período, à única manifestação nacional existente, o teatro ligeiro. Também representa os diferentes níveis da realidade silenciada e sua heterogeneidade apagada. As paisagens apresentadas pela peça contemplam as múltiplas facetas de São Paulo: a dos barões do café, imperante absoluta até o final do século XIX, reduto de mansões no entorno do viaduto do Chá; e a das chaminés de tijolos da indústria, fruto da industrialização do Brasil a partir do século XX. Essa superposição de cenários também representa um enfrentamento direto com o cinema, com seus letreiros, e uma forma de expor o quão superior pode ser o teatro ao cinema.

A análise parcial desse início nos permite observar resumidamente o trabalho discursivo, seu profundo viés crítico e reflexivo e o aproveitamento das possibilidades do âmbito teatral característicos do sainete brasileiro. A inclusão dos imigrantes e seu protagonismo nesse gênero responde à necessidade de reconhecer sua importância como agentes sociais fundamentais na modernização dessa sociedade elitista coronelista. Pois, mesmo sendo silenciados e estigmatizados, a partir da segunda metade do século XIX, os imigrantes estrangeiros passaram a desempenhar um papel cada vez mais relevante na história paulista (BASSANEZI, 2008BASSANEZI, Maria Silvia Casagrande Beozzo et al. Atlas da imigração internacional em São Paulo: 1850-1950. São Paulo: Editora UNESP, 2008.).

O centro do enredo do sainete é o casal Florêncio e Carmela. Para que os pais de Florêncio permitam que ele se case com Carmela, o pai dela tem que deixar de vender castanhas e abrir um comércio. Assim ele faz, com o dinheiro de um agiota, mas vai à falência e acaba por voltar à vida antiga. Entretanto, depois disso, o namorado finalmente decide lutar pela filha do Castagnaro e casa-se com ela.

Servindo-se desse enredo amoroso, mas diferente do que acontece em outras peças, nesse sainete, logo desde o início aparecem vários personagens que representam figuras paulistas do período: o mascate turco Simon, o vendedor de salsichas alemão Max, o italiano, o português tanoeiro Alfredo, o brasileiro engraçado, o pipoqueiro negro, todos com diálogos grafados para imitar suas falas, como anteriormente fizera Oswald de Andrade no periódico O pirralho (1911-1918). Mas, nesse caso, não somente com a intenção de burla, mas como forma de integração à sociedade e de chamar à reflexão para a realidade da cidade. Nessa peça há também personagens afrodescendentes, embora não tenham o mesmo nível de positivação: Guilhermina - “mulata caipira” do interior paulista - e o pipoqueiro “pretinho retinto”, entre outros, que incorporam em muitos casos estereótipos já presentes no cinema norte-americano como Sambo, Mammy, Sapphire, etc.

Por outra parte, essa é a primeira peça do teatro brasileiro que traz ao primeiro plano, logo no início, integrantes afrodescendentes da sociedade brasileira e de um modo menos negativizado, com falas mais extensas e papeis mais transcendentes que o de simples recheio. Segundo Flora Sussekind (1982SUSSEKIND, Flora. O negro como arlequim: teatro e discriminação. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.), anteriormente o teatro já apresentava personagens negras, mas eram secundárias e representadas nos palcos por pessoas brancas que se pintavam de preto e realçavam os lábios para caracterizar os fenótipos atribuídos a uma pessoa negra, adotando o burlesco e problemático blackface. Nesse sainete, porém, as personagens afrodescendentes se constituem a partir do tipo estereotipado para criticá-lo e depois superá-lo. A cor da pele é objeto de várias piadas, que servem para trazer o tema à discussão e repetem o discurso do período; daí que optamos por ler esses discursos como paródicos da vida cotidiana urbana da época e como tentativas de derrubar os preconceitos da sociedade. Tomamos essa leitura da generalização que se faz dos outros e do crescimento econômico como fruto do trabalho por parte da personagem Mocinha e sua avó, que prospera economicamente pela imitação do seu exemplo.

