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A biblioteca de Anghel

Anghel’s library

Resumo

Este artigo pretende apontar alguns possíveis caminhos de leitura para a poesia de Golgona Anghel. O objetivo é partir do pressuposto de que alguns de seus poemas apontam, na esteira do pensamento de Antoine Compagnon e Jacques Derrida, para um trabalho da citação/cintilação que torna legível a construção de uma biblioteca. Os poemas, tal como uma biblioteca, hospedam em seus versos / estantes uma série de elementos que foram cortados, recortados e, depois, enxertados em um novo lugar; apontando para aquilo que Pedro Eiras, a respeito da poesia de Golgona Anghel, chamou de uma “itinerância de vozes, locais e tempos”.

Palavras-chave:
Golgona Anghel; O trabalho da citação; biblioteca; poesia

Abstract

This article seeks to propose some possible ways of reading the poetry of Golgona Anghel. We start with the assumption that some of Anghel’s poems, aligned with Antoine Compagnon’s and Jacques Derrida’s thinking, point to a work of citation/scintillation that makes the construction of a library legible. Poems, like a library, host in their verses/shelves a series of elements that have been snipped, cut out, and then grafted into a new place, pointing to what Pedro Eiras, when discussing Anghel’s poetry, called an “itinerancy of voices, places and times”.

Keywords:
Golgona Anghel; The citation work; library; poetry

Resumen

Este artículo busca señalar posibles caminos de lectura de la poesía de Golgona Anghel. El objetivo es partir del presupuesto de que algunos de sus poemas señalan, acercándose al pensamiento de Antoine Compagnon y Jacques Derrida, un trabajo de cita/centelleo que hace legible la construcción de una biblioteca. Los poemas, como una biblioteca, hospedan en sus versos/estanterías una serie de elementos cortados, recortados y, luego, injertados en nuevos lugares; señalando lo que Pedro Eiras, respecto a la poesía de Golgona Anghel, ha llamado de “itinerancia de voces, locales y tiempos”.

Palabras clave:
Golgona Anghel; El trabajo de la cita; biblioteca; poesía

(...) a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito.

“A biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges

Em seu famoso texto sobre a “Crise do verso”, Stéphane Mallarmé construiu aquilo que poderíamos chamar de uma imagem do seu tempo - imagem tão cotidiana, mas que, mesmo assim, contrariando as grandes críticas hegemônicas de sua época, apontou para a percepção de uma produção literária baseada em uma diversidade - ou, como diria Shoshana Felman: na novidade da poesia francesa como o testemunho de um acidente.1 1 Essas considerações de Shoshana Felman aparecem em um texto intitulado “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”. O texto faz parte do livro Catástrofe e representação, organizado por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva e publicado pela editora Escuta em 2000. O texto de Mallarmé, na recente tradução de Ana de Alencar, diz o seguinte: “Diversas obras, sob o vidrilho da cortina, virão alinhar sua própria cintilação: apraz-me como neste céu maduro, no reflexo da vidraça, seguir os clarões da tormenta” (ALENCAR; MEIRA; LEAL 2011ALENCAR, Ana; MEIRA, Caio; LEAL, Izabela. Tradução literária: a vertigem do próximo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011., p. 207); o tempo/tempestade, o espaço/biblioteca, o personagem/poeta. O olhar desse personagem enquadra e é enquadrado pela janela, traçando uma espécie de recorte: cada gotícula de chuva cintila com os clarões de uma tempestade, forjando a imagem de um outro céu - que talvez não seja mais divino, mas que, pelas circunstâncias, está sempre em transformação: céu que está inscrito curiosamente na janela de uma biblioteca. Diversas obras, como diz o personagem/poeta de Mallarmé, virão “alinhar a sua própria cintilação”.

É partindo dessa imagem do final do século XIX que eu gostaria de traçar algumas considerações sobre a poesia portuguesa contemporânea. Considerações a partir dos poemas de uma poeta que me parece desbravar um possível caminho para o nosso tempo. Trata-se da poesia produzida por Golgona Anghel - uma poesia que parece estar em um lugar e apontar para um caminho que nós, os críticos, ainda não estamos. O poeta constrói uma imagem e nós, os críticos, muitas vezes, cada um à sua maneira, tentamos torná-la legível. Não há dúvida de que os poetas são os leitores de seu tempo e que, de fato, diante do mau tempo, precisamos “meditar com bom humor sobre a movimentação literária da nossa época”. Meditar, é claro, tal como o escritor/poeta/personagem da crise do verso: que observa as gotas/poemas, no vidro/estante de uma biblioteca, iluminadas pelos raios de uma tempestade. Ou, como disse uma vez Mário de Andrade, no prefácio da segunda edição de Macunaíma, ler, ver, ouvir mesmo que “o presente [seja] uma neblina vasta” (ANDRADE, 2019ANDRADE, Mario. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Organizadores: Miguel Sanches Neto e Silvana Oliveira. Chapecó: Editora UFFS, 2019., p. 193). Recuperando e ressignificando alguns versos de Fernando Pessoa, eu ainda poderia dizer: neste presente “tudo é incerto e derradeiro. / tudo é disperso, nada é inteiro” (PESSOA, 2008PESSOA, Fernando. Mensagem. Organização de Cleonice Berardinelli e Maurício Matos. Edição preparada segundo o exemplar de 1934 corrigido pelo punho do poeta. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008., p. 126), no entanto, já passou da hora de avaliarmos criticamente a literatura que vem sendo produzida, estabelecendo não necessariamente uma classificação dessas gotículas/poemas que se acumulam sobre as janelas/bibliotecas desse novo céu tão estrelado e diverso, mas estabelecendo a construção de um possível inventário.

