Acessibilidade / Reportar erro

Considerações sobre o problema das formas do sujeito

On the problem of the subject’s forms

Resumo

A noção de sujeito recentemente tem ganhado espaço nas discussões da crítica e teoria literárias, sendo Luiz Costa Lima um dos autores que se dedica ao tema. Apesar da preocupação em enunciar seus pressupostos, ele não se detém na discussão filosófica sobre a variabilidade sócio-histórica do sujeito, que singularizou os debates sobre o conceito no século XX. Essa perspectiva permite problematizar quais são suas diferentes formas e, sobretudo, por quais processos essas são produzidas. Assim, o presente artigo tem o objetivo de delinear os pontos fundamentais do debate acerca da epocalização do sujeito, identificando seus problemas e pressupostos, os quais estão na base da discussão de Costa Lima. A partir sobretudo de Heidegger, de Foucault e de Elias Palti, pretende-se compreender as bases filosóficas da variabilidade de formas do sujeito que, mesmo não enunciadas, podem ser associadas aos debates recentes da teoria da literatura.

Palavras-chave:
sujeito; literatura; história; forma; subjetividade

Abstract

The notion of subject has recently gained increasing influence in discussions of literary criticism and theory, particularly among authors such as Luiz Costa Lima. Despite his concern to enunciate his assumptions, Costa Lima does not dwell on the philosophical discussion about the historical variation of the subject, which characterised the debates on the concept in the 20th century. This perspective allows us to problematize what are the different forms of the subject and, above all, by which processes these forms are produced. Thus, this article aims to outline the key points of the debate about the epochalization of the subject, identifying its problems and assumptions, which are the basis of Costa Lima's discussion. From a critical analysis of the perspectives of Heidegger, Foucault and Elias Palti, the paper seeks to shed light on the philosophical bases of the variability of forms of the subject, which, even if not stated, can be linked to recent debates in the theory of literature.

Keywords:
subject; literature; history; form; subjectivity

Resumen

El sujeto ha ganado recientemente espacio en las discusiones de crítica y teoría literaria, por lo que Luiz Costa Lima es un autor que se dedica al tema. A pesar de la preocupación por enunciar sus supuestos, no se detiene en la discusión filosófica sobre la variabilidad sociohistórica del sujeto, que singularizó los debates sobre el concepto en el siglo XX. Esa perspectiva nos permite cuestionar cuáles son sus diferentes formas y, sobre todo, por qué procesos se producen. Luego, este artículo tiene como objetivo esbozar los puntos fundamentales del debate sobre la epocalización del sujeto, identificando el problema que moviliza tales discusiones, que están en la base de la discusión de Costa Lima. A partir sobre todo de Heidegger, de Foucault y de Elias Palti, se pretende comprender las bases filosóficas de la variabilidad de formas del sujeto que, aunque no se enuncian, pueden asociarse a debates recientes en la teoría de la literatura.

Palabras clave:
sujeto; literatura; historia; forma; subjetividad

Se recentemente as discussões no campo da crítica e da teoria literárias têm mostrado expressivo interesse pela noção de subjetividade enquanto importante operador de leitura, Luiz Costa Lima há cerca de 30 anos já vem fazendo um histórico das discussões filosóficas sobre o sujeito. Em livros como Limites da voz (2005LIMA, Luiz Costa. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005. [1993]), Mímesis: desafio ao pensamento (2000LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000.) e O chão da mente (2021), ele passa por abordagens como as de Descartes, Montaigne, Kant, Nietzsche, Freud, Georg Simmel, Heidegger, Foucault para pensar em questões que sejam profícuas para suas reflexões teóricas. Em Mímesis: desafio ao pensamento, por exemplo, o autor propõe a noção de sujeito fraturado já desde Descartes, para repensar a mímesis por uma perspectiva menos colada à de uma cópia da realidade. Para tanto, considera necessário evitar qualquer autocentramento de um sujeito dono de suas representações mesmo nos momentos fundadores da modernidade. Não é por outro motivo que em O chão da mente o questionamento do estatuto da ficção aproxime esse conceito da diversidade de eus de um sujeito:

O conceito de papéis motiva a aproximação do ficcional, mesmo porque o ficcional, em sua modalidade interna, distancia-se da prática autocentrada. [...] Se a unidade do eu é uma construção da consciência normal, sob ele de fato se esconde a diversidade dos papéis efetivamente realizados. (LIMA, 2021LIMA, Luiz Costa. O chão da mente: a pergunta pela ficção. São Paulo: Unesp, 2021., p. 170-171).

Isso quer dizer que, mesmo na unidade do sujeito pretensamente presente em autores modernos, há uma multiplicidade, o que permitiria empreender a busca pela variedade de faces do sujeito que motiva a aproximação do ficcional. Nessa mesma lógica, ele faz uma crítica ao contexto das últimas duas décadas, pois, para ele “renuncia-se assim à consideração das várias faces que cada eu assume diacrônica e/ou sincronicamente” (LIMA, 2021LIMA, Luiz Costa. O chão da mente: a pergunta pela ficção. São Paulo: Unesp, 2021., p. 259). Ao considerar essa multiplicidade diacrônica e sincrônica, não é por acaso que sua análise se pauta por uma perspectiva social e histórica, indagando as formas assumidas pelo sujeito: “Em nossa indagação acerca das formas assumidas pelo sujeito e a distinção entre o autocentrado e o fragmentado, partimos da relação assumida pelas funções que ele desempenha, consideradas homogêneas ou heterogêneas entre si” (LIMA, 2021LIMA, Luiz Costa. O chão da mente: a pergunta pela ficção. São Paulo: Unesp, 2021., p. 153, grifo meu). Consequentemente, Costa Lima entende a relação entre o sujeito e a literatura pela ótica das variações históricas a que ambos estão ligados. Isso fica explícito em Limites da voz, em que se parte da conjugação entre a afirmação da subjetividade e o discurso literário autônomo, chegando, no século XX, ao questionamento do sujeito em escritores como Kafka. Em tudo isso, o que a abordagem de Costa Lima nos sugere é considerar o sujeito historicamente na formulação de problemas para a teoria da literatura, seja em suas reflexões sobre a mímesis, ou para pensar o estatuto do ficcional.