Argumentando novamente contra as normas sociais imperantes, personagens femininas populares iniciam a ação na peça. Mocinha, personagem preterida no período, aparece na cena desde o início, embora seja profundamente tipificada: é uma mocinha de 16 anos que não tem um dente na frente e veste-se com muita pobreza. Bate sua roupa, torce-a e vai estendê-la no arame cantarolando. Os primeiros diálogos são de três personagens femininas importantes na peça: Mocinha, Sirena e Guilhermina, representantes de diferentes setores populares: o Nordeste, a imigração e o afro descente paulista.

MOCINHA - E a Carmela, quando se casa? SIRENA - Chi lo sá! MOCINHA - Diz que é a família dêle que não quer... SIRENA - Ma que oucê qué... Illos pensam que son uns barone. Illo quer qui mio marido non sea maise castagnaro. Ah! - illo, castagnaro, guadagna denaro e nostra figlia tirou diploma em cima do Grupo Escolare i sabe bordá, fá capelli, costura... Illo o que é? Impriegato num escritório de despachante... Se fôsse io quien resolvesse isso negoço, io tirava o mio tamanco do mio pé i abria um buraco em cima da cabiça dillo... Ma mio marido non quere... Mia figlia le voglia bene... MOCINHA - Êste mundo é uma desgraça, Dona Sirena... (canta mais alto, batendo a roupa. Sirena cantarola “ô Mari”. As escalas do bombardino continuam, com mais entusiasmo). GUILHERMINA (Entra, novamente e, enquanto mexe de nôvo, a panela, canta, muito alto) - Nesta rua, nesta rua, tem um bosque, [...]. (VIANNA, 1968VIANNA, Oduvaldo. O castagnaro da festa. Revista de teatro SBAT, n. 361, p. 43-64, jan./fev. 1968., p. 45).

Na cita anterior, Sirena fala revoltada das condições para que a filha possa se casar com o noivo e expõe que sua filha teria tudo para ser uma mulher bem-casada (tem estudos, sabe trabalhar etc.), esquecendo que a mancha na época era ser filha de imigrantes, e não de qualquer um, mas de um italiano. Essa fala de Sirena é mais “italianada” que as outras, para expressar a raiva da situação e, mediante o humor, suavizar a reclamação. Com a queixa de Sirena pelo desprezo de que sua filha é vítima, Vianna reforça a ideia da importância da educação e critica indiretamente a falta dela entre os detentores de poder.

No final desse fragmento, Guilhermina, a representante da mulata paulista, mexe na panela enquanto canta uma canção popular infantil (“Se essa rua fosse minha”). Canção que satiriza a infância perdida e a crueldade da sociedade com as crianças pobres, e que também parodia o amor idealizado pelas publicações e narrações do período, central nas peças mais populares. Leitura que se confirma com sua declaração repetida: “que porcaria de vida”. Essa personagem é fundamental porque procura superar a mulata carioca, herdada do imaginário colonial e escravista que favorecia a coisificação da mulher fundamentada numa sexualidade exacerbada e degenerada. Lembremos que, nas revistas cariocas, as mulatas geralmente desfilavam pelos espaços públicos atraindo os olhares masculinos por causa de seus dotes corporais (SUSSEKIND, 1986SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.).

Sem dúvida, o dramaturgo aproveita as interações e as discussões das personagens italianas para criticar e ridicularizar a partir da comicidade, obtida principalmente pela dupla significação dos termos “italianados”. Deste modo, gera um rocambolesco “italianado” inexistente até o momento: que não somente ridiculariza, mas que integra pela admissão da presença marcante destes imigrantes na sociedade. Mas a peça, como conjunto, iguala a alteridade do imigrante e do afrodescendente como justificativa das elites para a discriminação, elevando ao mesmo tempo, desse modo, a presença dos dois na sociedade paulista. E assim como será em outras peças desse novo gênero, a crítica à violência social, física e moral em O castagnaro da festa é marcante, ainda que, para manter o tom cômico, os enfrentamentos verbais abusam dos trocadilhos, do calão etc.