Recentemente, o importante número de uma revista brasileira publicada pela PUC-Minas estabeleceu um certo enquadramento dessas obras/gotículas/estrelas de nosso tempo que cintilam em uma biblioteca não mais do final do século XIX, mas do início do século XXI. O número 52 da Revista Scripta, editada e publicada pelo Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, dedicou, em 2020, um dossiê2 2 Trata-se de: GUIMARÃES, Raquel Beatriz Junqueira.; SOUZA, Raquel S. Madanêlo. Os poetas e a poesia de Língua Portuguesa: trajetórias e projetos.Scripta, v. 24, n. 52, p. 9-14, 18 dez. 2020. aos poetas e à poesia moderna e contemporânea de língua portuguesa. A partir de uma atenta leitura de todos os artigos publicados na revista, as duas organizadoras - Raquel Beatriz Junqueira Guimarães e Raquel S. Madanêlo Souza - enumeraram algumas linhas de força para a poesia contemporânea que vem sendo produzida em Portugal. Elas propuseram, a partir do texto de diversos críticos, a leitura dessas gotículas que cintilam em nosso tempo. Trata-se da presença de temas como: 1) as aproximações entre as artes plásticas e a literatura (que já é um tema recorrente desde a segunda metade do século XX); 2) a presença da literatura em mídias digitais e os efeitos desse contato; 3) as problematizações sobre as relações entre obras e tópicos canônicos, formas literárias tradicionais e suas releituras na atualidade; 4) considerações sobre as questões de gênero e sobre a presença do corpo no campo dos estudos literários; e 5) as reflexões e as investigações constantes sobre a memória e o colonialismo.

Eu gostaria de tentar formular uma proposta de leitura para essas questões - transitar diante desse inventário - privilegiando uma poeta que é capaz de oferecer uma reflexão, implícita em seus poemas e explícita em suas entrevistas e ensaios, sobre algumas dessas linhas de força da poesia contemporânea enumeradas pelas organizadoras da revista. E gostaria de lançar - ainda que ao modo de um ensaio - a hipótese de que alguma poesia portuguesa contemporânea se constrói por meio daquilo que poderia ser considerado um princípio biblioteca - que abriga e hospeda autores e leitores tão diversos que são capazes, muitas vezes, de abalar qualquer estrutura de indexação. A literatura, tal como uma biblioteca, é aquela que hospeda, que recebe os discursos, que sustenta em suas “intermináveis estantes”, livros e objetos que, muitas vezes, podem pôr em xeque inúmeras estruturas de indexação. A biblioteca é um lugar onde se guardam todos os tipos de livros. É um lugar onde as coisas aparecem classificadas de acordo com uma lei; onde as coisas possuem um lugar pré-determinado. De fato, há uma lei nas bibliotecas que, sobretudo, separa e classifica. No entanto, ler os poemas de Anghel como uma biblioteca apontaria para uma possível transgressão dessa lei. O que ela nos mostra é que as obras, as coisas, as pessoas e as experiências são maiores que as leis; que cada uma dessas coisas é uma biblioteca ao modo borgiano; que a experiência do leitor e do poeta é capaz de colocar uma biblioteca em movimento e rearranjar as obras - mexendo e transgredindo os seus lugares antes estáveis.

Anghel: cintilação e citação O REMOTO REI DOS CORVOS, Edgar Allan Poe, deixa cair do seu bico, no centro de uma biblioteca, os restos de uma musa. Cansados de tanta melancolia, os ratos montam à sua volta um circo. “Annabel Lee”, “Annabel Lee”, guincham os bichos, repartindo os ossos entre si. Mostram os dentes, esticam-lhe a pele. Sabem que o poema não tem outro precursor a não ser a fome, nem outro seguidor a não ser o crime. (ANGHEL, 2013ANGHEL, Golgona. Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho. Porto: Assírio & Alvim, 2013., p. 13).

Esse é o poema que abre a seção intitulada “Fome e pedagogia” do livro Como uma flor de plástico na montra de um talho (2013) - a essa seção juntam-se outras duas: “Mais carne, mais sol e mais sabor” e “No lugar do grito, uma greta”. Há o absurdo da cena: um poeta/corvo que invade a biblioteca e que “deixa cair”, como se a poesia despencasse do alto (como um acidente do verso), os restos de uma musa: musa que, na segunda metade do século XIX, n’As flores do mal, já não tinha mais o seu aspecto grego, mas, doente e venal, já havia começado a ser corroída. Parte do título do livro de Golgona Anghel (uma flor de plástico) não deixa de apontar para um possível diálogo com o poeta francês. Poe, também um poeta moderno, assim como Charles Baudelaire, já havia começado a devorar a antiga musa; o banquete dos ratos é um corpo já estraçalhado. A imagem do poema é dilacerante e ao mesmo tempo furiosa: há os ratos que “mostram” os dentes, “esticam” a pele e “repartem” entre si os ossos e os restos de uma musa. Trata-se de um poema que retoma a questão da partilha: no centro de uma biblioteca, os ratos parecem se nutrir corroendo a poesia.

Poe não vai aparecer no poema de Anghel como um antigo albatroz, rois de l’azur, mas como um corvo - ave inscrita por ele mesmo na história da literatura e que faz o seu nome ecoar ainda hoje: o par albatroz/poeta (BAUDELAIRE, 2019BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2019., p. 38) instituído por Charles Baudelaire aparece aqui deslocado para um poeta/corvo. Mais próximo a Baudelaire e de suas flores do mal, o poema de Anghel institui mais um movimento de queda da própria musa/poesia.3 3 As asas do albatroz, capturado pelos homens das equipagens, como disse Antonio Candido, “foram feitas para planar nas alturas, não para rastejar na vulgaridade quotidiana” (CANDIDO, 2004. p. 13). O poema de Baudelaire constrói a imagem dos primeiros passos de um poeta/albatroz/poema. É por meio do rastejar desse albatroz que o poeta alegoriza a perda da altura e a queda do sublime.

