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Poetas, costureiras, tecelãs: a importância dos saberes de pouca importância

Poets, seamstresses, weavers: the importance of unimportant knowledge

Resumo

A partir da análise de alguns textos que recuperam a questão da experiência dos operários da tecelagem e de outros trabalhos de costura - sendo eles um poema “inexistente”, um poema anônimo, o poema “Mulher proletária”, de Jorge de Lima, o livro Diario de uma costureira proletária, de Victoria Guerrero Peirano, e a série “Fontes de renda”, de Lu Menezes - este artigo pretende observar a importância do dispositivo poético e dos saberes particulares dos trabalhadores da costura como ferramentas epistemológica e política. Ambas as práticas/saberes permitem pensar em relação ao mundo do trabalho, a afetividade e a formação das subjetividades, juntando tempos e circunstância heterogêneas e longínquas, tornando elementos considerados “sem importância” da “maior importância” para a consciência política.

Palavras-chave:
poesia; trabalho; costura; política

Abstract

Based on the analysis of some poems that recover the experience of the weaving and sewing workers - among them, an “inexistent” poem, an anonymous poem, "Mulher proletária" by Jorge de Lima, the book Diario de una costurera proletaria by Victoria Guerrero Peirano and the sequence “Fontes de renda” by Lu Menezes - this paper intends to highlight the importance of the poetic device and the particular knowledge of sewing workers as epistemological and political tools. Both their knowledge and their practices allow us to reflect on the world of work, affectivity and the formation of subjectivities, bringing together heterogeneous and distant times and circumstances, turning elements considered “unimportant” into elements of “the greatest importance” in the political consciousness.

Keywords:
poetry; work; sewing; politics

Resumen

A partir del análisis de algunos poemas que recuperan la experiencia de las tejedoras y otras trabajadoras de la costura - siendo ellos, un poema "inexistente", un poema anónimo, "Mulher proletária" de Jorge de Lima, el libro Diario de un proletario costurera de Victoria Guerrero Peirano y la serie “Fuentes de renta” de Lu Menezes - este artículo pretende observar la importancia del dispositivo poético y el saber particular de las costureras como herramientas epistemológicas y políticas. Ambos saberes/prácticas permiten pensar el mundo del trabajo, la afectividad y la formación de subjetividades, conjugando tiempos y circunstancias heterogéneas y lejanas, volviendo elementos considerados “sin importancia”, de “la mayor importancia” en la conciencia política.

Palabras clave:
poesia; trabalho; costura; política

Nos salões dos ricos, os poetas lacaios declamam:

- Como é lindo o teu tear!

(Pagu, Parque Industrial)

Desde antiguo, hasta el presente, son las tejedoras y los poetas-astrólogos de las comunidades y pueblos, los que nos revelan esa trama alternativa y subversiva de saberes y de prácticas capaces de restaurar el mundo y devolverlo a su propio cauce. (Silvia Rivera Cusicanqui, Um mundo ch’ixi es posible)

I - de pouca importância

No livro Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937), da historiadora Glaucia Fraccaro, chama a atenção uma cena recuperada nos arquivos do DEOPS de São Paulo. Uma cena que trata sobre a presença das mulheres nas lutas trabalhistas, tema do livro, mas que de forma lateral provoca uma série de interrogantes e hipóteses sobre a relação da poesia e das operárias nas fábricas de tecelagem. Antes de ir para a cena, no entanto, é necessário recuperar parte da exposição e leitura feita no livro.

Nos primeiros capítulos do livro, Fraccaro demonstra que, no começo do século XX, a presença das mulheres nas mobilizações por reivindicações de direitos dos trabalhadores foi contundente, tanto nas relacionadas a pautas gerais para todos os operários quanto naquelas que exigiam melhorias nas condições de trabalho especificamente para as mulheres. De fato, a presença das mulheres nas fábricas no período estudado no livro chegou a ser de quase o 40% dos trabalhadores, enquanto nas florescentes fábricas de tecidos - que tem sua época de ouro nos primeiros anos do governo Vargas, segundo a autora - elas compunham mais de 50% da planta. Essa presença era também sentida na sua participação na política das fábricas, e já desde os primeiros anos do século elas se organizavam, seja nas ligas ou nos sindicatos que iam surgindo e se fortalecendo no começo do século XX, com características diversas.

Embora a participação das mulheres e suas reinvenções particulares nas greves e nas ações pontuais por direitos tenham sido acolhidas pela maioria das organizações dos operários, Glaucia Fraccaro aponta um caso singular: se nas suas pesquisas foi possível encontrar diversos documentos que testemunham a participação das mulheres, no caso da União dos Operários em Fábricas de Tecido (UOFT), uma das mais importantes mobilizadoras das greves no começo dos anos 1930, cuja principal liderança era José Righetti, essa presença é nebulosa. Fraccaro descreve que as pautas reivindicadas pela UOFT se concentravam na “redução da jornada de trabalho, reescalonamento de turnos, pagamentos adicionais por horas extras” (FRACCARO, 2018FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: Feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018., p. 58) e na regulação do trabalho de mulheres e crianças, “pauta que compunha o programa político de greves desde 1917” (FRACCARO, 2018FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: Feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018., p. 58-59): proibição do trabalho para menores de 14 anos e o fim do trabalho noturno para as mulheres, principalmente. No entanto, a pesquisadora identifica nas posições da UOFT a avaliação de que a perda de direito dos operários homens se devia, em parte, à presença irrestrita e cada vez maior das mulheres nas fábricas.

