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Arte de combate: a atuação de Mário de Andrade na Era Vargas

Combat art: Mário de Andrade's performance in the Vargas Era

Resumo

A partir do poema “Abre-te boca e proclama”, do livro Lira paulistana (1945), de Mário de Andrade, este artigo analisa a relação entre produção intelectual e censura na Era Vargas, como um dos ecos da Segunda Guerra Mundial no contexto brasileiro. A Era Vargas foi marcada por um governo autoritário que recorreu à censura e à propaganda para manter seu funcionamento político populista por meio da cooptação de intelectuais para compor o funcionalismo público. Exercendo uma dupla função, muitos autores utilizaram de diferentes artifícios para publicarem suas obras ou fizeram uso das diferentes formas de silenciamento para conciliarem suas funções, pois o Estado era, também, o caminho possível para a realização do bem coletivo. Desse modo, a escrita literária necessitava de cautela e sabedoria para ser, ao mesmo tempo, uma arma contra o governo Vargas, e um caminho para a democratização da cultura no país.

Palavras-chave:
Era Vargas; censura; silenciamento; Mário de Andrade

Abstract

Based on the poem “Abre-te boca e proclaima”, from the book Lira Paulistana (1945), by Mário de Andrade, this article analyzes the relationship between intellectual production and censorship in the Vargas era, as one of the echoes of the Second World War in the Brazilian context. The Vargas era was marked by an authoritarian government that resorted to censorship and propaganda to maintain its populist political functioning, by co-opting intellectuals to make up the civil service. Exercising a dual function, many authors used different artifices to publish their works or made use of different forms of silencing to reconcile their functions, as the State was also the possible way to achieve the collective good. Thus, literary writing needed caution and wisdom to be, at the same time, a weapon against the Vargas government, and a path to the democratization of culture in the country.

Keywords:
Vargas Era; censorship; silencing; Mário de Andrade

Résumé

A partir du poème “Abre-te boca e proclama”, du livreLira Paulistana(1945), de Mário de Andrade, cet article analyse la relation entre production intellectuelle et censure dans l’Ère Vargas, comme l’un des échos de la Seconde Guerre Mondiale dans le contexte brésilien. L’Ère Vargas a été marquée par un gouvernement autoritaire qui a fait recours à la censure et à la propagande pour maintenir son fonctionnement politique populiste, en cooptant des intellectuels pour composer la fonction publique. En exerçant une double fonction, de nombreux auteurs ont utilisé différents artifices pour publier leurs œuvres ou se sont servis de différentes manières de se taire pour concilier leurs fonctions, littéraire avait besoin de prudence et de sagesse pour être, à la fois, une arme contre le gouvernement Vargas, et une voie vers la démocratisation de la culture dans le pays.

Mots-clés:
Vargas; censure; se taire; Mário de Andrade

Os anos de 1930 e 1940 marcaram, no Brasil, o acirramento das tensões sociais e políticas provenientes da modernização do país, resultando em um fechamento político autoritário: a ditadura do Estado Novo. Nesse contexto, após vivenciar o momento eufórico de 1920 e a redescoberta do Brasil, autores como Mário de Andrade enfrentaram problemas que ameaçavam a continuidade da busca pela identidade nacional.

A produção de Mário de Andrade caminhava rumo às questões sociais, principalmente sobre a consciência da luta de classes e seus descaminhos. Apesar disso, Mário de Andrade não aderiu a uma carreira ativista, tal como a de Oswald de Andrade no Partido Comunista e a de Antônio Alcântara Machado na corrente do liberalismo. Os posicionamentos políticos de Mário, comentados pela crítica, partem de algumas especulações, como sua atuação no Partido Democrático, nunca admitida pelo poeta. Isso, possivelmente, devido a sua relação com a elite oligárquica de São Paulo.

A busca por um sentido social da arte intensificou-se na fase final da obra de Mário de Andrade, fato observado por João Luiz Lafetá (2004LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite e outros ensaios. São Paulo: Duas cidades, 2004.) como pertencente à categoria do “poeta político”, na qual constam as obras: Café (1955), O carro da miséria (1945) e Lira paulistana (1945). Este estudo foi feito a partir das considerações de Antonio Candido sobre as várias facetas da obra marioandradiana, denominadas posteriormente pela crítica literária de “máscaras” para expressar a diversidade de interesses presente em sua obra. Para Lafetá, a leitura da obra de Mário de Andrade, assim como sua classificação, feita por Candido, indica a riqueza da poética do autor, pois organiza a sua “diversidade de interesse”. Todavia, nessa categorização há a ausência dos três últimos livros de poesia escritos por Mário, os quais ainda não eram públicos na época em que Antonio Candido fez tais considerações. João Luiz Lafetá (2004LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite e outros ensaios. São Paulo: Duas cidades, 2004., p. 304) acrescenta à esquematização dos aspectos, das maneiras e dos temas “o poeta político, a maneira de combate engajada e o tema do choque social, presentes em O carro da miséria, Lira paulistana e Café”.

