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O gato de Freud e a sua manifestação na escrita de Sartre e de Blanchot

Freud’s cat and its manifestation in Sartre’s and Blanchot’s writings

Resumo

A partir da análise de dois textos de Sigmund Freud, Análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e Estudos sobre a histeria, este artigo pretende apresentar dois pontos: primeiro, como a inscrição da palavra gato nos textos freudianos acima destacados se revela como uma abertura conceitual no desenvolvimento do trabalho do psicanalista, tornando-se um ponto de convergência importante para algumas de suas obras posteriores. E, segundo, como a inscrição freudiana da palavra gato se manifesta em dois outros textos: Que é a literatura?, de Jean-Paul Sartre, e “A literatura e o direito à morte”, de Maurice Blanchot.

Palavras-chave:
Sigmund Freud; Maurice Blanchot; Jean-Paul Sartre; gato; fragmento.

Abstract

From the analysis of two texts by Sigmund Freud, “Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria (‘Dora’)” and Studies on hysteria, this paper aims to present two topics: first, how the inscription of the word cat in Freud’s aforementioned texts reveals itself as a conceptual opening in the development of the psychoanalyst’s work, becoming an important convergence point to some of his later works. Secondly, how Freud’s inscription of the word cat is manifested in two other texts: Jean-Paul Sartre’s What is Literature? and Maurice Blanchot’s “Literature and the Right to Death”.

Keywords:
Sigmund Freud; Maurice Blanchot; Jean-Paul Sartre; cat; fragment.

Résumé

À partir de l'analyse de deux textes de Sigmund Freud, Le cas Dora ; fragment d'une analyse d'hystérie et Études sur l'hystérie, cet article distingue deux éléments: premièrement, l'inscription du mot chat dans les textes freudiens apparaît comme une ouverture conceptuelle dans le développement du travail du psychanalyste, jusqu’à devenir un point de convergence important pour certains de ses travaux ultérieurs. Et, deuxièmement, l'inscription freudienne du mot chat se manifeste dans deux autres textes : Qu'est-ce que la littérature ?, de Jean-Paul Sartre, et « La littérature et le droit à la mort », de Maurice Blanchot.

Mots-clés:
Sigmund Freud; Maurice Blanchot; Jean-Paul Sartre; chat; fragment.

Dar nome pra um gato não é brincadeira, Não é dessas coisas normais de vocês;

[...]

Mas acima de tudo outro nome sobrou, Um nome afundado em mistérios à beça, O nome que o homem jamais desvendou - Mas É O GATO QUE SABE, e ele nunca confessa. Quando um gato se perde na meditação, O motivo, eu te digo, não muda e não some: Sua mente está presa na contemplação Da ideia, da ideia, da ideia do nome: Do inefável efável Seu efinevável Profundo, insondável e excêntrico Nome. (“Dar nome pra um gato”, T.S. Eliot, 2018ELIOT, T.S. Dar nome pra um gato. In: ELIOT, T.S. Poemas. Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 300-303.)

Sigmund Freud

O livro que lera antes de dormir contava como alguns garotos jogaram um gato em água fervente e descrevia as convulsões do animal. Esses são os dois eventos precipitadores do sonho, irrelevantes em si. O tema da crueldade com animais continua a ocupar seus pensamentos. (A interpretação dos sonhos. Sigmund Freud, 2019FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (1900). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. (Obras completas, v. 4.))

Em 1905, Sigmund Freud publica o relato de caso de uma histeria, o qual ele intitulou Análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”).1 1 A proposta deste artigo não se concentrará na análise de Freud sobre a histeria de sua paciente Dora, mas em como se estruturou, a partir de uma composição fragmentária, esta análise no plano discursivo. De como o fragmento fez do relato do caso Dora um relato único em relação aos demais relatos de casos freudianos conhecidos. O adjetivo fragmentária presente no título escolhido e suas variações ao longo do relato freudiano é de extrema importância tanto para o psicanalista, em sua defesa, como veremos a seguir, quanto para o que será proposto neste artigo: o fragmento enquanto constituição do discurso, que tensiona o desejo de totalidade com o sentimento de impotência, pois não se pode apreender o todo completamente, sempre algo tenderá a restar, a sobrar [übrig bleiben].

A partir da tendência à dissolução e, por essa razão, da repetição constitutiva de todo discurso fragmentário, Freud nos apresenta a sua análise incompleta do caso Dora - incompletude como mais uma variante do adjetivo fragmentária: “a incompletude da análise [de Dora] me obriga a apresentar um material lacunoso neste ponto” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 265). Um “material lacunoso” que o psicanalista, autonomeando-se um arqueólogo escrupuloso, pretenderá restaurar, completar, com casos de histerias já publicados e com o seu conhecimento analítico desse tipo de neurose. Em sua defesa, Freud argumentará, por diversas vezes ao longo de seu texto, que a falta que se faz presente em seu relato resulta sobretudo da interrupção da análise por Dora, nome fictício utilizado pelo psicanalista para preservar a real identidade da paciente: “O fato de termos de lançar mão de conjecturas e complementos no caso de Dora se justifica somente pela interrupção precoce da análise” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 272). Uma justificação, ou talvez, uma autodefesa para se proteger da própria dissolução derivada do estudo em fragmentos desse caso específico. Pois, diferente de outros relatos de casos, como, por exemplo, o caso do pequeno Hans, o caso do “homem dos ratos” e o caso do “homem dos lobos”, Freud nunca pareceu tão vulnerável, repetindo-se e se fazendo repetir, ecoando a cada oportunidade uma justificativa para o estado em fragmento de seu relato do caso Dora: “É certo que anunciei este trabalho como uma análise fragmentária, mas o leitor terá percebido que ele é ainda mais incompleto do que esse título dava a entender” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 307). Com essa perspectiva, por que Freud decide, então, publicá-lo?

