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História e figuração das personagens em As meninas, de Lygia Fagundes Telles

History and character figuration in Lygia Fagundes Telles’ The girl in the photograph

Resumo

O romance As meninas, da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, publicado em 1973, apresenta um elaborado trabalho formal ao orquestrar um jogo de focalização e vozes, bem como temas que, na tessitura literária, semantizam o real: a experiência histórica, a vivência de mulheres frente a um período político conturbado e os constantes atravessamentos do passado no presente. A partir dessa organização, objetivamos investigar nesse romance a História como matéria-prima do processo de figuração das personagens, isto é, analisar como o contexto histórico-político é vetor de produção de sentido pelo qual se alcança a ficcionalização das figuras. Para tanto, observamos, primeiramente, as relações entre a narrativa literária e a História a partir de Paul Ricoeur (2010) para, na sequência, apresentar a apreciação literária.

Palavras-chave:
Lygia Fagundes Telles; As meninas; Literatura e História; personagem.

Abstract:

The novel The girl in the photograph, by the Brazilian writer Lygia Fagundes Telles, published in 1973, presents an elaborate formal work by orchestrating a game of focalization and voice, as well as themes that, in the literary fabric, signify reality: historical experience, female experience in the face of a turbulent political period, and constant crossings of the past into the present. From this perspective, we aim to investigate, in this novel, History as the raw material of character figuration. That is to say, we seek to analyze how the historical-political context is a vector of meaning-making through which the fictionalization of figures is accomplished. To do so, we first look at the relationship between literary narrative and History, based on Paul Ricoeur (2010), and then present the literary appreciation.

Keywords:
Lygia Fagundes Telles; The girl in the photograph; Literature and History; character.

Resumen:

La novela Las meninas, de la escritora brasileña Lygia Fagundes Telles, publicada en 1973, presenta una elaborada obra formal orquestando un juego de enfoque y voces, así como temas que, en la tesitura literaria, semantizan lo real: la experiencia histórica, la existencia de las mujeres frente a un período político problemático y los constantes cruces del pasado en el presente. Desde esta organización, pretendemos investigar en esta novela la historia como materia prima del proceso de figuración de los personajes. Es decir, analizar cómo el contexto histórico-político es un vector de producción de sentidos por el cual se logra la ficcionalización de figuras ficticias. Para ello, observamos, en primer lugar, las relaciones entre narrativa literaria e historia desde Paul Ricoeur (2010) para, a continuación, presentar la apreciación literaria.

Palabras clave:
Lygia Fagundes Telles; Las meninas; Literatura e Historia; personaje.

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como foi”. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo (Walter Benjamin, “Sobre o conceito da História”, 2012BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 243).

Introdução

Tzvetan Todorov, em A literatura em perigo (2018)TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 8. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2018., situa a literatura como um discurso sobre o mundo. Por esse entendimento, a criação literária não fica alheia à realidade cultural, social, histórica e política que a envolve. Nesse sentido, é lícita a inferência de que a História1 1 Preferimos a utilização do termo História, com inicial maiúscula, no sentido da ciência e narrativa historiográfica para diferenciá-lo de história, no sentido de nível narrativo no qual são arranjados os nexos causais e temporais do enredo. torna-se potência criativa para o fazer literário.

Ao partir de tal pressuposto, não é de se estranhar que de momentos históricos politicamente conturbados emerja uma considerável produção cultural, especialmente literária. A História passa pelo crivo do olhar sensível que o escritor tem sobre a realidade e se torna um dos fios a costurar a tessitura literária.

É por esse viés que o romance de Lygia Fagundes Telles, As meninas, é constituído. Publicado em 1973, em um dos períodos mais conturbados da Ditadura Militar, denominados os “Anos de Chumbo”, a narrativa não fica isenta desse cenário. É conhecido o relato da autora de que, quando estava escrevendo o romance, seu marido, Paulo Emílio Salles Gomes, recebeu um panfleto denunciando a tortura do Regime Militar e a partir dele decidiu colocar o conteúdo daquele material em seu texto. Curiosamente, o livro de Telles não foi censurado, o que a própria escritora credita à incompetência dos censores.