Por ocasião de uma reunião no Ministério de Trabalho de governo Vargas, no Rio de Janeiro, a UOFT - representada na ocasião pelo próprio Righetti - entrega um detalhado memorial no qual se descrevem as condições do trabalho e a precariedade da vida dos trabalhadores. Ainda, segundo o documento, a presença das mulheres como tecelãs era do 85% do total de operários, já que os patrões as preferiam na hora da contratação. O documento entregue ao ministro afirmava:

Tendo em conta ainda que nas seções de tecelagem só aceitam mulheres, contribuindo desta forma para avolumar cada vez mais o número de homens desempregados, oferecendo assim um espetáculo ao mesmo tempo ridículo, vergonhoso e revoltante: o de ver a mulher na fábrica e o marido em casa cuidando dos serviços domésticos e levar as crianças ao portão das fábricas para serem amamentadas. (ARQUIVO NACIONAL 1 1 Fraccaro anota a referência do documento: “Arquivo Nacional. Fundo Secretaria do Gabinete Civil da Presidência da República, Série 17.10 Ministério do Trabalho, lata 46. apudFRACCARO, 2018FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: Feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018., p. 59).

A citação expõe de forma clara uma avaliação do trabalho formal marcada pela diferença de gênero, pois a habilitação e o acesso a determinados labores e à condição de operário deveria ser, segundo essa avaliação, guiada por preceitos morais e culturais. A presença de mulheres na fábrica, e sua recusa, faz parte de toda uma rede de afetos culturais: o fato se vê como “revoltante” e perigoso inclusive para o desenvolvimento saudável da família, segundo os parâmetros da época, além de vergonhoso, tanto porque os homens precisariam se encarregar das tarefas domésticas, quanto porque as mulheres amamentariam em um espaço inadequado, público: o portão da fábrica. Nesse sentido, a regulação do corpo feminino se vê como necessária para o desenvolvimento do trabalhador e a garantia da reprodução da força de trabalho, mesmo que isso não seja percebido nesses termos pelos representantes da UOFT. No documento, então, além das pautas já recorrentes, se coloca uma reivindicação que visa “solucionar” o problema: “que os lugares ocupados hoje por mulheres nas indústrias fossem, numa porcentagem crescente, de mês a mês, ocupados por homens, até a extinção total do elemento feminino nas indústrias” (ARQUIVO NACIONAL2 2 Fraccaro anota a referência do documento: Arquivo Nacional. Fundo Secretaria do Gabinete Civil da Presidência da República, Série 17.10 Ministério do Trabalho, lata 46. apudFRACCARO, 2018FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: Feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018., p. 60). A solução aos sofrimentos e explorações das operárias mulheres descritas ao longo do documento seria a extinção desses postos e a sua colocação em um lugar invisível de reprodução (FEDERICI, 2016FEDERICI, Silvia. Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y acumulación originária. Buenos Aires: Tinta Limón, 2016. ).

Fraccaro aponta que certamente essa posição é uma das explicações à escassa presença de mulheres na UOFT, levando em conta a quase inexistência de registros. Quase. A pesquisadora acha uma pegada. E é essa a cena que me chama a atenção: na década de 30, começa a ser habitual a presença de investigadores do governo Vargas, oficialmente ou secretos, nas reuniões dos sindicatos e organizações de operários - o que levou as reuniões relevantes para a clandestinidade. Um desses delegados registra em um dos seus informes que, em “uma reunião de pouca importância”, Rodolphina Augusta - imaginamos que uma das representantes da UOFT - fez a leitura de um poema. (DEOPS3 3 Fraccaro anota a referência do documento: Aesp. Deops. Prontuário União do Operários em Fábrica de Tecidos 0124/ Sindicato dos Operários em Fiação e Tecelagem 0124/0924, v.1. , apudFRACCARO, 2018FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: Feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018., p. 61). O agente não registra o poema, como é de se esperar, e não temos documentos acessíveis que nos deem pistas de quem era Rodolphina Augusta. A pegada é um índice que não permite chegar em um texto, nem em uma biografia, nem sabemos se o poema lido era ou não de sua autoria. Sabemos apenas que - ao menos nessa reunião - a única voz de mulher que foi alçada, leu um poema. E recolhemos a potência do interrogante que a cena coloca: o poema é uma estratégia perante a vigilância, como as receitas nos jornais durante a última ditadura? O poema é uma tentativa de denúncia por outros meios? Articulação de uma linguagem que permita discursar de outro modo e, assim, pensar de outro modo? Um modo de visibilizar as redes e vínculos entre militância, trabalho e linguagem? Um modo de uma operária se tornar sujeita de uma voz, que não a discursividade da militância sindical?

Se quisermos completar a cena ou dar algumas respostas, resta apenas empreender um longo trabalho em arquivos dispersos do movimento sindical ou a especulação. Na especulação, um exercício de imaginação, podemos lançar mão de outros poemas da época que tocavam na questão. Acaso Rodolphina recuperava aquele poema aparecido no periódico A Plebe, sem autoria, alguns anos antes?

A perfídia das “lançadeiras” tuberculizáveis...

As dermatoses profissionais...

As pneumoconicoses resultantes da irritação do parênquima pulmonar pelas poeiras...

As deformações decorrentes das atitudes forçadas...

As queimaduras de ácido e álcalis na seção de tinturaria...

As úlceras horríveis...

As congestões resultantes das variações de pressão...

O ar viciado...

O calor úmido das seções determinadas...

A imundície das pias...

A uniformidade bestilizadora do trabalho...

As deformações fatal das mãos...

As flitenas, essas bolhas incômodas...

Os acidentes...

A prematuração das crianças submetidas ao labor dos adultos...

A incultura das massas originando um anti-higienismo perigoso...

O trabalho das mulheres grávidas...

A depravação moral... (A Plebe, 10 jun. 1922 apudRIBEIRO, 1988RIBEIRO, Maria Alice Rosa. Condições de trabalho na indústria têxtil paulista (1870-1930). Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Hucitec, 1988., p. 131).