Seguindo a ideia do diálogo acalorado, a peça continua com as discussões dos moradores do cortiço, que invadem com seus sons e os ruídos do seu trabalho a vida e a paz uns dos outros. São enfrentamentos que expõem que não existe essa identidade unificada nacional que as elites tentam mitificar, e trazem a realidade das forças propulsoras da modernização e da mudança, silenciadas por serem consideradas marginais em todos os sentidos da palavra.

ALFREDO (Entra, É um português de vastos bigodes, braços e mãos peludos, em mangas de camisa de meia, suando muito e empunhando ainda um arco de barril, um martelo e uma talhadeira) - ó Dona Guilhermina! Isto aqui é casa de se morar ou casa de doidos? Aquêle desgraçado com o bombardino dia e noite e a sôra a verrar dessa maneira enquanto uma pissoa travalha. GUILHERMINA - Arre, sô Alfredo, eu não tô berrando, tô cantando... ALFREDO - Pois bá cantar pro raio que a parta! GUILHERMINA (Chorando) - Que porcaria de vida... MOCINHA (Que se aproxima aos poucos) - Não chore, Dona Guilhermina... ALFREDO - E o que bocê tem com isso? Isso é uma falta de inducação, ouviu? O nugócio é entre nós dois, ningain tain nada com o peixe! Raio! Num sei donde saiu tanta gente estúpida pra cá morare! (VIANNA, 1968VIANNA, Oduvaldo. O castagnaro da festa. Revista de teatro SBAT, n. 361, p. 43-64, jan./fev. 1968., p. 45).

A paródia desses enfrentamentos ideológicos é delineada mediante os embates de Alfredo, Guilhermina, Mocinha e Sirena. Alfredo, respeitando a tipificação estética (tipo representante da ignorância), recrimina a todos que o incomodam por sua “falta de inducação” e se queixa da estupidez dos moradores do cortiço. Afastando-se da tipificação tradicional, essa personagem não é a característica do teatro carioca, descrita por Flora Sussekind (1986SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.) como fácil de enganar.

Essa construção nega, com o uso incorreto do prefixo in, que significa privação ou negação, a veracidade das declarações do português e estende a ideia, imperante na sociedade paulistana, do estereotipo do português como ignorante. Como modo de reafirmar essa leitura, Alfredo fala para Sirena que seja mais “desindelicada”, pois ele admite tudo menos “desindelicadezas”. Alfredo pode declarar tudo isso porque seus pais deram a ele “inducação”, que ele, por sua vez, dará a todos os que precisarem dela, nem que “seja a bofetões”. Novamente, o jogo linguístico com um prefixo, des, que indica negação, separação ou cessão, mas que em alguns casos exprime reforço, declama as críticas através de colocações inexistentes e a anulação do significado da palavra sem prefixo.

Esses enfrentamentos também servem para ressignificar o típico par do português e a mulata. O par deixa de ser o generalizado no teatro carioca do português cheio de desejo e tentando seduzir a mulata como for, para ser um casal de consenso, mas novamente carregado no tipo ignorante e violento do português. Por isso, a violência contra a mulher é tratada desde o início do primeiro quadro, com as discussões entre Alfredo e Sirena, e depois com a violência que esse exerce sobre sua mulher e a desaprovação dos personagens em relação a essas ações. Através da paródia do discurso masculino na boca de Guilhermina em seu enfrentamento com Mocinha (representante, neste caso, da inocência), se levam ao ridículo os argumentos machistas, defendidos à época como legais, para exercê-la.

GUILHERMINA - Grosseiro, não! Ele tem toda a razão. A senhora não tem nada que meter a sua colher onde não é chamada. Ele é meu marido, pode me descompor ou me dar pancada, ninguém tem nada com isso. O corpo é meu e quem apanha sou eu... (VIANNA, 1968VIANNA, Oduvaldo. O castagnaro da festa. Revista de teatro SBAT, n. 361, p. 43-64, jan./fev. 1968., p. 46).