Dessa forma, neste artigo, temos por objetivo investigar, a partir do eixo de análise que imbrica ficção literária e História, com base nos postulados de Paul Ricoeur (2010)RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa III: o tempo narrado. Trad. de Claudia Berliner. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. V. 3., principalmente a matéria histórica como um dos fundamentos da figuração das personagens. Com tal intento, seccionamos este artigo em duas partes: a primeira com uma discussão teórica sobre Literatura e História e a segunda apresentando uma análise literária concentrando esforços nos processos de construção de sentido que efetivam a figuração das personagens, considerando as discussões de Carlos Reis (2018)REIS, Carlos. Pessoas de papel: estudos sobre personagem. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2018. sobre o assunto. Ainda, outras vozes teóricas são chamadas ao percurso de reflexão conforme forem necessárias.

Ao considerar tal perspectiva, averigua-se um enredamento (SCHAPP, 2007SCHAPP, Wilhelm. Envolvido em histórias: sobre o ser do homem e da coisa. Trad. Maria da Glória Lacerda Rurack, Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 2007.) das malhas subjetivas das personagens em relação à História: o enredo familiar de Lia marcado pelo nazismo e o rastro da Segunda Guerra Mundial; Ana Clara e as fraturas sociais da desigualdade no Brasil que se abrem também pela narrativa familiar, com a mãe prostituta; e Lorena, presa ao passado pela tragédia da morte do irmão. Cada uma com sua backstory, encontram-se unidas pelas teias da narrativa política da segunda metade do século XX, a Ditadura Militar no Brasil, de uma forma direta, e o cenário internacional da Guerra Fria, indiretamente. Assim, buscamos, em nossa análise, refletir sobre a História como vetor das produções de subjetividade que sedimentam os processos de figuração das personagens.

Literatura e História: o conturbado século XX

As relações entre a ficção literária e a História são tão antigas quanto elas próprias. Na cultura grega, as diferentes formas poéticas e a História são irmãs, pois são as musas filhas de Zeus e Mnemosyne, a titânide que representa a memória. Esse cuidado com a matéria pretérita é reconhecido por Jeanne Marie Gagnebin (2013)GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. em História e narração em Walter Benjamin, pois, em seus termos, “hoje ainda, literatura e história enraízam-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstruir um passado que nos escapa, seja para ‘resguardar alguma coisa da morte’ (Gide) dentro da nossa frágil existência humana” (GAGNEBIN, 2013GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013., p. 3). Com isso, dimensiona-se que ambas têm uma reflexão sobre o passado, tanto a narrativa literária quanto a histórica projetam-se como forma de apreensão e, em uma instância maior, de problematização do passado.

Uma característica essencial que a ficção - inclusive a evocação memorialista - compartilha com a História é seu aspecto narrativo, discursivo. E, embora a História seja considerada mais objetiva, ambos os discursos são igualmente impregnados de ideologias.2 2 Para Hannah Arendt, por exemplo, a história não é neutra; em suas palavras, é um constructo ideológico (ARENDT, 1973, p. 108). No entanto, convém distinguir essas formas discursivas: Klein e Martínez (2009KLEIN, Christian; MARTÍNEZ, Matías (Org.). Wirklichkeitserzählungen. Felder, Formen und Funktionen nicht-literarischen Erzählens. Stuttgart: J.B. Metzler, 2009., p. 1), críticos do postulado de que toda narração seja ficção, seja a narração de memórias ou da História, propõem a definição de Wirklichkeitserzählungen (narrativas do real, em tradução livre) para a historiografia e argumentam que, da mesma forma como a ficção, as assim denominadas “narrativas do real” também seriam construções, porém sua especificidade seria a pretensão de validade para representar situações reais. Na conceituação elaborada por Klein e Martínez (2009KLEIN, Christian; MARTÍNEZ, Matías (Org.). Wirklichkeitserzählungen. Felder, Formen und Funktionen nicht-literarischen Erzählens. Stuttgart: J.B. Metzler, 2009., p. 6), “narrativa do real” seria “a representação linguística de um acontecimento, ou seja, de uma sequência de eventos organizados temporalmente”, com a pretensão referencial de remeter “a acontecimentos reais, à realidade”.3 3 Tradução livre de: “die sprachliche Darstellung eines Geschehens, also einer zeitlich organisierten Abfolge von Ereignissen, […] auf reale Begebenheiten, auf Wirklichkeit”.