Ou a sua denúncia seria menos a da insalubridade que atingia os corpos para apontar as singularidades do trabalho feminino, como fez na mesma época o poeta e médico Jorge de Lima no poema “Mulher proletária”, publicado em 1932 (LIMA, 1997LIMA, Jorge de. Poemas escolhidos. In: LIMA, Jorge de. Poesia completa. Organização de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 277-292. Vol. 1., p. 286-287)?:

Mulher proletária - única fábrica que o operário tem, (fabrica filhos) tu na tua superprodução de máquina humana forneces anjos para o Senhor Jesus, forneces braços para o senhor burguês. Mulher proletária, o operário, teu proprietário há de ver, há de ver: a tua produção, a tua superprodução, ao contrário das máquinas burguesas salvar teu proprietário.

No poema publicado em A Plebe, parece importar menos a denúncia - certamente denúncias eram feitas primeiramente em discursos argumentativos e perante patrões e autoridades - do que a possibilidade de construir uma imagem singular, de deformação, de indignidade, dada pela superposição de frases, pela sua acumulação de desumanizações. Uma lista ritmada e massacrante, como o ritmo de uma máquina, que vai invadindo e destruindo os corpos, se concentrando na imagem de um corpo apodrecendo como produção da fábrica. Já no poema de Jorge de Lima, a definição da mulher proletária permite aproximar ideias tradicionalmente separadas: a produção na fábrica, a produção de filhos, a produção de abortos (anjos). O olhar atravessado do sanitarista e poeta Jorge de Lima, talvez, lhe permita observar aquilo que Silvia Federici vai chamar de “acumulação originária”.4 4 Nesse livro de Jorge de Lima, além de aparecerem motivos da vida em Pernambuco, se destacam vários poemas marcados por uma estética próxima aos poetas russos do começo de século, na qual corpo fragmentado, fábrica e cidade são imagens recorrentes, em relações violentas que impedem toda filiação, toda família: “Foi o fiho do operário que uma roda matou” (1997, p. 284). No poema “O filho pródigo” se lê: “Nas engrenagens das fábricas/ bolem como vermes - dedos decepados de operários./ Há intestinos rotos de crinças/ nos vaivéns do correame das oficinas” (1997, p. 284). A suspensão da linguagem discursiva e a aparição de uma linguagem aglomerada de sentidos permite mostrar que a fábrica produz corpos podres, e que as mulheres produzem trabalhadores.

II

Se os poemas anteriores parecem especulações verossímeis sobre como seria o poema perdido da também perdida Rodolphina Augusta, outras especulações mais insólitas podem ajudar a imaginar nuances para essa voz operária e tecelã, que costurem os tempos para contemplar uma experiência presente. Acaso o poema de Rodolphina se assemelhava aos que Victoria Guerrero Peirano publica em Diario de una costurera proletaria (2021)?

Em 2013, a poeta e pesquisadora peruana Victoria Guerrero Peirano publica uma plaquete contendo poemas escritos em momentos diferentes e, em 2021, a série ganha uma nova edição - agora como livro - que inclui mais um poema. Diario de una costurera proletaria trata-se, segundo a própria autora, de um trabalho em processo ou em aberto, já que os poemas foram se somando em tempos variados, expandindo e, por sua vez, mudando o conjunto, como que acrescentando novas linhas em um tecido. O livro de hoje tem 15 poemas que podem ser pensados em três grupos: um primeiro, onde o sujeito tensiona o trabalho com a poesia, com as palavras, e o trabalho com a costura e o uso das mãos; um segundo, intitulado “Levantamiento de las veinte mil”, é uma pequena série de textos enunciados por vozes “NN”, trabalhadoras de fábricas de tecido ou oficinas têxteis; e um terceiro, de um único poema-collagem, feito de imagens e citações de testemunhos.

Os oito poemas do primeiro grupo estabelecem uma tensão permanente entre o trabalho da costura, o ofício da costureira, a condição proletária e o trabalho do poeta ou do professor de literatura (que não se logra “ter”, ou que não se conquista nunca totalmente): “Harta ya de los Concursos Públicos para Plazas Docentes [...] El mercado quiere profesionales en tempo récord/ Títulos y masters,/ etc. a granel/ Pero las costureras somos para siempre” (GUERRERO PEIRANO, 2021GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria. Lima: Máquina Puríssima, 2021., p. 7).5 5 “Já de saco cheio dos Concursos Públicos para Cargos Docentes [...] O mercado quer profissionais em tempo recorde/ Títulos e mestrados/ etc. a torto/ Mas as costureiras somos pra sempre”. (Todas as traduções ao português de textos referenciados em espanhol são minhas). Nesse sentido, a poesia é alvo, mas também ferramenta, de crítica: “MUERTE / A/ LOS/ POETAS HIGIÉNICOS” (GUERRERO PEIRANO, 2021, p. 9)6 6 “MORTE/ AOS POETAS/ HIGIÉNICOS”. .

Las burguesías del tercer mundo son fieras y asesinas Y cuando caen se refugian en una costurerita Una mujercita de su casa Que solo sabe coser y leer Leer y coser. (GUERRERO PEIRANO, 2021GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria. Lima: Máquina Puríssima, 2021., p. 13).7 7 “As burguesias do terceiro mundo são rapazes e assassinas/ E quando caem se refugiam na costureirinha/ Uma mulhercinha de sua casa/ Que só sabe costurar e ler/ Ler e costurar”.

