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Eva Perón no imaginário argentino: entre a história e a ficção

Eva Peron in the Argentine imaginary: between history and fiction

Resumo

O presente artigo propõe-se a refletir sobre como transbordam os gêneros na construção das narrativas e sua participação na conformação de um mito no imaginário político: o mito de Evita Perón. Busca-se discutir o que compõe os relatos da ficção e da história na representação da realidade. O trabalho divide-se em quatro partes: efeito de historicidade, imaginário, autoficcção - a construção de si, e representações de Evita. As duas primeiras partes apresentam proposições teóricas e as seguintes, representações literárias de Eva Perón em que se discutem algumas obras argentinas. Conclui-se que o modo de narrar das representações elabora o efeito de historicidade, transbordando os gêneros ficção e história, e confluindo no imaginário. Além disso, afirma-se a impossibilidade de abarcar todo o fenômeno da configuração do imaginário evitista, entretanto, considera-se possível oferecer alguma contribuição aos estudos referentes a essa temática.

Palavras-chave:
ficção; história; mito; Eva Perón; literatura argentina

Abstract

This article aims to reflect on how genres overlap in the construction of narratives and take part in the conformation of a myth of the political imaginary: the myth of Evita Perón. We seek to discuss what the accounts of fiction and history in the representation of reality are made up of. This paper is divided into four parts: historicity effect; imaginary; autofiction - the construction of the self; and representations of Evita. The first two parts present theoretical propositions and the last two will discuss literary representations of Eva Perón, referring to some Argentinean works. We conclude that the manner in which a text is narrated creates the effect of historicity, straddling the fiction and historical genres, and converging in the imaginary. Furthermore, we accept that it is impossible to cover the whole phenomenon of the configuration of the evitista imaginary. However, it is possible to offer some contribution to the studies on this theme.

Keywords:
fiction; history; myth; Eva Perón; Argentine literature

Resumen

El presente artículo se propone reflexionar sobre el desbordamiento de géneros en la construcción de narrativas sobre Eva Perón y su participación en la conformación de un mito en el imaginario político: el mito de Evita Perón. Se busca discutir cómo se compone la representación de la realidad en los relatos de la ficción y de la historia. El trabajo se divide en cuatro partes: efecto de historicidad; imaginario, autoficción - la construcción de sí, y representaciones de Evita. Las dos primeras partes presentan proposiciones teóricas, y las siguientes, representaciones literarias de Eva Perón en que se discuten algunas obras argentinas. Se concluye que la manera de narrar elabora el efecto de historicidad, desbordando los géneros ficción e historia, y confluyendo en el imaginario. Además de eso se admite la imposibilidad de abarcar todo el fenómeno de la configuración del imaginario evitista, sin embargo, se considera que es posible ofrecer alguna contribución a los estudios referentes a esa temática.

Palabras clave:
ficción; historia; mito; Eva Perón; literatura argentina

Efeito de historicidade

Refletir sobre um tema tão discutido desde a Antiguidade como o da relação entre história e ficção não é uma tarefa simples. Com isso, não há pretensão de se desculpar, tampouco orgulhar-se, mas assinalar a dificuldade dessa empreitada e, talvez, acrescentar um elemento: a conformação de um imaginário no transbordamento dos limites entre o discurso historiográfico e o ficcional. Neste trabalho, não se considera a história um romance, como propôs Paul Veyne (1998VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. 286 p.), no qual o historiador narra fatos enquadrando eventos reais. A ideia aqui defendida aproxima-se da concepção de Hayden White (1995WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995. 464 p.) na compreensão do conteúdo poético e linguístico presente no discurso historiográfico, o que permite observar sua construção verbal manifesta num gênero narrativo, ou seja, um artefato literário.

Além disso, compreende-se a história como a ciência dos homens no tempo, segundo Marc Bloch (1992BLOCH, Marc. Introducción a la historia. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1992. 124 p.), e uma construção, de acordo com Michel de Certeau (2000CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 414 p.). Para esse autor, a história é uma operação que segue um conjunto de práticas científicas. Tais práticas envolvem a pesquisa, o tratamento dos fatos e sua divulgação em forma textual (CERTEAU, 2000CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 414 p.). Certeau evidencia o papel do historiador como aquele que fabrica a história enquanto a narra. A história, portanto, resulta de um ato de escrever, uma operação que combina lugar social, práticas científicas e escrita.

No final do século XX, cresceu a discussão a respeito da história e da ficção, surgindo historiadores como Alun Munslow (2009MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Petrópolis: Vozes, 2009. 272 p.), que, ao tentar dimensionar os limites da história na recuperação e representação do passado por meio da narrativa, afirmou sua legitimidade apenas se é compreendida como construção na qual, com imaginação, o historiador impõe um roteiro ao passado preenchendo-o com significados. Nessa acepção desconstrutivista, na qual Munslow inclui White, não haveria correspondência unívoca entre o passado e sua representação narrativa, comprometendo assim a objetividade do discurso historiográfico.

Segundo a crítica de Carlo Ginzburg (2007GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 454 p.), a afirmação de White a respeito do puramente linguístico no discurso historiográfico não considera o labor da seleção documental feita pelos historiadores. A escrita, de acordo com Ginzburg (2007GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 454 p.), seria a última etapa do trabalho do historiador.