Freud manifesta uma razão principal, a meu ver, uma razão consciente. Embora o caso da histeria de Dora não possua características particulares que fizessem dele um caso singular, fora da curva dos casos anteriormente publicados sobre a histeria feminina, ele tem o mérito de dar a ver, de ser uma amostra real, de como o método da interpretação dos sonhos pode auxiliar nos casos de histeria: “Este fragmento da história do tratamento de uma garota histérica deve ilustrar como a interpretação dos sonhos intervém no trabalho da análise” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 184). Essa, segundo o psicanalista, seria a razão maior que o encorajou a publicar o caso de Dora, ainda que incompleto, faltoso e fragmentário. Um fragmento de análise que resultou em obra. Uma obra faltosa que adquire a sua relevância exatamente por meio de sua falta [Mangel], de seu fracasso em termos de incompletude [Unvollständigkeit]. Por outro lado, nesse motivo se oculta ainda uma tática de autodefesa que Freud encontrou para validar o seu método de interpretação dos sonhos publicado em 1900 no livro A interpretação dos sonhos. Uma prática analítica que encontrava à época grande oposição por parte da área médica:

Não foi sem bons motivos que publiquei um laborioso e exaustivo estudo sobre os sonhos em 1900, antes dos trabalhos sobre psicologia das neuroses que tinha em mente; e pude notar, pela recepção que lhe foi dada, a precária compreensão que ainda hoje os colegas demonstram face a tais esforços. (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 178).

Assim, com o caso Dora, Freud demonstrava tanto a validade de sua teoria de interpretação dos sonhos quanto o seu procedimento clínico no processo de cura da histeria. Disso resulta, porém, que, ao colocar-se à prova, bem como a seu método de interpretação dos sonhos, Freud possivelmente tenha encontrado uma espécie de entrave que o fazia a quase-todo-instante se justificar com o objetivo de se autoafirmar por meio de sua teoria:

Dado que esta história clínica pressupõe o conhecimento da interpretação dos sonhos, a sua leitura resultará bastante insatisfatória para quem não atender esse pressuposto. Tal leitor encontrará nela, em vez do esclarecimento buscado, apenas estranheza, e sentirá a inclinação de projetar a causa dessa estranheza no autor, visto como fantasioso. (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 179).

Em determinado momento de sua autodefesa na introdução do relato do caso Dora, nos deparamos com a palavra gato. O psicanalista, reafirmando o seu propósito de dar clareza e objetividade às conversas entre o médico e a paciente, declara: “Dou a órgãos e processos os nomes técnicos, e os informo - os nomes - quando elas não os sabem. ‘J’appelle un chat un chat’ [literalmente: ‘Chamo um gato de gato’]” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 226-7, grifo do autor). Torna-se evidente nesse apelo2 2 Em francês, o verbo appeler significa tanto nomear, chamar (por alguém a partir de seu nome), quanto apelar no sentido de pedir ajuda ou de ser chamado a ajudar. Nesse caso, o verbo appeler, destacado por Freud, também sofre uma tensão, talvez inconsciente por parte de seu autor, entre o ato de nomear, de dar o nome, e o de apelar, de pedir ajuda, e, assim, de se autojustificar. ao nome das coisas, à realidade nominal das coisas e dos seres, a tomada de decisão freudiana: escrever claramente sem se desviar por veredas subjetivas demais, por lugares de fala ou de nomes que possam trazer à superfície da análise outros significados que não aqueles pensados e propostos pelo psicanalista - é preciso se distanciar de todo e qualquer nome ambíguo. Com isso, Freud também busca se autodefender do fragmentário do caso Dora, uma vez que, guiado por sua proposta objetiva, as partes do caso que restam incompletas ou inacessíveis, o psicanalista as completa, ou as complementa, a fim de que a estrutura do todo, a sensação de totalidade que desde o início de seu relato está fadada a fracassar, possa ser restituída. Dar ao que resta sem forma (a incompletude do relato do caso Dora) uma forma validável e espectral, pois não de todo real: “No entanto, não me inclino a subestimar o valor terapêutico mesmo de um tratamento fragmentário como o de Dora” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 317-8).