Os “poetas lacaios” elogiadores de “lindos” teares - contra os quais Pagu lança seu Parque Industrial (GALVÃO, 2022GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.) nada “lindo” -, os “poetas higiénicos” e as burguesias não recusam a poesia nem a costura, pelo contrário, elas podem ser usadas como refúgio, ou como álibi para um uso despolitizado tanto da figura da trabalhadora da costura (seja a operária da fábrica, seja a trabalhadora do âmbito doméstico) quanto da trabalhadora da linguagem. Como teme a socióloga e ativista María Pia López:

Poesia, não nos abandones à razão política nem permitas que te queiramos esquálida dadora de um giro convincente ou um combustível de emoções. Exija de nós, poesia, que consideremos as tuas forças, a ferocidade da tua amizade [...] a precisão de uma imagem que não flutua na série das comunicações. [...] Costureirinha que sempre tropeça, tua fiação é necessária para costurar as partes de um novo sujeito: que o espantalho seja poeta! (LÓPEZ, 2021LÓPEZ, María Pia. Quipus. Nudos para una narración feminista. La Plata: EME, 2021., p. 53).8 8 A figura da “costurerita que dio el mal passo” (LOPEZ, 2021) [costureirinha que tropeça] foi bastante trabalhada e analisada na literatura argentina. O “mal passo”, a escolha errada, a transgressão, aparece como dispositivo de criação de estereótipos comportamentais e morais, no meio de diversas representações da mulher trabalhadora assalariada e sua participação nas mobilizações trabalhistas (QUEIROLO, 2011). Nos poemas trabalhados neste texto, embora esses estereótipos estejam como pano de fundo, procura-se observar as relações e potências da enunciação poética e não os dispositivos de representação da figura das mulheres.

Para ela e para as militâncias, a poesia é opaca e, nessa opacidade feroz, nessa opacidade em que é possível enxergar outros sentidos, é que se ampliam as possibilidades de luta dos discursos. Como suplemento à linguagem transparente da militância sindical. Daí que a luta feminista não possa abrir mão da linguagem costurada do poema, sua consigna sintética. De certo modo, esses poemas, com certa ironia, mas não abrindo mão de si mesmos, apontam para o perigo dessa desativação da potência política da costura ou do poema tornados metáforas autorreferenciais.

III

Uma vez aberta essa via tensa de relação com a palavra poética, o livro de Peirano continua com a série “Levantamiento de las veinte mil” [Levante das vinte mil], na qual a poesia não entra como contraponto, mas como condição de possibilidade para uma voz. Ou melhor, para imaginar vozes e lhes dar corpo. Trata-se de cinco poemas - “NN1”, “NN2”, “NN3”, “NN4”, “NN5” - nos quais os sujeitos da enunciação dão nome ao texto, porém um nome não apenas anônimo, mas nome de mulher morta. São mortas anônimas as que falam ai, mortas políticas, por exploração trabalhista e por exploração de gênero. Mas nessa enunciação elas parecem ganhar um corpo e uma densidade dada pela própria exploração de uma percepção variada, de si, dos outros, dos afetos envolvidos na vivência da fábrica pegando fogo. Assim, esse locus histórico da fundação das lutas feministas ganha também trans-historicidade, ganha presentes. São cinco vozes poéticas que escrevem sua fundação - não sua originalidade - nas cinzas do trabalho, uma fundação anacrônica de uma palavra singular: “NN1// Me quedé sentada/ Las cenizas caían como lluvia em otoño [...] Yo me encerré em uma fábrica para estar sola/ [...] Coser me hace olvidar/ Trabajar como uma bestia me hace olvidar/me/ de ti & de mí” (GUERRERO PEIRANO, 2021GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria. Lima: Máquina Puríssima, 2021., p. 25).9 9 “NN1// Fiquei sentada/ As cinzas caiam como chuva no outono […] Eu me tranquei em uma fábrica para ficar sozinha/ [...] Costurar me faz esquecer/ Trabalhar como um animal me faz esquecer/ de ti & de mim”. A voz é densa e nela é difícil, pois sempre é difícil, separar uma dimensão íntima de uma pública, os afetos de fora e de dentro fábrica, pois todos estão nela. Assim, embora não estejamos pensando em redes de atividades “físicas” - como as atividades de lazer, esportivas e culturais que faziam parte da vida operária -,10 10 No artigo dos historiadores Juçara da Silva Barbosa de Mello e Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, Um complexo de redes bem tecido: os tecelões da fábrica Santo Aleixo e suas relações para além do local de trabalho, chama-se a atenção para a importância, marcada pelo antropólogo Mike Savage, da observação das redes de atividades e condições de moradia, sociabilidade, culturais, etc de um grupo para compreender os desenvolvimentos das próprias lutas trabalhistas, seus momentos mais combativos e seus impasses, já que o tempo e espaço dessas condições não seriam um mero pano de fundo das relações operárias, mas parte intrínseca desse processo; as relações sociais e as linguagens fazem o lugar e seus sujeitos (MELLO; RIBEIRO, 2013, p. 169-170). o poema ajuda a perceber as complexas redes afetivas e de linguagens que não se atém a uma divisão nítida dentro/fora do posto de trabalho e que atravessam a subjetividade.