Não se pode negar que a história possui um referente: um corpo documental que a distingue da ficção. Esse referencial sedimenta o princípio da realidade. Tal corpo documental é chamado de prova e isto não é gratuito, porque aquilo que o historiador pode oferecer como garantia da veracidade de seu trabalho é a credibilidade que provém do que se pode verificar.

Dessa forma, o papel do historiador é central nessa operação historiográfica, que, por sua vez, possui um duplo efeito: por um lado historiciza o atual, torna presente uma situação vivida; por outro, a imagem do passado mantém seu valor primeiro de representar o que falta. Assim, a história é uma construção na qual os historiadores conferem sentido aos fatos, encadeando-os. É possível, portanto, refletir por um lado, sobre os procedimentos que criam o efeito de historicidade, aquilo que faz um texto, discurso ou relato distinto da ficção e identificado como discurso histórico. Por outro lado, é possível refletir sobre esse efeito de historicidade na ficção e tentar buscar os elementos que o criam e fazem com que o relato ficcional se confunda com o histórico ou historiográfico (CLÍMACO, 2014CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção em Santa Evita. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. 196 p.).

Tomando os produtores do discurso histórico e ficcional como narradores, percebe-se que possuem em comum a escrita para divulgar suas pesquisas e contar suas histórias, respectivamente. A diferença reside no modo de narrar. O historiador constrói o discurso histórico com recursos textuais tais como notas, citações, discussões de fontes etc., específicos ao gênero narrativa histórica. Seu discurso objetiva a construção de um conteúdo verificável, perceptível, atestável a partir da materialidade dos documentos e das fontes. Cabe destacar, no entanto, que a história não é apenas o fato, o evento que se relata ou se vislumbra no documento, e sim o relato, a narrativa que sobre ele se constrói. Nesse sentido, é o historiador quem, por meio da escrita, do discurso, historiciza um fato, ampliando a história que a passa a ser o fato acrescido do discurso que sobre ele se produziu (CLÍMACO, 2014CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção em Santa Evita. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. 196 p.).

Se tomamos como exemplo uma personagem histórica como Maria Eva Duarte de Perón1 1 Eva María Ibarguren (1919-1952), de origem humilde, atriz, cujo nome artístico era Eva Duarte, casou-se com o Coronel Juan Domingo Perón (1895-1974), que foi presidente da Argentina em três ocasiões: 1946-1952; 1952-1955 (mandato interrompido pelo golpe militar conhecido como Revolução Libertadora) e 1973-1974 (após retornar do exílio em Madri até seu falecimento). Após casar-se com Perón, alterou seu nome para María Eva Duarte de Perón. Como Primeira-dama, Evita desempenhou papel fundamental no governo peronista, assumindo a assistência social e fundando a ala feminina do Partido Peronista. Faleceu em 26 de julho de 1952 vitimada por um câncer de útero. Após sua morte e seu funeral ao qual compareceu uma multidão, seu cadáver embalsamado foi sequestrado e ocultado pelo governo militar, sendo devolvido a Perón em 1971, em Madri, no entanto apenas em 1974, após ação do grupo guerrilheiro Montoneros, voltou à Argentina e foi sepultado no cemitério La Recoleta, dois anos depois. , que se tornou um mito, podemos perceber, em seu constructo imaginário e social, a confluência entre a ficção e a história. É precisamente a relação entre história e ficção no imaginário sobre a figura mais importante do Peronismo que este artigo discute. Para isso, parte-se de obras claramente ficcionais, ou que tentam disfarçar a ficção, para nelas observar a construção do efeito de historicidade e sua operação na construção do imaginário sobre o mito de Evita.

A profusão de obras literárias revela que um gênero apenas não é suficiente para representar Eva Perón, essa mulher que se tornou um mito, um signo de múltiplos significados. A história não pode contê-la nem a recriar como mito. É a literatura que adentra esses espaços com a ficção e avança na conformação da aura mítica que envolve a personagem histórica. Sonhos, aspirações e ideais encontram na ficção espaço para voar livremente e ampliam o imaginário evitista.

A ficção conta o que a história não pode relatar, porque está delimitada por estruturas mais rígidas que lhe exigem provas nas quais deve se apoiar. Isso porque a história preocupa-se com o verdadeiro, entendido como o que se pode atestar documentalmente, oferecendo àqueles que duvidem a possibilidade de refazer o caminho percorrido, seguir as pegadas e assim encontrar o fato ou as provas que lhes permitiriam ter alguma certeza. Tal preocupação a ficção não possui. Está comprometida com sua própria narrativa e, de modo livre, conta-a como quiser, mas em alguns momentos propõe-se a aparentar ser outra coisa que não ficção e é aí que transborda, ultrapassa seus limites: sua aparência de história consegue-se com a mimetização ou apresentação do desenvolvimento de procedimentos mais afeitos ao gênero historiográfico.

Quais seriam os limites da história, portanto, nos perguntamos, visto que Certeau (2000CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 414 p., p. 55) afirma que, “ao ultrapassá-los, a ciência histórica deixaria seu lugar, descompondo-se em ficção [narração do que se passou] ou reflexão epistemológica [elucidação de suas regras de trabalho]”. Isso possibilita entender que seus limites são perceptíveis, bem delimitados por imposições e particularidades que permitem que o discurso produzido a partir da investigação historiográfica seja reconhecido como tal por outros historiadores. Esse discurso é mediado pela técnica que fornece à história formas de priorizar seu próprio modo de constituição.