Disso se depreende que os dois campos lidam de formas distintas com o conteúdo, uma vez que adotam estratégias diferentes de acordo com seus propósitos. Ambas as formas narrativas, literária e histórica, são provocadoras de reflexão e vetores de formulação de imaginário sobre a realidade social e histórica em que se inserem. Porém, adotam mecanismos discursivos distintos ao considerar que a literariedade é erigida pela articulação da linguagem que produz efeitos de sentido característicos. Com isso, considera-se que ambas constroem sentidos sobre o passado. Assim, questiona-se como a ficção literária semantiza a experiência histórica?

Paul Ricoeur (2010)RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa III: o tempo narrado. Trad. de Claudia Berliner. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. V. 3., no terceiro tomo de Tempo e narrativa, apresenta o que chama de “entrecruzamento da história e da ficção” (2010, p. 310). Para o filósofo francês, ambas as formas narrativas, em um ângulo fenomenológico, têm asseguradas uma certa comensurabilidade do tempo, por mais que apresentem problemas. Nesse sentido,

Por entrecruzamento entre história e ficção, entendemos a estrutura fundamental, tanto ontológica como epistemológica, em virtude da qual a história e a ficção só concretizam suas respectivas intencionalidades tomando de empréstimo a intencionalidade da outra. (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa III: o tempo narrado. Trad. de Claudia Berliner. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. V. 3., p. 311).

Dessa forma, uma relação de solidariedade é estabelecida entre Literatura e História: a ficcionalização da História compreende o empréstimo das técnicas narrativas da ficção. O autor explica que um grande livro de História pode ser lido também como um romance sem causar prejuízo à proposta representacional do ofício historiográfico. Do outro lado, a historicização da ficção no sentido de uma simulação do propósito de representância apresentado pela História, isto é, o fato de contar uma história como se tivesse acontecido. Nesse viés, ao tomar o passado como potência criativa, a ficção explora a semantização da própria temporalidade.

Desse modo, Ricoeur conclui que

o entrecruzamento entre história e ficção na refiguração do tempo repousa, em última análise, nessa sobre posição recíproca, com o momento quase histórico da ficção trocando de lugar com o momento quase fictício da história. Desse entrecruzamento, dessa sobreposição recíproca, dessa troca de lugares, procede o que se convencionou chamar o tempo humano, onde se conjugam a representância do passado pela história e as variações imaginativas da ficção, tendo como pano de fundo as aporias da fenomenologia do tempo (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa III: o tempo narrado. Trad. de Claudia Berliner. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. V. 3., p. 328).

Avançando na reflexão, Ricoeur problematiza o que poderíamos chamar de uma instância ética da narração, ao dizer que

Talvez haja crimes que não devam ser esquecidos, vítimas cujo sofrimento grite menos por vingança do que por narrativa. Somente a vontade de não esquecer pode fazer com que esses crimes não ocorram nunca mais (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa III: o tempo narrado. Trad. de Claudia Berliner. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. V. 3., p. 323).

Por essas linhas, é lícito nos reportarmos ao cenário político de barbárie que se alastra ao longo do século XX. As duas grandes guerras - Primeira Guerra Mundial e Segunda Guerra Mundial - pavimentaram o caminho para a Guerra Fria, que divide o mundo entre os interesses da potência soviética comunista e da potência norte-americana capitalista. Tal cena histórica foi motor para ditaduras em diferentes pontos do globo, incluindo o Brasil. Ao relacionar a problemática a esse fundo histórico, Ricoeur chama atenção para o poder da narrativa enquanto fonte de sentidos. Assim, é no âmbito da narrativa que as histórias de vida encerradas pela violência da agitação política são ressignificadas e salvaguardadas do esquecimento.

