Resumo
Este artigo tenta repensar os fundamentos epistémicos do pensamento (sobre o) contemporâneo. Para além dos estudos de área, os Estudos de Transárea focam concepções móveis de espaços e territórios. Transcendendo os limites de uma história espacial, os Estudos de Transárea enfatizam o dinamismo de processos vetoriais capazes de desenvolver poéticas do movimento. Ultrapassando o alcance dos estudos comparatistas tradicionais, os Estudos de Transárea destacam os movimentos trans-fronteiriços, as relações múltiplas, assim como as estruturações polilógicas, que permitam novas concepções prospectivas no âmbito da cultura e da literatura.
Palavras-chave Estudos de Transárea; poéticas do movimento; estudos de mobilidade
Resumen
Este artículo trata de repensar los fundamentos epistémicos del pensamiento (sobre lo) contemporáneo. Más allá de los estudios de área, los Estudios Transareales enfocan concepciones móviles de espacios y territorios. Trascendiendo los límites de una historia espacial, los Estudios Transareales enfatizan el dinamismo de procesos vectoriales capaces de desarrollar poéticas del movimiento. Desbordando el alcance de los estudios de comparatística tradicionales, los Estudios Transareales destacan los movimientos transfronterizos, las relacionalidades múltiples, así como estructuraciones polilógicas que permitan nuevas concepciones prospectivas tanto en el campo de la cultura como en el de la literatura.
Palabras claves Estudios transareales; poéticas del movimiento; estudios de movilidad
Abstract
This article tries to rethink the epistemic foundations of contemporary thinking. Beyond Area Studies, TransArea Studies point out mobile conceptions of spaces and places. Beyond spatial history, TransArea Studies emphasize vectorial dynamisms and processes able to develop a poetics of movement. Beyond traditional comparative studies, TransArea Studies focus on border-crossing, on entanglements and multiple logics in order to provide a new prospective conception of literature and culture.
Keywords TransArea Studies; Poetics of Movement; Mobility Studies
Em um mundo à la derive
Na sua análise sobre um mundo desajustado, aparecida em 2009 sob o título Le dérèglement du monde, o romancista e ensaísta Amin Maalouf, nascido em Beirute e residente na França, alternadamente entre Paris e a Ile d’Yeu, aponta para os perigos que, no início do século XXI, têm levado a humanidade à beira do abismo. Já nas primeiras linhas do ensaio entreveem-se as dimensões da reflexão de Maalouf:
Nous sommes entrés dans le nouveau siècle sans boussole. Dès les tout premiers mois, des événements inquiétants se produisent, qui donnent à penser que le monde connaît un dérèglement majeur, et dans plusieurs domaines à la fois – dérèglement intellectuel, dérèglement financier, dérèglement climatique, dérèglement géopolitique, dérèglement éthique. (MAALOUF, 2009: 11)1
Após esta abertura, quem esperar uma visão muito pessimista de um planeta e de uma sociedade universal sem perspectivas de salvação e à la derive – conforme a metáfora da frase que abre o ensaio – vai reconhecer rapidamente seu equívoco, pois Amin Maalouf em Le dérèglement du monde distingue muito bem os nortes e a bússola pelos quais a nau planetária poderia se realinhar. Em certos trechos, o livro de Maalouf pode ser lido como uma correção indignada/desarmada2 do livro, tão famoso quanto infame, de Samuel P. Huntington, Clash of Civilizations (1996). Para Maalouf, à diferença de Huntington, não se trata de uma construção ideológica de blocos culturais homogêneos, drasticamente antagônicos, hoje insustentável teoricamente, mas sim de uma compreensão diferenciada de um processo de globalização de longa duração cujas implicações culturais foram subestimadas por muito tempo e que na crise financeira atual correm novamente o risco de serem postas para escanteio pelos debates políticos e econômicos. São estas dimensões culturais conflituosas – e as reflexões de Maalouf são taxativas quanto a isso – que irão essencialmente definir o futuro da humanidade.
Que o grande escritor libanês, ganhador em 1993 do Prix Goncourt, o mais importante prêmio literário francês, por seu romance Le rocher de Tanios, considere decisiva a dimensão cultural para a construção do presente e o futuro de uma humanidade, progressivamente autoameaçadas, certamente, não deve surpreender. No mote de William Carlos Williams que abre o volume, fica evidente o quão importante e central é para o autor de Léon l’Africain o papel desempenhado pela literatura. Isso se destaca de modo especial se consideramos que o texto explicita de forma poética a sabedoria da literatura, uma sabedoria necessária para a sobrevivência da humanidade: “Man has survived hitherto/ because he was too ignorant to know/ how to realize his wishes./ Now that he can realize them,/ he must either change them/or perish.” (WILLIAMS, 1991).