Como uma marca característica de sua postura teórico-metodológica, o autor não busca apenas aplicar determinado conceito de sujeito em suas análises, mas o problematiza constantemente, a partir do diálogo com autores da filosofia, da psicanálise, da sociologia. Assim, ao recorrer a esses pensadores, ele procura estruturar uma nova concepção de sujeito que atenta a suas análises e, a um só tempo, expor os pressupostos de sua teoria. Contudo, ao analisar o pensamento de Costa Lima, precisamos nos lembrar de que ele não tem o objetivo de fazer uma história filosófica do sujeito, descrevendo exaustivamente todas as suas nuances. Por isso mesmo, abre-se a possibilidade de situar e desdobrar um dos pontos fundamentais de seu pensamento: a própria possibilidade de se pensar a variação sincrônica e diacrônica das formas do sujeito é possível graças a um conjunto de discussões teórico-filosóficas do século XX. Logo, mantendo a ideia de que o tema do sujeito pode ser caro às reflexões recentes sobre a literatura, em específico as de Costa Lima, seria profícuo evidenciar o campo de debates sobre a variação histórica das formas do sujeito. Para tanto, nas páginas seguintes, procurarei delinear quais são os termos do debate que procura pensar o sujeito historicamente, passando sobretudo pelas proposições de Heidegger, de Foucault e de Elias Palti.

Para situar esse campo, inicialmente vale observar que um dos principais eixos que Costa Lima procura responder - o que faz de modo explícito em Mímesis: desafio ao pensamento - é a postura teórico-filosófica que tem sido denominada como crise do sujeito, crítica do sujeito ou morte do homem e que está ligada principalmente aos pensamentos estruturalista e pós-estruturalista. Atacando ou defendendo os seus pressupostos em um volumoso conjunto de manifestações a partir dos anos 1960, a recepção dessa doxa rapidamente constituiu um consenso pelo menos no que tange à interpretação de que ela se caracteriza por uma manifesta desvalorização do sujeito da metafísica. Ao recorrer a noções como a dessubstancialização, a fragmentação ou a fratura do sujeito, esse é entendido como uma categoria histórica moderna que precisaria ser superada por se colocar como a base do sistema conceitual humanista. Assim, na conjunção entre um diagnóstico e um dever ser, é exatamente por entender que esse conceito seria definido historicamente que a recepção de tal corrente filosófica enxerga a procura pelo desmanche do sujeito, pensando em modos alternativos de subjetivação. Não é por acaso que no ano de 1988 Jean-Luc Nancy organizou a edição de um volume do periódico internacional Topoi, republicada em livro em 1991 sob o título Who comes after the subject.NANCY, Jean-Luc. Introduction. In: CADAVA, Eduardo; CONNOR, Peter; NANCY, Jean-Luc. Who comes after the subject? Nova Iorque: Routledge, 1991. p. 1-8. O organizador propôs a questão sobre quem vem após o sujeito, ao que responderam diversos intelectuais, como Blanchot, Deleuze e Guattari, Derrida, Etienne Balibar, Alain Badiou, Vincent Descombes. Justificando a questão proposta, Nancy (1991NANCY, Jean-Luc. Introduction. In: CADAVA, Eduardo; CONNOR, Peter; NANCY, Jean-Luc. Who comes after the subject? Nova Iorque: Routledge, 1991. p. 1-8., p. 5) afirma que houve um discurso recente que proclamava a simples liquidação do sujeito. Mas, se efetivamente seria possível levar a cabo essa afirmação, quem viria após ele? Ou se manteria apenas um lugar vazio? Esse volume pode ser encarado como índice de uma ampla discussão, que levou a questionamentos profundos também na teoria da literatura, em que Barthes (2004BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64.) e Foucault (2006FOUCAULT, Michel. O que é um autor. In.: Ditos e escritos: estética: literatura, pintura, música e cinema. 2.ª ed. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 264-298.) colocam em xeque a noção de autor e Jonathan Culler (1977CULLER, Jonathan. Structuralist poetics: Structuralism, Linguistics, and the Study of Literature. Nova Iorque: Cornell Paperbacks, 1977.) indica o desinteresse pelo personagem como figura humana para os estruturalistas.1 1 Costa Lima se contrapõe a essa morte do homem. Sem deixar de considerar a validade do questionamento à concepção metafísica do sujeito, ele ainda o considera um elemento válido para se pensar a literatura.