“NN2” tem uma voz claramente diferente a da “NN1” anterior, fazendo com que o anonimato não seja uma aplanadora de singularidades. Aqui o enjambement não comparece e, assim como os sentimentos, a afetividade não é enunciada. Elencam-se ações concretas, com verbos em indicativo, por meio de repetições maquínicas que remarcam as experiências de exploração:

Me encierro Me encierro con la misma llave con que me encerraron ellos Tomo la llave del patrón y le doy vueltas a la cerradura La máquina está vieja Las alas de las polillas lo cubren todo A fuerza me siento y aprendo el alfabeto A fuerza cuento los días en que he de salir de aquí A fuerza acelero el pedal Acelero la rabia A fuerza me metieron aquí (GUERRERO PEIRANO, 2021GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria. Lima: Máquina Puríssima, 2021., p. 27).11 11 “Me tranco/ Me tranco com a mesma chave com que me trancaram eles/ Tomo a chave do patrão e a giro na fechadura/ A máquina está velha/ As asas das mariposas cobrem tudo// À força sento e aprendo o alfabeto/ À força conto os dias para sair daqui/ À força acelero o pedal Acelero a raiva/ À força me meteram aqui”

O patrão e o lugar de trabalho confinado perdem nitidez referencial e se abrem a tempos e espaços históricos e de significados diversos: a fábrica, as oficinas clandestinas, a linguagem mecânica da burocracia. Aprender o alfabeto e acelerar no pedal parecem formas raivosas de dar pane na produção, produzindo loucamente. Nessa vontade de revanche, a voz de “NN2” abre passo à de “NN3”, que interroga novamente à poesia, mas também à história familiar e à grande história, sob o signo da raiva e da revolta: “(Mi abuela fue costurera en las fábricas/ Después de la Guerra del Pacífico viuda con 5 hijos) [...] Y si la poesía hablara/ ¿qué sería? ¿cómo?/ ¿Podrá decir su rabia?” (GUERRERO PEIRANO, 2021GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria. Lima: Máquina Puríssima, 2021.: 29).12 12 “(Minha avó foi costureira nas fábricas/ Depois da Guerra do Pacífico viúva com 5 filhos) [...] E se a poesia falasse/ o quê seria? como? Poderá dizer a sua raiva?”

Os poemas vão ganhando em raiva à par que somam vozes e camadas. Raiva da exploração do trabalho na fábrica de tecelagem, raiva da palavra que não da conta de dizer. Perante essa insuficiência da palavra, parece se abrir a opção pela colagem explícita, a declarada alterização da linguagem do poema. Assim, o seguinte da série, “NN5”, traz uma voz localizada e datada: (CAMBOYA, 2013), e uma chamada que indica que o poema é feito a partir de uma notícia de jornal, de março de 2015:

La cuota de producción que nos fijaban En el sector de costura era de 80 [prendas] por hora Pero cuando se aumentó el salario mínimo, la elevaron a 90 Si no lo logramos, nos gritan furiosos […] Somos como esclavos Incluso si vamos al servicio, nos llaman para que regresemos Ni siquiera podemos ir al baño (Ni siquiera eso) (GUERRERO PEIRANO, 2021GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria. Lima: Máquina Puríssima, 2021., p. 33).13 13 “A cota de produção que era fixada/ No setor de costura eram 80 [peças]/ por hora/ Mas quando aumentou o salário mínimo, a elevaram a 90/ Se não a atingirmos, nos gritam furiosos [...] Somos como escravos/ Inclusive se vamos no banheiro, nos chamam para voltarmos/ Nem sequer podemos ir no banheiro// (Nem sequer isso)”.

O poema não consegue dizer a sua raiva, mas também não consegue ser um veículo de denúncia (nem sequer botar para fora os dejetos). Entre outras coisas, porque a denúncia, como dizem os próprios trabalhadores de oficinas têxteis, não ajuda a “compreender a complexidade das coisas” (RIVERA CUSICANQUI et al., 2011RIVERA CUSICANQUI, Silvia et al. De chuequistas y overlockas: una discusión en torno a los talleres textiles. Buenos Aires: Tinta Limón, 2011. , p. 12). No pequeno livro De chuequistas y overlokas. Una discusión en torno a los talleres textiles,14 14 Chuequistas e overlokas são termos que referem ao nível do trabalho dentro das oficinas. Chuequistas são os trabalhadores principiantes, que ainda costuram chueco, torto. Os overlokas são os mais experimentados que já operam as máquinas de costura overloque. dois coletivos ativistas e operários - Simbiosis e Situaciones - dialogam com a historiadora boliviana Silvia Rivera Cusicanqui sobre as complexas relações culturais e trabalhistas das oficinas de costura que, na cidade de Buenos Aires, se instalam com patrões e mão de obra quase exclusivamente boliviana. A realidade dessas oficinas, que também existem no Brasil, traz à tona não apenas a problemática do trabalho em condições quase de escravidão (termo problematizado pelos próprios operários explorados), mas também a da imigração, xenofobia e, com elas, a da origem nacional - o não ter uma identidade nítida, mas camadas densas de subjetivação. As relações comunitárias e culturais das pessoas que trabalham nessas oficinas não refazem uma pequena comunidade originária - uma pequena Bolívia - como tende a se simplificar quando as histórias são recuperadas pela mídia. No prólogo ao livro, que não declara autoria, se lê: “Mais do que nacionalidades, temos ‘trajetórias’. Algumas incluem atravessar fronteiras. São trajetórias que temos que pensar” (apudRIVERA CUSICANQUI et al., 2011RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015., p. 14). É necessário, então, pensar enquanto trajetórias para entender que é um problema sempre “daqui”, e não um problema “de lá” ou, em outras palavras, que são subjetividades e labores que expõem complexas redes de relações familiares, culturais, geográficas e afetivas. Para poder mostrar essa complexidade, dizem os participantes e trabalhadores: “Queremos buscar alternativas para discutir, formas de dizer, maneiras de mostrar” (apudRIVERA CUSICANQUI et al., 2011RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015., p. 15).