Segundo Maalouf, seria decisivo que não continuássemos a enxergar os “Outros” a partir da perspectiva dos múltiplos estereótipos, conforme os falseiam os construtos ideológicos, religiosos ou da cultura de massas. Em lugar disso, caberia percebê-los mais intimamente, digamos, como se fôssemos nós mesmos olhados com outros olhos – com os olhos de muitos Outros – e a partir de diferentes angulações:
Ce qui ne peut se faire qu’à travers leur culture. Et d’abord à travers leur littérature. L’intimité d’un peuple, c’est sa littérature. C’est là qu’il dévoile ses passions, ses aspirations, ses rêves, ses frustrations, ses croyances, sa vision du monde qui l’entoure, sa perception de lui-même et des autres, y compris de nous-mêmes. Parce que en parlant des «autres» il ne faut jamais perdre de vue que nous-mêmes, qui que nous soyons, où que nous soyons, nous sommes aussi «les autres» pour tous les autres. (MAALOUF, 2009: 206)3
Nessa valorização da literatura, Maalouf também vê uma possibilidade imediata de escaparmos da “ère sinistre”, na qual uma “inculture” própria da cultura de massas apresenta-se simbolicamente como algo autêntico, configurando uma circunstância altamente nociva para a formação de estruturas democráticas. Isso porque essa cultura, silenciosamente, reproduz um tradicional modo de pensar de elite, segundo a qual todo entendimento cultural complexo se encontraria reservado apenas a uma pequena camada dirigente, enquanto que o “resto” da população – de longe a maioria – se poderia despachar ou imobilizar com grandes convites ao consumo, slogans simplistas e diversões baratas (MAALOUF, 2009: 207). Em sentido contrário, a literatura de Amin Maalouf empenha-se incansavelmente em evidenciar, no próprio ato de escrever, um saber específico da vida e na vida (cf. MAALOUF, 2008). Como apreender, então, este saber da literatura nos termos das ciências literárias? As ciências da literatura e da cultura estariam preparadas para contra-argumentar a ideia de uma literatura como suplemento, que aparentemente se apresenta como marginal?
Do saber (e) do movimento
A questão do saber específico da literatura deslocou-se de alguns anos para cá para o epicentro dos atuais debates das ciências da literatura (cf. entre outros HÖRICH, 2007; KLAUSNITZER, 2008; ETTE, 2004). É possível correlacionar facilmente este fato à tendência, cada vez mais delineada nas ciências humanas e culturais, de substituição da temática da memória, até então dominante, pela problemática do saber.
A questão do saber da literatura – e as reflexões de Amin Maalouf apontam também nessa direção – vincula-se, sobretudo, à questão da relevância social, política e cultural deste saber no interior das atuais sociedades, marcadas em distintos graus pela informação e (mais ainda) pelo conhecimento. Portanto, o que quer e o que pode a literatura?
De fato, acredito que não existe caminho melhor ou mais complexo de acesso a uma comunidade, a uma sociedade, a uma cultura do que a literatura. Ao longo de milênios ela colecionou, nas mais distintas áreas geoculturais, um saber sobre o viver, o sobreviver, o conviver, especializado em não se especializar, tanto em termos discursivos, como disciplinares ou como dispositivo de saber. Sua capacidade de disponibilizar aos leitores e leitoras um saber, um conhecimento implícito na vivência, passível de ser apropriado, permite à literatura chegar a muitas pessoas, para além das distâncias espaço-temporais, e produzir seus efeitos.
Coloque-se também que a literatura possui uma disposição muito singular, podendo ampliar o cosmos da multiplicidade discursiva, cujas coordenadas, a partir das reflexões de Bakhtin, tornaram-se muito mais nítidas na consciência (BAKHTIN, 1979).
Consequentemente, a literatura é um campo de atuação multilógico, na medida em que ela permite as mais distintas lógicas interpretativas. Sua variedade fundamental, sua polissemia, provoca o desdobramento de estruturas e estruturações polilógicas dispostas não para a aquisição somente de um único ponto de vista fixo, mas para os movimentos constantemente modificados e renovados do ato de compreender.
A literatura permite que se sobrepasse o mobile do saber, e, enquanto mobile do saber, cuida para que os mais diferentes domínios e segmentos do saber, de uma e de muitas comunidades e sociedades, relacionem-se uns com os outros de maneira constantemente renovada. Literatura é, por conseguinte, um saber em movimento, cuja estrutura multilógica possui significativa importância para a sobrevivência do mundo do século XXI e o desafio de garantir a convivência na paz e na diferença. Também o jogo da literatura permite a continuidade de um pensar simultâneo em múltiplos contextos e lógicas culturais, sociais, políticos ou psicológicos. Mas, como essas “travessias” multilógicas da literatura podem ser filologicamente pesquisadas e traduzidas para a(s) sociedade(s)?
Não há dúvidas de que chegou a hora de impulsionar uma poética do movimento nos domínios das ciências da literatura e da cultura. Na perspectiva atual pode-se afirmar com boas razões que se enfraqueceram os fundamentos temporais de nosso modo de pensar e de retrabalhar a realidade, tão dominantes na pós-modernidade como o foram os fundamentos histórico-cronológicos na modernidade europeia, ao mesmo tempo em que concepções e modos de pensar, mas também padrões de percepção e paradigmas de experiência espaciais ganharam indiscutível importância. Pelo menos desde a segunda metade dos anos oitenta novas concepções de espaço se desenvolveram, talvez sua expressão mais convincente sejam os esboços de Edward W. Soja (1989). A conjuntura específica da Alemanha, com seu histórico de relações problemáticas com as regiões de fala alemã, volta suas atenções para o elemento espacial, realizando aquilo que o historiador Karl Schlögel tanto defende, um “Spatial turn, afinal” (SCHLÖGEL, 2003: 60). Ao fazê-lo, a Alemanha apenas identifica-se com uma orientação que no novo milênio com certeza não pode mais ser chamada de nova.