Ao apelar ao nome, Freud apela ao gato. A expressão francesa “J’appelle un chat un chat”, citada pelo psicanalista como um exemplo de sua busca pela materialidade objetiva do significado real do nome das coisas, acaba por tornar o gato, a palavra gato, em um símbolo da objetividade discursiva, da imediaticidade entre nome e coisa, opondo-se antecipadamente às teorias linguísticas de Saussure, muito embora o próprio Freud conceda à palavra de seus pacientes uma irrealidade, uma perversidade, uma ambiguidade e uma duplicidade manifestas, ocultas ou recalcadas pelo inconsciente, sobretudo, no caso de Dora:

As palavras ambíguas são como um “entroncamento” na via de associações. Se as agulhas do entroncamento são mudadas em relação ao que parecem estar no sonho, chegamos aos trilhos em que se movem os pensamentos buscados e ainda ocultos por trás do sonho. (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 247).

É por essa razão que o caso Dora se destaca dos demais relatos de caso de Freud, pois esse caso específico nos apresenta um movimento de tensão entre o querer dizer e o que não se deixa dizer que ultrapassa os limites da análise do paciente, ou seja, do limite do paciente, chegando a tocar e a convulsionar a escrita do analista: Freud é tocado pela impossibilidade do nome que tanto inquieta a paciente Dora e que tanto se recalca em seu inconsciente.

Em relação à palavra gato, é natural acreditar em sua irrelevância, supondo que a sua presença no relato de Freud é ocasional, circunstancial e aleatória, podendo ter sido substituída por qualquer outra palavra. Mas não é esse o caso. Freud escolheu consciente ou inconscientemente a palavra gato, e não outra. Por essa razão, devemos reconhecer o seu valor discursivo, principalmente, por dois motivos: primeiro, pela representação do animal gato nas teorias freudianas; segundo, pela retomada da frase “J’appelle un chat un chat” por dois pensadores franceses anos depois, refiro-me a Jean-Paul Sartre e a Maurice Blanchot.

Na teoria freudiana, o animal gato é trazido pelo psicanalista em diversos momentos e em diferentes aspectos, tanto como imagem quanto como conceito e/ou ideia. De sua obra, destaco uma aparição do animal gato que, a meu ver, comprova não ser tão arbitrária a escolha de Freud pela palavra gato no sintagma “J’appelle un chat un chat” - uma escolha que ecoará significativamente em duas outras escritas, em duas outras formulações de pensamento: a sartriana e a blanchotiana. Nas “Considerações teóricas” de Estudos sobre a histeria, trabalho de Freud em coautoria com Josef Breuer, os dois psicanalistas defendem que nem todas as manifestações da histeria são motivadas por ideias, sendo também manifestadas por estímulos periféricos, como, por exemplo, a visão e o toque antes não vivenciados, ou seja, não guardados na memória, não sendo, portanto, ideias passíveis de rememoração. Contudo, tanto a ideia quanto os estímulos periféricos têm como base comum uma excitação intracerebral anormal produzida por afetos, tais como o sexual, o de pavor ou o de vingança, que não sofreu a descarga necessária para a sua diminuição, podendo, como no caso da histeria, sofrer uma conversão:

Se o afeto original não foi descarregado no reflexo normal, mas sim num “reflexo anormal”, também este volta a ser desencadeado pela lembrança; a excitação proveniente da ideia afetiva é “convertida” (Freud) num fenômeno corporal. (BREUER; FREUD, 2016BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Tradução de Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 2.), p. 292, grifo do autor).

No caso de Dora, a conversão foi observada em sua apneia, em sua afonia, em seus vômitos e em sua tosse - sendo esses fenômenos corporais observados por Freud, em Análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) -, também como deslocamentos e como complacência somática, “que é proporcionada por um evento normal ou patológico num órgão ou ligado a ele [sintoma histérico]” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 216). Em um momento significativo de Estudos sobre a histeria, Breuer e Freud defendem o conceito de sobredeterminação: ao assegurarem que vários fatores agem concomitantemente no desenvolvimento de um sintoma histérico e ao acreditarem que um mesmo afeto desencadeador de um ataque histérico pode ser suscitado por várias ocasiões que se repetem, não sendo de modo algum a última ocasião o fator determinante para a manifestação da histeria, como se costumava crer. Dos relatos de casos apresentados pelos dois psicanalistas, a título de exemplificação, um nos interessa em especial:

Uma jovem teve seu primeiro ataque histérico, seguido de uma série de outros, quando um gato lhe saltou sobre o ombro no escuro. Parecia um simples efeito do pavor. Contudo, uma investigação mais cuidadosa apurou que a garota de dezessete anos, de admirável beleza e mal vigiada, fora recentemente objeto de múltiplos assédios mais ou menos brutais, o que a levara a sentir excitação sexual (predisposição). Alguns dias antes, na mesma escada escura, fora atacada por um rapaz, do qual se esquivara a muito custo. Este era o verdadeiro trauma psíquico, cujo efeito só se tornou manifesto com o gato. Mas em quantos casos não se toma o gato por causa efficiens que basta inteiramente? (BREUER; FREUD, 2016BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Tradução de Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 2.), p. 301, grifo do autor).