Ocupando um lugar distinto nessas discussões, não tardou para que um apelo ao “retorno do sujeito” se fizesse altissonante, ganhando influência nos debates recentes. Um nome notório como o de Slavoj Žižek procura não apenas colocar o sujeito novamente em cena, mas afirma claramente: “Este livro, portanto, esforça-se para reafirmar o sujeito cartesiano, cuja rejeição compõe o pacto silencioso de todas as áreas conflitantes no mundo acadêmico atual” (ŽIŽEK, 2016ŽIŽEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. Trad. Luigi Barrichelo. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 22). Além disso, Elizabeth Ermarth (2001ERMARTH, Elizabeth. Agency in discursive condition. History and theory, n. 40, 2001. ), uma das principais representantes desse tipo de posicionamento, alega que o sujeito seria fundamental para pensar o humano como dotado de agenciamento histórico, sendo que a destituição desse poder conduziria a um deus ex machina inóspito em termos éticos e políticos.

Beatriz Sarlo descreve esse duplo movimento operado no século XX:

A crise da ideia de subjetividade vem de outros processos e posições, de grande expansividade para além do campo filosófico, a partir dos anos 1970. O estruturalismo triunfante conquistou territórios, da antropologia à linguística, à teoria literária e às ciências sociais. Esse capítulo está escrito e tem como título “A morte do sujeito”. Quando essa guinada do pensamento contemporâneo parecia completamente estabelecida, há duas décadas, produziu-se no campo dos estudos da memória e da memória coletiva um movimento de restauração da primazia desses sujeitos expulsos durante os anos anteriores. Abriu-se um novo capítulo, que poderia se chamar “O sujeito ressuscitado”. (SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. , p. 30).

Se aqui já é possível vislumbrar a complexidade dos debates sobre o sujeito no século XX, é nesse ponto que a questão se torna ainda mais complexa, uma vez que a própria ideia do retorno ao sujeito não é menos delicada que sua morte. A esse respeito, seria significativo questionarmos se os próprios estruturalismo e pós-estruturalismo de fato sinalizam o desinteresse e apagamento do sujeito. Na contramão das interpretações correntes do estruturalismo, Étienne Balibar entende que ele não teria valorizado menos a questão. Ao contrário, seria um dos momentos em que o sujeito foi mais intensamente pensado, problematizado e nomeado:

[...] peço apenas que se admita- contrariamente a uma tese obstinada - que a questão do sujeito jamais deixou de acompanhar o estruturalismo, de definir sua orientação. Na realidade, não estou longe de pensar que o estruturalismo é um dos poucos movimentos filosóficos que intentou não somente nomear o sujeito, ou assinar-lhe uma função fundadora, ou situá-lo, mas também pensá-lo. (BALIBAR, 2005BALIBAR, Étienne. Le structuralisme: une destitution du sujet? Revue de métaphysique et de morale. v. 1, 2005. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-de-metaphysique-et-de-morale-2005-1-page-5.htm . Acesso em: 24 ago. 2022.
https://www.cairn.info/revue-de-metaphys...
, p. 16, tradução livre).

Isso complica a tese de um retorno ao sujeito, uma vez que, mesmo no momento central da chamada morte do homem, ele não deixou de estar vivo e passando muito bem. Por isso, torna-se preciso questionar: de que sujeito se fala quando se evoca a fórmula “retorno a”? Haveria apenas um sujeito, ou vários sujeitos constituídos de modos diferentes? É nesse âmbito que recentemente Elias Palti tem se colocado contra a tese do retorno ao sujeito, já que esse deveria ser pensado historicamente, tendo diferentes configurações conforme a epistémê em que se encontra. Por isso, Palti considera que seria um anacronismo falar em um retorno ao sujeito, pois estaríamos em uma epistémê distinta daquela que deu condições à emergência do sujeito moderno. Criticando aqueles que defendem os pressupostos que vinculam estritamente as noções de agência e de sujeito, Palti afirma que “nem mesmo aqueles que hoje clamam pelo retorno do sujeito podem endossá-lo, na medida em que as condições epistemológicas para essas premissas conceituais desapareceram. [...] tal apelo indica uma leitura a-histórica da história intelectual” (PALTI, 2004PALTI, Elias. The “Return of the Subject” as a Historico-Intellectual Problem. History and Theory, v. 43, n. 1, p. 57-82, 2004. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3590743 . Acesso em: 24 ago. 2022.
http://www.jstor.org/stable/3590743...
, p. 60, tradução livre).

A crítica postulada por Palti torna possíveis os seguintes questionamentos: o que permitiria que, mesmo em formações diferentes, esse sujeito (que não pode retornar ao que era) continue a ser chamado de sujeito? Isto é, qual o traço de continuidade na descontinuidade que permite ainda chamá-lo assim? Haveria um traço irredutível que permite a ele continuar recebendo esse nome? O mais importante neste momento não é propriamente tentar responder a tais questões, mas reconhecer que elas por si só apontam para a compreensão histórica e social do sujeito. Assim, não basta afirmar que o sujeito nunca deixou de estar presente, ou que o projeto de seu desmanche estaria fadado ao fracasso. É preciso, antes, reconhecer que esse é um campo de debates complexo, heterogêneo e cheio de nuances.