Decerto que o processo aqui descrito não poderia ter sido, no interior de uma logosfera cunhada pela pós-modernidade, nem uma trajetória sempre homogênea, nem um transcurso isento de contradições. As discussões dos anos oitenta e noventa – que se estendem até a atualidade – foram essencialmente determinadas por questionamentos geoculturais e geopolíticos, não só restritos ao cyberspace; antes produziram espacializações, mappings e remappings (DIMOCK & ROBBINS, 2007) sob o signo da pós-colonialidade e do choque de culturas. Mesmo a ideia do Clash of civilizations de Samuel Huntington poderia também ser alocada em um spatial turn – de orientação geocultural e geoestratégica. Mapeamentos e remapeamentos de linhas de confrontos e de fronteiras até há pouco consideradas estáveis estão há décadas na ordem do dia. Mas, no sentido das reflexões de Amin Maalouf, seria necessária a transposição destes mapeamentos assentados – não importando sobre qual base de dados – para mappings ativos e móveis, para que se possa enfrentar eficientemente a territorialização predominante de toda forma de alteridade (cf. KRISTEVA, 1991).
Particularmente no terreno da filologia sente-se até hoje a falta de um vocabulário terminológico suficientemente preciso para o movimento, o dinamismo e a mobilidade. Poder-se-ia chegar ao ponto de falar de uma colonização de movimentos por meio de uma enxurrada de conceitos de espaço que, sob o signo de uma obsessiva espacialização, constatam e reduzem conceitualmente as dinâmicas e vetorizações, ignorando deliberadamente, a dimensão do tempo.
À pobreza de conceitos de movimento corresponde uma redução nociva e deformadora de processos espaço-temporais, desenvolvendo-se coreografias de imagens espaciais estáticas e mental maps que agem selecionando ou obliterando o elemento dinâmico. Mas a espacialização vai cobrar um alto preço enquanto não se devotar ao movimento.
Espaços somente surgem por meio de movimentos. Estes só produzem um espaço com seus modelos e figuras, com seus cruzamentos e travessias específicos. Será que podemos compreender o espaço de uma cidade sem concebê-lo em termos vetoriais? Será que podemos entender um salão plenário ou uma área geopolítica sem selecionarmos dela os movimentos dos mais distintos atores? São exatamente as estruturas abertas da literatura as que apontam para sua dimensão espacial – e isto de forma alguma pode restringir-se ao domínio da literatura de viagem. As “passagens” de Walter Benjamin, por exemplo, não somente formam espaços, mas configuram – como o título bem aponta – espaços para movimento dinâmicos, vetorizados. Desse modo cria-se um espaço por meio de padrões e figuras específicos de movimento, em meio ao qual a continuidade de um espaço determinado depende da continuidade daquelas coreografias que primeiramente o geram. Se determinados padrões de movimento desmoronam, com eles desmoronam também os correspondentes espaços com suas delimitações: da mesma maneira que na esfera arquitetônica ou urbana, assim também na esfera dos espaços nacionais ou supranacionais. A mobilidade das ideias sobre a Europa oferece nesse sentido ao longo dos séculos um rico material para exame.
A estocagem de antigos (e mesmo de futuros) padrões de movimento que surgem em movimentos atuais, e que se deixam novamente vivenciar, talvez possa ser designada de forma mais precisa como vetorização. Ela tem uma abrangência que vai muito além do que se conhece e se vivencia individualmente, vetorização abarca também o domínio da história coletiva, cujos modelos de movimento ela armazena no campo vetorial de dinâmicas futuras, pós-euclidiano, descontínuo, múltiplo e fraturado. Entre os movimentos atuais – e é isso que almeja o conceito de vetorização – os antigos movimentos tornam-se novamente reconhecíveis e perceptíveis: enquanto movimentos eles se encontram presentes tanto na estrutura firme como na estruturação móvel de espaços. Por conseguinte, somente poderemos conceber espaços de modo adequado quando investigarmos a complexidade dos movimentos que os configuram e, com isso, suas dinâmicas específicas.
Se perguntarmos pelas consequências destas reflexões para o domínio da interpretação de textos literários, poderemos constatar que no século XX, o “século das migrações”, as expulsões, deportações, migrações e movimentos das mais distintas espécies começaram a se tornar o centro de nossa atenção. Exatamente o desdobramento, observável no século passado, de literaturas sem residência fixa, no sentido de formas de escrita translinguais e transculturais (cf. MATHIS-MOSER & MERTZ-BAUMGARTNER, 2007; MATHIS-MOSER & PRÖLL, 2008; ETTE, 2005), fez com que todos os elementos e aspectos da produção literária entrassem em movimento de modo muito mais radical e duradouro do que antes. Assistimos a uma vetorização geral de todos os nexos (de espaço), que abarca também as estruturas nacional-literárias, ao que a teoria literária deverá responder.