Esses escritos perpassaram o período do Governo Provisório ao Estado Novo (1937-1945). Momento delicado para a produção artística em geral, assim como para Mário de Andrade, que não sofreu uma repressão radical como as prisões e torturas comuns para os intelectuais opositores do regime, mas foi ameaçado, como demonstrava em algumas cartas, a exemplo da correspondência trocada com Paulo Duarte, na qual confessava que “em diversos momentos muito penosos da estada no Rio de Janeiro, imaginou que também era perseguido e temia, nas situações mais corriqueiras, ser surpreendido pela polícia” (JARDIM, 2005JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005., p. 29). Mário dizia viver angustiado em razão das consequências das guerras e do contexto político do Brasil, e “algumas vezes, relacionou o seu sentimento a ameaças bem localizadas, que tinham a ver com o ambiente político repressivo da época” (JARDIM, 2005JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005., p. 29), pois além de ser demitido do Departamento de Cultura foi censurado em algumas publicações e cartas pessoais.

Em carta escrita para Alphonsus Guimarães Filho, Mário de Andrade disse que se O carro da miséria fosse publicado ele certamente iria para a cadeia. Em correspondências endereçadas a Pio Lourenço, Mário ressaltou as intervenções feitas pela ditadura quando ele se referia à cidade de São Paulo de forma melancólica, como em um artigo escrito para ser publicado n’O Diário de São Paulo: “falei na “tristeza atual dos paulistas” e a censura cortou. É proibido ser triste” (ANDRADE; CORRÊA, 2009ANDRADE, Mário; CORRÊA, Pio Lourenço. Pio e Mário: diálogo da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1917-1945. Traços biográficos: Antonio Candido; introdução: Gilda de Mello e Souza; estabelecimento do texto e notas: Denise Guaranha; estabelecimento do texto, das datas e revisão ortográfica: Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul; São Paulo: SESC SP, 2009., p. 234). Novamente em carta enviada para Pio Lourenço, no mesmo ano, 1933, Mário de Andrade falou sobre o período autoritário no país:

Não lhe falo de política, não vale a pena. Mas quero lhe contar que outro dia, num artigo meu, a Censura cortou um trechinho em que eu falava na “surda tristeza que mancha agora a terra paulista”. Está proibido aos paulistas se dizerem tristes! Isso me faz pensar num filme famoso, Lírio partido, em que o sacana do velho dava que dava na menina e depois mandava ela rir, porque senão apanhava mais. Então a pobrezinha punha as mãos nas comissuras dos lábios, e as empurrava pra cima, na feição de quem ri... É São Paulo, que os brasileiros agora não cansam de admirar. (ANDRADE; CORRÊA, 2009ANDRADE, Mário; CORRÊA, Pio Lourenço. Pio e Mário: diálogo da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1917-1945. Traços biográficos: Antonio Candido; introdução: Gilda de Mello e Souza; estabelecimento do texto e notas: Denise Guaranha; estabelecimento do texto, das datas e revisão ortográfica: Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul; São Paulo: SESC SP, 2009., p. 231).

Além de fazer referência ao que a censura considerava publicável ou não, Mário apresenta uma descrição de extrema importância referente ao que ele não podia falar: “a tristeza da terra paulistana”. As obras marioandradianas, em geral, fazem alusão à São Paulo real como uma urbe alegre em pleno crescimento urbano. Todavia, a partir da década de 1930 a problematização do contexto nacional e mundial ganha notoriedade na manifestação artística, momento caracterizado por Mário, na correspondência em questão, como uma “mancha” a ser silenciada.

Para Denis Rolland (2003ROLLAND, Denis. O estatuto da cultura no Brasil do Estado Novo: entre o controle das culturas nacionais e a instrumentalização das culturas estrangeiras. In: BASTOS, Elide; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e política, Brasil - França. São Paulo: Cortez, 2003. p. 197-212., p. 85) havia no Brasil uma ditadura ambígua, pois “o aspecto autoritário não é de modo algum contestado: o regime progressivamente instalado é, sem dúvida, autoritário e a estimativa de mil prisioneiros políticos confirma que o presidente Getúlio Vargas não é democrático”. Para controlar as informações transmitidas ao povo por meio da imprensa, o governo brasileiro reformulou o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), que já orientava a imprensa brasileira desde 1931 e, no ano de 1939, instituiu o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), por meio do Decreto-lei nº 1915 de 27 de dezembro de 1939, um aparato próprio para evitar a chegada de informações contrárias ao governo, podendo provocar ataques ao regime vigente. Para isso, no DIP a censura desempenhava papel central por meio de três objetivos principais:

  1. Centralizar, coordenar, orientar e supervisionar a propaganda nacional, interna e externa [...] de agente complementar à informação.

  2. Censurar o teatro, o cinema, os lazeres e o esporte [...] a literatura social e política e a imprensa.

  3. Promover, organizar, patrocinar manifestações [...] que revelem as atividades governamentais [...] nacionais e estrangeiras. (ROLLAND, 2003ROLLAND, Denis. O estatuto da cultura no Brasil do Estado Novo: entre o controle das culturas nacionais e a instrumentalização das culturas estrangeiras. In: BASTOS, Elide; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e política, Brasil - França. São Paulo: Cortez, 2003. p. 197-212., p. 85).

Com um órgão controlador da imprensa, o governo garantia sua boa reputação perante a população e, apesar desse regimento datar do ano de 1939, a Era Vargas já havia iniciado o controle dessas atividades, inclusive no tocante à concessão de uma liberdade relativa à criação no campo cultural. Muitos veículos de comunicação da época foram fechados por publicarem ideias contrárias aos ideais do governo, como O Estado de S. Paulo. Intelectuais foram perseguidos e presos, como Graciliano Ramos (1936) e Monteiro Lobato (1941). Outros não chegaram a ser presos, mas sofreram repressão e vigília por parte do governo, como Mário de Andrade.