O poema que abre o livro aponta para uma filosofia da composição - ao modo de Edgar Allan Poe - ou, para utilizar uma expressão do próprio poema: para uma pedagogia da fome. O poema, diz a última estrofe, tem como precursor a fome: ela, no poema de Anghel, aparece como um recurso que solicita um trabalho de citação. Ao apontar para um “Che cos`é la poesia?”, Jacques Derrida já havia escrito algo que se aproxima dessa pedagogia da fome apontada pelo poema: “Coma, beba, engula minha letra, porte-a, transporte-a em você como a lei de uma escritura tornada seu corpo: a escritura em si” (DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques. Che cos`é la poesia? Tradução de Tatiana Rios e Marcos Siscar. Inimigo Rumor, Rio de Janeiro, n. 10, p. 113-116, maio 2001., p. 144). A fome, o trabalho de citação, aparece então como uma relação corpórea e visceral, de devoração e alimentação. A “voz” dos ratos/poetas aparece como um guinchar. “Annabel Lee” já não é o nome da amada perdida na voz do amante, mas um guinchar de ratos que se alimentam de uma musa feita de carne e osso[s]. Esticar a pele - também como uma ampliação de presença, ampliação de sentido pela citação. A mecânica do poema não deixa de nos lembrar da queda, “mais cacos do que havia louça no vaso”, apontada pelo poema de Álvaro de Campos. Cacos, ossos... Serão esses cacos/ossos que serão retomados em outro poema do mesmo livro:

Olhas para mim, um punhado de ossos arrumado num saco de plástico preto, dor e pedagogia, papo seco agarrado a uma lembrança. (ANGHEL, 2013ANGHEL, Golgona. Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho. Porto: Assírio & Alvim, 2013., p. 24).

“Olhas para mim” - quem fala nesse verso? A pergunta é antiga. Olhas para o poema, para os ossos rearranjados. É como se pudéssemos apontar para um poema que se constrói com os ossos rearranjados de uma musa/memória (Mnemosyne é a deusa da memória) - vinda de um outro lugar e até mesmo de um outro tempo: uma deusa em exílio. Mas é preciso retomar a hipótese de uma “filosofia da composição” retomada de modo latente pelo próprio poema. A filosofia da composição foi um texto escrito por Edgar Allan Poe como possível explicação para a construção do poema que recebe o título de “O corvo” - traduzido inclusive por Pessoa. O corvo aparece na tradução de Fernando Pessoa como uma “visita” (POE, 2011POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. Prefácio de Pedro Süssekind. Tradução de Léa Viveiros de Castro, Fernando Pessoa e Machado de Assis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011., p. 43), como um “emigrado” (POE, 2011POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. Prefácio de Pedro Süssekind. Tradução de Léa Viveiros de Castro, Fernando Pessoa e Machado de Assis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011., p. 45). É dessa vez, o poeta/rei dos corvos que, além de “visita” e de “emigrado” para esse novo poema, deixa também cair de seu bico os restos de uma musa - são esses restos que visitam e que migram para outros espaços poéticos. A repetição do nome Annabel Lee quase nos faz lembrar do nevermore repetido pelo corvo como um eco. O eco aparece em outro poema do livro de Golgona Anghel como se anunciasse o próprio processo de composição dos poemas: “somos o eco” (ANGHEL, 2013ANGHEL, Golgona. Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho. Porto: Assírio & Alvim, 2013., p. 16).

Tanto “Annabel Lee” como o “O corvo” são poemas atravessados pelo tema da morte e do esquecimento. Mas há aí um deslocamento, um rearranjo desses ossos que o rei dos corvos deixa cair do seu bico/caneta. “Disse o corvo, ‘nunca mais’”. Na verdade, no poema de Anghel, a fala dos ratos - que na verdade guincham - aponta para um ainda mais. Não se trata da morte, mas da vida, da permanência de algo, da sua insistência. E a vida aparece pelo recurso da citação. “Annabel Lee” foi o último poema escrito por Edgar Allan Poe e retoma justamente a questão da morte de uma mulher/musa. A morte aparece por meio de um corte, e paradoxalmente, como uma repetição, uma sobrevivência e memória. Corte marcado em outro poema: “citem-me, sejam lordes quando espetam a navalha” (ANGHEL, 2013ANGHEL, Golgona. Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho. Porto: Assírio & Alvim, 2013., p. 27) ou ainda em um outro poema, logo após esse: “Não me cortem as garras, nem me domestiquem a cama” (p. 28). O poema da última seção “No lugar do grito, uma greta” parece apontar para um projeto:

Organizo milhares de peças de puzzle, reconstruindo mundos perdidos com a imagem virada para baixo. Transformo as soluções em enigmas. Desloco eras, reavivo vulcões, erijo à volta de um par de mamas, escolas de arquitectura, histórias de sobrevivência, bocas secas, dentaduras postiças. (ANGHEL, 2013ANGHEL, Golgona. Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho. Porto: Assírio & Alvim, 2013., p. 55).

“Organizo”, “peças de puzzle”, “reconstruindo”, “imagem virada para baixo”, “transformo”, “desloco”, “reavivo”, “erijo”, “sobrevivência” - projeto de trabalho poético. Nos poemas de Golgona Anghel diversos elementos recebem uma certa dignidade e um certo estatuto poético. Não foi por acaso que Pedro EirasEIRAS, Pedro. Na cidade de Golgona Anghel. Relâmpago: O Poeta na Cidade, n. 39-40, s/p, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.relampago.pt/opoetanacidade/o-poeta-na-cidade-sumario.html . Acesso em: 09 nov. 2021.
https://www.relampago.pt/opoetanacidade/...
apontou, na produção poética de Anghel, uma certa “itinerância de vozes, locais e tempos” (2017, s/p) - e poderíamos também acrescentar “de objetos”. Deslocados de seus espaços, de seus tempos, desapropriados e apropriados, eles ganham uma outra dimensão, que foge, de certo modo, a um uso mercadológico. A crítica que vem se construindo em torno dos seus poemas utiliza expressões como: “diversas vozes por trás de seus versos”, “itinerância de vozes, locais e tempos”, “cartografia de vivências”, “pontos de referência que não resultam em orientação”, “poesia de imigração”, “de peregrinação”, “de metamorfose”, “de êxodo”; ou ainda para a construção de um arquivo ao modo de um museu, de uma enciclopédia ou de uma coleção. Há, em seus poemas, como veremos, uma verdadeira justaposição que é movida, muitas vezes, por um procedimento de corte e de montagem de referências culturais eruditas que são colocadas ao lado de referências da cultura popular. Nessa biblioteca - e reafirmo que muitos dos seus poemas se constroem ao modo de uma - não parece existir uma hierarquia. E, poderíamos dizer, mesmo que correndo alguns riscos, que, partindo de um caso particular, a geração de Anghel está mergulhada em um trabalho da citação. Mas não é possível simplesmente esquecer que o ato de Golgona, a escrita de sua geração, ainda mantém um certo diálogo com o procedimento poético da arte das últimas décadas da poesia portuguesa das gerações posteriores ao Surrealismo.