Se essa afirmação é hoje quase um senso comum, foi Heidegger o responsável pela proposição de que o sujeito é uma categoria moderna, abrindo espaço para pensar a sua epocalização. A base da reflexão desenvolvida pelo filósofo em O tempo da imagem no mundo consiste em diferenciar a noção de Sujeito, proveniente da filosofia da metafísica, especialmente em Descartes, do ὑποκείμενον (Hypokeimenon) grego. A seguinte passagem tornou-se central para a historicização do sujeito no século XX, ao afirmar que na Modernidade:

O decisivo não é que o homem se liberta para si mesmo dos vínculos que tinha até agora, mas que a essência do homem em geral se transforma, na medida em que o homem se torna sujeito. Temos de compreender, na verdade, esta palavra subjectum como a tradução do grego ὑποκείμενον. A palavra menciona o subjacente [Vorliegendes] que, enquanto fundamento, reúne tudo sobre si. Este significado metafisico do conceito de sujeito não tem, à partida, nenhuma referência especial ao homem, nem de modo nenhum ao eu. (HEIDEGGER, 2002HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Trad. Irene Borges et. al. Coimbra: Calouste Gulbekian, 2002. p. 95-138., p. 111).

Embora o subjectum latino seja visto como tradução do hypokeimenon, no mundo grego o conceito não teria qualquer referência ao homem ou ao eu, uma vez que indicaria o substrato de predicação, de forma que qualquer coisa que possa ser predicada poderia ser vista como “sujeito”. A designação do Sujeito moderno teria ocorrido, com a filosofia cartesiana, a partir da conjunção entre o agente, o homem e o eu, inaugurando uma posição subjetivista que se afirma como fonte do conhecimento e das representações. Ocorre que no mundo antigo haveria a concepção de que o pensamento emanaria da esfera divina, e o homem, inscrito na natureza, seria apenas uma ocasião desse pensamento, marcando a diferença ocupada pelo Sujeito moderno cujo Eu é visto como origem. Por conseguinte, se o Sujeito é fonte de representações, a marca característica da modernidade seria a possibilidade de se conceber o mundo como imagem:

Que o mundo se torne imagem e que o homem, dentro do ente, se torne subjectum, é um e o mesmo processo. [...] Não é de admirar que só onde o mundo se torna imagem surja o humanismo. [...] O processo fundamental da modernidade é a conquista do mundo como imagem. (HEIDEGGER, 2002HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Trad. Irene Borges et. al. Coimbra: Calouste Gulbekian, 2002. p. 95-138., p. 115-117).

Na leitura heideggeriana do sujeito moderno, a tão falada relação entre sujeito e objeto implica que o mundo se torne imagem, o que marca sua sujeição enquanto objeto submetido ao homem dotado de agenciamento. A emergência desse sujeito em que o ego coincide com a origem do pensamento e das representações teria implicações para todo um sistema de pensamento filosófico e científico. Ele é condição basilar para a ideia de verdade, de certeza e, logo, para a emergência da ciência: “Só se chega à ciência como investigação se, e apenas se, a verdade se transformou em certeza do representar” (HEIDEGGER, 2002HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Trad. Irene Borges et. al. Coimbra: Calouste Gulbekian, 2002. p. 95-138., p. 110). Lendo essa relação no pensamento heideggeriano, Emmanuel Biset (2021BISET, Emmanuel. El sujeto en Jacques Derrida. In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo. Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 99-130. ) afirma que o sujeito ocuparia uma posição central no pensamento moderno, pois seria ele que afirma o lugar estável de que emana a certeza do mundo como objetividade, possibilitando o proceder de toda a representação. Assim, o sujeito seria central para o próprio método de pensamento da filosofia da metafísica, sendo que a concepção enquanto o que dá estabilidade para as representações do mundo fundaria o método sobre o qual se pauta a ideia moderna de verdade. Ou seja, toda a filosofia moderna, inclusive seu método, só seriam possíveis graças à ideia de sujeito. Por esse motivo, Biset afirma: “da perspectiva heideggeriana a possibilidade de um novo pensamento se assenta sobre a destruição do conceito de sujeito” (BISET, 2021BISET, Emmanuel. El sujeto en Jacques Derrida. In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo. Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 99-130. , p. 110, tradução livre). Quer dizer, na concepção de Heidegger, combater a filosofia da metafísica implica destituir o sujeito como aquilo que dá fundamento inclusive a seu método. Nesse ponto torna-se compreensível a extensão do debate sobre o sujeito no século XX: ele serve para legitimar a tentativa de desmonte do humanismo, ou para criticá-la. E é nessa ótica que Heidegger valorizou a dessubjetivação da arte, posteriormente retomada por nomes como Blanchot e o primeiro Foucault. Se o sujeito é uma categoria histórica moderna, a literatura seria um dos lugares em que se tornaria possível o projeto ético do seu desmanche, ou seja, o discurso literário poderia atuar tanto na produção de sujeitos, quanto em sua dissolução.