Na carta anteriormente citada, escrita por Mário no ano de 1933, é possível perceber como o governo controlava a criação artística para preservar a imagem do país. Para falar sobre a tristeza que manchava a terra paulista, Mário de Andrade utilizou a metáfora proveniente do filme “Lírio Partido”, para se referir, de forma indireta, a uma das metas do governo da Era Vargas: investimento abusivo na modernização e urbanização de São Paulo e descaso com os aspectos sociais da cidade. Ainda possuindo sérios conflitos de caráter humano, a cidade símbolo de modernidade no Brasil deveria ser “retratada” de forma admirável, mesmo sofrendo implicações negativas, ou seja, “apanhando mais e mais”.

Em Lira paulistana (1945), livro póstumo de Mário de Andrade, o eu-lírico apresenta uma relação indireta com o que se pode ou não dizer sobre a cidade de São Paulo no poema “Abre-te boca e proclama”:

Abre-te boca e proclama Em plena praça da Sé, O horror que o Nazismo infame É. Abre-te boca e certeira, Sem piedade por ninguém, Conta os crimes que o estrangeiro Tem. Mas exalta as nossas rosas, Esta primavera louca, Os tico-ticos mimosos, Cala-te boca. (ANDRADE, 1993ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléia Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 355).

Na primeira estrofe do poema há uma agressividade dirigida ao Nazismo e às injustiças sociais. Essa denúncia é intensificada com as marcas de paralelismo nas demais estrofes, seguidas de algumas modificações, mas preservando uma espécie de refrão símile, com a repetição de versos semelhantes, como na primeira e segunda estrofes cujos verbos no modo imperativo, “é” e “tem”, nos últimos versos da primeira e segunda estrofes, respectivamente, transmitem ideia de ordem e de reafirmação das críticas feitas.

O último verso da última estrofe também apresenta uma construção verbal similar aos dois versos finais da primeira e segunda estrofe: a entonação imperativa. Porém, a ordem dada é diferente, uma vez que “abrir” e “calar”, ações que acompanham as estrofes, evidenciam sentidos opostos. Há aqui uma alteração proposital, perceptível pelo verso “Mas exalta as nossas rosas”, substituindo os horrores existentes na Europa, e evidenciando o patriotismo nacional, cultuado pelo Estado autoritário da Era Vargas, em detrimento das atrocidades cometidas por outros governos autoritários e ditatoriais.

Assim, na primeira e segunda estrofe do poema, o eu-lírico menciona a possibilidade de denúncia das crueldades do nazismo e das atrocidades da Segunda Guerra Mundial, porém, na terceira e última estrofe, em um contexto nacional, prevalece a beleza da natureza brasileira. Esse verso é introduzido pela conjunção adversativa “mas”, nos permitindo pensar na ideia de contradição a respeito dos contextos apresentados, ou seja, é possível denunciar os problemas estrangeiros, mas os brasileiros, cujas causas também se encontram no modelo de vida americano e europeu adotado em terras nacionais, não devem ser mencionados. Por isso, há uma dualidade nos versos do poema, confrontando: “Abre-te X cala-te; Sé X Nazismo; crime X rosas”, sendo os vocábulos de carga negativa correspondentes ao contexto internacional e os de carga positiva ao contexto nacional, com exceção do verbo calar.

O eu-lírico, ao mencionar as rosas, primavera e tico-ticos da cidade de São Paulo, e ao finalizar a estrofe com o verso “cala-te boca”, o qual faz uma oposição aos versos principais da primeira e segunda estrofes “abre-te boca”, apresenta uma espécie de dualidade, pois o verbo “abrir” e “calar” seguidos do vocábulo “boca” fazem referência ao que é dito ou não dito na cidade. Desse modo, somos levados a refletir sobre o que era ou não possível de ser pronunciado a respeito da cidade de São Paulo, tal como as confissões feitas por Mário nas cartas enviadas para Pio Lourenço Correa.

Há uma possível associação, ainda, entre a “mancha” referenciada por Mário de Andrade na carta enviada para Pio Lourenço e a última estrofe do poema “Abre-te boca e proclama”, pois não sendo possível falar sobre a tristeza da cidade de São Paulo, fala-se da tristeza existente em outros locais, e ressalta-se as belezas do Brasil com intuito de amenizar os problemas existentes nesse país.

Nesse contexto da Era Vargas de controle do “poder dizer”, a imprensa brasileira e a produção artística e intelectual, do Governo Provisório ao Estado Novo (1930-1945), foram controladas pelo regime de censura que se instaurou no país, vigiando a literatura com cunho político e incentivando “as manifestações culturais que assimilavam os valores europeus e da elite” (ROLLAND, 2003ROLLAND, Denis. O estatuto da cultura no Brasil do Estado Novo: entre o controle das culturas nacionais e a instrumentalização das culturas estrangeiras. In: BASTOS, Elide; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e política, Brasil - França. São Paulo: Cortez, 2003. p. 197-212., p. 85). Não só as obras de Mário de Andrade que faziam referência à “tristeza” de São Paulo foram censuradas, mas também houve um controle na tradução de Macunaíma, o anti-herói criado por Mário que, com sua preguiça e malandragem, ia de encontro à ideologia civilizatória do Estado Novo. Sobre a tentativa de impedimento da tradução do livro, Mário disse para Portinari:

A respeito da Argentina, sabe o que me sucedeu? Quiseram publicar lá uma tradução do “Macunaíma” ilustrada pelo Caribé, mandaram ela pra eu aprovar. Mas a tradução foi pegada no aeroporto pela censura daqui, que ficou com ela vários dias e depois julgando-se incompetente pra decidir si o livro é contra o Estado Novo, ou coisa parecida, mandou os originais prá Censura aí do Rio! (ANDRADE, 1995ANDRADE, Mário de. Portinari, amico mio: cartas de Mario de Andrade a Portinari. Organização, introdução e notas de Annateresa Fabris. Campinas: Mercado de Letras; Autores Associados, 1995., p. 133)1 1 Annateresa Fabris, ao apresentar o livro de cartas entre Mário e Portinari, esclarece: “A ideia de traduzir Macunaíma para o espanhol é de Carybé que, na época, residia em Buenos Aires... O trâmite entre Carybé e Mário de Andrade é Newton Freitas, que encaminha ao escritor os trechos traduzidos para revisão e comentários. Da carta a Newton Freitas, de 16 de abril de 1944, constam maiores dados sobre a censura postal do Estado Novo: a tradução e os maiores dados sobre a censura postal do Estado Novo: a tradução e os desenhos originais de Carybé haviam sido apreendidos e enviados ao Rio de Janeiro, pois o chefe da censura de São Paulo não conseguira determinar se Macunaíma, publicado antes da Revolução de 1930, podia ser considerado apenas “um romance poético”. Mário de Andrade entrega o caso à Sociedade dos Escritores Brasileiros para tentar conseguir, pelo menos, a devolução do material à Argentina” (ANDRADE, 1995, p. 134). .

Perseguido pela censura do Estado Novo também em sua produção em prosa, Mário de Andrade também foi vítima de modificar a sua escrita com o intuito de torná-la publicável:

Você leia; tudo quanto achar que devo cortar, ou que devo acrescentar, mande dizer com franqueza. Meu único desejo é que o trabalho saia o menos péssimo possível, e pra isso conto com o auxílio de você. Como guardo cópia, basta você indicar pela página o que me aconselha a refazer. Creio que o Lula Cardoso Aires, já deve lhe ter falado sobre as dificuldades que tenho de mandar isso prà Argentina. Estou fichado na censura postal desde uma vez que pegaram uma carta minha enviada por intermédio de uma pessoa besta que se deixou pegar. Creio aliás que já lhe contei o que sucedeu com a tradução castelhana do Macunaíma, e ainda agora, já faz uns quatro ou cinco meses que saiu um livro meu, traduzido na Argentina, me telegrafaram de lá que já tinham enviado os exemplares que me são destinados, mas até agora nada. E justamente esse trabalho sobre você tem frases que excitarão os melindres, embora nunca excitem a honradez imaginária, do Governo nacional. Como fazer? (ANDRADE, 1995ANDRADE, Mário de. Portinari, amico mio: cartas de Mario de Andrade a Portinari. Organização, introdução e notas de Annateresa Fabris. Campinas: Mercado de Letras; Autores Associados, 1995., p. 148).

Demostrando seu interesse em publicar Macunaíma em outra língua, Mário de Andrade mostra-se disposto a alterar o conteúdo, palavras ou(e) trechos do livro com cautela para não prejudicar a qualidade da obra e não ser barrado pela censura.

Para Sérgio Miceli (2001MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 69-281.), os intelectuais poderiam se relacionar com o Estado de diferentes formas, como os escritores-funcionários e os funcionários-escritores. Ambos foram cooptados pelo Estado a submeterem-se ao regime, porém os primeiros escreviam textos com a finalidade de agradar o gosto das autoridades e os segundos buscavam meios para a realização de suas obras. Essa relação, porém, não se encerra de forma simples, pois é objeto de muita controvérsia por possuir mais de uma dimensão, como as relações entre intelectual/poder/cultura/política, admitindo análises diversas. Na voz de Norberto Bobbio (1909BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Unesp, 1909., p. 22) se o intelectual participa da “luta política com tanta intensidade que acaba por se colocar a serviço desta ou daquela ideologia, diz-se que ele trai sua missão de clérigo”2 2 Esse é o posicionamento de Julien Benda. , mas se, de outra parte, o intelectual “põe-se acima do combate […] para não trair e se ‘desinteressar das paixões da cidade’, diz-se que faz obra estéril, inútil, professoral”3 3 Já esse posicionamento corresponde ao autor Antonio Gramsci. . Assim, as teorias que classificam os intelectuais em “traidores” ou “não traidores” está longe de ter um consenso.

No Brasil, a repressão contra os intelectuais contrários ao governo se inicia anteriormente ao Estado Novo. Ela pode ser observada em toda a Era Vargas, como visto em cartas escritas por Mário de Andrade, nas quais se observa um controle do governo para com o intelectual desde 19334 4 Primeira carta escrita por Mário de Andrade, destinada a Pio Lourenço Correia, em que há confissões de intervenções do governo em seus textos. , pois no ano de 1931 já havia sido criado um Departamento Oficial de Propaganda (DOP), reformulado e fortalecido no ano de 1934, com uma nova nomenclatura: Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), sob responsabilidade do jornalista Lourival Fontes, simpático ao ideário fascista. Assim, a perseguição contra os opositores de Getúlio Vargas, principalmente os considerados comunistas, perpassa os anos de 1930 a 1945.