O segundo quadro acontece no café que o Castagnaro abre para que sua filha se case. A família trabalha muito, mas vive para pagar os juros absurdos do agiota e este acaba decretando a falência do café. Como castigo simbólico ao abandono de sua vida em prol de ideias com as quais ele não compactuava, o café é visitado pelo pipoqueiro (descrito no primeiro quadro como: “é um pretinho retinto, trás o baú de pipoca à cabeça” - VIANNA, 1968VIANNA, Oduvaldo. O castagnaro da festa. Revista de teatro SBAT, n. 361, p. 43-64, jan./fev. 1968., p. 51). O ex-pipoqueiro agora é casado, tem dois filhos e outro a caminho e é fiscal municipal. Essas situações se constroem como crítica indireta às elites acomodatícias, que trocavam de ideias de acordo com os interesses, não movidos por verdadeiras convicções.

Na declaração do antigo pipoqueiro se encontra uma das maiores contradições da peça. Os filhos nascem com defeito, “tudo pretinho qui nem carvão” (VIANNA, 1968VIANNA, Oduvaldo. O castagnaro da festa. Revista de teatro SBAT, n. 361, p. 43-64, jan./fev. 1968., p. 56). Acreditamos que seja um intertexto crítico com uma obra literária infantil publicada no Brasil em 1912 que circulava no período, Contos para crianças - histórias cujo tema central era como uma pessoa negra podia tornar-se branca (SCHWARCZ, 2013SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário. São Paulo: Claro Enigma, 2013.).

CARMELA - Nascem com defeito, seu Beloca? PIPOQUEIRO - Nascem tudo pretinho qui nem carvão. Não sei porquê! VICENTE - Isso não é defeito. É qualidade. Mas quem sabe se é sujeira? Por que você não experimenta dar um banho de água fervendo neles? (VIANNA, 1968VIANNA, Oduvaldo. O castagnaro da festa. Revista de teatro SBAT, n. 361, p. 43-64, jan./fev. 1968., p. 55-56).

O texto parodia a ideia da cor como defeito, como mácula imperante na sociedade no período. Discriminação que se repete na fala do próprio pipoqueiro para aumentar a crítica e ridicularizar o discurso ainda mais, com as declarações que denunciam o branqueamento que os negros efetuariam para se integrarem à sociedade. Traz também, novamente, a coisificação da mulher e sua desvalorização, maior do que a do homem, pela cor da sua pele: “não teve outro remédio senão casá com uma negrinha”. Todas essas declarações são suavizadas através da comicidade provocada pelo riso ridículo de Vicente, que funciona como um latiguillo: “Quá! Quá! Quá!”. Esse riso também marca o esdrúxulo das situações e declarações. O racismo domina esse segundo quadro da peça. Observa-se uma defesa aparente do negro, mas, ao mesmo tempo, o peso ofensivo das enunciações supera o da defesa, reproduzindo o racismo estrutural fruto do passado colonial e escravista.

A carga negativa que recebem as personagens negras fica extremamente evidente nas piadas racistas de Vicente: “casa de gente preta com luz apagada é um buraco”, “Peru Cartola velha!” etc. Mas a maior negativação recai sobre a mulher negra: o pipoqueiro não descreve a sua esposa, fala somente que não é brinquedo não e que é um tipo de beleza rara. Mas sua descrição se concentra em que é muito ciumenta, retomando um estereotipo dominante, o de Safira (Sapphire), famosa nas charges e no radioteatro.

O terceiro quadro é o retorno ao cortiço. Para suavizar a situação trágica, eles voltam ao local no dia da festa do batizado do filho de Alfredo. São recebidos com alegria e carinho por todos, mudam-se para o quarto que era de Alfredo (o português), o qual se mudou para seu próprio sobrado, construído no terreno baldio no fundo. Em uma das didascálias desse terceiro quadro, Oduvaldo Vianna deixa bastante claro que o que se procura na peça não é o ridículo e o grotesco dos imigrantes, sequer o momento de sua ascensão social (como é o caso da família do português Alfredo - dono do cortiço), mas as suas virtudes: “Nada de grotesco ou caricatura nas roupas. Verdade absoluta”.