Nesse ponto, já estava lançada a compreensão histórica do sujeito, que não teria mais uma substância, assumindo diferentes formas de acordo com o momento. Contemporaneamente, Alain de Libera tem desenvolvido a arqueologia dessas formas do sujeito, sendo que o próprio autor ressalta a importância do reconhecimento de tais figuras: “uma arqueologia do sujeito deve, portanto, ‘traçar’ dois produtos distintos, um na história, outro na historiografia: a entrada do sujeito na filosofia, de um lado, e a invenção da figura do sujeito, de outro [...]” (DE LIBERA, 2013DE LIBERA, Alain. Arqueologia do sujeito I: o nascimento do sujeito. Trad. Fátima Conceição Murad. São Paulo: Fap; Unifesp, 2013., p. 34, grifo do autor). O exaustivo trajeto empreendido por De Libera permite a ele discordar da tese heideggeriana de que o sujeito seria o fundador da modernidade, uma vez que a mudança de paradigma filosófico teria se operado antes de Descartes, não se concentrando em um único nome, mas estando dispersa em vários autores medievais.2 2 Luiz Costa Lima discorda do questionamento de De Libera. O fato de se encontrar a relação entre sujeito e agente em autores medievais não abalaria o peso apontado por Heidegger para a modernidade da relação entre o subjectum, subjetividade e centralidade do eu (ver: LIMA, 2021, p. 49). Além disso, o sujeito cartesiano teria se consolidado mais com a recepção posterior ao filósofo, do que propriamente com ele. Reconhecendo que o sujeito conforme concebido modernamente teria se formado processualmente, De Libera busca em Locke a imputabilidade da subjetividade como um dos elementos a serem adicionados a essa equação. Ou seja, a partir do momento em que o sujeito é considerado agente e fonte do pensamento, ele se torna imputável por suas ações, estabelecendo, a partir de Locke, a estreita relação entre conciousness, self e person, de onde vem o vocabulário da personalidade jurídica.3 3 Em análise biopolítica da categoria de “pessoa”, Roberto Esposito (2011; 2019) reconhece nessa subjetividade imputável localizável em Locke a instalação do poder no próprio âmago do sujeito, que assumiria essa posição exatamente porque assujeitado. É nessa ótica que ele propõe uma ética da despersonalização enquanto alternativa à configuração moderna da subjetividade. Nessa perspectiva, a coincidência com a subjetividade condiciona antes de tudo um sujeito moral.

Mas é com Foucault que epocalização heideggeriana do sujeito ganhou desdobramentos fundamentais. Já no momento arqueológico de sua produção nos anos 1960, destacadamente em As palavras e as coisas (2000FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ), a conhecida divisão da era da semelhança, da era da representação e da era da história o direciona para a visão da conformação do sujeito em uma determinada epistémê. Por isso, a percepção do sujeito como fonte só teria sido possível na era da história, de modo que o período clássico contaria com outras formas de subjetividade. Indo além do que fez Heidegger, Foucault evidencia o posicionamento de que esse sujeito não é apenas aquele diante do qual o mundo se apresenta como imagem, mas é também aquele que representa a si mesmo. Enquanto Heidegger destaca o sujeito enquanto condição de possibilidade para a ciência, Foucault aponta o papel que as ciências humanas tiveram para a delimitação das formas desse sujeito-homem, de maneira que “o homem aparece com sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece: soberano submisso, espectador olhado [...]” (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. , p. 430). Inês Lacerda Araújo comenta a importância do surgimento das ciências humanas para que o homem se tornasse cognoscível:

Só quando aparecem as ciências da vida, do trabalho e da linguagem para pensá-lo, ele passa a ser cognoscível, alguém de carne e osso, falante e situado em meio a condições materiais e concretas. [...] Os saberes positivos acerca do homem indicam sua finitude. A vida, o trabalho e a linguagem têm sua história própria, evoluem, o que mostra que esse homem é finito e cognoscível por intermédio daquelas formas finitas. (ARAÚJO, 2014ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: UFPR, 2014., p. 47).

O que se destaca nesse ponto é um desdobramento dos postulados heideggerianos, mas agora caracterizando a Modernidade como o momento em que o sujeito tem sua forma delimitada. Por conseguinte, tal historicização liga o sujeito a uma epistémê específica, chamando a atenção para o modo como os processos discursivos - em especial os das ciências humanas - produzem o sujeito por diferentes configurações. Considerar as formas do sujeito e o seu processo de produção, portanto, não significa apenas historicizá-lo, mas também levar em conta as dimensões do poder que o submetem. Não haveria um homem dado de antemão, e o sujeito vê questionado o seu lugar constituinte para ser pensado como constituído, uma vez que as ciências humanas, “ao reduzirem o sujeito humano a objeto de conhecimento, foram responsáveis pela constituição de uma nova subjetividade, como mostrou Foucault na genealogia do saber/poder” (ARAÚJO, 2014ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: UFPR, 2014., p. 53).