Essa perspectiva não se distancia das discussões de Walter Benjamin (2012)BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. sobre o ofício histórico. Referimo-nos à célebre metáfora utilizada por Benjamin - “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 245) - para descrever a validação da história dos vencidos, a história daqueles que foram vítimas da barbárie, que é tarefa do historiador - e é pertinente também, aqui, contemplar o narrador. Logo, a Literatura e a História representam histórias de vida marcadas e, em um grande número, ceifadas pela violência.

É esse o contexto social no qual se insere a Literatura do século XX. Um século que é tingido por guerras de escala mundial e no qual vemos a ascensão de regimes autoritários. Como explica Regina Zilberman (2015)ZILBERMAN, Regina. Conhecer é preciso. In: NIEDERAUER, Silvia; RODRIGUES, Inara de Oliveira (Org.). Brasil e Portugal: a ditadura entre luzes e sombras - leituras literárias. Frederico Westphalen: URI, 2015. p.13-17.,

Ditaduras são uma das criações mais terríveis do século XX. Ainda que tenham sido os gregos do século VI a. C. que cunharam a palavra “tirania”, para expressar o sistema autocrático exercido por políticos como Psístrato e Clístenes, e nos séculos XVII e XVIII a tese do “direito divino dos reis” tenha sustentado o Absolutismo enquanto forma de governo, foi nas primeiras décadas do novecentos que se inaugurou um regime político caracterizado pela centralização do poder em um indivíduo, um grupo ou um partido, exercido de modo autoritário e apoiado em uma força militar ou policial com vistas à sua perpetuação, independentemente do apoio coletivo ou da aprovação da população. A tomada do poder, em um sistema ditatorial, faz-se via de regra de modo ilegítimo, ainda que, antes disso, algum tipo de referendo - eleição, plebiscito, aclamação - tenha precedido a conquista do Estado. (ZILBERMAN, 2015ZILBERMAN, Regina. Conhecer é preciso. In: NIEDERAUER, Silvia; RODRIGUES, Inara de Oliveira (Org.). Brasil e Portugal: a ditadura entre luzes e sombras - leituras literárias. Frederico Westphalen: URI, 2015. p.13-17., p. 13-14).

O contexto explicado pela autora remete a uma série de eventos históricos: desde o conflito da Primeira Guerra, a ascensão de Hitler na Alemanha e a Segunda Guerra, as ditaduras civis e militares em diferentes países. Tais elementos, no entanto, não se isolam; há fios comuns que os tecem no tear da História, sempre em movimento.

O historiador e jornalista Juremir Machado da Silva (2014)SILVA, Juremir Machado da. 1964 - Golpe midiático-civil-militar. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014. visualiza de forma muito apurada a relação entre a Guerra Fria e a Ditadura Militar no Brasil, ou como o autor chama, golpe midiático-civil-militar. Naquele momento,

O mundo vivia a chamada “Guerra Fria”, e esse confronto global sem trégua e quase sem limites, salvo o das armas nucleares, entre o bloco capitalista - liderado pelos Estados Unidos - e o bloco comunista - conduzido pela União Soviética - serviu de álibi para a construção do imaginário necessário à instalação de uma ditadura no Brasil. Os jornais agitaram a bandeira do perigo vermelho como uma ameaça capaz de assustar a população e gerar um clima favorável à intervenção militar, organizada com a ajuda de civis, entre os quais políticos e empresários ligados ao capital internacional, e apoio norte-americano, como demonstrou o historiador René Armand Dreifuss (1981) em seu magistral estudo sobre a preparação do golpe. (SILVA, 2014SILVA, Juremir Machado da. 1964 - Golpe midiático-civil-militar. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014., p. 13).

A potência capitalista Estados Unidos teve participação ativa na instauração do Golpe de Estado no Brasil, como na operação Brother Sam, por exemplo. A “ameaça” comunista foi elevada à máxima potência pela aparelhagem norte-americana e sedimentou o terreno para que o Brasil atravessasse de 1964 a 1985 um regime autoritário.