Interessa-nos neste relato a pergunta final: “Mas em quantos casos não se toma o gato por causa efficiens que basta inteiramente?”. Aqui, o animal gato assume uma ideia para-além de sua imagem felina. O gato, neste questionamento, representa uma ideia maior, mais abrangente, uma totalidade de coisa tomada como causa de algo. Nesse caso, a palavra gato se inscreve também como uma performance discursiva, sob a qual o elemento de uma ironia está bastante claro e se quer claro e eficiente para o jogo de ideias que os psicanalistas estabelecem entre o gato-ideia e a causa efficiens. Publicados nos anos de 1893 a 1895, os Estudos sobre a histeria antecipam, obviamente, grande parte das ideias presentes em Análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”), publicado em 1905. Com o caso de Dora, Freud não apenas retoma e cita algumas ideias dos Estudos, como faz questão de reorientar certas conclusões sobre a histeria apresentadas na obra anterior: “Isto se torna compreensível, porém, se eu informar que desde os Estudos a técnica psicanalítica sofreu uma completa revolução” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 180).

Nesse sentido, podemos sustentar o pensamento de que toda a obra de Freud dialoga entre si: um diálogo interno que nos permitirá compreender a relevância da palavra gato em “J’appelle un chat un chat”. Se, em Estudos, no relato de caso, a causa do ataque histérico da jovem não é o gato, o pulo do gato, mas as investidas sexuais sequenciadas que ela vinha sofrendo, então, concluímos, junto com os psicanalistas, que o gato, aqui, não é o gato. Ou melhor, ao tomar erroneamente o gato como a causa efficiens, toma-se o gato por um não gato, uma vez que a verdadeira causa da histeria da jovem são fatores anteriores, e não o pulo do gato. Conclusão deste relato: “J’appelle un chat un non chat”.

Seguindo a perspectiva de que toda a obra de Freud dialoga entre si, nada nos impede, então, de crermos que o psicanalista na formulação de “J’appelle un chat un chat”, de 1905, tenha, na verdade, retomado uma ideia anterior escrita por volta de 1895, quando nesta ocasião um gato era tomado por um não gato, por uma causa não-causa. Explicando melhor: quando, em 1905, Freud busca manter a objetividade e a certeza da palavra, da relação imediata entre significante e coisa, entre o nome e os órgãos sexuais, para se desviar de toda e qualquer ambiguidade, de todo e qualquer erro, o psicanalista, sem conter talvez um rompante de humor contra os seus detratores, faz uso de um material discursivo já anteriormente enunciado (o gato-ideia) para atestar a sua posição atual, porém, modificando-o em seu resultado final, embora a ideia original não se perca totalmente. Assim, a afirmação “Chamo um gato de gato”, de 1905, ecoa, por sua vez, a afirmação de 1895, “Chamo um gato de não gato”, dando-nos a entender que, agora, no caso Dora, o gato realmente será o gato, o nome gato realmente representará a causa-gato, o ser-gato, diferentemente do caso da jovem de 1895. Por essa razão, acredito que a escolha da palavra gato em “J’appelle un chat un chat” foi uma escolha consciente, não aleatória e não casual; e mais, uma escolha intencional e precisa que apenas será desvelada por aqueles que conhecem a obra de Freud - o gato, então, passa a ter um significado a mais: como um mot de passe [senha] entre os iniciados do círculo freudiano, convertendo-se em um riso entre amigos de um grupo restrito. Um riso de Freud, motivado, a meu ver, pela autodefesa e pelas justificativas aos seus pares que se opunham constantemente às suas ideias pioneiras e modernas:

Desde o momento em que precisamos evitar a expressão da hostilidade em ato - impedidos pela presença do terceiro desapaixonado, em cujo interesse está a preservação da segurança pessoal - desenvolvemos, à semelhança do que acontece com a agressividade sexual, uma nova técnica de insulto que visa colocar esse terceiro contra o nosso inimigo. Ao fazer deste uma pessoa pequena, inferior, desprezível, cômica, obtemos, por uma via indireta, a satisfação de sobrepujá-lo - algo que o terceiro, que não fez nenhum esforço, confirma com seu riso. (FREUD, 2017FREUD, Sigmund. O chiste e sua relação com o inconsciente (1905). Tradução de Fernando Costa Mattos. São Paulo: Companhia das Letras , 2017. (Obras completas, v. 7.), p. 147-8).

Outro ponto considerável sobre a configuração e a manifestação da palavra gato nesses dois momentos da obra de Freud, no de 1895 e no de 1905, e que nos sugere, por uma via do mot de passe, um riso de Freud, um olhar irônico do psicanalista, é a publicação, também em 1905, de O chiste e sua relação com o inconsciente - livro do qual pertence a citação acima. Essa publicação freudiana não deixa de ser intrigante para o que proponho como diálogo neste artigo. Pois, ao mesmo tempo em que Freud escrevia Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e finalizava a revisão de Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”),3 3 A escrita do relato do caso Dora já vinha sendo desenvolvida desde 1900. Na segunda nota de rodapé de seu prefácio, Freud nos esclarece que: “[Nota acrescentada em 1923:] O tratamento que aqui se expõe foi interrompido em 31 de dezembro de 1899, o seu relato foi escrito nas duas semanas seguintes, mas publicado apenas em 1905” (FREUD, 2016, p. 182). ambos publicados em 1905 com o título: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”), o psicanalista estava às voltas com um texto, digamos, mais leve, embora jamais de modo superficial e desimportante, no qual o riso e suas funções, -como, por exemplo, a função de arma para, de modo inteligente, diminuir o inimigo, tornando-o inferior e desprezível -, nos eram apresentados em sua relação imediata com o inconsciente, como vimos acima.