É pensando nos processos de produção das formas do sujeito que a genealogia desenvolvida por Foucault a partir dos anos 1970 articula o reconhecimento de uma subjetividade internalizada com a constituição de um sujeito moral imputável. Nos quatro volumes de História da sexualidade (2020aFOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2020a.; 2020bFOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2020b. v. 2.; 2017FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2017. v. 3.; 2020cFOUCAULT, Michel. História da sexualidade: as confissões da carne. Trad. Heliana de Barros Conde Rodrigues. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2020c. v. 4.), a confissão assume um papel decisivo para o processo de internalização dessa subjetividade, uma vez que o indivíduo é convocado a discursivizar a verdade sobre si. Nas diversas formas que a confissão assume no decorrer da Idade Média, e que ganham forma decisiva no século X, não se trata de avaliar apenas os atos pecaminosos do fiel, mas os seus pensamentos e desejos mais íntimos. Essa prática institucionalizada levaria o indivíduo a se reconhecer como dotado de interioridade, assumindo a posição de sujeito de desejos. Ou seja, estamos diante de uma ética para a qual o sujeito é responsável não apenas pelo que faz, mas pelo que deseja, de modo que a interiorização de sua subjetividade é uma marca basilar dessa forma-sujeito. Por conseguinte, a genealogia de Foucault faz recuar o marco temporal do sujeito moderno estabelecido por Heidegger, pois, embora as instituições modernas tenham dado forma singular a esse sujeito, a coincidência entre a subjetividade e o sujeito como fonte imputável dos pensamentos já havia começado a se formar muito antes. Isso teria consequências contemporâneas nas ciências humanas, como se observaria, por exemplo, nas práticas da psicanálise que teria relações estreitas com a veridicção inaugurada pela confissão, por analisar a verdade dos desejos do sujeito. Consequentemente, a modernidade estaria repleta de dispositivos, conceito que, embora Foucault nunca tenha se preocupado em sistematizar, é descrito como conjunto heterogêneo de discursos, instituições, leis, medidas administrativas, enunciados científicos e filosóficos, os quais atuam como produtores de subjetividade (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, Michel. Sobre a “História da sexualidade”. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 243-276.). Posteriormente, Agamben sistematiza o conceito e o amplia, englobando qualquer coisa que tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar e modelar gestos, ações, condutas etc., colocando em pauta uma amplíssima gama de elementos: as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas, a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares, a linguagem (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. p. 25-54.). Naturalmente, tanto Foucault como Agamben não deixam de considerar a própria literatura como um dispositivo produtor de subjetividades. Se as ciências humanas atuaram na conformação do sujeito, a literatura, considerada uma das principais produções culturais da Modernidade, nunca teria deixado de atuar conjuntamente a elas e de tensioná-las. Ao passo que a confissão e a psicanálise foram responsáveis para que o indivíduo se considerasse como dotado de uma subjetividade internalizada, autores como Moretti (2020MORETTI, Franco. O romance de formação. Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020. ) não deixam de mostrar como a forma do romance realista do século XIX passou a operar a análise psicológica dos personagens, descrevendo os seus pensamentos em confronto com a coletividade exterior das cidades. Recuando ainda mais, John Frow, seguindo a perspectiva foucaultiana, defende que foi Shakespeare um dos responsáveis pela criação do sentido de interioridade, criando condições para o posterior desenvolvimento da psicanálise:

Hamlet então se torna um texto central para a tradição psicanalítica, e a melancolia humoral de Hamlet é transformada nos termos de um discurso médico diferente. Freud lê a peça como um texto seminal [...] para o desenvolvimento da teoria do complexo edipiano, e expande sua análise no capítulo V de A interpretação dos sonhos [...]. (FROW, 2016FROW, John. Character and person. Nova Iorque: Oxford University Press, 2016., p. 134, tradução livre).

Contemporaneamente, o intelectual argentino Elias Palti retoma a descrição dessas epistémês, evidenciando a sua relação com os sujeitos e propondo a ampliação das epocalidades a partir do século XX. Em sua leitura de Foucault, o projeto de uma arqueologia do saber “não é outra coisa senão um intento de historicizá-lo, de desnudar sua aparência de naturalidade, como se se tratasse de uma espécie de essência eterna, e mostrar como ele foi se reconfigurando nas diversas epistémês ou regimes de saber” (PALTI, 2021PALTI, Elias. El sujeto en Foucault. In.: In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo. Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 25-50., p. 28, tradução livre). Isto é, de Heidegger a Elias Palti, o que se observa são os processos de produção do sujeito, em que esse assume formas diferentes que são determinadas por múltiplos elementos sociais e históricos. Assim, a partir da arqueologia de Foucault, Palti entende que uma concepção de sujeito é desprovida de significado fora da daquela formação discursiva ou regime de saber particular em que surge, o que impediria de projetá-lo para além desse horizonte sem recair em uma leitura a-histórica do conceito. Tomando isso como base, o autor argentino afirma que, ao identificar a Era da Semelhança, Era da Representação e Era da História, Foucault não teria dado conta de descrever as formações singularizadas a partir da transição do século XIX para o XX. Ele propõe, então, que seriam identificáveis outras duas eras: a Era das Formas e a Era da Khôra4 4 De maneira expressivamente sucinta, a Era das Formas - que compreende, entre outros, os modos discursivos operados pelo Estruturalismo - poderia ser descrita como um momento de afirmação da contingência radical, rompendo com a noção de teleologia da história, dando lugar à fundação de sistemas autorregulados. Já a Era da khôra é pensada a partir da leitura que Derrida faz do Timeu de Platão, que entenderia a khôra (χώρα) como o lugar vazio anterior ao mundo onde o demiurgo teria inscrito todas as coisas, seria o vazio inerente aos sistemas que atuaria como condição de possibilidade e de impossibilidade destes. .