Dessa forma, nesse momento de turbulência política e entendendo que a ficção literária toma como mote de criação a História, diferentes literaturas nacionais tematizam esse período. No Brasil, portanto, a produção de escritores e escritoras não fica indiferente à Era dos extremos, para utilizar o termo de Eric Hobsbawm (1995)HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.. Essa agitação do cenário histórico-político é tematizada em As meninas, de Lygia Fagundes Telles, pela voz das protagonistas Lia, Ana Clara e Lorena. Cada uma, a sua maneira, estabelece uma relação com a História e esse é um dos pilares das suas dinâmicas figurativas.

Lorena, Ana Clara e Lia: personagens enredadas na História

O romance As meninas foi publicado originalmente no ano de 1973. O Brasil, àquela época com Emílio Garrastazu Médici ocupando a cadeira da Presidência da República, vivia o que ficou conhecido como “Anos de Chumbo”, os anos que seguiram ao Ato Institucional nº 5. A partir deste, se intensificou a perseguição aos contrários ao regime, a tortura contra aqueles considerados “subversivos” e “inimigos da nação” e a censura contra os que erguessem a voz contra a ditadura. Assim, também, o Brasil estava alinhado ao clima internacional de “caça aos comunistas”, que tomava cada vez mais espaço em plena Guerra Fria.

A trama do romance de Telles circunda três meninas, como indica o título, Lorena, Lia e Ana Clara, que vivem em um internato de freiras em São Paulo, o Pensionato Nossa Senhora de Fátima. Entre elas, estabelecem um suporte afetivo e dividem a vida. Encontram-se em seus quartos para conversar sobre assuntos variados, desde efemeridades do cotidiano até a situação política do país. Cada uma com uma história de vida diferente, ocupam camadas sociais distintas: Lorena, com um sobrenome de peso, Vaz Leme, vem de família abastada, situa-se na esfera da burguesia e sofre com a perda trágica do irmão; Lia de Melo Schultz não tem esse sobrenome ao acaso, filha de mãe baiana e pai alemão, filha de um ex-militar nazista, e das três tem o maior engajamento político; Ana Clara, por sua vez, representa a classe mais baixa, filha de uma prostituta, se envolve com drogas e um namorado traficante. Assim, com distintas histórias familiares e pessoais, atravessam, desde perspectivas distintas, o cenário político do final da década de 1960.

Para estruturar essa história, Lygia lança mão de uma oscilação de vozes e de focalizações narrativas. Alguns capítulos são contados por um narrador heterodiegético, enquanto em outros as meninas assumem a narração e tornam-se narradoras autodiegéticas. Nesse arranjo, o tempo psicológico, sobretudo da memória composta por digressões, prevalece sobre o tempo cronológico. A única indicação de tempo histórico é quando Lia, falando sobre a situação em que viviam no país, diz: “E agora com essa do embaixador, putz. É o medo” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 113). A fala faz referência ao sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969, por parte da resistência.

A partir dessa organização estética e temática, procuramos enfatizar a figuração das três protagonistas - Lorena, Ana Clara e Lia - em perspectiva com a História. A respeito disso, há de se fazer dois recortes. O primeiro é que a História é circunscrita ao período de agitação política no século XX que culmina, no Brasil, com a Ditadura Militar. O segundo diz respeito à ideia de figuração, que é definida por Carlos Reis (2018)REIS, Carlos. Pessoas de papel: estudos sobre personagem. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2018. como “[...] um modo renovado de problematizar a personagem ficcional” (REIS, 2018REIS, Carlos. Pessoas de papel: estudos sobre personagem. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2018., p. 23). Essa concepção aponta para um novo encaminhamento epistemológico para tratar da personagem, interseccionando o material linguístico que a constitui ao mundo. Interessa-se, nesse sentido, pelos elementos discursivos, ideológicos e identitários que subjazem à constituição da personagem. Nos termos do autor, a ideia de figuração do personagem direciona para “[...] leituras psicológicas, sociais e ideológicas da personagem” (REIS, 2018, p. 23). Desse modo, buscamos entender as personagens a partir da sua enunciação e agência4 4 Por agência, um termo utilizado nos estudos antropológicos, entendemos o que Ortner (2007, p. 64) descreve como “sinônimo das formas de poder que as pessoas têm à sua disposição, de sua capacidade de agir em seu próprio nome, de influenciar outras pessoas e acontecimentos e de manter algum tipo de controle sobre suas próprias vidas. Agência, neste sentido, é pertinente tanto no caso da dominação quanto no da resistência”. em relação à História.