Talvez, em seu processo de pesquisa e de escrita do chiste que leva ao riso, Freud, não podendo e nem se permitindo uma luta real com os seus inimigos (seus colegas de profissão), utilizou-se da arma escrita para confundi-los por um momento, tornando-os ignorantes sobre o ambíguo significado de “J’appelle un chat un chat”: “Cada chiste demanda assim seu próprio público, e rir dos mesmos chistes é uma prova de grande compatibilidade psíquica” (FREUD, 2017FREUD, Sigmund. O chiste e sua relação com o inconsciente (1905). Tradução de Fernando Costa Mattos. São Paulo: Companhia das Letras , 2017. (Obras completas, v. 7.), p. 215). Com isso, apenas os iniciados compreenderão o jogo de linguagem do chiste-gato que leva ao riso de Freud, apenas o seu público o compreenderá - o que não deixa de ser um modo de diminuir aqueles que desconhecem o desenvolvimento de sua obra, censurando-os sem um prévio conhecimento desta.

No instante em que se autojustifica em demasia com o caso Dora e com isso produz uma excitação intracerebral excessiva, Freud consegue descarregá-la, em seu próprio benefício, na escrita sobre o chiste. E nessa escrita, o psicanalista encontra dois moduladores de descarga para a sua excitação: ao escrever de fato sobre o chiste e ao imprimir no relato de Dora o riso compartilhado com o seu público na retomada da palavra gato no sintagma “J’appelle un chat un chat”, não convertendo, assim, o seu afeto de raiva, por exemplo, em uma neurose, uma vez que, por meio do chiste, houve a descarga da excitação excessiva. Nessa perspectiva, a palavra gato demonstra, para-além do que foi apresentado neste artigo, como Freud se torna sujeito e objeto de sua própria teoria, por vezes abertamente, como em A interpretação dos sonhos, por vezes dissimuladamente, como no caso Dora e como na pesquisa sobre o chiste e o inconsciente. Com isso, pode-se intuir que a palavra gato em “J’appelle un chat un chat” se converte, na obra de Freud, em uma abertura conceitual no desenvolvimento de seu trabalho psicanalítico, tornando-se um ponto de convergência para alguns de seus mais importantes textos.

Jean-Paul Sartre e Maurice Blanchot

Em dado momento ouvi seu riso, um risinho esganiçado e pueril. Aquilo me deu um aperto no coração: parecia-me que uns meninos sórdidos iam afogar um gato. Depois, de repente os cochichos cessaram. Esse silêncio me pareceu trágico: era o fim, o golpe de morte. (A náusea. Jean-Paul Sartre)

O chat supérieur que je suis devenu un instant pour constater mon décès, je vais maintenant disparaître pour tout de bon. Je cesse d’abord d’être un homme. Je redeviens un petit chat froid et inhabitable, étendu sur la terre. (Thomas l’obscur. Maurice Blanchot, 1950BLANCHOT, Maurice. Thomas l’obscur. Paris: Gallimard, 1950.)

Em 1948, Jean-Paul Sartre publica o livro Qu’est-ce que la littérature?, traduzido no Brasil para Que é a literatura?. Nesse livro, o filósofo francês se expressa por meio de capítulos-manifestos sobre qual seria, em sua opinião, a função da literatura na e para a sociedade, bem como se expressa sobre a quase-natural tendência da literatura, em poesia, em ser um objeto de arte quase-exclusivo para o deleite estético e não para a ação exigida pelos conflitos sociais diários. Segundo Sartre, a literatura, em prosa, deveria ser uma arte manifestadamente panfletária, cujo objetivo maior seria alimentar o homem com saberes para que assim, intelectualmente, ele pudesse ser uma arma de oposição às ideias impostas pelo Estado, pelo capital e pelas instituições que buscavam aliená-lo de todas as formas: “A prosa é utilitária por essência; eu definiria de bom grado o prosador como um homem que se serve das palavras” (SARTRE, 2006SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2006., p. 18, grifo do autor).

Em oposição à prosa, para Sartre, tem-se a poesia: “Na verdade, o poeta se afastou por completo da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos” (SARTRE, 2006SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2006., p. 13). Em Que é a literatura?, o filósofo executa um desmembramento do corpo literário, dividindo-o em prosa (sujeito ativo) e poesia (objeto para o deleite estético), com o qual não podemos concordar, pois concordar com o filósofo seria concordar com a existência de dois tipos de literaturas, e não com a existência da literatura, do espaço literário, em que prosa e poesia são manifestações artísticas naturais e coexistentes do ser humano derivadas de um único lugar: a literatura.