Um dos maiores exemplos é o escritor nordestino Graciliano Ramos, preso no ano de 1936 a mando da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), sem nenhuma acusação formal. O que se registra sobre a prisão de Graciliano são os inúmeros avisos do DOPS, recebidos em forma de bilhetes em seu gabinete, que não surtiram efeito. Em situação completamente oposta, Mário de Andrade deixou muito bem marcado o medo que sentia das repressões do governo, como as prisões, nos possibilitando pensar no artifício utilizado pelo autor para publicar suas obras literárias.

Como forma de controlar a funcionalidade do espaço público, os espaços destinados para representações foram determinados pelo governo, mas essas medidas “externas” foram também “substituídas pela autocensura, muito praticada, e pela troca comum e funcional da docilidade por diversos favores prestados” (ROLLAND, 2003ROLLAND, Denis. O estatuto da cultura no Brasil do Estado Novo: entre o controle das culturas nacionais e a instrumentalização das culturas estrangeiras. In: BASTOS, Elide; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e política, Brasil - França. São Paulo: Cortez, 2003. p. 197-212., p. 85). A autocensura foi um meio encontrado por Mário de Andrade para exercer um cargo público e publicar suas obras, mesmo sendo elas póstumas.

Por autocensura, cabe ainda acrescentar o silêncio e o silenciamento cujos conceitos, Eni Orlandi (1992), em As formas do silêncio, tenta delimitar. Para a autora, o silêncio é analisado a partir do que se considera “dizível” e “não dizível”, enquanto o silenciamento é colocar-se em silêncio sobre determinada significação, sendo a política do silêncio/silenciamento aquela em que “se obriga a dizer “X” para não dizer “Y”, “este ‘Y’ significará por outros processos, fato que dá lugar à ‘retórica da resistência’” (ORLANDI, 1992, p. 55). Quando se proíbe certas palavras com intuito de se proibir certos sentidos, se proíbe, também, “ao sujeito ocupar certos ‘lugares’, ou melhor, proíbem-se certas ‘posições” do sujeito’” (ORLANDI, 1992, p. 55), como foi proibido a Mário de Andrade, confesso apaixonado pela cidade de São Paulo, referir-se a ela como cidade “triste”.

Em alguns momentos de sua carreira, Mário de Andrade optou pelo silenciamento, como admite em carta enviada para Henriqueta Lisboa no ano de 1940:

E foi a disparada para o silêncio. Percebi logo o que havia de fictício, de imoral, de escrita para ganhar dinheiro, nas minhas croniquetas da Revista do Brasil e as abandonei. Os artigos para o Estado de S. Paulo foram suspensos. Mas depois me convidaram a continuar e não continuei. Veio o convite de Vamos Ler, recusei. Imaginava poder continuar, embora me machucando interiormente, a crítica literária do Diário de Notícias. Mas tive tais desgostos com ela estes últimos dois meses, censuras e incompreensões tão injustas, tão inesperadas, vindas de seres para mim tão insuspeitados que, agora, sim, apenas o egoísmo reagiu. E vou parar. (ANDRADE, 2010, p. 113).

Nesse momento, Mário abandona a ideia de escrever um romance, pois considerava que o Brasil vivia um momento delicado e o artista deveria contribuir com sua função social nesse contexto. A escrita engajada seria o caminho para isso, porém, diante de um governo controlador e autoritário, Mário de Andrade mostrava-se muitas vezes acuado, vencido pela limitação da expressão de pensamento, por ideias conflituosas entre alguns jovens modernistas que tinham maior autonomia no mercado editorial e jornalístico da época, também inseridos no contexto político do período:

Alguns que estão insistindo comigo para que continue, Henriqueta, me perseguem com o principal argumento de que sou “muito sensível a censuras injustas”... Sou mesmo. Sempre fui. Sempre sofri horrivelmente com as censuras injustas, em principal quando partiam de inimigos, e creio isto uma das belas partes do meu ser. No fundo de uma censura injusta. E toda desilusão não é ainda um ato de amor? Você poderá argumentar que muitas vezes não será uma desilusão que provoca a censura injusta, mas a simples incompreensão. Mas a incompreensão não será também um jeito de desiludir-se? Só chega à incompreensão quem procurou compreender, quem nos buscou e nos leu - o que é sempre um ato de amor. E assim se desilude de nós quem não nos compreendeu... É horrível, é horrível... Eu sinto que o meu ser inteiro se alarga, se alastra, se esfaz em amor. Eu sinto que “inimizade” é palavra imperfeita, brutal, simplória em seu negativismo vazio de sentido. E vazio de expressão. Não existe inimizade, o que existe são amizades contrariadas. E se a amizade é contrariada por aquilo que eu digo, eu me calo. Sei que isto não é jeito clarividente de amar e que as minhas de agora derivam em grande parte de um enfraquecimento moral, talvez momentâneo. Mas sempre bendito seja o amor capaz de uma renúncia!... (ANDRADE, 2010, p. 113).