O fato de que esse discurso necessita da aprovação dos pares (outros historiadores) evidencia a importância do leitor. Nessa categoria, a de leitor, há que se incluir os leitores que não são historiadores e que tomam o discurso historiográfico como real pelo reconhecimento das marcas que o diferem da ficção e pela assinatura do autor, narrador historiador. Seria esse leitor não especializado aquele que também percebe as lacunas que a história não pode preencher, que pode buscá-los e acreditar que os encontra na ficção, formando, assim, algo que lhe parece ser um todo marcado pela mistura de história e ficção, que perdem seus limites, e forma um modo de pensar a respeito de um personagem ou fato histórico.

Isso que faz com que um discurso seja reconhecido como historiográfico, o que lhe dá aparência de história, chamamos de efeito de historicidade. Tal expressão foi formulada por Alcmeno Bastos (2007BASTOS, Alcmeno. Introdução ao romance histórico. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007. 114 p.) em referência ao emprego, na ficção, de recursos ficcionais análogos a personagens, eventos e instituições de extração histórica documentada, que geram no leitor a sensação de estar diante do que realmente aconteceu. Por sua vez, a expressão remete a efeito do real, que nomeia o fato de que, na história objetiva, o real nunca é mais do que um significado não formulado, abrigado detrás da onipotência aparente do referente (BARTHES, 2004BARTHES, Roland. O discurso da história. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 163-180.). O efeito de historicidade é criado pelo que Krzysztof Pomian (2003POMIAN, Krzystof. História e ficção. Projeto História, São Paulo, n. 26, p. 11-45, 2003.) denomina marcas de historicidade: elementos, signos ou fórmulas que conduzem o leitor à extratextualidade; indícios de que a narrativa não pretende ser autossuficiente e que se compõe de afirmações controláveis por operações.

A historicidade constrói-se na narratividade, na organização de um enredo. A elaboração literária e retórica específica, associada à linguagem, faz com que facilmente se reconheça o texto historiográfico como tal. O papel do historiador na criação do efeito de historicidade ao produzir seu discurso está na construção que faz por meio da escrita, do uso de procedimentos textuais (tais como notas, citações, tratamento do tempo, objetividade, conceitualização), e no uso de um imaginário que o consagra como autoridade. Ativa-se o imaginário por parte do historiador e dos leitores. O historiador, que é quem busca dar sentido aos fatos históricos após extraí-los dos documentos, selecioná-los e agrupá-los em cadeia narrativa; e os leitores, que ativam esses sentidos em suas leituras e podem imaginar ter encontrado uma resposta que responda à sua curiosidade e, mais que isso, que ordene a realidade histórica e social.

Na ficção, o efeito de historicidade manifesta-se pelo emprego de procedimentos textuais semelhantes aos utilizados pelo historiador na produção do discurso historiográfico, ademais da ficcionalização de personagens reais, inseridos no romance, ou outro gênero ficcional, com seus nomes próprios, incorporando ao texto toda a semântica que carregam. Recurso semelhante observa-se na menção de pontos de referência do cenário criado no enredo. Esses despertam, segundo Prost (2015PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. 288 p.), a imaginação do leitor, como pequenos detalhes aparentemente inúteis e o recurso à cor local: datas históricas, nomes de ruas e de estabelecimentos, bem como de produtos ou técnicas que permitam evocar a época narrada (BASTOS, 2007BASTOS, Alcmeno. Introdução ao romance histórico. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007. 114 p.).

Ao observar pesquisas que se dedicam ao tema da relação entre história e ficção, é muito comum verificar que se afirmam máximas como a veracidade da história frente à mentira da ficção. Esse é um falso problema, visto que a ficção não é mentira, tampouco a história é verdade. O antônimo de ficção não é verdade. Melhor seria compreender que há narrativas não ficcionais e outras ficcionais, ou seja, que umas se escrevem com base em documentos e indícios e outras com imaginação e liberdade. Estou de acordo com Saer em sua afirmação de que “la dependencia jerárquica entre verdad y ficción es una mera fantasía moral” (SAER, 2014SAER, Juan José. El concepto de ficción. Buenos Aires: Seix Barral, 2014. 294 p., p. 10). O que se percebe como falsidades da ficção são as elaborações que assinalam seu caráter duplo que mistura o empírico e o imaginário. Dessa forma, acredita-se, ou se deveria acreditar, na ficção como ficção, não como verdade.

O discurso histórico tampouco poderia ser tomado como total verdade sem considerar todas as categorias enunciativas que operam em sua produção e o recorte da realidade que faz o historiador que, como afirma Bauman (2005BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 170 p., p. 26), “ilumina uma parte do palco enquanto deixa outras na escuridão”. Há que se admitir que, como apontou Saer, “la exclusión de todo rastro ficticio no es por si garantía de veracidad” (2014SAER, Juan José. El concepto de ficción. Buenos Aires: Seix Barral, 2014. 294 p., p. 10). Como já afirmado ao longo deste artigo, a questão da verdade na história não se refere a uma categoria ontológica, e sim a que os fatos narrados podem ser verificados num corpo documental o qual se interpreta.