A personagem Lorena, símbolo de uma burguesia decadente, mantém-se a uma certa distância dos acontecimentos políticos, não faz parte da luta armada, como Lia, mas a ajuda financeiramente, em uma posição que poderíamos interpretar como conivência. É de um caráter introspectivo, aspecto que constrói a psicologia da personagem. Um pensamento seu, que se expressa pelo fluxo de consciência, é: “Ah, que alegria quando fico aqui sozinha. Sozinha. Como chupar escondida um cacho de uvas” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 48). A ênfase dada ao termo sozinha, repetido como uma frase independente, redimensiona as malhas subjetivas dessa personagem, que vive presa em uma concha, como em um exílio de si mesma.

Lorena vive um estado de quase paralisia joyceana: fica presa a um passado que não existe mais, nessa concha que simboliza o espaço de segurança da sua infância. Ainda que veja a necessidade de “Abandonar minha concha. Meu delicado mundo que amo tanto. Se ao menos fosse para ir com M.N., por que ele não me convida nessas suas viagens?” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 213-261). O seu objeto de desejo amoroso significaria a quebra da sua concha, a ruptura com esse espaço simbólico de um autoexílio.

Sobre a construção desse espaço simbólico de introspecção e centramento de si, Vanessa Rodrigues considera que

Durante a infância conheceu uma vida familiar perfeita, que a mãe tentou manter com a criação do quadro representativo do ideal de vida burguesa. Mais uma vez temos o espaço como representação da manutenção de um padrão imposto pela cultura na qual foi baseada sua criação, numa esfera de alienação burguesa em relação ao mundo lá fora. Este espaço de Lorena funciona como forte marca de sua alienação, em relação ao conturbado momento político que a cidade vive, devido ao caos provocado pelo Regime Militar que prevalece. (RODRIGUES, 2014RODRIGUES, Vanessa Aparecida Ventura. As marcas da memória na escrita de As meninas, de Lygia Fagundes Telles. 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) -Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115783/000805858.pdf?sequence=1 . Acesso em: 13 jan. 2021.
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, p. 66).

Concordamos com a interpretação de Rodrigues no sentido da alienação e silenciamento de Lorena em relação ao cenário político. Nesse sentido, questiona-se essa produção de silenciamento, uma vez que o silêncio, a ausência de ação verbal, não implica falta de sentido. O silêncio de Lorena semantiza o silêncio da sociedade, em um jogo de espelhamento entre o mundo diegético e o mundo social, em que não se consegue apontar, com exatidão, a razão desse silenciamento socialmente produzido. O motivo que pode ser especulado com maior grau de assertividade é a própria alienação, ou ainda, representação da classe burguesa que, em parte, foi favorável ao golpe, cedendo aos interesses capitalistas norte-americanos aglutinados ao elitismo local.

Nesse jogo de espelho, a burguesia decadente representada por Lorena também se vê apegada ao passado. O esplendor dos Vaz Leme, descendentes de bandeirantes, já foi corroído, e seu tempo glorioso não existe mais. Logo, da mesma forma que Lorena, a burguesia decadente também vive fechada em sua “concha”. Essa alienação de Lorena e sua classe se evidencia pelo seu discurso: “Lá fora as coisas podem estar pretas5 5 Não deixamos escapar que expressões como esta, “as coisas podem estar pretas”, apresentada pela consciência da personagem carregam uma conotação racista. Inclusive, tal expressão, nesse sentido, colabora para a verossimilhança da personagem, que representa justamente a classe burguesa imbuída de seus preconceitos. mas aqui tudo é rosa e ouro” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 48). Por essa enunciação do seu pensamento, vemos que a personagem não está tão alheia à situação política, já que reconhece que a situação “lá fora”, ou seja, no mundo social, está turbulenta, mas fecha-se na sua redoma.