De todo esse percurso, interessa-nos um ponto axial: os diferentes autores concordam em pensar os processos de produção do sujeito conforme as condições históricas, de maneira que esse assumiria formas diferentes de acordo com o momento. Nessas formas do sujeito, estão em jogo a coincidência ou não com o ego subjetivo, possibilidade de ocupar ou não o lugar de fonte de representações (inclusive as imagens de si próprio), possibilidades de agenciamento, de imputabilidade jurídica, entre tantas outras variáveis. De imediato, isso nos permitiria concluir que não há sentido em afirmar uma crise do sujeito, já que o seu caráter histórico por si só pressupõe crises constantes nas diferentes conformações da subjetividade e dos processos de subjetivação. Mas aqui é necessário nos determos criticamente nas postulações de Palti. A leitura de que uma determinada forma do sujeito não poderia existir fora da epistémê que deu condições para sua existência termina por se vincular a uma visão teleológica da história e por sugerir uma homogeneidade do conceito nas formações discursivas em que existem. O próprio autor marca textualmente a ideia de que todo um pensamento seria cruzado por igual em certo terreno arqueológico ao sinalizar a transição da Era da História para a Era das Formas: “Entramos desse modo em um novo terreno arqueológico, que cruza por igual todo pensamento social e natural do período, articulado em função das coordenadas estruturalismo-fenomenologia” (PALTI, 2021PALTI, Elias. El sujeto en Foucault. In.: In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo. Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 25-50., p. 42, tradução livre). Nesse ponto, é necessário enfatizar o questionamento de tal homogeneidade. Emmanuel Biset comenta a leitura crítica que Derrida faz de Heidegger, afirmando que, apesar de todas as suas precauções, o grande filósofo ainda construiria certa teleologia com épocas que superam umas às outras, fazendo da metafísica uma totalidade que impede de pensar os múltiplos movimentos de cada momento. Biset afirma que a teleologia seria também “[...] a tentação comum de Foucault e de Agamben, a modernidade que vem depois da idade clássica, as epistémês que se sucedem e que se tornam caducas umas às outras [...]” (BISET, 2021BISET, Emmanuel. El sujeto en Jacques Derrida. In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo. Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 99-130. , p. 112, tradução livre). O mesmo tipo de crítica poderia ser feito às considerações de Palti. Apesar de o modelo de análise histórica servir para questionar a concepção transcendental e substancialista do sujeito, seria preciso questionar se não se manteria um mesmo modelo que o concebe como entidade unitária, pelo menos na epistémê que lhe daria condições de possibilidade. É curioso que ele se concentre no momento arqueológico da produção de Foucault, sem evidenciar o projeto genealógico que o levou a avaliar descontinuidades e continuidades desde os gregos - notando, como já demonstrado, que a internalização da subjetividade teve seu início com a pastoral cristã, antes do período moderno. Com isso, seria possível pensar quais possíveis continuidades históricas existem nas formas dos sujeitos, para além das descontinuidades. Mais importante, os modelos que estão sendo descritos até o momento pensam as descontinuidades por uma perspectiva temporal, mas a heterogeneidade também pode ser vista em termos geográficos, sociais, políticos etc. Biset destaca que Derrida seria crítico às noções de uma morte ou de um retorno do sujeito exatamente porque este não poderia ser reduzido a homogeneidade alguma:

antes de se encontrar uma raiz cartesiana que define toda uma época, é necessário deter-se em cada texto, em cada autor, nos impasses de suas mesmas elaborações. Por esse mesmo motivo, Derrida recusa a possibilidade de falar de uma “morte do sujeito” ou de um “retorno do sujeito”, pois a primeira reserva seria do sujeito para quem, para que tradição, para que autor etc. A problemática do sujeito não se reduz a nenhuma homogeneidade. (BISET, 2021BISET, Emmanuel. El sujeto en Jacques Derrida. In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo. Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 99-130. , p. 120, tradução livre).

Em que pese para a nossa análise a relevância do posicionamento de que essa problemática não se reduz a nenhuma homogeneidade, cabe lembrar que o sujeito não é apenas um conceito discutido por determinados autores, mas um modo de subjetivação com que se relacionam possibilidades de pensamento, de constituição de identidades, de agenciamento político, social, profissional etc. Reconhecendo essa heterogeneidade, na mesma medida em que discursividades como a do Estruturalismo são produtoras de sujeitos, caberia discutir como saberes de tradições orais, ou a literatura atuariam no embate constante da conformação das subjetividades. O que se impõe nesse caso é a necessidade de se pensar não na forma do sujeito em certo momento histórico, mas nas formas múltiplas, heterogêneas, tensionais que ele assumirá simultaneamente. As formas do sujeito são o desenho das conformações subjetivas para si e para o outro, delimitam a personalidade jurídica do indivíduo justamente por dotar o sujeito de poder de agenciamento que o torna imputável por seus atos, viabilizam ou não estratégias de convivência social, sinalizam relações diferentes entre a subjetividade e o conhecimento. Reconhecer isso não implica que o sujeito se constitua como pura aparência descolada da realidade: as suas formas são produzidas por esferas econômicas, materiais, políticas, institucionais, linguísticas; por conflitos de classe, de gênero, de raça, de religião. Se o sujeito não se reduz a homogeneidade alguma, é exatamente por isso que não implica uma ruptura radical com epistémês anteriores, implicando simultaneamente continuidades e descontinuidades. As formas do sujeito hoje podem ter traços de continuidade da relação internalizada com a verdade da subjetividade conforme concebida pela pastoral cristã. Embora, como apontado por Palti, sujeito e agenciamento não estejam necessariamente implicados, nada impede que ocorra a continuidade de formas de agenciamento mesmo frente a descontinuidades com as formas de ação política e de relação com o conhecimento.