Mário se viu diante de situações delicadas em vários momentos de sua vida, desde os movimentos dos salões, suas viagens de descoberta do Brasil, quando precisou modificar algumas de suas atitudes devido ao auxílio recebido pelos jovens modernistas, advindo do mecenato oligárquico de São Paulo. Porém, essa espécie de autocensura não percorre toda a trajetória de Mário de Andrade que quando não via no conformismo uma atitude sensata, mostrava-se resistente, sempre dentro dos limites da segurança:

Eu não era, nunc fui P.D., positivamente não são esses avatares democráticos do capitalismo que podem me satisfazer. Mas era colaborador do jornal do partido, o Diário Nacional. Por duas vezes, por solidariedade profissional (!) passei a noite inteirinha na redação (que não frequentava, escrevia meus artigos em casa) porque esta estava ameaçada pelo partido no poder. Como me analisei nessas duas noites de angústia... Eu estava ali pra quê! Por nenhuma espécie de coragem nem de convicção. À menor intuição de perigo, eu gelava, me sentia estremecer. Não tinha o menor gosto do perigo, daquela espécie de perigo. E o que mais me assombrava era a minha consciência violenta lúcida de dever. Eu sabia que daquelas numerosas pessoas entrincheiradas na redação, eu seria uma das poucas, pouquíssimas! destinadas a uma morte inevitável, Capangas, jornalistas, “amigos”, correligionários, eu via aquela gente impando de coragem, de ferócia, de sinceridade, de paixão, e desejo de luta. Lutariam não tem dúvida, mas o outro partido havia de vencer. Era o mais forte por ter a força na mão. E eu sabia que aquela gente havia de lutar com ardor mas... mas cederia diante da força maior e no momento oportuno! Quando muito algum arranhãozinho conciliatório, ótimo pra gene contar o caso depois. E o terrível, o amargo, o desolador pra mim é que eu não havia de ceder, eu não podia ceder! Havia em mim, sem nenhum heroísmo, a mais irrecorrível das convicções, não a do Partido, Deus me livre! mas a da posição tempestiva. E a isso ainda se ajuntava o meu dever moral pra com o diário em que colaborava e de que, por isso, aceitava de alguma forma, a orientação política. E eu sabia que só tinha um destino: morrer. Ceder eu não cedia mesmo, não era lugar para bom-senso nem senso-comum: era questão de exemplo. Nem de exemplo! Era questão simplesmente de ser. (ANDRADE, 2010, p.113)5 5 As sublinhas são do original. .

Nessa carta enviada para Henriqueta Lisboa, no ano de 1942, Mário de Andrade revela seu sentimento de medo e, ao mesmo tempo, a necessidade de superá-lo em momentos que careciam de seu apoio. Essa espécie de cobrança é característica no final da vida do autor e se reflete em algumas de suas publicações literárias, como em A meditação sobre o Tietê, com marcas de autoavaliação em que o poeta considera sua atuação ínfima perante o quadro político e social do Brasil.

Para Sérgio Miceli (2001MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 69-281., p. 162) as estratégias utilizadas por Mário de Andrade para se incorporar às estruturas de poder permitiram a ele alcançar um relativo êxito em sua carreira, sabendo atuar com “discernimento das clivagens político-partidárias, pela inteligência na escolha de parceiros, pela ousadia de lances e movimentos no xadrez da sociedade literária”. Muitos jovens modernistas que compartilhavam os mesmos espaços ocupados por Mário se filiaram a movimentos radicais de direita (integralismo) ou de esquerda (PCB, ANL), ou foram cooptados como cargos de cúpula no governo central. Além disso, na busca pela brasilidade surgiram duas vertentes políticas e ideológicas no Brasil: a primeira, vinculada a Oswald de Andrade, estava alinhada com uma visão mais esquerdista e tinha como objetivo denunciar a realidade brasileira, das quais se aproximavam mais as atitudes de Mário de Andrade. Já a segunda, nacionalista e ufanista, compartilhava dos ideais da direita, apreciando movimentos nazifascistas da Europa. Mário, “nutrido por variadas nascentes” como o catolicismo, as desilusões das grandes guerras e as campanhas nacionalistas, se manteve atrelado ao “dinamismo de agremiações políticas e consórcios empresariais na imprensa” (MICELI, 2001MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 69-281., p. 164). Assim, a grandeza da obra marioandradiana foi possível, também,

pelas ‘escolhas’ partidárias e ideológicas, pelas alianças com lideranças antivarguistas, pelo mandato político na prefeitura de Fábio Prado, enfim pelo surto febril da atividade cultural na emergente metrópole paulista: imprensa competitiva, editoras de porte, embrião de mercado de arte, espaços impulsionadores de iniciativas de risco (MICELI, 2001MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 69-281., p. 167).

Escolher a melhor atitude para cada situação fez parte do que Mário de Andrade considerou como sacrifício em sua obra e vida. Todavia, a partir do momento da instauração e do fechamento político e a restrição de liberdade, os intelectuais viveram situações conflitosas, tal como Mário, inserido em um local de muita burocracia estatal. Fazia parte do seu sacrífico, no entanto, suportar os trâmites administrativos em prol da democratização da arte, que, para o escritor, assim como para outros de sua geração, viu no Estado o caminho possível para a realização do bem coletivo.

Ao ingressar no serviço público, Mário de Andrade dedicou o seu tempo às tarefas mais práticas e pouco se destinou, comparado ao seu rendimento habitual, à produção artística. Porém, ele não abandonou seu exercício de escritor, como ele mesmo declarou em suas cartas; escreveu alguns poemas entre os anos de 1930 e 1940 que não foram publicados na época e compõem a chamada fase política de Mário de Andrade.