A vetorização na literatura recorre não somente à história (coletiva), mas também ao mito: àquele reservatório de mitos cujos movimentos, historicamente acumulados e transmitidos, traduzem e reintegram a literatura aos fluxos atuais de movimentos. Para compreender a(s) literatura(s) europeia(s) temos que incluir em nossas reflexões tanto uma Europa em movimento (BADE, 2000) quanto uma Europa como movimento – sob uma perspectiva transárea. É somente a partir dessa angulação que serão reconhecidos na literatura, entre os movimentos de um protagonista, muitos padrões de movimentos processuais vetorialmente armazenados. Assim, por exemplo, a retirada do Egito ou a errância de Odisseu, mas também a abdução e o estupro de Europa, ou a viagem de Colombo ao Novo Mundo, envolvidas em lendas, ainda emprestam aos movimentos migratórios do século XX um potencial acessório de significações que abastece e adensa semanticamente até as coreografias mais simples. Não somente as palavras entre as palavras (cf. STAROBINSKI, 1971) ou os lugares entre os lugares, mas precisamente os movimentos entre os movimentos indicam a imbricação entre literatura e mobilidade, bem como o significado central dos padrões de movimento armazenados e vetorizados, para uma compreensão de processos tanto literários como culturais. A ausência substancial de conceitos de movimento, explicável a partir da tradição das filologias nacionais, tem como consequência o fato de que não se pode falar facilmente de uma poética do movimento.
Assim sendo, o objetivo deveria ser a sensibilização permanente das investigações científicas voltadas a fenômenos culturais e literários, especialmente orientadas para formas e funções do movimento, e estimular a transição de uma mera história do espaço em direção a uma história do movimento. Para tanto, é necessário que se desenvolva uma refinada conceitualização dos processos de vetorialização que, evidentemente, vá muito além da análise da literatura de viagem ou das literaturas sem endereço fixo. Com essa finalidade, empreende-se a seguir uma série de diferenciações terminológicas.
O nível disciplinar
No domínio dos Area Studies, os centros de pesquisas regionais de corte tradicional, quando interessados em transcender o estudo de disciplinas avulsas, orientam seu trabalho em termos multidisciplinares ou em termos interdisciplinares. Ou seja, privilegiam a disposição lineal e contínua de ciências singulares articuladas multidisciplinarmente, ou privilegiam um diálogo catalizador das inter-relações entre disciplinas. Esta estrutura bem estática, por assim dizer “disciplinada”, deveria ser futuramente complementada por estruturações transdisciplinares que aspirem não ao intercâmbio interdisciplinar entre interlocutores fixamente ancorados em suas disciplinas, mas sim ao contínuo cruzamento de distintas disciplinas. Nesse processo, é evidente que os resultados dessa prática científica “nômade”, transdisciplinar em sentido estrito, devem estar obrigatoriamente assegurados em termos (mono)disciplinares e interdisciplinares por meio de sucessivos contatos. Os distintos campos do saber podem dessa forma ser dinamizados e se comunicar uns com os outros de modo mais flexível.
Analogamente a esta delimitação terminológica, determinações conceituais devem ser introduzidas na lógica de cada um dos campos de pesquisa, que irão precisar estas diferenciações há pouco sugeridas nos mais distintos níveis de análise, com o auxílio dos quatro prefixos indicados – “mono”, “multi”, “inter” e “trans”.
O nível cultural
Tendo em vista a análise de fenômenos culturais, torna-se necessário, para além das mônadas monoculturais, fazer a distinção entre um alinhamento multicultural lineal e contínuo de diferentes culturas, que se estabelecem em termos espaciais, por exemplo, em distintos bairros ou zonas de uma cidade, e uma disposição intercultural colaborativa, que designa os encontros entre participantes de diferentes culturas que, apesar de fazerem intercâmbio, ainda assim não põem em questão seus respectivos pertencimentos a uma determinada cultura ou grupo cultural. O nível transcultural, porém – prosseguindo criticamente os trabalhos sobre transculturação do etnólogo e teórico da cultura cubano Fernando Ortiz, produzidos no ano de 1940 (ORTIZ, 1978) – diferencia-se dos dois níveis anteriores, pois nele se trata de movimentos e práticas que atravessam diferentes culturas: trata-se de um permanente saltar entre as culturas, sem que se possa pertencer de modo estável ou dominante a uma cultura ou a um grupo cultural singular. Na fase atual de acelerada globalização as travessias transculturais também continuam ganhando crescente e indiscutível relevância. Assim, a investigação não deveria ter como meta a diferenciação de “espaços intermediários” mais ou menos estáveis, e sim a sondagem de superfícies instáveis de jogo, os movimentos oscilantes e as figuras ambíguas.
O nível linguístico
Do ponto de vista linguístico, poder-se-ia em princípio fazer a distinção, para além de uma situação monolingual na qual a logosfera é claramente dominada por uma determinada língua, entre um alinhamento multilingual de diferentes línguas e espaços linguísticos contíguos, indicando nenhuma ou escassas sobreposições, e uma disposição interlingual colaborativa, na qual duas ou várias línguas encontram-se em contato e comunicam-se umas com as outras. Diferentemente do que ocorre em uma tradução intralingual, que se poderia designar no sentido de Roman Jakobson como um rewording no interior da mesma língua (JAKOBSON, 1971: 260), uma tradução interlingual transfere de uma língua para outra, sendo que ambas as línguas se encontram claramente apartadas uma da outra e permanecem separadas. Diferentemente da situação multilingual e interlingual pode-se, por outro lado, demarcar uma situação translingual, com o que estamos falando de um processo inconclusivo de permanente atravessamento linguístico.4 Neste caso, duas ou várias línguas não mais se deixam separar umas das outras tão facilmente, interpenetrando-se reciprocamente.