Ao final de seu manifesto literário, em “Situação do escritor em 1947”, último capítulo de Que é a literatura?, Sartre escreve colericamente contra determinados escritores que à época estavam, em sua opinião, adoecendo as palavras com novidades estéticas e com propostas temáticas outras que não as estritamente relacionadas com as realidades sociais francesa e mundial do momento. Então, para essa doença, Sartre reclama um remédio: “A função do escritor é chamar o gato de gato. Se as palavras estão doentes, cabe a nós curá-las. Em vez disso, muitos vivem dessa doença” (SARTRE, 2006SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2006., p. 208, grifo meu). Acredito que o efeito de relação com o sintagma freudiano “J’appelle un chat un chat” se tornará mais evidente se recorremos ao original de Sartre: “La fonction d’un écrivain est d’appeler un chat un chat” (SARTRE, 1948SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 1948. , p. 281, grifo meu). Ao colocá-los lado a lado, não se pode negar a retomada do sintagma freudiano por Sartre. Se observarmos bem, a performance discursiva é a mesma. A partir da palavra gato, objetiva-se reafirmar na palavra a imediaticidade entre significante e coisa: em ambos, a realidade do nome é reivindicada e, mais uma vez, o gato é o símbolo dessa reivindicação. Leitor de Freud, o filósofo francês convoca a objetividade da palavra como método de cura para a sua doença, pois a palavra literária para ser instrumento de ação precisa abdicar de sua natureza ambígua e plural, precisa ser clara para atingir o seu fim:

Particularmente, nada é mais nefasto que o exercício literário que se chama, creio, prosa poética, que consiste em usar palavras pelos obscuros acordes harmônicos que ressoam em torno delas, sentidos vagos, em contraposição ao significado claro. (SARTRE, 2006SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2006., p. 208).

Contudo, se investigarmos profundamente o manifesto literário de Sartre, encontraremos um significado a mais para a sua publicação: um livro-resposta. Que é a literatura?, na verdade, é um longuíssimo livro-manifesto em resposta a um texto de Maurice Blanchot publicado original e parcialmente em 1947, na Revista Critique, n° 18: “La littérature et le droit à la mort”. Em 1949, esse texto blanchotiano revisto e ampliado pelo autor passa a integrar o livro La part du feu - no Brasil, traduzido por A parte do fogo e o texto anteriormente citado por “A literatura e o direito à morte”. A data presente no título de “Situação do escritor em 1947” refere-se à publicação original do texto de Blanchot. Embora Sartre não o cite explicitamente, encontramos diversos elementos que comprovam a resposta do filósofo ao artigo blanchotiano, sobretudo quando Blanchot defende em seu texto que a palavra literária jamais poderá ser um equivalente da palavra manejada por nós em nosso cotidiano, uma vez que a palavra do mundo requer uma objetividade, diferentemente da ambiguidade inerente a toda forma de discurso literário: “Na literatura, a ambiguidade é como entregue aos seus excessos pelas facilidades que ela encontra, e esgotada pela extensão dos abusos que pode cometer” (BLANCHOT, 1997BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 327-8, grifo do autor). Para quem exigia da literatura em prosa objetividade, a afirmação blanchotiana é lida como um insulto, como um desrespeito e como um ato de alienação. Mas nessa disputa, digamos, ideológica, é o gato de Freud que pula em seus ombros.

Em “A literatura e o direito à morte”, Blanchot escreve:

Naturalmente, um escritor sempre pode se dar como ideal chamar um gato de gato. Mas o que não pode obter é crer-se então no caminho da cura e da sinceridade. Pelo contrário, é mais mistificador do que nunca, pois um gato não é um gato, e aquele que o afirma não tem mais nada em vista do que essa hipócrita violência: Rolet é um malandro. (BLANCHOT, 1997BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 300, grifo do autor).

Recorramos ao original de Blanchot para que a tríade sonora, ecoante a partir de Freud, se manifeste por completo: “Il est au contraire plus mystificateur que jamais, car le chat n’est pas un chat” (BLANCHOT, 1949BLANCHOT, Maurice. La part du feu. Paris: Gallimard, 1949., p. 302, grifo meu). Assim, temos: “J’appelle un chat un chat” (FREUD, 1905), “car le chat n’est pas un chat” (BLANCHOT, 1949BLANCHOT, Maurice. La part du feu. Paris: Gallimard, 1949.) e “d’appeler un chat un chat” (SARTRE, 1948SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 1948. ). E, atravessando a tríade, temos: “J’appelle un chat un non chat” (FREUD, 1895). Estando um diante do outro, o espelhamento é visível e, em especial, a forte influência de Freud nas duas escritas que lhe seguiram. Porém, diferente do Freud de 1905, Blanchot retoma a ideia da palavra gato do Freud de 1895, quando a ideia do gato não era o gato em si, a causa-gato, ou melhor, o significado/a causa do ataque histérico da jovem. O escritor francês faz claramente alusão não apenas ao erro da ideia do gato, agora associado ao erro da ideia de que a palavra literária seja objetiva, como faz alusão à ironia da ideia original freudiana ao finalizar o seu pensamento com: “Rolet é um malandro”. O riso quase-contido em “Mas em quantos casos não se toma o gato por causa efficiens que basta inteiramente?” (BREUER; FREUD, 2016BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Tradução de Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 2.), p. 301) ecoa em “Rolet é um malandro4 4 Blanchot faz referência a Charles Rolet, Procurador no Parlamento de Paris, condenado ao desterro em 1681 por sua intensa desonestidade. Seu nome Rolet acabou por virar sinônimo de vigarice, hipocrisia e mistificação. com mais intensidade, sendo um riso abertamente irônico de Blanchot para aqueles que acreditam que na literatura a palavra gato possa realmente sustentar somente uma verdade (o animal gato) e somente significâncias reais, não errôneas (as ideias/imagens associadas cotidianamente ao animal gato). O riso blanchotiano está na crença de que a única função da literatura seja a ação partidária, panfletária, instrumental e objetiva para com o mundo:

Muito mais mistificadora é a literatura de ação. [...] A linguagem do escritor, mesmo revolucionária, não é a linguagem do comando. Ele não comanda, ele apresenta, e não apresenta tornando presente o que mostra, mas mostrando-o atrás de tudo, como o sentido e ausência desse tudo. (BLANCHOT, 1997BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 306, grifo do autor).

Enquanto Sartre justifica a sua concepção de literatura em prosa por meio de uma retomada da ideia presente na palavra gato do Freud de 1905, quando o psicanalista reclamou para o seu relato do caso Dora a objetividade, o nome real dos órgãos sexuais e dos temas sexuais nas conversas com suas pacientes, Blanchot, voltando um pouco o passo, se serve da ideia do não-gato do Freud de 1895: um olhar para trás, para um passado ainda mais anterior, que, por sua vez, desvelou de modo significativo o seu presente e o seu futuro, ou seja, o nosso presente atual. Mas, por quê?

A partir de sua leitura de Mallarmé, quando o poeta francês faz uma clara distinção entre a palavra bruta (cotidiana) e a palavra essencial (literária), Blanchot, em O espaço literário, concebe a palavra literária enquanto ambiguidade e enquanto uma ação no mundo fundamentada em sua inação: “A fala essencial é, nesse aspecto, o oposto. Por si mesma, ela é imponente, ela impõe-se, mas nada impõe” (BLANCHOT, 2011BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. , p. 33). A ação da literatura jamais será impositiva, mas compositiva, dialogada e experienciada entre autor, texto e leitor, uma vez que a palavra, seja ela literária ou não, jamais sustentará a imediaticidade que lhe exigem cotidianamente. Para Blanchot, a palavra “objetiva” seria, então, uma repetição do erro de sempre acreditar que o gato é a causa efficiens de nossa linguagem. Se, em seu Curso de linguística geral, Saussure nos confirmava a arbitrariedade do signo linguístico, Mallarmé, e mais tarde Blanchot, confirmarão que a arbitrariedade linguística na literatura é o que origina a particularidade do texto literário, é o que provoca a multiplicidade de interpretações e de associações em literatura.

É por essa razão que Blanchot retoma o Freud de 1895 e consequentemente nos conduz ao Freud de 1905, quando o gato aparentemente objetivo, na verdade, não consegue manter de fato a sua realidade de nome e causa seguidas fragmentações no discurso freudiano do caso Dora. Como dito no início deste artigo, embora Freud busque creditar objetividade à palavra, o próprio psicanalista sabe que a palavra é ambígua e que movimenta processos de ocultação: do inconsciente e da impossibilidade, muitas vezes, do paciente verbalizar o que tanto reprimiu em seu inconsciente:

Ele [pensamento sobrevalorado] não pode ser resolvido pelo trabalho do pensamento, seja porque suas raízes vão até o material inconsciente, reprimido, seja porque outro pensamento inconsciente se oculta por trás dele. (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 234-5).

Desse modo, Blanchot parece ter antevisto a tensão discursiva no caso Dora, uma vez que a fragmentação da linguagem não pôde ser contida pela própria linguagem, como já discutimos acima: a linguagem não pode ser a cura para a linguagem, não pode se autocurar, isso seria cair seguidas vezes em erro. E, ao chamar a atenção para o não-gato, Blanchot retoma no mesmo instante o olhar pioneiro do Freud de 1895 e o olhar-em-tensão do Freud de 1905, ao inscrever, baseando-se possivelmente no próprio pensamento freudiano, a palavra no plano da fratura, do inacabamento e da fragmentação: “A exigência fragmentária nos convoca a pressentir que não há ainda nada de fragmentário, não propriamente falando, mas impropriamente falando” (BLANCHOT, 1980BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980., p. 102).5 5 No original: “L’exigence fragmentaire nous appelle à pressentir qu’il n’y a encore rien de fragmentaire, non pas à proprement parler, mais à improprement parler”. (Tradução de minha autoria). “Impropriamente falando” porque o fragmento se concentra sob a ideia do próprio, do objetivo e do real, corroendo-os.

Uma antevisão que Sartre ignorou ou não pressentiu no texto freudiano de 1905, ao retomar a ideia do gato enquanto ideia do nome real em seu livro Que é a literatura?. O filósofo francês parece ter abandonado a fragmentação estrutural do discurso de Freud para se agarrar ao desejo consciente do psicanalista pela objetivação da palavra, sem questionar o seu movimento inconsciente que se manifestava sob a sua letra. Para sustentar a sua ideia de que na literatura em prosa a palavra precisa estar sadia e objetiva, Sartre precisou higienizar qualquer vestígio de ambiguidade e de tensão do sintagma freudiano “J’appelle un chat un chat” exatamente para anular o seu alvo, Blanchot, quando o escritor francês diz “car le chat n’est pas un chat”. Como uma palavra não poderia significar o que ela aparentemente foi designada para significar, perguntaria Sartre. Claro, uma pergunta das mais ingênuas que não caberia a um filósofo do nível intelectual de Sartre.