Se um poema também é uma forma de dizer, uma maneira de mostrar, e um modo de articular linguagem e experiência que permite suspender a linearidade e a lógica progressiva, talvez pensar a costura, o trabalho, a política por meio de poemas, nos permita um modo de juntar os tempos espaços para nomear a complexidade de uma realidade ch’ixi - onde as cores e as diferenças de textura se entremeiam em uma trama complexa e heterogênea, de tempos e afetos conviventes (RIVERA CUSICANQUI, 2015RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.). O poema pode ser um espaço de imaginação, uma faísca para a imaginação de uma outra vida, boa:

A gente se deu conta de que para imaginar outra ideia de trabalho ou de vida, primeiro você tem que ter a imaginação de outro tempo, e um impulso de liberar tempo. Essa é a primeira forma de sair da oficina têxtil, de se imaginar um fora, de precisar roubar horas a uma jornada laboral interminável (apudRIVERA CUSICANQUI et al., 2011RIVERA CUSICANQUI, Silvia et al. De chuequistas y overlockas: una discusión en torno a los talleres textiles. Buenos Aires: Tinta Limón, 2011. , p. 15).

Assim, acessar essa linguagem singular, que se alicerça nas tramas e não na unicidade, pode permitir entender algo da realidade das oficinas clandestinas sem a vitimização implicada na ideia de escravidão, mostrando que nelas há um complexo de relações nas quais os trabalhadores não precisam “ser alforriados”, mas sim ganhar em dignidade e direitos.

Assim, o poema de NN5 precisa cortar as palavras e tornar a costurá-las para tentar não tanto denunciar um trabalho “escravo”, mas mostrar a raiva, o descabimento, a rede que prende e não um único agente de opressão. Tomar domínio dessas palavras. O trabalho poético se escancara como colagem e como sublinhado, e nesse abrir mão da “própria voz”, tão cara à poesia, permite trabalhar em pé de igualdade com os relatos de desapropriação.

IV

O último dos poemas de Diario de uma costurera proletária leva o dispositivo da colagem ao extremo: “Cuando me amarro, choca aquí” [Quando me amarro, bate aqui] é feito de retalhos de testemunhos recolhidos, por sua vez, por Alejandra Ballón entre mulheres da região de Piura - província do litoral peruano, fronteiriça com o Equador -, trabalhadoras artesãs do “telar de cintura” ou kallwa, tradição milenar, que transmite saberes e memorias entre gerações. As mulheres entrevistadas - não exploradas enquanto operárias de fábricas, nem de oficinas de costura - foram vítimas de esterilizações forçadas durante o governo de Alberto Fujimori (1990-2001). Tecelagem e corpo entram em choque pelos abusos perpetrados pelo Estado neoliberal.

Antes tejía Tejía em kallwa Sí, em Kallwa he tejido Ahora ya no puedo Se me hincha Se me hincha Y me duele la cintura […] Cuando me amarro, choca aquí Duele aquí En la madre (GUERRERO PEIRANO, 2021GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria. Lima: Máquina Puríssima, 2021., p. 37).

O controle biopolítico atuou não para garantir a reprodução da mão de obra, mas a da não reprodução de uma população “indesejável”, uma população que ainda produz com o corpo e com saberes tradicionais. Mas esse fato não é denunciado discursivamente, mas superpondo corpo e tecelagem. A dor “na mãe” ancestral, na mãe de saberes, na mãe que já não se pode ser, na mãe que já não pode tecer, na mãe matriz uterina, é mostrada como heterógena, mas também irredutível no poema. A fala destacada da tecelã é abarrotada de sentidos. A “mulher proletária” de Jorge de Lima encontra nesse poema feito de retalhos de vozes a sua outra face. Nos dois casos, impede-se que as mulheres costurem, que costurem saberes, que juntem coisas, tempos e lugares desiguais, umas com as outras. Que elas mesmas se costurem enquanto sujeitas complexas: “Longe de um sujeito predefinido, cujas ações surgiriam da uma identidade - as mulheres -, trata-se de costurar um novo. Sujeito espantalho feito de retalhos, de restos, de abandonos” (LOPEZ, 2021LÓPEZ, María Pia. Quipus. Nudos para una narración feminista. La Plata: EME, 2021., p. 19). Mas os poemas tentam enfrentar esse impedimento.

O livro de Victoria Guerrero Peirano desenha, então, um arco que vai da fábrica, aos teares peruanos, passando pelas oficinas têxteis de Camboya. Nesse percurso os poemas se posicionam não como denúncias, mas como ferramentas operadas por uma trabalhadora/poeta para pensar sobre as situações de exploração, suas circunstâncias e seus afetos, sem o imediatismo da denúncia jornalística, mas com a densidade do olhar sobre cada um dos fios que formam a trama. Se alinhava entre eles uma “memória longa”, na qual se desafiam os monopólios do dizer e do lembrar, assim como se desafiam as fronteiras do que se considera trabalho, do que se considera discurso político.

V

A metáfora da costura tem sido relativamente corriqueira na crítica para pensar o fazer poético. Porém, nos textos convocados aqui - o poema ausente de Rodolphina Augusta, o poema anónimo publicado em A Plebe, o de Jorge de Lima e o livro de Victoria Guerrero -, a relação que se estabelece entre costura ou tecelagem e o fazer do poema não é metafórica. Um não pode estar no lugar do outro, como o outro. Nem a costura é como o fazer poético, nem vice-versa. Nesses poemas - e na leitura aqui proposta - trata-se de mostrar a costura e o poema como ferramentas que permitem juntar o que está longe, que deslocam as hierarquias, que permitem pensar desde uma perspectiva não centrada. São pequenas lentes epistemológicas que apontam para fora de si mesmas, para as redes que trazem, para as suas condições de possibilidade. Pequenas lentes de saberes: “Sussurrante conversa de mulheres foi criando uma corrente inquebrantável de sabedoria por transmissão oral que nunca foi reunida em livros” (KAMENSZAIN, 1981KAMENSZAIN, Tamara. Bordado y costura del texto, Revista de la Universidad de México, p. 21-22, julho, 1981. , p. 22). Os poemas fazem parte dessa outra sabedoria, não discursante - de pouca importância como dizia o agente secreto de Vargas, tão pouca que nem vale a pena registrar. “Seguindo mais a tradição oral das avós que a tradição impressa das academias, algumas mulheres viravam o discurso teórico para trabalhá-lo pelo lado da bainha. Familiarizadas com as costuras, souberam que toda construção apoia suas bases em um fio não discursivo” (KAMENSZAIN, 1981KAMENSZAIN, Tamara. Bordado y costura del texto, Revista de la Universidad de México, p. 21-22, julho, 1981. , p. 22), inclusive a construção de um movimento político, seja ou não sindical, de operários e trabalhadores.