No fragmento intitulado “Ablação”, de O trabalho da citação, tradução recortada de um texto maior - La seconde main: ou, le travail de la citation -, Antoine Compagnon se refere ao trabalho da citação como um procedimento não apenas de leitura, mas também crítico, teórico e poético:

Quando cito, extraio, mutilo, desenraizo. Há um objeto primeiro, colocado diante de mim, um texto que li, que leio; e o curso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto atrás: re-leio. A frase relida torna-se fórmula autônoma dentro do texto. A releitura a desliga do que lhe é anterior e do que lhe é posterior. O fragmento escolhido converte-se ele mesmo em texto, não mais fragmento de texto, membro de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado; ainda não o enxerto, mas já órgão recortado e posto em reserva. Porque minha leitura não é monótona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o. (COMPAGNON, 1996COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996., p. 13).

Citar, extrair, mutilar, desenraizar, explodir, desmontar: trata-se de um procedimento que, como Sigmund Freud disse a respeito da criança, desmonta muitas vezes um relógio (um instrumento) para entender o seu funcionamento - e aqui poderíamos nos referir ao relógio da tradição: ao tempo passado que é desmontado e remontado ao modo do presente; o funcionamento da própria poesia. Anghel explode - estrela - o poema com citações. A citação de Compagnon aponta implicitamente para quase todas as linhas de força enumeradas pelas organizadoras do número 52 da revista Scripta. E lendo a poesia de Anghel ao lado da citação de Compagnon poderíamos dizer que “os poemas nos mostram uma tessitura narrativa cuja trama se faz a partir de inúmeras interrupções. Interrupção que muitas vezes configura, reconfigura e desloca o cânone - mostrando um para além do cânone”. Deslocando muitas vezes as questões propostas pelo cânone e inserindo questionamentos atuais a obras do passado, mostrando que a poesia e a literatura estão sempre em constante movimento e constante migração.

Grande parte dos poemas de Anghel que foram publicados até o momento parecem funcionar como a tentativa de criar uma biblioteca ou um inventário de coisas perdidas, de coisas marginais, quase sempre desencadeadas e até mesmo de coisas esquecidas. Em uma entrevista4 4 Trata-se de uma entrevista realizada no XXVIII Congresso Internacional da ABRAPLIP - Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (2021). Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=I1pgSaqmck8 aos professores de literatura portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Carlos Eduardo e Andreia Castro, Golgona chegou a afirmar que um dos motes que guiam a sua escrita é a palavra “encontro”: Edgar Allan Poe, Annabel Lee, Eduardo Prado Coelho, Shakespeare, Lolita, Mário Cesariny, o Grito de Munch, Flaubert, Saint-Exupéry, Jan Van Eyck, Kafka, Viúva de Naim, Kant, Sartre, Os Lusíadas, Divina comédia, Barthes, Foucault, Althusser, Santo Agostinho, Chás da Malásia, Ovas de esturjão, Colar de margaridas, Friedrich Schiller, Marx, Jacques Lacan, Arthur Miller, Marcel Proust, Goethe, Eça de Queirós, cucos, mexericos de feira, metralhadoras de plástico, coelhinhos da Páscoa, pulseiras de lata, perfume Chanel nº 5, Disneylândia, Armani, FMI e batatas fritas - todos esses autores, esses personagens, lugares e objetos aparecem reunidos em diversos de seus poemas - que se tornam o espaço em que autores e objetos de tempos, espaços e nacionalidades diversas conseguem conviver e habitar, mas nem sempre de modo harmônico.

O procedimento de Golgona Anghel pode ser aproximado do trabalho de revisitação (a construção de fotomontagens) que Muriel Pic (Figura 1) estabelece a partir da imagem da biblioteca feita por [W. H. F.] Talbot. “Essas fotomontagens [assim, como alguns poemas de Anghel] produzem uma nova configuração entre os livros e os objetos” (PIC, 2015PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. , p. 86). E Eduardo Jorge de Oliveira ainda completa: “a série de bibliotecas de Muriel Pic é composta por fotomontagens realizadas com tesoura e cola” (PIC, 2015PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. , p. 86) - ao modo, poderíamos dizer, de um constante trabalho da citação e, também, da recitação.

Figura 1 -
PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Belo Horizonte: Relicário, 2015PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. .

Os versos de Golgona Anghel são “estantes imaginárias”. Versos que podem ser pensados de tal maneira graças as fotomontagens de Muriel Pic: formada de restos, ossos, exoesqueletos, recortes de jornais, fotografias, caixas, relógios, desenhos, cartões-postais, pedras, desenhos, calendários, vasos, folhas, bonecos. Foi o professor Edson Rosa da Silva quem explorou, no Brasil, os “conceitos de “museu e/ou biblioteca imaginários”, criados por André Malraux (SILVA, 2002SILVA, Edson. O museu imaginário e a difusão da cultura. Revista Semear, Rio de Janeiro, n. 6., p. 187-196, 2002., p. 189). Espaços que não só agrupam “tudo aquilo que, além de distante no espaço e no tempo, é intransponível”, como também abolem “as fronteiras espaço-temporais”. Por serem “lugares mentais”, assim como a biblioteca de Babel de Borges ou o inventário de Foucault,5 5 Inventário que é recuperado da obra de Borges em As palavras e as coisas por Michel Foucault. Foucault parte de uma estranha enciclopédia chinesa: “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas” (FOUCAULT, 2007, p. IX). eles não têm limites. Esses lugares - e a poesia aparece como um lugar - são como uma biblioteca, uma morada.