Sobre O carro da miséria, dedicado a Carlos Lacerda, um dos maiores opositores do governo Vargas, Mário justificava a sua não publicação por motivos políticos, como a repressão. Ao escrever Lira paulistana, cuja primeira anotação data de 1933, Mário de Andrade revelou que publicaria seus poemas mais violentos, nos quais a “tristeza paulista”, já censurada nos artigos do autor, era evidente. Assim, sua publicação, realizada apenas após a morte de Mário de Andrade, em 1945, data que marca também o fim do Estado Novo, não parece ser arbitrária, pois o poeta, também funcionário público, poderia ter lançado o livro em meados de 1940, mesmo recorrendo a uma linguagem cifrada para driblar a censura. Todavia, não foi essa a decisão tomada, pois Mário escreveu Lira paulistana com uma crítica aguçada à cidade, e organizou a sua publicação endereçada à responsabilidade de Antonio Candido, que “dois ou três dias” após a morte de Mário de Andrade recebeu um envelope grande, deixado por Mário sobre sua própria mesa endereçado ao crítico (SOUZA, 1994SOUZA, Antônio Candido de Mello e. A Lembrança que Guardo de Mário.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [S. l.], n. 36, p. 9-26, 1994., p. 15).

Com sua publicação após o término do Estado Novo não seria coerente considerar a predominância do silêncio em alguns poemas de Lira paulistana, ou seja, o poeta não diz tudo o que queria dizer, limitando-se na escolha dos vocábulos e no significado dos versos. Mas, é possível pensar nessa não publicação durante um governo autoritário como uma forma de “silenciamento” por um período de tempo, como uma espécie de autocensura, autopreservação do poeta, provavelmente para não comprometer seu cargo administrativo que lhe possibilitaria a democratização da arte e, até mesmo, para não ser mais um alvo das punições destinadas aos opositores da Era Vargas.

Em algumas obras de Mário de Andrade, como Macunaíma, Contos ´novos, Clã do jaboti e, também, Lira paulistana há concepções plurais, com abordagem dinâmica da cultura popular, com intuito de preservar um sentido mais inclusivo para a cultura. Mário de Andrade usa o termo arte de combate quando faz referências a publicações como essas, isto é, com uma atitude corajosa de enfrentamento, considerada por ele como uma forma de participação do intelectual, que não precisa “conspirar ou andar com bomba debaixo do braço” (ANDRADE, 2010, p. 197) para ser um militante, pois pode ser resistência, pode ser um “criminoso da inteligência” pela criação de sua arte, como explicado em correspondência endereçada a Henriqueta Lisboa:

Fora nessas noites terríveis de insônia na fazenda, me debatendo em dores intelectuais tão agudas que atingiam o corpo e me doíam fisicamente, que eu estourara nessa página até um bocado monstruosa pelo exagero com que eu me diminuía a mim mesmo. Porém lá, me censurando, eu mesmo apontava meios de intelectual “participar” da vida política que é a essência mesma da idade que o homem atravessa, sem ser “suicidado” pelas gestapos de Oropa, França e Getúlios [...].

Pensei que não tinha um jeito para fazer isto. Mas não se trata de ter ou não ter jeito, se trata de um dever. E aos poucos estou fazendo o que não imaginava fazer. Publicamente, hoje eu só pretendo emprestar, só desejo envenenar. Estou aos poucos, pouco a pouco, retirando dos meus escritos qualquer espécie de solidariedade com a inteligência livre. E você não se assuste se pegando num artigo meu me vir precário, longe de qualquer verticalidade, deformar pessoas, deformar mensagens, abrindo um ângulo de visão imprevisto mas que me permita botar nos que me leem a gota corrosiva de um veneno, o amargo de uma insatisfação. É um cangaço. Minha consciência só tem algum sossego e prêmio quando eu me sentir deveras um Criminoso da inteligência. (ANDRADE, 2010, p. 197).

Mário de Andrade considerava a sua atuação insuficiente, diferentemente dos seus amigos, incluindo artistas, músicos, pintores e intelectuais, que viam a figura do poeta paulista como uma das maiores representantes do modernismo no Brasil, no sentindo de efetivar e disseminar uma identidade cultural para seu país. Esse sacrifício é elogiado em carta por Carlos Lacerda, que vê na atitude de Mário de Andrade uma resistência e tentativa de luta contra o autoritarismo do governo brasileiro. Em resposta às aflições de Mário sobre sua atuação como funcionário público e a possível interferência que esse cargo poderia provocar em sua produção artística, Carlos Lacerda, no ano de 1935, enviou uma correspondência a Mário de Andrade elencando alguns pontos como justificativas da aceitação adequada para desempenhar a função de diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Dentre os pontos apontados pelo jornalista, destaco:

3ª - A aceitação do cargo não significa pacto com os filhos da puta, e muito menos aceitação do filhadaputismo deles.

4º - Deixe de procurar razões apolíticas para esse passo que você deu, Mário. Sei que a tua intenção é sincera, mas o tom com que a gente ouve o resultado dessa intenção soa mal. É por uma questão de necessidade política - política no melhor, no grande sentido - que você aceita esse cargo. Você mesmo não diz que é a necessidade de “ter para onde ir”, de fazer, de ser, de acontecer? O que é isso?

É política.

E porque é política é que essa tua formidável atividade em que você entra agora vai te restituir o senso de “valor” das coisas, o senso do “valor” (valores humanos, e outros que positivamente esse meu já citadíssimo cansaço não me deixa explicar melhor). E assim poderás tomar uma posição progressista franca, justamente porque você tem um posto, tem um lugar na luta. Você já pode ser anti, porque já tem alguma coisa para defender. Terá a sua obra ou a intenção da sua obra, ou a intenção de defender a intenção da sua obra. E já terá planos, não será um literato disponível. Ganhou um valor, uma utilidade imediata, e não conseguirá, nunca mais, cada vez menos, escrever por amor à arte...