Imaginário

Se no aspecto formal, material, textualmente reconhecível, a história e a ficção têm em comum a narrativa, no aspecto imaterial comungam do imaginário. Como construtor de representações e configurações sociais, o imaginário é objeto da história e da ficção, sendo também por elas formado (CLÍMACO, 2017CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens confluentes. 2017. 187 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Nele, confluem os transbordamentos da história e da ficção: tudo o que transpassa esses gêneros, que se acercam, e implicam na criação de realidades imaginadas nas quais personagens históricos são transformados em mitos.

Para Jacques Le Goff (1994), os documentos com os quais o historiador trabalha podem conter uma parte de imaginário, visto que exprimem não apenas situações concretas como um imaginário do poder, da sociedade, do tempo, da justiça etc. Além disso, Le Goff afirma o quão privilegiadas são as obras literárias e artísticas para a história do imaginário.

A ficção compõe uma tríade com o real e o imaginário, o que permite ao texto ficcional realizar o imaginário por meio dos atos de fingir de seleção, combinação e autodesnudamento da ficção (ISER, 1983ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 83-132. 2 v., 1999ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. In: ROCHA, João Cezar de C. (org.). Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 65-77. ). Como o imaginário adquire aparência de real por meio de tais atos, representa-se o mundo como se fosse real. Portanto, perceber nos textos literários as representações que carregam é abrir portas ao estudo do imaginário que constitui a vida social.

Como tudo na vida dos homens faz parte da história e necessita de um tratamento histórico, o imaginário é domínio da história, pois alimenta o ser humano e o impulsiona a agir (LE GOFF, 1994LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 368 p.). A vida humana está relacionada tanto a imagens quanto a realidades palpáveis. As imagens que mais interessam aos historiadores são as coletivas, porque oferecem vislumbres do modo de pensar da sociedade, não só de um indivíduo. Com isso, na análise de um texto autobiográfico, como La razón de mi vida (1951), no qual uma figura de poder, Eva Perón, narra suas memórias e encadeia os eventos de sua história pessoal, é preciso ler nas entrelinhas a representação que constrói de si mesma e do poder que exerce.

No imaginário, há ideologia e utopia no que se refere à projeção de uma sociedade ideal, que pode organizar sonhos e desejos coletivos, como afirma Sandra Pesavento (1995PESAVENTO, Sandra. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995.) “na defesa desse campo de estudos, pois se mesclam no “verdadeiro” e no aparente, portanto, estudá-lo é desvendar um segredo, buscar significados ocultos, como é o caminho da história” (PESAVENTO, 1995PESAVENTO, Sandra. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995., p. 24).

Para o estudo do imaginário, logo necessita-se visitar a ficção. O olhar em direção ao passado parece ser mais eficiente quando se faz como disposto na apresentação de Historia y ficción, obra do Ministério de Educação da Argentina destinada aos estudantes secundários: não é a busca de uma versão completa e fechada do passado, mas o estímulo da curiosidade sobre ele, para que emerjam novas perguntas “allí donde con frecuencia parece estar todo dicho” (SILEONI, 2013SILEONI, Alberto. Palabras introductorias. In: MUJICA LAINÉZ, Manuel et al. Historia y ficción. Buenos Aires: Ministerio de Educación de la Nación, 2013. p. 5-7., p. 5).

No presente artigo, ao refletir sobre as representações de Eva Perón na literatura, adentra-se o imaginário a respeito do mito de Evita, sem, contudo, tentar apresentar as transformações operadas ao longo do tempo, pois isso demandaria outro trabalho de pesquisa.

Autoficção: a construção de si

Em La razón de mi vida (PERÓN, 1951PERÓN, Eva. La razón de mi vida. Buenos Aires: Peuser, 1951.), biografia que, segundo estudiosos, foi escrita por um jornalista, como mencionado por Alicia Poderti (2010PODERTI, Alicia. Diccionario del Peronismo. Buenos Aires: Biblos, 2010. 252 p.), Eva Perón toma para si a autoria daquele que foi o mais difundido de seus textos, tornando-se leitura obrigatória nas escolas até a destituição de Juan Perón, em 1955, quando foram proibidas sua reprodução e difusão.

Nessa narrativa, Eva Perón declara os motivos pelos quais dedicou-se à causa dos trabalhadores. Propõe-se a contestar as críticas que recebeu, com o objetivo de dar a conhecer ao povo seus sentimentos e pensamentos. Estabeleceu de imediato o público ao qual destina sua obra: os mais humildes. Em uma escrita direta, de estilo simples, parágrafos curtos e capítulos de pequena extensão, Eva Perón reafirma o pacto autobiográfico, comentando sua própria escrita, aproximando-se do leitor em tom intimista, emocionado, por vezes apelativo. Apresenta-se como amiga dos trabalhadores e mediadora entre Perón e eles, com o propósito de construir-se a si mesma e ao presidente, bem como aos seus opositores, além de apresentar o projeto justicialista. Mostra-se indignada frente à injustiça, rebelde e inconformada com a injustiça desde criança. Afirma que teve a oportunidade de viver um presente extraordinário depois de conhecer Perón, quando se soube eleita, pelo destino ou pela providência divina, a exercer a missão de cuidar dos trabalhadores da Argentina.