Porém, analisando o caso Sartre, nos damos conta de que, aos seus desafetos literários, o filósofo se empenhava em detratá-los de modo bastante inábil e corrosivo com o único objetivo de diminuir o seu alvo, assim foi, por exemplo, com Charles Baudelaire, com Maurice Blanchot, com Jean Genet, com Gustav Flaubert e com Mallarmé. Todos eles escritores-alvos de um olhar crítico que certamente se voltaria contra o seu crítico. Em “Os romances de Sartre”, texto presente em A parte do fogo, Blanchot comprova que a narrativa sartriana seria ela mesma uma amostra da impotência do manifesto de seu autor: “Duas condições essenciais da literatura [em A náusea] são preservadas: a tendência própria da ficção e da linguagem a se mostrar como um meio de descoberta [...]; a ambiguidade da mensagem, ambiguidade que está aqui no seu auge” (BLANCHOT, 1997BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 191). Na leitura de A náusea (SARTRE, 2005SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.), nos certificamos de que um gato não é um gato.

No caso Dora, Freud, talvez inconscientemente, ainda que bastante consciente (eis a tensão e a inovação deste caso), mantivesse a convicção de que um gato não era um gato, por isso as suas justificativas em seu texto que também estavam em estreito diálogo com a sua autodefesa - uma convicção que se apresenta sob a sua letra, muitas vezes nas notas de rodapé, ou seja, literalmente sob o texto principal, e que assim o intersecciona por diversas vezes, fragmentando-o no plano das ideias e da estrutura discursiva: “[Nota acrescentada em 1923:] Nem tudo está correto aqui. A tese de que os motivos da doença não se acham presentes no início da doença, surgindo apenas secundariamente, não pode ser mantida” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 219). O erro da ideia do gato como causa efficiens atravessa o relato de Dora, mas isso não lhe tira o mérito, muito pelo contrário, a tensão experienciada por Freud, que o faz cair em erro por alguns instantes, é o que torna este relato especial e o que, a meu ver, fora a razão inconsciente para a sua publicação. Ao publicar Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”), Freud nos apresentou e confirmou que todo discurso, que toda palavra, tem sob a sua estrutura o fragmento - uma incompletude essencial que fez do seu relato algo único.

Referências

  • BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
  • BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre Paris: Gallimard, 1980.
  • BLANCHOT, Maurice. La part du feu Paris: Gallimard, 1949.
  • BLANCHOT, Maurice. O espaço literário Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
  • BLANCHOT, Maurice. Thomas l’obscur Paris: Gallimard, 1950.
  • BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895) Tradução de Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 2.)
  • ELIOT, T.S. Dar nome pra um gato. In: ELIOT, T.S. Poemas Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 300-303.
  • FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (1900). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. (Obras completas, v. 4.)
  • FREUD, Sigmund. O chiste e sua relação com o inconsciente (1905) Tradução de Fernando Costa Mattos. São Paulo: Companhia das Letras , 2017. (Obras completas, v. 7.)
  • FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905) Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.)
  • SARTRE, Jean-Paul. A náusea Tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
  • SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 1948.
  • SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2006.
  • 1
    A proposta deste artigo não se concentrará na análise de Freud sobre a histeria de sua paciente Dora, mas em como se estruturou, a partir de uma composição fragmentária, esta análise no plano discursivo. De como o fragmento fez do relato do caso Dora um relato único em relação aos demais relatos de casos freudianos conhecidos.
  • 2
    Em francês, o verbo appeler significa tanto nomear, chamar (por alguém a partir de seu nome), quanto apelar no sentido de pedir ajuda ou de ser chamado a ajudar. Nesse caso, o verbo appeler, destacado por Freud, também sofre uma tensão, talvez inconsciente por parte de seu autor, entre o ato de nomear, de dar o nome, e o de apelar, de pedir ajuda, e, assim, de se autojustificar.
  • 3
    A escrita do relato do caso Dora já vinha sendo desenvolvida desde 1900. Na segunda nota de rodapé de seu prefácio, Freud nos esclarece que: “[Nota acrescentada em 1923:] O tratamento que aqui se expõe foi interrompido em 31 de dezembro de 1899, o seu relato foi escrito nas duas semanas seguintes, mas publicado apenas em 1905” (FREUD, 2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, v. 6.), p. 182).
  • 4
    Blanchot faz referência a Charles Rolet, Procurador no Parlamento de Paris, condenado ao desterro em 1681 por sua intensa desonestidade. Seu nome Rolet acabou por virar sinônimo de vigarice, hipocrisia e mistificação.
  • 5
    No original: “L’exigence fragmentaire nous appelle à pressentir qu’il n’y a encore rien de fragmentaire, non pas à proprement parler, mais à improprement parler”. (Tradução de minha autoria).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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