Em termos da escrita literária, uma prática translingual designaria, por conseguinte, o salto de um autor para lá e para cá, transitando entre diferentes línguas, tanto nos marcos de suas obras completas quanto no interior de um determinado texto singular., Em uma passagem de seu ensaio mais recente, que reflete suas próprias atividades político-linguísticas, Amin Maalouf comprova em que medida podem ser amplas as esperanças ligadas a uma política linguística concreta relacionada a essa discussão:
Mais si l’on encourageait toute personne à se passionner, dès l’enfance, et tout au long de la vie, pour une culture autre que la sienne, pour une langue librement adoptée en fonction de ses affinités personnelles – et qu’elle étudierait plus intensément encore que l’indispensable langue anglaise –, il en résulterait un tissage culturel serré qui couvrirait la planète entière, réconfortant les identités craintives, atténuant les détestations, renforçant peu à peu la croyance à l’unité de l’aventure humaine, et rendant possible, de ce fait, un sursaut salutaire. (MAALOUF, 2009: 106-107)5
O nível medial
Observando-se a constelação medial, poder-se-ia, paralelamente a isso – e para além de contextos monomediais –, fazer a distinção entre uma situação multimedial, na qual coexistem variados meios sem que se chegue a maiores imbricações e campos de contato recíprocos, e uma situação intermedial, de modo que nesta última diferentes meios se correspondem e dialogam intensivamente uns com outros, mas sem que em momento algum percam sua especificidade e seletividade próprias. Em uma situação transmedial, ao contrário, interpenetram-se e se atravessam distintos meios em um processo inconclusivo de permanente transgressão, cruzamento e “transferência”, tal como acontece exemplarmente em iconotextos e fonotextos.
Evidentemente, o que importa aqui, assim como nos âmbitos de definição anteriormente mencionados, é que fenômenos multi, inter e transprocessuais não podem ser apartados uns dos outros de maneira sempre “limpa”, nem em termos espaciais, nem temporais. Contudo, a transparência e o rigor na definição, almejados aqui, têm como finalidade principal conseguir também investigar e continuar diferenciando em um segundo momento tais zonas de sobreposição e de interseções com uma maior resolução e precisão. O objetivo não é o mapeamento de roots, mas um entendimento com a maior precisão possível da processualidade inconclusiva de routes na literatura e na cultura.
O nível temporal
Na trama terminológica aqui apresentada também seria possível estruturar conceitualmente, a dimensão do tempo em sua processualidade. Enquanto processos multitemporais dizem respeito à organização lineal e contínua de diferentes níveis de tempos, existentes independentemente uns dos outros, processos intertemporais designam uma correspondência e comunicação recíproca constante entre diferentes níveis de tempo que nem se misturam uns com os outros nem, se fundem uns com os outros. Processos ou estruturações transtemporais relacionam-se, então, a um atravessamento incessante de distintos níveis de tempo. Tal entrelaçamento de tempos produz uma temporalidade específica, que em sua transtemporalidade também dá um forte destaque especialmente a fenômenos transculturais ou translinguais e, consequentemente, pode deflagrar processos de intercâmbio.
O nível espacial
No âmbito das estruturas espaciais, não surpreenderá que também seja possível distinguir um alinhamento multiespacial, de espaços com raras zonas de contato, contrastando-o com uma estrutura interespacial de espaços que se correspondem intensivamente uns com os outros, embora sem se fundir. Por seu turno, estruturações transespaciais são marcadas por permanentes atravessamentos e cruzamentos de espaços de diferentes espécies, e, por conseguinte, por um padrão de movimento que a seguir precisará ser conceitualmente mais bem explicado e precisado. Lembremos aqui novamente que espaços são produzidos por movimentos e padrões de movimento, de modo que em nosso analise não poderemos partir de um conceito estático de espaço.
O nível vetorial
A dimensão vetorial da literatura configura espaços de movimento que não se deixam mais submeter a qualquer lógica do estar-imóvel, a qualquer espacialização bidimensional redutora, configurando a estruturação móvel de todo saber literário de modo compreensível, e até mesmo como possível de ser revivido. A análise dos movimentos entre os movimentos (na) da literatura comprova de modo altamente plástico em que medida espaços só podem ser formados por movimentos, por motions e emotions. Mas, como é possível tornar produtivo o modelo conceitual, aqui apresentado com toda a brevidade exigida, para o delineamento de uma ciência transárea da literatura?
Translocal – transregional – transnacional – transcontinental – transárea
Depois de precisarmos conceitualmente as relações entre cultura e língua, espaço e tempo, meios e disciplina, façamos aqui inicialmente a tentativa – e isto é uma questão de importância eminente para superar os Area studies – de apreender agora mais exatamente os movimentos específicos no espaço com vistas à geração de uma poética do movimento. Mas, em princípio, deve ser feita uma distinção entre cinco diferentes níveis.
Em um nível translocal, movimentos se estabelecem entre lugares e espaços urbanos e rurais de extensão limitada – no sentido das landscapes and cityscapes, de Bharati Mukherjee (1999) –, ao passo que, em um nível transregional, movimentos situam-se entre determinados espaços de paisagem e/ou de cultura, que se estabelecem – como Uckermark ou Hegau – sob a grandeza de uma nação, ou se desmembram, enquanto unidades visualizáveis, entre distintos estados nacionais – como, por exemplo, a região chamada de Dreyeck entre a Floresta Negra, Vogesen e o norte da Suíça. Transnacionais são movimentos entre diferentes espaços nacionais ou estados nacionais, enquanto movimentos transárea se situam entre distintas áreas – como, por exemplo, o Caribe ou a Europa Oriental –, e movimentos transcontinentais entre distintos continentes – como, por exemplo, Ásia, África ou América.