Sua construção narrativa parece tomar como modelo o tipo bíblico da mulher auxiliadora do homem (marido): diz-se complementar a Perón com características opostas às suas que, no entanto, unem-se evidenciando a alegoria dos pais da pátria. Sua autoficção é produtora de alegorias da nação: lar e família. Da grande família que é a pátria argentina, Evita e Perón seriam os pais, e o povo, os filhos.

É perspicaz em suas considerações sobre sua dupla designação - Eva Perón e Evita - em sua atuação política, que compara ao teatro, rememorando sua experiência como atriz para quem o papel de primeira-dama seria simples e fácil de desempenhar no teatro ou no cinema, mas diz que não nasceu para esse tipo de teatro. Ao optar por ser Evita, escolheu o caminho do povo, e mesmo que esse papel não seja sua natureza original, sente-se mais natural como Evita que como Eva (PERÓN, 1951PERÓN, Eva. La razón de mi vida. Buenos Aires: Peuser, 1951.). Seu nome em diminutivo é sua preferência, mas não aceita que todos assim a chamem: somente o povo peronista, os humildes trabalhadores e as crianças.

Como Evita, realiza sua ambição de ser a ponte entre Perón e o povo, criando a imagem da mulher humilde que luta por amor aos descamisados2 2 Segundo o Dicionario del habla de los argentinos (2008, p. 302), o termo designa pessoa comumente pertencente à classe trabalhadora, que aderia ao partido peronista. . Constrói-se como idealista e leitora. Em seu afã de se colocar como realizadora do projeto político judicialista, Eva, em seu relato, engrandece Perón de modo insistente e até mesmo exaustivo, dando-lhe honras e admitindo que ele se declare como seu construtor, que diga que Evita foi um produto seu.

Eva Perón apresenta suas memórias infantis e adolescentes como explicação para seu comportamento adulto, elaborando seu destino manifesto. Com isso, “verifica-se a reelaboração das experiências passadas na constituição dos sujeitos nas narrativas”, como afirma Leonor Arfurch (2013ARFURCH, Leonor. Memoria y autobiografía: exploraciones en los límites. Buenos Aires: Fondo de Cultura, 2013. 164 p., p. 76). A partir de procedimentos como a autoria e o pacto autobiográfico, a criação de um enredo em que a intimidade e o sentido da vida se apresentam, os detalhes, as referências a personagens e instituições reais, com seus nomes próprios, a menção de datas históricas, além de citações de documentos, cria-se o efeito de historicidade na narrativa autobiográfica, o que faz com que essa obra seja lida como não ficção sendo possível assumir como realidade os eventos que nela se narram.

Representações de Evita

A devoção de Evita a Perón, declarada em La razón de mi vida é lida por Leónidas Lamborghini, que a reescreve em seu poema “Eva Perón en la hoguera” (LAMBORGHINI, 1972LAMBORGHINI, Leónidas. Partitas. Buenos Aires: Corregidor, 1972.).

Evita é representada no poema como um pássaro: livre, solto, revolucionário, não encarcerado. O verso curto “por él” é repetido várias vezes, resumindo e intensificando a declaração de fidelidade exaustivamente expressa na autobiografia. No poema, a palavra contida, economizada, vai até o indispensável para Evita: Perón, os trabalhadores, justiça, miséria e outras palavras deste campo semântico com que Evita justificaria “la razón de mi darse”.

As palavras amontoam-se, parecendo expressar a mesma urgência com que Evita entregou sua vida à causa que acreditava necessária. Ela tinha um apurado sentido de pressa para enfrentar a necessidade dos mais humildes, como os chamava. E assim foi e se gastou.

À economia de palavras nos versos de Lamborghini assemelham-se as frases do romance de Daniel Herrendorf, Evita: la loca de la casa (2003HERRENDORF, Daniel. La loca de la casa. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. 224 p.). Há poucas frases nos parágrafos, às vezes apenas uma, como por exemplo: “Evita se ha quedado para siempre.” (HERRENDORF, 2003HERRENDORF, Daniel. La loca de la casa. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. 224 p., p. 17). Herrendorf inverte a declaração insistente de Eva Perón em sua autobiografia e a narra como quem produziu Perón: “A él lo hice yo” (HERRENDORF, 2003HERRENDORF, Daniel. La loca de la casa. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. 224 p., p. 21).

No romance, Evita, representada como louca, vive sua última noite e narra em forma de monólogo toda sua história. A enfermidade em sua etapa terminal e talvez a consciência de estar proferindo suas últimas palavras destravam-na e lhe permitem relatar com sinceridade o que viveu, o que realmente pensava. Talvez essa fosse sua loucura - enfrentar-se a si mesma sem atuações, sem público, sem reservas: “Evita parecía estar más cerca de sí misma, acaso junto y dentro de sí por primera vez, sin ninguna referencia que mejorara o perjudicara su manera de ser” (HERRENDORF, 2003HERRENDORF, Daniel. La loca de la casa. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. 224 p., p. 192).

No conto “Evita vive”, Néstor Perlongher (2001PERLONGHER, Néstor. Evita vive e outras prosas. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 2001. 128 p.) a faz voltar da morte e viver intensamente nos submundos da cidade, na qual se hospeda em um hotel, interage com outras pessoas, se droga e faz sexo com desatino.