Voltando à velha imagem, a torre de marfim se desmoronou e você está lutando cá em baixo. Que importa que você esteja dentro do terreno inimigo? Todas as armas são armas e todos os terrenos são terrenos... (LACERDA, 2014LACERDA, Carlos. Cartas: família, amigos, autores e livros, política. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2014., p. 93, grifos meus).

Vários foram os elogios, evidenciando o empenho de Mário de Andrade e o êxito alcançado para a história e construção do país. Como explicado por Carlos Lacerda, não era necessário manter-se completamente inserido no exercício ativo da política para realizar ações de ordem democrática no âmbito da cultura, que não deixam de ser, também, políticas. Além disso, Mário não precisava, necessariamente, declarar-se abertamente de esquerda, como fizeram Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queirós e Oswald de Andrade. Podia continuar atento a sua autopreservação, na linha de simpatizantes como Carlos Drummond de Andrade e José Lins do Rego; ou dos que não manifestavam nenhuma dessas ideias, mas expressaram em suas obras “a referida consciência ‘social’”, colocando-os em um grau além do liberalismo que os animava no plano consciente, como Érico Veríssimo, Amando Fontes e Guilhermino César” (CANDIDO, 1989CANDIDO, Antonio. A Revolução de 1930 e a cultura. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989. p. 181-199., p. 188).

A arte de combate acompanhou a trajetória de Mário de Andrade e se intensificou nos anos finais de sua vida, apesar do autor sentir-se insatisfeito ao ver sua atuação diante da Segunda Guerra Mundial e da Era Vargas, autoavaliando-se como um intelectual de pouca ação. Apesar disso, enquanto intelectual ele foi considerado pelos seus contemporâneos como um homem que não se isolou, que sempre buscou o encontro com o povo. E, mesmo quando seus projetos no Departamento de Cultura foram interrompidos por interesses particulares do Estado Novo, ele continuou atuando na esfera pública, por meio do Ministério da Educação e Saúde, liderado por Gustavo Capanema (1934-1945).

Por meio da autocensura, Mário de Andrade conseguiu conciliar o funcionalismo público, que proporcionaria a praticidade de suas ideias, e a função social da arte, a qual não poderia ser corrompida ou anulada em prol da primeira função. Assim, sua obra continua inserida na arte de combate, pois denuncia as mazelas sociais decorrentes da política do autoritarismo governamental para além de seu momento de escrita.

Referências

  • ANDRADE, Mário de. Poesias completas Edição crítica de Diléia Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993.
  • ANDRADE, Mário de. Portinari, amico mio: cartas de Mario de Andrade a Portinari. Organização, introdução e notas de Annateresa Fabris. Campinas: Mercado de Letras; Autores Associados, 1995.
  • ANDRADE, Mário; CORRÊA, Pio Lourenço. Pio e Mário: diálogo da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1917-1945. Traços biográficos: Antonio Candido; introdução: Gilda de Mello e Souza; estabelecimento do texto e notas: Denise Guaranha; estabelecimento do texto, das datas e revisão ortográfica: Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul; São Paulo: SESC SP, 2009.
  • BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Unesp, 1909.
  • CANDIDO, Antonio. A Revolução de 1930 e a cultura. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios São Paulo: Editora Ática, 1989. p. 181-199.
  • JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
  • LACERDA, Carlos. Cartas: família, amigos, autores e livros, política. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2014.
  • LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite e outros ensaios São Paulo: Duas cidades, 2004.
  • MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 69-281.
  • ROLLAND, Denis. O estatuto da cultura no Brasil do Estado Novo: entre o controle das culturas nacionais e a instrumentalização das culturas estrangeiras. In: BASTOS, Elide; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e política, Brasil - França São Paulo: Cortez, 2003. p. 197-212.
  • SOUZA, Antônio Candido de Mello e. A Lembrança que Guardo de Mário.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [S. l.], n. 36, p. 9-26, 1994.
  • 1
    Annateresa Fabris, ao apresentar o livro de cartas entre Mário e Portinari, esclarece: “A ideia de traduzir Macunaíma para o espanhol é de Carybé que, na época, residia em Buenos Aires... O trâmite entre Carybé e Mário de Andrade é Newton Freitas, que encaminha ao escritor os trechos traduzidos para revisão e comentários. Da carta a Newton Freitas, de 16 de abril de 1944, constam maiores dados sobre a censura postal do Estado Novo: a tradução e os maiores dados sobre a censura postal do Estado Novo: a tradução e os desenhos originais de Carybé haviam sido apreendidos e enviados ao Rio de Janeiro, pois o chefe da censura de São Paulo não conseguira determinar se Macunaíma, publicado antes da Revolução de 1930, podia ser considerado apenas “um romance poético”. Mário de Andrade entrega o caso à Sociedade dos Escritores Brasileiros para tentar conseguir, pelo menos, a devolução do material à Argentina” (ANDRADE, 1995ANDRADE, Mário de. Portinari, amico mio: cartas de Mario de Andrade a Portinari. Organização, introdução e notas de Annateresa Fabris. Campinas: Mercado de Letras; Autores Associados, 1995., p. 134).
  • 2
    Esse é o posicionamento de Julien Benda.
  • 3
    Já esse posicionamento corresponde ao autor Antonio Gramsci.
  • 4
    Primeira carta escrita por Mário de Andrade, destinada a Pio Lourenço Correia, em que há confissões de intervenções do governo em seus textos.
  • 5
    As sublinhas são do original.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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