As pautas políticas costumam achar que é possível prescindir da palavra poética, porém, movimentos como Ni Uma Menos ou os organismos que impulsam as greves de mulheres desde a década de 1970 e principalmente as realizadas com epicentro em América Latina a partir de 2017, tem demonstrado a produtividade de uma linguagem poética ou tecelã (PALMEIRO, 2019PALMEIRO, C. Ni Una Menos: las lenguas locas del grito colectivo a la marea global. Cuadernos de Literatura,[S. l.], v. 23, n. 46, p. 177-195, 2019. DOI: https://10.11144/Javeriana.cl23-46.nlgm. Disponível em: https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/cualit/article/view/28423. Acesso em: 07 fev. 2022.
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), pois ela é a ferramenta epistemológica que permite desafiar as fronteiras do que se entende por político, por público e por discursivo. Como diz Verónica Gago na introdução a 8M. Constelação feminista, a ideia de uma greve feminista permite conectar - de forma não institucionalizada, não profissional, não particularista, todo um arquivo de diversas lutas feministas (GAGO et al., 2018GAGO, Suely et al. 8M Constelación feminista. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018., p. 9). Haveria, pois, certo tipo de saber conectivo respeitando as singularidades de cada condição, de cada situação, que estaria em jogo, esse saber da tecelagem, da costura e da linguagem poética. São ferramentas em aberto, epistemologias e linguagens que permitem politicamente montar novos horizontes. Os poemas são operações conectivas em si mesmas. Tornam aquilo considerado de “pouca importância”, dispositivos da maior importância.

Lu Menezes em um dos poemas da série “Fontes de renda” - que como os primeiros poemas do livro de Victoria Guerrero, também provoca a associação entre poesia, costura, bordado e trabalho enquanto fonte de renda (e lucro) - aponta para a possibilidade epistemológica do poema:

O fato é que no “esquema” em pauta um lugar qualquer do globo terrestre coincidiria com um ponto do bordado. O lá se converteria em cá, o ali em aqui no bastidor de alguma mulher que a cada ponto a cada instante seu e de tudo - aprenderia o quê? além do preciso presente impreciso dela no mundo? (MENEZES; MASSI, 2016MENEZES, Lu; MASSI, Augusto. Gabinete de curiosidades. São Paulo: Luna Parque, 2016. , p. 27).

Nesse “preciso presente impreciso”, aprendido no bordado que junta pontos e tempos aparentemente distantes, se abre um tipo de leitura poética e política da experiência da mulher no trabalho da costura e no trabalho da poesia. O bastidor ensina a ver os contatos, e a impalpável poesia se mostra uma linguagem para disputar, uma ferramenta política e epistemológica imprecisa, mas cheia de conexões.