É Jacques Derrida quem recupera, do grego, um dos desígnios dado pela história à palavra biblioteca: “bibliotheke [diz ele] designa o compartimento para um livro, o lugar dedepósitodos livros, o lugar onde sepõem,depositam,deixam repousar, o lugar onde seguardam em depósitoouarmazenamos livros” (DERRIDA, 2004DERRIDA, Jacques. O livro por vir. In: DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. p. 19-34., p. 21). Palavras importantes para se pensar a construção dos poemas de Golgona Anghel. A minha hipótese é essa: as palavras que o próprio Derrida grifa nesse fragmento são fundamentais para se pensar o procedimento poético de Anghel: “pôr”, “depositar”, “repousar”, “guardar em depósito” ou “armazenar”. Seus poemas parecem, como explica Alberto Manguel acerca de sua própria biblioteca (MANGUEL, 2006MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 20), clamar inesperadamente por outros poemas, por outros autores, por outros objetos, “criando alianças entre séculos e culturas diferentes”. É como se “um verso recordado pela metade [encontrasse] eco num outro, por razões que, à luz do dia, permanecem obscuras” (MANGUEL, 2006MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 20). Prigent chegou a apontar em algumas fotomontagens de Muriel Pic uma atividade “de costura, eternamente feita, desfeita e refeita, do folheado acelerado e do brilho fixo (depois tudo é desafixado com a mesma rapidez e mexido novamente) pode ser uma metáfora do trabalho da escrita” (PRIGENT apudPIC, 2015PRIGENT, Christian. Na casa dos homens. In: PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. p. 7-12., p. 8). As mãos que são costuradas aos livros na fotomontagem a seguir - como se a biblioteca fosse uma grande tapeçaria - apontam para um procedimento de corte e costura que se aproxima de Anghel. A mão escreve/costura continuamente. Ou ainda: recuperando o título da obra de Compagnon em francês: La seconde main - que para nós, em português, aponta para uma segunda demão de tinta.

Figura 2 -
PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Belo Horizonte: Relicário, 2015PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. .

Trata-se, nos poemas de Anghel ou nas fotomontagens de Pic, da construção de mais uma biblioteca de Babel - de uma Babel [imaginária] e feliz. E aqui, recupero a expressão “babel feliz” de um texto de Teresa Cerdeira intitulado “A literatura é babel feliz”: Diz ela que essa biblioteca é “[alegoria] de uma produção humana, já agora não mais punida pelos deuses, ou - se quisermos - inutilmente punida, porque os homens descobriram o poder de reverter a confusão (que lhes fora imposta como castigo) em fusão prodigiosa que nasce de uma saudável convivência com a diversidade” (CERDEIRA, 2012CERDEIRA, Teresa. A Literatura é Babel feliz. Revista Metamorfoses, Lisboa, v. 12, n. 1-2, p. 193-200, 2012., p. 193). Deus, diz a lenda, segundo Manguel, inventou a pluralidade das línguas para impedir que trabalhássemos em concerto, mas, na verdade, não só multiplicou nossos poderes como instaurou uma oficina de leitores - irritada às vezes, “um lugar onde os livros fossem preservados infinitamente” (MANGUEL, 2006MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 33).

Citação, cintilação. Cintilação, citação: o que se produz com essas imagens [e eu acrescentaria com os poemas de Golgona Anghel] é o que Mallarmé chamaria de explosão do livro/do poema em imagens forjando um outro céu.

Existe também uma outra questão suscitada pelo trabalho empreendido por Anghel em sua poesia. Trata-se da recuperação/citação, por exemplo, de uma personagem extremamente importante - mas marginal no quesito de personagens principais - criada por Eça de Queirós no realismo português. Essa recuperação coloca a biblioteca em movimento. Leiamos a seguir o poema de Golgona Anghel, publicado no livro Vim porque me pagavam (de 2011):

PORQUE FALTA MEIA HORA ANTES DE tomar o comprimido para dormir, porque mesmo depois de tanto tempo fazes de mim o filho com síndroma de Down de Arthur Miller, porque escrever não é só abrir cabeças com o bisturi de Lacan, e porque um poema não é a Isabella Rossellini a chorar todos os sábados à noite, nem o casal encontrado abraçado na paralisia bucal do Vesúvio. Porque a poesia não é a ponte Mirabeau num cartaz de néon da adolescência, porque hoje, quando ligaste, era apenas porque te tinhas enganado no número, porque estou cansado, voilà, e não consigo evitar a noite, penso agora em ti, Juliana, heroína no sentido naturalista do termo, penso sobretudo no teu arzinho de provocação e de ataque. Podias ter sido a Maria Eduarda do cinema norte-americano, a rapariga que ajudou a pôr fim à guerra no Vietname, a Frida Kahlo e o Kofi Annan, a estátua de Notre Dame. O teu sentido reformista, o teu olhar de Eça socialista, cá está, tinhas cabeça para embaixadora da boa vontade, pés para andar nos corredores da ONU, o feitio da botina, a mania, a despesa. Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido, de cara para a parede enquanto 20 repúblicas foram perpetuando campanhas eleitorais e golpes de estado nos jornais com os quais limpas os vidros da cozinha. Coitada, coitadinha, coitadíssima, permaneces na sala, um pouco pálida e fraca, mas restituída aos deveres domésticos e aos prazeres da sociedade! O feitio da botina, a mania, a despesa, o cheiro a terebintina. Ó Juliana Couceiro Tavira, per omnia saecula, chega para cá a garrafa e o cinzeiro; temos assuntos por tratar e meia hora de critérios. (ANGHEL, 2011ANGHEL, Golgona. Vim porque me pagavam. Lisboa: Mariposa Azual, 2011., p. 7-9).