Essa Evita que volta não é a que esperavam os jovens montoneros que a transformaram em um símbolo de luta. Voltou, mas não é milhões; vive e não é montonera, ao contrário do apregoado pelos slogans “Volveré y seré millones” e “Si Evita viviera, sería montonera”. No entanto o fato de que a heroína do peronismo seja representada tão livremente de regras, fanatismos e escrúpulos políticos parece indicar que sim, voltou e é milhões, entretanto o é nas representações literárias, nas várias tentativas de narrá-la historiograficamente e no imaginário do povo argentino. As possibilidades são infinitas, parece dizer-nos Perlongher. Ela pode ser tudo e, como Cristo, caminhar com os que estão às margens da sociedade.

Passamos então a outra representação muito forte no imaginário evitista: a Santa. Seu nome, Eva María Ibarguren, posteriormente mudado para Maria Eva Duarte e, por fim, após o casamento, com o acréscimo “de Perón”, carrega as imagens opostas da pecadora e da santa (CORTÉS ROCCA; KOHAN, 1998CORTÉS ROCCA, Paola; KOHAN, Martín. Imágenes de vida, relatos de muerte. Eva Perón: cuerpo y política. Buenos Aires: Beatriz Viterbo, 1998.). Isso está presente nas denominações que recebeu ainda em vida: essa mulher, égua, a pecadora, por um lado; mãe, senhora, santa, por outro.

Em Santa Evita (1995), Tomás Eloy Martínez a representa de modo hagiográfico, como se narrasse uma vida de santo, seguindo modos desse gênero textual medieval em que se apresentavam testemunhos sobre o martírio do santo e sua posterior veneração como vistas a fixar a memória dos heróis da fé cristã. Embora a hagiografia seja uma fórmula literária oficializada pela igreja católica, sua presença no romance transgride os cânones oficiais: Evita é representada como santa, mas santa popular, que não tem uma origem nobre, entretanto faz milagres, impreca maldições e possui um relicário composto de objetos que tocou e de seu próprio cadáver embalsamado (CLÍMACO, 2017CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens confluentes. 2017. 187 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.).

A narrativa de Santa Evita centraliza o cadáver como símbolo do mito de Evita, enfatizando os elementos que permitiram sua ascensão no ideário político peronista desde sua origem humilde. Os transbordamentos da história e da ficção no romance não apenas apagam os limites entre esses dois campos, mas possibilitam compreender o fenômeno político Evita como mais liberdade na elaboração ficcional que alegoriza a história.

Não se pode esquecer que Martínez dá ao narrador seu próprio nome e, por vezes, narra o romance em primeira pessoa como um investigador indiciário que está à procura do cadáver insepulto de Evita, desaparecido na Revolução Libertadora e que passou por várias peripécias até ser finalmente devolvido a Perón depois de 16 anos. Martínez narrador indica outro narrador como motivador de sua aventura investigativa: Rodolfo Walsh.

O conto “Esa mujer” (1965), de Rodolfo Walsh, fornece a Martínez narrador as pistas que buscava. No conto, relata-se o que aconteceu ao cadáver após seu sequestro e ocultamento, além dos infortúnios sofridos pelos militares que tiveram contato com ele. Martínez disse que escreve para se colocar fora da história de modo semelhante a Walsh, que narra a história do corpo como se fosse ficção. É dessa maneira, como ficção, que os leitores recebem o conto, declara Martínez, pois nada fora da ficção poderia ter espaço na Argentina.

Segundo Martínez, a literatura foi pioneira ao narrar o que aconteceu com Evita. O narrador relata que se encontrou com Walsh e tentou convencê-lo a ir consigo procurar o cadáver, mas Walsh não se deixou persuadir e lhe declarou: “Esa mujer no es mía.” (MARTÍNEZ, 1995MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Santa Evita. Buenos Aires: Planeta, 1995., p. 307). Essa frase é uma brincadeira, um jogo de palavras com a última frase do conto. O coronel que comandou o operativo de sequestro do cadáver diz a Walsh no conto: “Esa mujer es mía.” (WALSH, 1995WALSH, Rodolfo. Esa mujer. Facultad de Arquitectura Diseño y Urbanismo, 1995. Disponível em: Disponível em: http://www.fadu.uba.ar/post/412-171-esa-mujer-rodolfo-walsh . Acesso em: 29 mar. 2022.
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). Quando o narrador de Santa Evita atribui essa frase ao personagem de Walsh, acrescenta o não. Assim Walsh está se referindo a Evita e ao conto que já não lhe pertence. Não é o dono da narrativa, embora a tenha enunciado. Outros podem agora assenhorar-se dessa mulher e levá-la (ou levar o conto) a um e a outro lugar, onde quiserem, porque pertence a todos: à memória, à cultura e ao imaginário do povo argentino.

A ficção mostra-se como condutora da história. O fato de que a história tenha silenciado, deu lugar a especulações, e a realidade já não parecia verossímil, então a ficção forneceu a melhor versão para os fatos.

São muitas as representações de Evita. O imaginário evitista é muito rico e produtivo, inclusive para os historiadores que são divulgadores da história em entregas populares e midiáticas. Um exemplo é a obra de Felipe Pigna, Evita jirones de su vida (2012PIGNA, Felipe. Evita: jirones de su vida. Buenos Aires: Planeta, 2012. 384 p.).