Assim, as produções de subjetividade que atravessam a figura de Lorena alcançam o seu processo de figuração nessa relação entre texto literário e História pelo vetor da classe que representa. A configuração dessa personagem constrói, no ato da leitura, uma imagem de uma menina burguesa que vive alienada em meio às tensões políticas do seu tempo. À primeira vista, o leitor do romance pode pensar que Lorena é a mais distante das três em relação ao cenário histórico-político, mas é esse alheamento que produz os sentidos que erigem essa figura ficcional. Desse modo, o discurso por ela enunciado, sobretudo pelo fluxo de consciência, bem como sua agência na realidade diegética, projetam para o leitor as cargas semânticas que formulam tal imagem de Lorena.

Ana Clara Conceição, com sobrenome diferente do tradicional Vaz Leme de Lorena, ou do germânico Schultz de Lia, tem um nome comum de família. Esse dado, aparentemente superficial, na verdade revela a diferença de classe, já que Ana Clara vem de uma família desestruturada e sem condições. Aliás, é a única que apresenta apenas o sobrenome da mãe, diferente das outras. Sua mãe fora prostituta e ela própria sofreu abusos sexuais na infância. Esse trauma ocorrido na infância a faz ter uma visão amargurada e angustiada sobre o mundo.

Seu passado cruza o seu presente trazendo as fraturas da violência sexual e da marginalização. Um dos eventos traumáticos da infância refere-se ao Dr. Algodãozinho:

[...] - Ele vivia trocando o algodão dos buracos dos dentes, passava semana, mês, ano e ele vinha com aquele algodãozinho na pinça, ficou sendo o Doutor Algodãozinho.

- Mas você tem bons dentes, ahn? Não tem, Coelha? Meu lindo. Meu inocente amor. - Tenho. - Então o Doutor Algodãozinho era bom. Era. Era ótimo. Mudava o algodãozinho enquanto o buraco ia aumentando. Aumentando. Cresci naquela cadeira com os dentes apodrecendo e ele esperando apodrecer bastante e eu crescer mais pra então fazer a ponte. Uma ponte pra mãe e outra pra filha. Bastardo. Sacana. As duas pontes caindo na ordem de entrada em cena. Primeiro a da mãe que se deitou com ele em primeiro lugar e depois… Fui passando pela ponte a ponte estremeceu água tem veneno maninha quem bebeu morreu. (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 30).

O fio de pensamento que se segue ao diálogo na narração de Ana Clara recupera uma memória traumática da infância. Ele, que se aproveitara da mãe da personagem, também abusou de Ana Clara quando criança. Nesse fragmento de memória, Rodrigues observa que ponte tem uma duplicidade de sentido, “pois poderia ser a ponte dentária, ou uma passagem para a mesma vida desgraçada da mãe” (RODRIGUES, 2014RODRIGUES, Vanessa Aparecida Ventura. As marcas da memória na escrita de As meninas, de Lygia Fagundes Telles. 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) -Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115783/000805858.pdf?sequence=1 . Acesso em: 13 jan. 2021.
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, p. 79).

A personagem é atravessada por esse passado perturbador e pela exclusão social, e ingressa no mundo das drogas. Sua história de vida, marcada pelos signos da violência e da degradação, é encerrada com a morte ao fim da narrativa. Rodrigues (2014)RODRIGUES, Vanessa Aparecida Ventura. As marcas da memória na escrita de As meninas, de Lygia Fagundes Telles. 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) -Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115783/000805858.pdf?sequence=1 . Acesso em: 13 jan. 2021.
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entende que a morte de Ana Clara, ou Ana Turva, como era chamada pelas outras meninas pelo seu ar de misteriosa, é uma punição a uma mulher que ousou sonhar, extrapolando os limites da condição que a sociedade estratificada em que vivia lhe permitia.

Ela deixa evidente que esse passado lhe causa tormento: “Se pudesse lavar por dentro minha cabeça. Com escova. Esfregar esfregar até sair sangue” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 45). Esse impulso de lavar a cabeça por dentro e esfregar alude ao desejo de tirar, apagar, essas memórias perturbadoras e, nesse contexto, a droga possivelmente é uma forma de aliviar sua dor, ainda que de forma traiçoeira, pois a personagem morre de overdose, isto é, morre tentando esquecer seu passado.