Encontramos nesse poema alguns elementos, autores e personagens, por exemplo, que também foram recortados de outros lugares: Arthur Miller, Lacan, Juliana, Jornais, Frida Kahlo, Kofi Annan, a estátua de Notre-Dame, ONU, Eça e, inclusive, a descrição da imagem de “um casal encontrado abraçado / na paralisia bucal do Vesúvio”. O poema parte de algo extremamente cotidiano - uma das marcas da poesia contemporânea já identificada por muitos críticos. Os primeiros versos do poema dizem: “Porque falta meia hora antes de tomar o comprimido para dormir”. É um poema que antecede a noite e que não pode evitá-la: o poema se ergue como um gesto noturno que aponta para uma construção com os restos do dia, com os restos de outros tempos. Durante a noite tudo retorna, tudo reaparece - é o momento/lugar da aparição das coisas que durante o dia permaneceram muitas vezes em esquecimento. A noite, no poema, não aparece como um lugar acolhedor ou mesmo de repouso. A noite do poema não acolhe: ela revela.

Há um certo pensamento em torno da poesia: “escrever não é só abrir cabeças/com o bisturi de Lacan” - e mais uma vez o poema retoma a questão do corte, do rasgo. Os livros de Anghel são atravessados por inúmeros instrumentos de corte que fazem “passar entre [o poema] e [a] pele [das coisas] a fina lâmina de uma faca de escritura” (BENNINGTON, 1996BENNINGTON, Geoffrey. Jacques Derrida por Geoffrey Bennington e Jacques Derrida. Tradução de Anamaria Skinner; Revisão técnica de Márcio Gonçalves. Rio de Janeiro: Zahar, 1996., p. 171). Como uma flor de plástico na montra de um talho já carrega com o seu título o lugar do corte e retoma, na sessão “fome e pedagogia”, navalhas, garras, canetas e inúmeros outros instrumentos agudos. Não se trata de um corte aleatório: escrever não é apenas cortar, abrir, rasgar uma história, uma tradição, uma narrativa. Trata-se de um trabalho de abertura que, depois, requer também um trabalho de construção.

Trata-se também de um procedimento de anatomia. Segundo o antropólogo francês David Le Breton (2016LE BRETON, David. Antropologia do corpo. Tradução de Fábio dos Santos Creder Lopes. Petrópolis: Vozes, 2016.), a anatomia é uma ciência do corte: o corte estabelece e identifica as articulações, os órgãos e as suas posições no interior de um corpo, seja ele qual for - o corpo do poema/da escrita no nosso caso -, que se apresenta visivelmente como uno. É a partir dessa perspectiva sobre a anatomia que podemos pensar que os poemas de Golgona Anghel operam por meio de alguns procedimentos que os desunificam: mostrando inclusive os seus elementos que normalmente seriam tidos como intrusos: “o intruso se introduz à força, de surpresa ou por astúcia” (NANCY, 2014NANCY, Jean-Luc. O intruso. Tradução de Aluísio Pereira de Menezes. Polichinelo Revista Literária, Rio de Janeiro, 2014., p. 23). O trabalho de reconstrução rasura o corpo do poema. O corte operado pela poeta deixa uma marca, uma diferença (a différance). Aqui, talvez, o sentido seja mais amplo: ele ainda assume o princípio de rasura e de metáfora da memória. O texto/tecido reconstruído resguarda uma memória, uma sobrevivência. O trabalho de citação parece a tentativa de reconstrução de um tecido rasgado. Esse trabalho/esforço deixa para nós, leitores, um sinal visível, mostrando quase que imediatamente os contornos de uma prática.

A noite do poema não acolhe. A noite do poema revela. A noite do poema nos conta uma outra história. O poema evoca o nome de Juliana, personagem de O primo Basílio: episódio doméstico (1878). Retomo o subtítulo, que é, muitas vezes, apagado, para pensar a sua relação com o episódio doméstico resgatado pelo começo do poema - falta meia hora para tomar o comprimido. Juliana é, no poema, uma aparição, uma citação, um fantasma noturno. Ela é desenraizada, para manter uma expressão de Compagnon, da obra de Eça de Queirós. Juliana é como outra Annabel Lee deixada cair por um corvo: “esticam-lhe a pele”, seus “ossos” são redistribuídos (“o teu olhar”, “tinhas cabeça”, “pés para andar”). O pensamento destinado a essa personagem - “penso agora em ti, Juliana” - faz parecer que uma grande parte do poema possa ser pensada como uma carta endereçada a ela.

E de cartas Juliana entende muito bem:

- A senhora não me faça sair de mim! A senhora não me faça perder a cabeça! - E com a voz estrangulada através dos dentes cerrados: - Olhe que nem todos os papéis foram pra o lixo! Luísa recuou, gritou: - Que diz você? - Que as cartas que a senhora escreve aos seus amantes, tenho-as eu aqui! E bateu na algibeira, ferozmente. Luísa fitou-a um momento com os olhos desvairados e caiu no chão, junto à causeuse, desmaiada. (QUEIRÓS, 2011QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 221).

“A senhora não me faça sair de mim!” - Juliana, no poema de Anghel, sai de si. Na leitura que proponho, não se trata obviamente de uma carta que, abandonada, é recuperada do lixo pela simples empregada para chantagear Luísa. Não se trata de uma carta de amor que Luísa escreve para Basílio, mas de uma carta que uma poeta mulher, um pouco mais de um século depois, parece endereçar a própria Juliana. É a sua vez de recebê-las. Essa carta/poema acolhe Juliana e de certo modo questiona as terríveis estruturas sociais que permanecem.

Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido, de cara para a parede enquanto 20 repúblicas foram perpetuando campanhas eleitorais e golpes de estado (ANGHEL, 2011ANGHEL, Golgona. Vim porque me pagavam. Lisboa: Mariposa Azual, 2011., p. 7-9).