O objetivo da obra, segundo a declaração no prefácio, é contar de modo detalhado e analítico a vida de uma mulher que se converteu em uma das figuras mais célebres da humanidade. A diferença dessa obra para outras, de acordo com seu autor, é que enquanto muitos autores abordaram Eva Perón de modo folclórico, ele quer demonstrar que ela foi um sujeito político que compartilhou com Perón a liderança carismática do peronismo (PIGNA, 2012PIGNA, Felipe. Evita: jirones de su vida. Buenos Aires: Planeta, 2012. 384 p.).

O texto apresenta-se como biografia não ficcional. O fato de que tenha sido escrita por um historiador pode ajudar a criar o efeito de historicidade. Sua assinatura de autor historiador, reconhecível pelo público leitor, aporta aspectos peculiares. Pigna é um historiador midiático, como já se disse, e isso permite aos leitores reconhecer não só seu estilo, mas também o gênero de obra que escreve. Seus pares, os historiadores, nem sempre estão de acordo com o modo como divulga a história e criticam o que chamam de conclusões apressadas, bem como informações com pouca ou nenhuma relevância, tampouco comprovação, além das simplificações e o apelo no uso de anedotas em seus textos que se propõem a desvelar o que foi ocultado pela “História oficial”.

Alejandro Piscitelli (2004PISCITELLI, Alejandro. La historia argentina y el conflicto de la interpretaciones. Filosofitis, 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.filosofitis.com.ar/2004/06/27/la-historia-argentina-y-el-conflicto-de-la-interpretaciones/ . Acesso em: 29 mar. 2022.
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) comenta como a obra de Pigna encontrou beneplácito entre os leitores massivos, o que transformou Los mitos de la historia argentina em best seller, enquanto os historiadores profissionais rechaçam-no de modo unânime. A oposição que Piscitelli faz entre Pigna e os historiadores profissionais foi feita também por Luis Alberto Romero, para quem o que faz Pigna não é história e sim escrita sobre a história (LA NACIÓN, 2005LA NACIÓN. Hazañas de ayer y hoy. La Nación, 11 dez. 2005. Disponível em: Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/opinion/hazanas-de-ayer-y-hoy-nid763709 . Acesso em: 29 mar. 2022.
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). Tal oposição aponta o que seria amadorismo de Pigna. Isso nos permite concluir que se Pigna não possui o reconhecimento de seus pares é porque não respeita as regras da forma de produção do discurso historiográfico. Entretanto, é inegável que sua obra chega ao grande público que desconhece as filigranas na produção da história e geralmente possui a crença de que estão lhe ocultando algo. Por isso um historiador que se propõe a mostrar o que haveria por trás da história, em linguagem mais simples e corrente, alcança o sucesso que Pigna logrou alcançar. Seus leitores podem sentir que ele é o historiador fiel, aquele que narra “a verdade”. E esses leitores podem se tornar fãs e consumir tudo o que se produz midiaticamente (séries televisivas, livros, histórias em quadrinho etc.). Desta forma, o que afirma em suas obras ajudam a conformar o imaginário evitista.

Piscitelli aponta também que Pigna faz ficcionalização e não romance histórico. Interessa destacar essa distinção: se fizesse romance histórico, tudo estaria no âmbito da ficção e não haveria problema, mas, como história que não confessa a ficcionalização, é condenável, até mesmo porque, ao citar outros historiadores, força suas conclusões para adequá-las à sua interpretação pessoal bastante peculiar. Para Piscitelli, a principal crítica que se faz a Pigna é o anacronismo: retroprojetar o hoje sobre o passado e insistir na repetição, sem variações, desse passado hoje.

Outros historiadores que também são autores de livros sobre história exitosos no mercado editorial, como Pacho O’Donnell, por sua vez, valorizam Pigna por ter despertado o interesse popular (LA NACIÓN, 2005LA NACIÓN. Hazañas de ayer y hoy. La Nación, 11 dez. 2005. Disponível em: Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/opinion/hazanas-de-ayer-y-hoy-nid763709 . Acesso em: 29 mar. 2022.
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).

Na obra mencionada, Evita: jirones de su vida, observam-se elementos ficcionalizadores da história, como subjetividade, criação de enredo e diálogos. Detendo o olhar especificamente sobre as marcas de subjetividade, ou seja, o meio pelo qual o autor dá-se a conhecer, podem ser reconhecíveis juízos de valor, adjetivação, modo poético de narrar fatos objetivos, comunicação direta com o leitor e indefinição. Um exemplo está no prefácio, quando ao relatar medidas da Revolução Libertadora, Pigna deixa entrever uma visão apaixonada e triunfante de Evita:

El odio de sus encarnizados enemigos la sobrevivió. Dinamitaron el lugar de donde murió para evitar que se convirtiera en un sitio de culto, prohibieron su foto, su nombre y su voz, pasaron con sus tanques por las casitas de la Ciudad Infantil hasta convertirla en ruinas, abandonaron la construcción del hospital de niños más grande de la América porque llevaría su nombre, echaron a ancianos de los hogares modelos, quemaron hasta las frazadas de la Fundación, destrozaron pulmotores porque tenían el escudo con su cara, secuestraron e hicieron desaparecer su cuerpo por 16 años. Pero como sospecharon los autores de tanta barbarie, todo fue inútil. (PIGNA, 2012PIGNA, Felipe. Evita: jirones de su vida. Buenos Aires: Planeta, 2012. 384 p., p. 11).