Referências

  • FEDERICI, Silvia. Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y acumulación originária Buenos Aires: Tinta Limón, 2016.
  • FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: Feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.
  • GAGO, Suely et al 8M Constelación feminista. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.
  • GALVÃO, Patrícia. Parque industrial São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • GUERRERO PEIRANO, Victoria. Diario de uma costureira proletaria Lima: Máquina Puríssima, 2021.
  • KAMENSZAIN, Tamara. Bordado y costura del texto, Revista de la Universidad de México, p. 21-22, julho, 1981.
  • LIMA, Jorge de. Poemas escolhidos. In: LIMA, Jorge de. Poesia completa Organização de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 277-292. Vol. 1.
  • LÓPEZ, María Pia. Quipus. Nudos para una narración feminista La Plata: EME, 2021.
  • MELLO, Juçara da Silva Barbosa de; RIBEIRO, Felipe Augusto dos Santos. Um complexo de redes bem tecido: os tecelões da fábrica Santo Aleixo e suas relações para além do local de trabalho. Revista mundos do trabalho v. 5, n.10, p. 163-182, jul-dez, 2013.
  • MENEZES, Lu; MASSI, Augusto. Gabinete de curiosidades São Paulo: Luna Parque, 2016.
  • PALMEIRO, C. Ni Una Menos: las lenguas locas del grito colectivo a la marea global. Cuadernos de Literatura,[S. l.], v. 23, n. 46, p. 177-195, 2019. DOI: https://10.11144/Javeriana.cl23-46.nlgm. Disponível em: https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/cualit/article/view/28423 Acesso em: 07 fev. 2022.
    » https://10.11144/Javeriana.cl23-46.nlgm. Disponível em: https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/cualit/article/view/28423
  • QUEIROLO, Graciela Amalia. “Malos pasos” y “promociones”. Aproximaciones al trabajo femenino asalariado desde la historia y la literatura (Buenos Aires, 1919-1939). Anuario de la escuela de Historia, n. 22, p. 53-80, 2011. Disponível em: Disponível em: https://anuariodehistoria.unr.edu.ar/index.php/Anuario/article/view/127 Acesso em: 07 fev. 2022.
    » https://anuariodehistoria.unr.edu.ar/index.php/Anuario/article/view/127
  • RIBEIRO, Maria Alice Rosa. Condições de trabalho na indústria têxtil paulista (1870-1930). Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Hucitec, 1988.
  • RIVERA CUSICANQUI, Silvia et al De chuequistas y overlockas: una discusión en torno a los talleres textiles. Buenos Aires: Tinta Limón, 2011.
  • RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: ensayos. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
  • 1
    Fraccaro anota a referência do documento: “Arquivo Nacional. Fundo Secretaria do Gabinete Civil da Presidência da República, Série 17.10 Ministério do Trabalho, lata 46.
  • 2
    Fraccaro anota a referência do documento: Arquivo Nacional. Fundo Secretaria do Gabinete Civil da Presidência da República, Série 17.10 Ministério do Trabalho, lata 46.
  • 3
    Fraccaro anota a referência do documento: Aesp. Deops. Prontuário União do Operários em Fábrica de Tecidos 0124/ Sindicato dos Operários em Fiação e Tecelagem 0124/0924, v.1.
  • 4
    Nesse livro de Jorge de Lima, além de aparecerem motivos da vida em Pernambuco, se destacam vários poemas marcados por uma estética próxima aos poetas russos do começo de século, na qual corpo fragmentado, fábrica e cidade são imagens recorrentes, em relações violentas que impedem toda filiação, toda família: “Foi o fiho do operário que uma roda matou” (1997, p. 284). No poema “O filho pródigo” se lê: “Nas engrenagens das fábricas/ bolem como vermes - dedos decepados de operários./ Há intestinos rotos de crinças/ nos vaivéns do correame das oficinas” (1997, p. 284).
  • 5
    “Já de saco cheio dos Concursos Públicos para Cargos Docentes [...] O mercado quer profissionais em tempo recorde/ Títulos e mestrados/ etc. a torto/ Mas as costureiras somos pra sempre”. (Todas as traduções ao português de textos referenciados em espanhol são minhas).
  • 6
    “MORTE/ AOS POETAS/ HIGIÉNICOS”.
  • 7
    “As burguesias do terceiro mundo são rapazes e assassinas/ E quando caem se refugiam na costureirinha/ Uma mulhercinha de sua casa/ Que só sabe costurar e ler/ Ler e costurar”.
  • 8
    A figura da “costurerita que dio el mal passo” (LOPEZ, 2021LÓPEZ, María Pia. Quipus. Nudos para una narración feminista. La Plata: EME, 2021.) [costureirinha que tropeça] foi bastante trabalhada e analisada na literatura argentina. O “mal passo”, a escolha errada, a transgressão, aparece como dispositivo de criação de estereótipos comportamentais e morais, no meio de diversas representações da mulher trabalhadora assalariada e sua participação nas mobilizações trabalhistas (QUEIROLO, 2011QUEIROLO, Graciela Amalia. “Malos pasos” y “promociones”. Aproximaciones al trabajo femenino asalariado desde la historia y la literatura (Buenos Aires, 1919-1939). Anuario de la escuela de Historia, n. 22, p. 53-80, 2011. Disponível em: Disponível em: https://anuariodehistoria.unr.edu.ar/index.php/Anuario/article/view/127 . Acesso em: 07 fev. 2022.
    https://anuariodehistoria.unr.edu.ar/ind...
    ). Nos poemas trabalhados neste texto, embora esses estereótipos estejam como pano de fundo, procura-se observar as relações e potências da enunciação poética e não os dispositivos de representação da figura das mulheres.
  • 9
    “NN1// Fiquei sentada/ As cinzas caiam como chuva no outono […] Eu me tranquei em uma fábrica para ficar sozinha/ [...] Costurar me faz esquecer/ Trabalhar como um animal me faz esquecer/ de ti & de mim”.
  • 10
    No artigo dos historiadores Juçara da Silva Barbosa de Mello e Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, Um complexo de redes bem tecido: os tecelões da fábrica Santo Aleixo e suas relações para além do local de trabalho, chama-se a atenção para a importância, marcada pelo antropólogo Mike Savage, da observação das redes de atividades e condições de moradia, sociabilidade, culturais, etc de um grupo para compreender os desenvolvimentos das próprias lutas trabalhistas, seus momentos mais combativos e seus impasses, já que o tempo e espaço dessas condições não seriam um mero pano de fundo das relações operárias, mas parte intrínseca desse processo; as relações sociais e as linguagens fazem o lugar e seus sujeitos (MELLO; RIBEIRO, 2013MELLO, Juçara da Silva Barbosa de; RIBEIRO, Felipe Augusto dos Santos. Um complexo de redes bem tecido: os tecelões da fábrica Santo Aleixo e suas relações para além do local de trabalho. Revista mundos do trabalho. v. 5, n.10, p. 163-182, jul-dez, 2013. , p. 169-170).
  • 11
    “Me tranco/ Me tranco com a mesma chave com que me trancaram eles/ Tomo a chave do patrão e a giro na fechadura/ A máquina está velha/ As asas das mariposas cobrem tudo// À força sento e aprendo o alfabeto/ À força conto os dias para sair daqui/ À força acelero o pedal Acelero a raiva/ À força me meteram aqui”
  • 12
    “(Minha avó foi costureira nas fábricas/ Depois da Guerra do Pacífico viúva com 5 filhos) [...] E se a poesia falasse/ o quê seria? como? Poderá dizer a sua raiva?”
  • 13
    “A cota de produção que era fixada/ No setor de costura eram 80 [peças]/ por hora/ Mas quando aumentou o salário mínimo, a elevaram a 90/ Se não a atingirmos, nos gritam furiosos [...] Somos como escravos/ Inclusive se vamos no banheiro, nos chamam para voltarmos/ Nem sequer podemos ir no banheiro// (Nem sequer isso)”.
  • 14
    Chuequistas e overlokas são termos que referem ao nível do trabalho dentro das oficinas. Chuequistas são os trabalhadores principiantes, que ainda costuram chueco, torto. Os overlokas são os mais experimentados que já operam as máquinas de costura overloque.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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