Vemos Juliana por outra perspectiva - a sua imagem persiste, peregrina: “tinhas cabeça para embaixadora da boa vontade, / pés para andar nos corredores da ONU”. Juliana ganha inclusive uma certa dignidade quando ocupa esses outros espaços que antes lhes eram privados: da narrativa para o poema, do seu cacifo húmido para os corredores da ONU, de personagem secundária de uma narrativa portuguesa para heroína do cinema norte-americano. Pedro Eiras parece apontar para uma questão interessante que corrobora com essas minhas reflexões quando escreve em um texto intitulado “Na cidade de Golgona Anghel” (2007), publicado na revista Relâmpago: “Na verdade, todas as condições estão reunidas para que os supérfluos e os precários possam reivindicar uma experiência de pertença ao espaço que habitam” (2007, sem página). Por meio de uma narrativa poética pessoal atravessada pela repetição de algumas palavras - como, por exemplo, “porque”, “penso” - nos é apresentado “a história de pequenas resistências de pequenos heróis, ou anti-heróis, pequenas heroínas, ou anti-heroínas”.

Em “Vozes, margens, resistência”, Pedro Eiras também apontou: “o emprego precário [e cabe pensarmos a posição de Juliana] não são escolhas nem oportunidades, mas uma consequência - catastrófica - de políticas que criam margens” (EIRAS, 2020EIRAS, Pedro. Vozes, margens, resistência. In: DIAS, José Carlos, FIGUEIRA CARDOSO, Samuel (org.). Vozes nas Margens: estudos de língua e cultura sobre temas marginais dos países de língua portuguesa. Varsóvia: Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Universidade de Varsóvia, 2020. p. 13-29., p. 21). Golgona Anghel, ainda segundo Pedro Eiras, descreve “formas de precariedade e sobrevivência” - e a palavra sobrevivência é pensada aqui a partir de uma dupla acepção, ética e política: como trabalho de citação e como trabalho que reflete sobre questões da sociedade.

Carlos de Oliveira, em 1965, traçou uma importante consideração sobre a poesia de sua época em um livro híbrido intitulado Aprendiz de feiticeiro:

Mutações bruscas, cortes radicais com o passado literário, parecem-me inviáveis. Começar outra vez a poesia portuguesa como se ela acabasse de nascer? Desculpem-me (os espíritos ‘cultos’) a imagem camponesa, mas a enxertia faz-se na árvore que já existe. Para a revitalizar ou para conseguir frutos diferentes que trazem, no entanto, um pouco do sabor, da textura anteriores. (OLIVEIRA, 1979OLIVEIRA, Carlos de. O aprendiz de feiticeiro. Lisboa: Sá da Costa, 1979., p. 199).

A citação é curiosa e só aparentemente parece ir na contramão daquilo que foi postulado por Antoine Compagnon. Ainda há, na citação de Carlos de Oliveira, o corte. A “imagem camponesa” do enxerto é, segundo o dicionário, uma “operação que consiste em inserir um ramo ou rebento de uma planta em outra sobre a qual ela continua a viver. O enxerto permite a reprodução e a multiplicação das árvores ou dos arbustos florais ou frutíferos”. Imagem bela para se pensar a disseminação das imagens. Isso significa que o poeta não estabelece um corte brusco com o passado, mas que ele elabora uma escrita que responde a um certo binômio leitura e escrita - corte e enxerto - como disse uma vez Teresa Cerdeira.6 6 Trata-se de um texto publicado em “Reler Portugal em Pessoa em Camões” (CERDEIRA, 2000).

Isso só nos mostra o quanto essa biblioteca “insiste em ser sempre outra coisa, desde sempre impura e contaminada por outras línguas, dramatizando em seu corpo a impossibilidade de fixação do sentido, do destinatário e da origem” (SISCAR, M.; NATALI, 2015SISCAR, Marcos; NATALI, Marcos. Margens da democracia. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da USP, 2015., p. 292). O poema de Anghel é aquele que hospeda e acolhe: aquele que cede “uma hospitalidade generosa ao outro gênero, ao outro de qualquer gênero que venha parasitá-lo, habitá-lo ou manter seu hospedeiro” (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. Gêneses, genealogias, gênero e o gênio. Tradução do francês de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005. , p. 22). Assim, autores, poemas, livros, filmes, objetos “atravessam”, de alguma maneira, o poema e o transformam. Recortar, repetir, elaborar: com essas imagens recortadas e coladas - enxertadas - em uma nova superfície, a repetição não funciona como reprodução automática, mas como uma produção da diferença: “o corte”, “corte e repetição”, “a insistência”, “o verso”, são então alguns modos de operar identificados como aquilo que espalha.

Muitas vozes são trazidas ao poema e o potencializam. Trabalho de escuta e leitura. Foi Wolfgang Iser em O ato da leitura que pensou sobre a potencialidade do texto: “o leitor passa por diversos pontos de vista oferecidos pelo texto e relaciona suas diferentes visões e esquemas, ele põe a obra em movimento, e se põe ele próprio igualmente em movimento” (ISER, 1996ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996. v. I. , p. 34). Os poemas de Anghel são também a voz e o olhar de um leitor, ou de inúmeros leitores. São os olhos, que, como na fotomontagem de Muriel Pic, apontam para tantas direções. São os livros, são as estantes, são os versos que constroem uma biblioteca viva, uma biblioteca como o bibliotecário de Arcimboldo: como um corpo composto - com carne, com pele e com ossos de livros. A Figura 2 e a Figura 3 mostram aquilo que nos ajuda a ler não apenas as fotomontagens de Muriel Pic, mas também os poemas de Golgona Anghel: “ato de leitura de um livro que está sempre em movimento, escrevendo-se e reescrevendo-se” (PIC, 2015PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. , p. 88).

Figura 3 -
PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Belo Horizonte: Relicário, 2015PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens. Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. .