Levando em consideração o modelo conceitual aqui sugerido, é possível dizer que as dinâmicas em cada um dos níveis podem ser subdivididas, segundo o tipo de movimento, aproximadamente em processos multi, inter e transnacionais. De forma análoga, as demais aplicações conceituais são realizáveis em correspondência com o sentido da coerência e da transparência da terminologia escolhida.
Movimentos também contribuem decisivamente para a constituição e semantização de espaços-de-vida (também no sentido de motions e emotions), sendo marcante a relacionalidade interna de um espaço dado em seus nexos com sua relacionalidade externa, que liga um determinado espaço com outros. Deste modo, somente se pode entender o Caribe em sua especificidade – para mencionarmos um exemplo concreto – quando se inclui historicamente não somente sua relacionalidade interna de arquipélago, de múltiplas comunicações entre as ilhas, mas também as dinâmicas da relacionalidade externa, ou de transarquipélagos, por exemplo, com as Canárias ou as Filipinas, ou com diferentes potências (coloniais) europeias, suas possessões americanas, África, os EUA, China, Índia ou o mundo árabe. Sendo um espaço essencialmente designado pelos movimentos no passado, no presente, bem como no futuro (prospectivamente), a combinatória entre os cinco níveis aqui diferenciados é altamente expressiva para fenômenos políticos, culturais ou especificamente literários que, sem estes movimentos, não poderiam ser pensados adequadamente.
Uma breve referência a um exemplo extraído da literatura de língua alemã pode mostrar o quão complexo poderia ser o resultado de tal combinatória. No romance de Emine Sevgi Özdamar A ponte do chifre dourado [Die Brücke vom Goldenen Horn] (1999) sobrepõem-se, entre outras, as grandes cidades de Istambul e Berlim, de modo que um movimento urbano translocal vai resultar para a protagonista em um contexto transnacional e ao mesmo tempo transárea, isto é, que ultrapassa tanto as fronteiras nacionais como as fronteiras entre distintas áreas. Mas isso não é tudo: quando observamos o movimento da jovem mulher entre a parte europeia e a asiática de Istambul, muito importantes para o desenvolvimento do romance, as idas e vindas sobre o Bósforo apresentam-se como movimento transcontinental, que, entretanto, persiste sob o nível nacional, e mesmo regional. À bipartição de Istambul corresponde, por seu turno, a bipartição de Berlim de antes da queda do muro, de modo que o movimento pendular frequente entre a parte ocidental e oriental de Berlim revela-se em nível local como movimento transnacional e de transárea que, por assim dizer, é semantizado e vetorizado a partir da experiência da protagonista em Istambul. Isto possui um alto significado para as configurações de espaço e de percepção na trilogia Istambul-Berlim de Özdamar, construída de modo impressionante e coerente.
Mas, permaneçamos ainda um pouco no nível translocal. As relações migratórias – e, na sequência, econômicas e sociais – entre uma aldeia em Chiapas e um bairro de Los Angeles, por exemplo, estabelecem-se em um nexo certamente transnacional e de transárea; mas, focalizemos estes dois níveis a partir de um padrão de movimento translocal, marcados ao mesmo tempo pelo elemento rural e urbano. Quando observamos relações translocais comparáveis, por exemplo, entre exilados cubanos em Miami e suas famílias da região oriental de Cuba, vemos que já no nível translocal surge um padrão de movimento que faz emergir, por assim dizer, um mundo intermediário de movimentos entre (os estudos sobre) a América do Norte e (os estudos sobre) a América Latina. Eles são indispensáveis para uma compreensão das duas áreas, mas permanecem frequentemente ocultados por razões disciplinares, da mesma forma que o fato de que, por meio de tais movimentos, estende-se um espaço-de-movimento hemisférico do continente americano. Como um modelo exemplar de construção de interconexões em escala mundial, conscientemente vetorial, que, com os movimentos do protagonista, continua sempre reproduzindo por novos meios as velhas migrações, poder-se-ia invocar o texto Origines, de Amin Maalouf (2004): não existe caminho que já não tivesse sido aberto por caminhos anteriores, para que a origem não possa sempre se abrir de modo diferente a origens plurais. Movimentos indicam, de sua parte, suas aberturas de caminhos e rotas como sempre novas.
A constituição de espaços regionais acontece frequentemente – tomemos, por exemplo, no romance de Sherko Fatah Na região limítrofe [Im Grenzland] (2003) – com o auxílio de demarcações de fronteiras que – neste caso entre Irã, Iraque e Turquia – são constantemente atravessadas por um contrabandista, ou seja, um violador profissional de fronteiras. Mas a violação de fronteiras ao mesmo tempo subverte e reforça as demarcações de fronteiras (HORN KAUFMANN, 2002), de modo que uma complexa dialética da construção do espaço é posta em movimento através de padrões frequentemente repetidos (embora em nosso exemplo proibidos pelo Estado) – exatamente com vistas a uma literatura de língua alemã que amplie estas diegese transárea.