A peça termina com o pedido de perdão de Florêncio a Carmela e a promessa do casamento dos dois sem importar a profissão do pai da moça, pois esse é bom e honrado. Essa declaração desfaz a ideia de periferia e de mau-caráter do cortiço. Mas o final não traz alegria para todos. Vicente, que estava apaixonado por Carmela, fica sozinho, pois ela volta com o noivo. Em contraponto ao ruído de felicidade da festa, sua sanfona geme baixinho o tango mais triste da Argentina e ele canta entre lágrimas. Mocinha, que estava apaixonada por ele, descobre tudo, e ela também chora, mas é consolada pela avó. Assim, a peça termina com o mais cínico chorando, em uma forma de fim moralista pelo sentimentalismo, ao mesmo tempo que expõe na sua figura que a suposta ascensão do imigrante (o domínio da norma culta) é uma falácia, porque ninguém realmente fala português corretamente.

Todas as críticas da peça culminam em um julgamento sobre a sociedade como um todo e na condenação de uma instituição brasileira que aumenta as injustiças e discrepâncias em todos os setores: o favor. Esse mecanismo, característico da vida social e do sistema social brasileiro, de acordo com Sussekind (1982SUSSEKIND, Flora. O negro como arlequim: teatro e discriminação. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.), permite que imigrantes, como o alemão Max, obtenham cargos públicos, superando a alteridade. Outro dos beneficiados, o pipoqueiro (“pretinho retinto carioca”), já no seu papel de fiscal municipal, acaba por denunciar as injustiças ao expor que com dinheiro poderia ter sido quem e como ele quisesse, mas que com o favor poderia apenas conseguir um cargo público.

A partir da análise dessa e de outras peças, das críticas e artigos publicados em diferentes jornais cariocas e paulistas em 1928, podemos concluir que Oduvaldo Vianna decide dar voz aos imigrantes silenciados pois considerava injusta sua integração forçada e incompleta à sociedade, uma vez que são eles os protagonistas fundamentais da cidade em que o dramaturgo cria e consolida este novo gênero teatral. Essa defesa não se dá somente em nome da justiça social, mas também porque o próprio público não se sentia identificado nas salas, e não havia um gênero que os representasse como um todo. Ganhá-los significava garantir um novo público.

A partir da leitura da sua produção, observamos uma tentativa de inovação em Oduvaldo Vianna com o sainete brasileiro e em outras das suas peças, além de um trabalho com a cena que era capaz de transportar aos espectadores/leitores desde os bas-fond do cabaré em Flor da noite (1919), a Paris em O clube dos Pierrôs (1919) até um porto chinês em Mizu (1939). Ao mesmo tempo encontramos no seu corpus uma tentativa de testar os limites e concomitantemente refletir sobre sua própria prática. Por tudo isso, consideramos Oduvaldo Vianna um iniciador desse modernismo teatral, servindo-se do riso como ferramenta paródica e de interpretação do Brasil.

Seu domínio da arquitetura teatral o levou a desenvolver o sainete paulista, tomando-o um gênero tão versátil e crítico quanto o sainete rio-platense das décadas de 1910 e 1920. Através da tradução cultural (BURKE, 2009BURKE, Peter. A tradução cultural: nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: UNESP, 2009.) e de processos de desterritorialização e reterritorialização (DUBATTI, 2020DUBATTI, Jorge. Teatro y territorialidad: Perspectivas de Filosofía y teatro comparado. Barcelona: Editorial Gedisa, 2020.), Vianna constitui o primeiro gênero teatral paulista. É assim que o sainete brasileiro constitui um gênero que trabalha sobre a paródia, como princípio construtivo e crítico, a máscara e o estereótipo e a linguagem. Inicialmente, através da máscara estereotipada e da paródia linguística se incorporou pela primeira vez o imigrante a um mundo literário, mas paralelamente à incorporação dos filhos dos imigrantes e de outros integrantes das classes populares ao âmbito teatral, se inicia um processo de ressignificação e positivação destes estereótipos.