Com Golgona Anghel a mulher entra no circuito da literatura produzindo importantes efeitos de leituras - provocando o cânone e, sobretudo, provocando as estruturas que durante muito tempo fundamentaram a crítica de poesia. A biblioteca imaginária de Anghel se fundamenta “na ausência de um saber único (a tradição, a certeza, a verdade, [o cânone]) e [se] abre ao desejo de saber” (SILVA, 2002SILVA, Edson. O museu imaginário e a difusão da cultura. Revista Semear, Rio de Janeiro, n. 6., p. 187-196, 2002., p. 196): com a confrontação das obras, com a criação de diálogos, com um trabalho da citação - é uma outra voz capaz de abrir o discurso e de pôr em movimento estruturas que teimam em permanecer intocáveis. É a mulher que agora “alevanta” o seu discurso tal como aquele poeta “bicho da terra tão pequeno”. Anghel constrói pequenas bibliotecas; e eu poderia dizer que, de fato, a poesia portuguesa contemporânea se assemelha a uma biblioteca: ela não expulsa nenhum poeta, não expulsa nenhum elemento, mas os acolhe e os abriga fazendo ressoar aquele idioma desconhecido ou de que talvez nunca se tenha ouvido falar (pelo menos ainda): a poesia de Golgona Anghel é ela própria como um idioma que se constrói.7 7 Merleau-Ponty escrevia: “(...) o escritor é ele próprio como um idioma que se constrói”. Publicado na Revue de métaphysique et demorale, out-dez. 1962, p. 407 (DERRIDA, 2014, p. 14). Esse me parece ser o princípio de um de seus fundamentos. O que temos com essa poeta é uma revolução como só uma biblioteca poderia suscitar.

Referências

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  • ANDRADE, Mario. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Organizadores: Miguel Sanches Neto e Silvana Oliveira. Chapecó: Editora UFFS, 2019.
  • ANGHEL, Golgona. Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho Porto: Assírio & Alvim, 2013.
  • ANGHEL, Golgona. Vim porque me pagavam Lisboa: Mariposa Azual, 2011.
  • BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2019.
  • BENNINGTON, Geoffrey. Jacques Derrida por Geoffrey Bennington e Jacques Derrida Tradução de Anamaria Skinner; Revisão técnica de Márcio Gonçalves. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
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  • COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
  • DERRIDA, Jacques. Che cos`é la poesia? Tradução de Tatiana Rios e Marcos Siscar. Inimigo Rumor, Rio de Janeiro, n. 10, p. 113-116, maio 2001.
  • DERRIDA, Jacques. Força e significação. In: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2014.
  • DERRIDA, Jacques. O livro por vir. In: DERRIDA, Jacques. Papel-máquina Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. p. 19-34.
  • DERRIDA, Jacques. Gêneses, genealogias, gênero e o gênio Tradução do francês de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005.
  • EIRAS, Pedro. Na cidade de Golgona Anghel. Relâmpago: O Poeta na Cidade, n. 39-40, s/p, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.relampago.pt/opoetanacidade/o-poeta-na-cidade-sumario.html Acesso em: 09 nov. 2021.
    » https://www.relampago.pt/opoetanacidade/o-poeta-na-cidade-sumario.html
  • EIRAS, Pedro. Vozes, margens, resistência. In: DIAS, José Carlos, FIGUEIRA CARDOSO, Samuel (org.). Vozes nas Margens: estudos de língua e cultura sobre temas marginais dos países de língua portuguesa. Varsóvia: Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Universidade de Varsóvia, 2020. p. 13-29.
  • FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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  • LE BRETON, David. Antropologia do corpo Tradução de Fábio dos Santos Creder Lopes. Petrópolis: Vozes, 2016.
  • MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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  • PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015.
  • POE, Edgar Allan. A filosofia da composição Prefácio de Pedro Süssekind. Tradução de Léa Viveiros de Castro, Fernando Pessoa e Machado de Assis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
  • PRIGENT, Christian. Na casa dos homens. In: PIC, Muriel. As desordens da biblioteca; fotomontagens Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2015. p. 7-12.
  • QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio Porto Alegre: L&PM, 2011.
  • SILVA, Edson. O museu imaginário e a difusão da cultura. Revista Semear, Rio de Janeiro, n. 6., p. 187-196, 2002.
  • SISCAR, Marcos; NATALI, Marcos. Margens da democracia Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da USP, 2015.
  • 1
    Essas considerações de Shoshana Felman aparecem em um texto intitulado “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”. O texto faz parte do livro Catástrofe e representação, organizado por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva e publicado pela editora Escuta em 2000.
  • 2
    Trata-se de: GUIMARÃES, Raquel Beatriz Junqueira.; SOUZA, Raquel S. Madanêlo. Os poetas e a poesia de Língua Portuguesa: trajetórias e projetos.Scripta, v. 24, n. 52, p. 9-14, 18 dez. 2020.
  • 3
    As asas do albatroz, capturado pelos homens das equipagens, como disse Antonio Candido, “foram feitas para planar nas alturas, não para rastejar na vulgaridade quotidiana” (CANDIDO, 2004. p. 13). O poema de Baudelaire constrói a imagem dos primeiros passos de um poeta/albatroz/poema. É por meio do rastejar desse albatroz que o poeta alegoriza a perda da altura e a queda do sublime.
  • 4
    Trata-se de uma entrevista realizada no XXVIII Congresso Internacional da ABRAPLIP - Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (2021). Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=I1pgSaqmck8
  • 5
    Inventário que é recuperado da obra de Borges em As palavras e as coisas por Michel Foucault. Foucault parte de uma estranha enciclopédia chinesa: “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas” (FOUCAULT, 2007FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. IX).
  • 6
    Trata-se de um texto publicado em “Reler Portugal em Pessoa em Camões” (CERDEIRA, 2000CERDEIRA, Teresa Cristina. O avesso do bordado. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.).
  • 7
    Merleau-Ponty escrevia: “(...) o escritor é ele próprio como um idioma que se constrói”. Publicado na Revue de métaphysique et demorale, out-dez. 1962, p. 407 (DERRIDA, 2014DERRIDA, Jacques. Força e significação. In: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2014., p. 14).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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