Um exemplo da literatura francesa também comprova esta dinâmica de travessias de fronteiras transregionais: os textos Beaune-la-Rolande (2004) e Mémorial (2005), de Cécile Wajsbrot, situam-se em um cenário transregional em cujo interior se sobrepõem, no mais verdadeiro sentido da palavra, uma determinada paisagem do sul de Paris e a região do entorno de Auschwitz: eles interligam não somente as viagens de trem da narradora na primeira pessoa, mas igualmente os trilhos que conduzem do campo de internação e concentração na França ao campo de extermínio situado na Polônia. O nível transnacional e translocal são enfeixados de modo transregional em uma paisagem cuja fisionomia evidencia a sobrevivência da Shoah – denotando assim, no mínimo, um duplo sentido como genitivus obiectivus e como genitivus subiectivus.
A encenação da transregionalidade, no sentido de uma conexão entre duas paisagens de fato muito distantes, mas ora postas em proximidade, transforma-se aqui num procedimento eficaz: o padrão de movimento transregional transmite nestes textos uma imagem essencialmente mais penetrante, porque é muito mais familiar à experiência individual do espaço, do que poderia ser caso acontecesse num nível transnacional claramente mais abstrato. Paisagens literárias – e a investigação da paysage littéraire, de forte expressão na França, poderia fornecer aqui múltiplos exemplos – podem ser lidas há muito tempo na tradição ocidental como paisagens da teoria: elas encarnam movimentos complexos de compreensão no interior de um espaço-de-movimento expandido por estes mesmos movimentos.
Relações transnacionais num nível ao mesmo tempo de transárea e transcontinental caracterizam, por exemplo, os esforços políticos que, por iniciativa do Presidente do Estado brasileiro, conduziram em maio de 2005 à convocação de uma reunião de cúpula em Brasília entre países da América Latina e dos Estados da Liga Árabe. Elas também se situam em uma longa tradição de aberturas políticas. Ainda que na esfera política as relações transcontinentais e entre nações do hemisfério sul possam estar no centro dos debates públicos, para as relações culturais árabe-americanas, que devem ser fortalecidas (cf. ETTE & PANNEWICK, 2006), o nível transárea talvez seja ainda mais decisivo. Elas não dizem somente respeito das relações árabe-americanas, mas, em maior medida, às relações culturais americano-asiáticas, americano-africanas e americano-europeias, cuja tessitura móvel configura o espaço hemisférico das Américas.
Pesquisas científicas e instituições regionais de corte tradicional tendem a desconsiderar completamente tais movimentos transárea ou, quando menos, a minimizar sua importância, pois se supõe que padrões de movimento que ultrapassam suas respectivas áreas de confiança sejam muito menos relevantes, na medida em que não dizem respeito aos centros na Europa ou aos EUA. O amplo apagamento das relações árabe-americanas oferece aqui um exemplo tão eloquente como a divisão dos estudos sobre o Caribe entre as mais distintas disciplinas e suas lógicas disciplinares.
Não é raro que “competências” ou “pertencimentos” disciplinares expliquem os défices no padrão de percepção de ramos inteiros de pesquisa ou de centros de pesquisas regionais altamente especializados. Ainda que as relações árabe-americanas continuem presentes nas literaturas da América Latina, elas não aparecem, ou aparecem muito pouco, na tela do radar dos estudos regionais ancorados em disciplinas, ou, no melhor dos casos, interdisciplinares, que se concentram quase exclusivamente em suas respectivas áreas, e que, quando vão além disso, no máximo levam em consideração seus nexos com a posição (europeia) da instituição.
Precisamente esses mundos intermediários transárea possuem enorme interesse para uma ciência que se orienta pelo paradigma investigativo dos Estudos de Transárea. As literaturas do mundo desenvolvem esta dimensão vetorial do elemento transárea com toda clareza. O conhecimento armazenado na literatura talvez possa servir como corretivo para padrões de percepção limitados em disciplinas. Será que não poderíamos formular com Roland Barthes aquela de que a literatura está sempre na frente de tudo – inclusive das ciências (BARTHES, 2002: 167)? E, consequentemente, não seria então uma importante tarefa das ciências da literatura traduzir e transmitir esse saber?
O nível transcontinental, já diversas vezes discutido, desenha-se muito claramente nos romances e textos em prosa de Blaise Cendrars – para novamente recorrermos a um exemplo das literaturas de língua francesa – considerando que em esses textos as dimensões literárias voltadas para viagens, abrem-se em direção a um critério universal. Não é somente em seu fascinante texto-movimento Bourlinguer (CENDRARS, 2002) que as figuras (narradoras) se deslocam incansavelmente como pêndulos entre os continentes, num processo em que compete às cidades portuárias, ou, respectivamente, às estruturas insulares – e, assim, a um nível translocal –, uma destacada função no interior de uma geometria concebida em termos fractais, e daí pós-euclidiana. Europa e América, África e Ásia tornam-se pontos cardeais de orientação de um movimento hermenêutico cuja transcontinentalidade combina uma inconstante nomadização em escala global com a simulação de uma escrita sem domicílio fixo. No jogo comum transcontinental dos meridianos surge, um mundo intermediário descontínuo que, em Cendrars inconfundivelmente, sob o signo de uma ubiquidade vanguardista, carrega os traços de uma globalização francocêntrica. Com vistas ao desenvolvimento de uma poética do movimento, importará futuramente tornar estes Entre-Mundos da literatura produtivos em termos das ciências da literatura e da cultura.