Como em outras partes da obra mencionada, Pigna recorre à objetividade, verifica-se a narrativa mais aproximada do discurso historiográfico, cuja recepção coopera o fato de que é um autor historiador. Podemos então refletir que a assinatura do autor se reveste de grande importância e que, ao assinar sua obra, Pigna acrescenta ao texto um conjunto de questões, visto que como afirma Foucault (2001FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: estética, literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Buenos Aires: Beatriz Viterbo, 2001. p. 264-298. 3 v., p. 272), “o nome do autor é um nome próprio que apresenta os mesmos problemas que o autor, carregando marcas de estilo pessoal e dos gêneros pelos quais transita”. Diante da obra assinada pelo autor historiador, o leitor que reconhece seu nome pode criar expectativas relativas à leitura bem como conferir-lhe status do gênero ao qual esse autor está mais afeito a escrever. Desta forma, esse elemento paratextual, a assinatura, soma-se aos procedimentos próprios do discurso histórico na obra (cronologização, contextualização, conceitualização, discussão de fontes e versões) e cria o efeito de historicidade. É possível que o leitor não perceba elementos ficcionalizadores na obra, tais como as marcas de subjetividade (juízos de valores e adjetivações, modo poético de narrar, comunicação com o leitor e indefinições); a criação de um enredo e de diálogos, como se o narrador historiador fosse onisciente. Essa falta de percepção da ficcionalização contribui para o efeito de historicidade.

Considerações finais

Neste artigo, propôs-se reflexão sobre os transbordamentos da história e da ficção, identificando-se o efeito de historicidade na criação discursiva desses gêneros e como contribuem para moldar o imaginário evitista. Para isto, foram analisadas representações de Evita, de sua autorrepresentação a textos literários e, nesse conjunto, um que poderia ser confundido com historiográfico, caso não se observasse sua ficcionalização.

Conclui-se que a ficção e a história transbordam seus próprios gêneros a partir do modo de narrar que constrói as representações de Eva Peron. As várias narrativas apresentam elementos que, com a leitura, criam o efeito de historicidade. Além disso, conclui-se que a percepção da representação nos textos literários possibilita abrir portas ao estudo do imaginário que conflui nos transbordamentos das margens da história e da ficção. Eva Perón, Evita Perón, é levada de uma margem a outra de maneiras diversas, mesclando-se história e ficção, preenchendo-se ficcionalmente as lacunas que a historiografia deixa em aberto por impossibilidade documental.

Observou-se que o mito evitista possui grande produtividade na literatura, na Arte e nas leituras não apenas da população argentina, mas também de público internacional. São as representações responsáveis pela constante atualização do mito, e é o próprio mito em constante atualização, matéria para novas representações, novas reelaborações artísticas, literárias e também historiográficas, visto que diante da novidade há o afã de tentar responder sobre a veracidade da história. Esses grandes mares, historiográfico e ficcional, em constante labor, enchem-se e transbordam confluindo constantemente.

Após esse percurso sobre algumas representações de Eva Perón, percebe-se a necessidade de dizer, uma vez mais, que esse não é um estudo que esgota o tema, mas sim uma reflexão sobre as ultrapassagens de dois gêneros, a ficção e a história, que em sua confluência fazem vivo o imaginário a respeito de um ente político como Eva Perón, a Evita.

Um caminho que parece muito produtivo e no qual talvez se possa adentrar futuramente são os estudos sobre a recepção dos textos de divulgação histórica que se tornam tão populares. Seria necessário buscar mecanismos para tais estudos talvez fora de uma visão academicista. Há que se tentar.

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  • 1
    Eva María Ibarguren (1919-1952), de origem humilde, atriz, cujo nome artístico era Eva Duarte, casou-se com o Coronel Juan Domingo Perón (1895-1974), que foi presidente da Argentina em três ocasiões: 1946-1952; 1952-1955 (mandato interrompido pelo golpe militar conhecido como Revolução Libertadora) e 1973-1974 (após retornar do exílio em Madri até seu falecimento). Após casar-se com Perón, alterou seu nome para María Eva Duarte de Perón. Como Primeira-dama, Evita desempenhou papel fundamental no governo peronista, assumindo a assistência social e fundando a ala feminina do Partido Peronista. Faleceu em 26 de julho de 1952 vitimada por um câncer de útero. Após sua morte e seu funeral ao qual compareceu uma multidão, seu cadáver embalsamado foi sequestrado e ocultado pelo governo militar, sendo devolvido a Perón em 1971, em Madri, no entanto apenas em 1974, após ação do grupo guerrilheiro Montoneros, voltou à Argentina e foi sepultado no cemitério La Recoleta, dois anos depois.
  • 2
    Segundo o Dicionario del habla de los argentinos (2008ACADEMIA ARGENTINA DE LETRAS. Diccionario del habla de los argentinos: segunda edición corregida y aumentada. Buenos Aires: Emecé Editores, 2008. 704 p., p. 302), o termo designa pessoa comumente pertencente à classe trabalhadora, que aderia ao partido peronista.
  • 300
    Parecer Final dos Editores Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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