Nos diferentes problemas e proposições filosóficas propostos por esses autores, encontram-se pontos axiais da discussão das formas do sujeito com as quais dialoga Costa Lima, na procura por um aporte teórico para se pensar a mímesis e o estatuto da ficção. A noção de um sujeito fraturado, variável sincrônica e diacronicamente, não perde de vista o horizonte em que se situam autores de Heidegger a Derrida, os quais consideram uma perspectiva dessubstancializada do conceito, que, por isso mesmo, pode ter suas várias faces moldadas. Isso não significa que o teórico brasileiro simplesmente se coadune com um simples desmanche do sujeito, demonstrando-se explicitamente crítico dessa doxa em momentos distintos de sua obra. De tudo isso, no entanto, parece que os problemas da filosofia no século XX ainda têm muito a oferecer para as discussões sobre o sujeito e a literatura, o que poderia ser estendido às recentes correntes que propõem a valorização da subjetividade como operador conceitual.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo e outros ensaios Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. p. 25-54.
  • ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito Curitiba: UFPR, 2014.
  • BALIBAR, Étienne. Le structuralisme: une destitution du sujet? Revue de métaphysique et de morale v. 1, 2005. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-de-metaphysique-et-de-morale-2005-1-page-5.htm Acesso em: 24 ago. 2022.
    » https://www.cairn.info/revue-de-metaphysique-et-de-morale-2005-1-page-5.htm
  • BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64.
  • BISET, Emmanuel. El sujeto en Jacques Derrida. In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 99-130.
  • CULLER, Jonathan. Structuralist poetics: Structuralism, Linguistics, and the Study of Literature. Nova Iorque: Cornell Paperbacks, 1977.
  • DE LIBERA, Alain. Arqueologia do sujeito I: o nascimento do sujeito. Trad. Fátima Conceição Murad. São Paulo: Fap; Unifesp, 2013.
  • ESPOSITO, Roberto. Dois: a máquina da teologia política e o lugar do pensamento. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2019.
  • ESPOSITO, Roberto. El dispositivo de la persona Buenos Aires: Amorrotu, 2011.
  • ERMARTH, Elizabeth. Agency in discursive condition. History and theory, n. 40, 2001.
  • FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2020a.
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2020b. v. 2.
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2017. v. 3.
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: as confissões da carne. Trad. Heliana de Barros Conde Rodrigues. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2020c. v. 4.
  • FOUCAULT, Michel. O que é um autor. In.: Ditos e escritos: estética: literatura, pintura, música e cinema. 2.ª ed. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 264-298.
  • FOUCAULT, Michel. Sobre a “História da sexualidade”. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 243-276.
  • FROW, John. Character and person Nova Iorque: Oxford University Press, 2016.
  • HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta Trad. Irene Borges et. al Coimbra: Calouste Gulbekian, 2002. p. 95-138.
  • LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000.
  • LIMA, Luiz Costa. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.
  • LIMA, Luiz Costa. O chão da mente: a pergunta pela ficção. São Paulo: Unesp, 2021.
  • MORETTI, Franco. O romance de formação Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020.
  • NANCY, Jean-Luc. Introduction. In: CADAVA, Eduardo; CONNOR, Peter; NANCY, Jean-Luc. Who comes after the subject? Nova Iorque: Routledge, 1991. p. 1-8.
  • PALTI, Elias. El sujeto en Foucault. In.: In: PALTI, Elias; BONILLA, Rafael P. El concepto de sujeto en el pensamiento contemporáneo Buenos Aires: Prometeo, 2021. p. 25-50.
  • PALTI, Elias. The “Return of the Subject” as a Historico-Intellectual Problem. History and Theory, v. 43, n. 1, p. 57-82, 2004. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3590743 Acesso em: 24 ago. 2022.
    » http://www.jstor.org/stable/3590743
  • SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
  • ŽIŽEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. Trad. Luigi Barrichelo. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • 1
    Costa Lima se contrapõe a essa morte do homem. Sem deixar de considerar a validade do questionamento à concepção metafísica do sujeito, ele ainda o considera um elemento válido para se pensar a literatura.
  • 2
    Luiz Costa Lima discorda do questionamento de De Libera. O fato de se encontrar a relação entre sujeito e agente em autores medievais não abalaria o peso apontado por Heidegger para a modernidade da relação entre o subjectum, subjetividade e centralidade do eu (ver: LIMA, 2021LIMA, Luiz Costa. O chão da mente: a pergunta pela ficção. São Paulo: Unesp, 2021., p. 49).
  • 3
    Em análise biopolítica da categoria de “pessoa”, Roberto Esposito (2011ESPOSITO, Roberto. El dispositivo de la persona. Buenos Aires: Amorrotu, 2011.; 2019ESPOSITO, Roberto. Dois: a máquina da teologia política e o lugar do pensamento. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ) reconhece nessa subjetividade imputável localizável em Locke a instalação do poder no próprio âmago do sujeito, que assumiria essa posição exatamente porque assujeitado. É nessa ótica que ele propõe uma ética da despersonalização enquanto alternativa à configuração moderna da subjetividade.
  • 4
    De maneira expressivamente sucinta, a Era das Formas - que compreende, entre outros, os modos discursivos operados pelo Estruturalismo - poderia ser descrita como um momento de afirmação da contingência radical, rompendo com a noção de teleologia da história, dando lugar à fundação de sistemas autorregulados. Já a Era da khôra é pensada a partir da leitura que Derrida faz do Timeu de Platão, que entenderia a khôra (χώρα) como o lugar vazio anterior ao mundo onde o demiurgo teria inscrito todas as coisas, seria o vazio inerente aos sistemas que atuaria como condição de possibilidade e de impossibilidade destes.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com