Na máscara se fossilizam os tipos sociais populares imaginados pelas elites que se contradizem e se desmancham na linguagem, nas falas e nas ações. Ao mesmo tempo que essa linguagem heterogênea constrói uma nova linguagem coloquial popular, consola com seu novo formato às elites. Elites que assistem às peças, acreditando, na sua ignorância, que a língua na sua construção culta continua sendo um símbolo de poder e status que consegue manter a alteridade o tempo inteiro. Argumento destruído constantemente pelo sainete brasileiro ao expor os erros dos enunciadores de todas as classes sociais. Pois o que realmente está acontecendo nesses gêneros é que essa língua, símbolo de poder, indicadora de pertencimento a uma classe, está sendo desintegrada e reconstruída numa língua heterogênea popular moderna e viva, que posteriormente tomará as ruas dessa cidade cosmopolita.

Pode-se dizer que Oduvaldo Vianna gesta o sainete brasileiro para expor a sociedade do período em todas suas contradições. Para isso se vale da oralização das línguas estrangeiras e do próprio português, de um português satirizado. Desde o início, com seus cartazes, satiriza e desconstrói os nacionalismos de fachada e investe contra o público nacionalista. O sainete vai fazendo paulatinamente cair todas as máscaras da classe média baixa e das elites, até não deixar nenhum integrante da sociedade paulista fantasiado.

Em consequência, seguindo os conceitos de Raymond Williams (2011WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. São Paulo: UNESP , 2011.), podemos afirmar que esse teatro seria um verdadeiro foro político e nele poderíamos encontrar os cinco fatores influentes no teatro posterior que serão suas verdadeiras características inovadoras: a admissão radical do contemporâneo como material legítimo para o drama, a admissão do autóctone, a incorporação das formas cotidianas do discurso como base da linguagem dramática, a ampliação das classes sociais dentre as personagens, deixando de lado a ideia de que somente as personagens com um status social elevado poderiam ser protagonistas.

De fato, devemos lembrar que essa produção teatral popular é contemporânea ao Modernismo brasileiro, que teria preferido ignorá-la e aproximar-se ao artista Piolim na hora de pensar o popular, quiçá por ele resultar menos questionador da realidade ou assumir um discurso “digerível” dentro da “poética/política” das vanguardas. No entanto, de certa maneira, nossa análise avalia o sainete como um gênero popular que, de forma coerente, confirma a teoria de Viviana Gelado (2006GELADO, Viviana. Poéticas da transgressão: vanguarda e cultura popular nos anos 20 na América Latina. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.) de que as vanguardas latino-americanas funcionam principalmente como um “discurso cultural” que permeia todos os discursos e produções do período (inclusive aqueles que nem sequer se reconhecem a si próprios como vanguardistas), antes do que como uma mera poética antropófaga das vanguardas.

Em resumo, o sainete se instituiu em um teatro crítico que ameaçava as regras da sociedade mediante o questionamento, a subversão ou a indiferença ante as normas sociais aceitas, questionando conceitos estabelecidos sobre a mulher e o negro e expondo um mundo atormentado por costumes e leis mortas. Permitindo assim, como William Acree (2021ACREE, William. Fronteras en escena: la construcción de la cultura popular moderna en la Argentina y Uruguay. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2021.) afirma ao referir-se ao seu predecessor (o drama criollo), que as fronteiras de classe, nacionalidade, etnia, raça, gênero e idade se encontrassem de um modo muito mais harmonioso fora dos cenários. Foi assim que o teatro reconfigurou referências sociais e culturais constituindo uma forma de resistência aos imaginários dominantes.