O futuro dos Area Studies situa-se, por conseguinte, numa abertura em direção aos TransArea Studies (Estudos de Transárea), que unem competências da Área com práticas transdisciplinares de pesquisa. As literaturas sem domicílio fixo, percebidas apenas perifericamente pelas filologias nacionais, oferecem aqui, com a sua fascinante Escrita-Entre-Mundos, um rico campo de atividades – um reservatório inesgotável de saber. É tarefa da filologia, com a consciência específica do significado da literatura já esboçado, alçar este tesouro e torná-lo socialmente disponível.
Para o futuro das ciências da literatura, portanto, possui grande relevância uma reorientação transárea, direcionada para o movimento – e isso vale principalmente para disciplinas específicas como, por exemplo, a romanística. Caso se quisesse – decerto que apenas em contornos – distinguir uma ciência da literatura de caráter transárea das abordagens comparatistas tradicionais, então se poderia dizer que estas últimas comparam e, por assim dizer, confrontam entre si de maneira estática as políticas, sociedades, economias ou produções simbólicas de diferentes países, enquanto que uma ciência transárea orienta-se em direção à mobilidade, ao intercâmbio e aos processos reciprocamente transformadores. Aos Estudos de Transárea interessam menos os espaços do que os caminhos, menos as demarcações de fronteiras do que os deslocamentos de fronteiras, menos os territórios do que relações e comunicações. Pois nossa era de redes exige concepções científicas móveis e relacionais, transdisciplinares e transárea, e uma dimensão orientada pelo movimento que, por não muito mais tempo, somente se pode desenvolver com base em algumas poucas literaturas nacionais europeias.
Particularmente nos marcos de uma situação histórico-mundial de desregulamentação, de dérive e de dérèglement, parece-me ser evidente que se tenha que transferir esse saber para nossas sociedades e, assim, torná-lo socialmente produtivo. A literatura como laboratório do multilógico acumulou ao longo de séculos um saber que pode contribuir para que se lance uma ponte sobre o abismo, cada vez mais ameaçador, para o qual Amin Maalouf em seu mais recente ensaio chamou a nossa atenção:
Ce qui est en cause, c’est le fossé qui se creuse entre notre rapide évolution matérielle, qui chaque jour nous désenclave davantage, et notre trop lente évolution morale, qui ne nous permet pas de faire face aux conséquences tragiques du désenclavement. Bien entendu, l‘évolution matérielle ne peut ni ne doit être ralentie. C‘est notre évolution morale qui doit s’accélérer considérablement, c‘est elle qui doit s‘élever, d‘urgence, au niveau de notre évolution technologique, ce qui exige une véritable révolution dans les comportements. (MAALOUF, 2009: 81)6
Tradução do alemão: Luiz Barros Montez
(Faculdade de Letras, UFRJ)
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1
“Entramos no novo século sem bússola. Desde os primeiríssimos meses, acontecimentos inquietantes se produzem, dando a pensar que o mundo se depara com um desregulamento maior, e em diversos domínios ao mesmo tempo – desregulamento intelectual, desregulamento financeiro, desregulamento climático, desregulamento geopolítico, desregulamento ético” (MAALOUF, 2009: 11).
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2
No original ent-rüstete, jogo morfológico com o prefixo negativo “ent” que, destacado de “-rüstet” – do radical rüsten (preparar-se para a guerra) –, empresta ao particípio “indignado” o sentido de “não-armado”, gerando um adjetivo de duplo sentido.
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3
“O que só pode ser feito através de sua cultura. E, em primeiro lugar, através de sua literatura. A intimidade de um povo é sua literatura. É nela que ele desvela suas paixões, suas aspirações, seus sonhos, suas frustrações, suas crenças, sua visão do mundo que o rodeia, sua percepção de si mesmo e dos outros, inclusive de nós mesmos. Porque ao falar dos “outros” não se pode jamais perder de vista que nós mesmos, quem quer que sejamos, onde quer que estejamos, também somos “os outros” para todos os outros” (MAALOUF, 2009: 206).
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4
Para uma definição conceitual alternativa, ver Liu (1995).
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5
“Mas se incentivássemos todas as pessoas a se apaixonarem, desde a infância e ao longo da vida inteira, por uma cultura diferente da sua, por uma língua livremente adotada em função de suas afinidades pessoais – e que elas estudariam ainda mais intensamente do que a indispensável língua inglesa –, o resultado seria uma tecelagem cultural cerrada que cobriria o planeta inteiro, reconfortando as identidades medrosas, atenuando os ódios, reforçando pouco a pouco a crença na unidade da aventura humana, e tornando possível, assim, um sobressalto salutar” (MAALOUF, 2009: 106-107).
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6
“O que está em questão é o fosso que se cava entre nossa rápida evolução material, que nos abre cada dia mais para o mundo, e nossa demasiado lenta evolução moral, que não nos permite enfrentar as consequências trágicas dessa abertura. Evidentemente, a evolução material não pode nem deve ser desacelerada. É nossa evolução moral que deve se acelerar consideravelmente, é ela que deve se elevar, com urgência, até o nível da nossa evolução tecnológica, o que exige uma verdadeira revolução nos comportamentos” (MAALOUF, 2009: 81).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2016
Histórico
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Recebido
05 Jan 2016 -
Aceito
30 Jan 2016