  • ACREE, William. Fronteras en escena: la construcción de la cultura popular moderna en la Argentina y Uruguay. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2021.
  • BASSANEZI, Maria Silvia Casagrande Beozzo et al Atlas da imigração internacional em São Paulo: 1850-1950. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
  • BURKE, Peter. A tradução cultural: nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: UNESP, 2009.
  • COSTA, Jeanette Ferreira da. Da comédia caipira à comédia-filme: Oduvaldo Vianna, um renovador do teatro brasileiro. 1999. 282 F. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.
  • CRUZADO, Alfonso Ricardo. Teatro popular rio-platense: decodificação e questionamento de desigualdades. In: FERRERAS, Norberto O. (org.) Desigualdades globais e sociais em perspectiva temporal e espacial São Paulo: Hucitec, 2020. cap. 7, p. 177-199.
  • DUBATTI, Jorge. Teatro y territorialidad: Perspectivas de Filosofía y teatro comparado. Barcelona: Editorial Gedisa, 2020.
  • A ESTRÉA da Companhia Brasileira de Sainetes no Apollo. Diário Nacional, São Paulo, p. 2, 12 maio 1928.
  • FERREIRA, Procópio. Procópio Ferreira apresenta Procópio: um depoimento para a história do teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
  • GELADO, Viviana. Poéticas da transgressão: vanguarda e cultura popular nos anos 20 na América Latina. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
  • MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro São Paulo: Global, 2013.
  • MORAES, Denis de. Vianinha: cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1991.
  • NUNES, Mário. 40 anos de teatro Rio de Janeiro: Serviço Nacional do Teatro, 1956. 2 v.
  • ODUVALDO Vianna volta à atividade teatral para criar o teatro paulista. Diário Nacional, São Paulo, 16 fev. 1928, capa.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário São Paulo: Claro Enigma, 2013.
  • SOUSA, José Galante de. O teatro no Brasil Rio de Janeiro: MEC/INL, 1960. 2 v.
  • SUSSEKIND, Flora. O negro como arlequim: teatro e discriminação. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
  • SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
  • VIANNA, Deocêlia. Companheiros de viagem São Paulo: Brasiliense, 1984.
  • VIANNA, Oduvaldo. Feira da ladra Lisboa: Guimarães & Cª Editores, 1916.
  • VIANNA, Oduvaldo. O castagnaro da festa. Revista de teatro SBAT, n. 361, p. 43-64, jan./fev. 1968.
  • VIOTTI, Sérgio. Dulcina: primeiros tempos, 1908-1937. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Artes Cênicas, 1988.
  • WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. São Paulo: UNESP , 2011.
  • 1
    A estreia do gênero foi com O Castaganaro da festa e Sorrisos da vida. A elas seguiram: O belchior da sorte, de Alberto Vacarelli, Fazenda nova, de Rafael Rosa e Martínez Rosa, As levianas, de Afonso Schmidt, Manhãs de sol, de O. Vianna (em versão sainete), Teu amor e uma cabana, Um conto da carochinha e Terra natal, de O. Vianna, Pigmalião, de Bernard Shaw, entre outras. Em muitos casos, intercalavam-se aos espetáculos tangos, canções brasileiras, jazz e poesia sertaneja. Eram espetáculos a preço de cinema, de 80 minutos, em duas ou três sessões diárias.
  • 2
    Além das reescritas e traduções, Vianna escreveu o inovador Folha caída (abordando o divórcio), o já mencionado O castagnaro da festa (com os excluídos imigrantes), Manhãs de sol (adaptado como sainete), Um conto da carochinha, Terra natal, Ao cair da tarde, A vida é um sonho. Mesmo após o fim da sua companhia de sainetes em 1929, nunca se afastou totalmente deste gênero, pois na década de 1930 continuou escrevendo sainetes como Os amigos do peito (1931) e Noite de baile (1938), e, por fim, quando o regime instaurado pelo golpe militar de 1964 o destituiu da direção do setor de radioteatro da Rádio Nacional (1964), Vianna retomou a produção dramatúrgica através de um sainete brasileiro de óbvia denúncia política, intitulado Boa Noite General.
  • 3
    A figura mitologizada do gigante de Scott faz referência a uma figura importante, mas controversa das ferrovias norte-americanas: Thomas A. Scott (1823-1881). Mediante esta figura de um “robber baron” (empresário que propositalmente explora os outros para acumular sua fortuna) a peça critica as atitudes do poder frente às personagens populares da sociedade, assim como os Estados Unidos e seus interesses na América Latina. Esta imagem remite a ideia de São Paulo como locomotiva do Brasil, ao mesmo tempo que troca o foco da industrialização para os imigrantes como força do desenvolvimento e crescimento da cidade e da nação.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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