Em termos de relação com o cenário político, Ana Clara projeta sua amargura, proveniente da dureza de sua vida, como forma de descaso à militância de Lia e à luta por justiça social. Essa posição ideológica da personagem evidencia-se pelo seu discurso, quando enuncia:

- Bastardos. Quero coisas lindas. Quero tudo que lembre dinheiro, bastante fartura. Adoro os Estados Unidos, por que não. Aquela subversiva tem raiva porque é uma dura, nunca vai ter nada, melhor que fique com os piolhentos, mas eu. O melhor hotel. Quantas estrelas tem o melhor hotel do mundo? (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 67).

Assim, Ana Clara desdenha das ideias políticas de Lia, o que é evidenciado pelo uso depreciativo do termo “subversiva”. Ainda, exalta os EUA, potência capitalista rival da União Soviética, comunista, durante a Guerra Fria, e força aliada dos militares durante a ditadura. Desse modo, a personagem, por ressentimento da vida, acaba enunciando um discurso contra uma classe da qual ela própria faz parte, como mulher pobre e excluída, mas com a qual não se identifica.

Em vista disso, abre-se o questionamento do porquê de Ana Clara se filiar a um discurso com raízes autoritárias. Uma explicação possível é que a opressão, a exclusão e a precariedade da sua vida distorceram a sua visão de mundo em direção a um sistema de organização de sociedade que, no contexto político da segunda metade do século XX, corresponde aos ideais do capitalismo e dos regimes de direita. Nessa ideia, um ciclo pode ser observado: o modo de vida capitalista, balizado pelo consumo e idealizado pela personagem, é um dos motores da degeneração da sua vida.

Desse modo, Ana Clara tem os seus processos figurativos atravessados por essas produções de subjetividade que emergem pela memória. Os traumas da infância, as lembranças que a perturbam, a instabilidade do seu lugar no mundo e a sua vida em meio às drogas se aglutinam a um discurso político de aceitação dos valores do setor capitalista, o que se evidencia como um resultado de anestesiamento devido a sua condição de vida. Sua imagem é construída, então, por meio desses sentidos que emergem pelo discurso, pela memória e pela agência da personagem.

Lia de Melo Schultz, ou Lião, como é também chamada, é a personagem que tem uma relação com o cenário histórico-político desenvolvida de uma forma mais aguda que as outras meninas. É filha de uma baiana, Diú, e Herr Paul, um ex-militar nazista que, conforme é dado na narrativa, foge do país então governado por Hitler quando percebe o que de fato era o nazismo. Lia representa a juventude pujante do final dos anos 1960, já entrando nos anos de 1970, com ímpeto revolucionário e com uma militância ativa. Faz parte do “aparelho”, grupo de resistência, e atende pelo nome de Rosa, como estratégia de proteção.

Nesse viés, Rodrigues (2014RODRIGUES, Vanessa Aparecida Ventura. As marcas da memória na escrita de As meninas, de Lygia Fagundes Telles. 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) -Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115783/000805858.pdf?sequence=1 . Acesso em: 13 jan. 2021.
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
, p. 71) questiona-se: “De onde veio essa revolta social? Por que Lia de Mello Schultz, uma menina sem revoltas, sem traumas, alimentou essa ânsia pela militância política?”. A resposta encontrada pela pesquisadora é que o ideal de liberdade de Lia a impulsiona na luta contra o regime autoritário.

A cosmovisão apresentada por Lia expressa a perspectiva revolucionária que contraria os valores do bloco capitalista: “A burguesia aí toda esplendorosa. Nunca os ricos foram tão ricos, podem fazer as casas com as maçanetas de ouro, não só os talheres mas as maçanetas das portas” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 13). A classe burguesa que Lia tanto critica, mesmo sendo parte dela, é símbolo da ideologia capitalista que antagoniza com a ideologia da personagem. Desse modo, sua enunciação e sua agência são efetivadas desde essa perspectiva de mundo.

Em relação à família, Rodrigues explica que

sua família segue um modelo familiar baseado na tradição, indo mais uma vez de encontro aos preceitos da personagem, pois no momento em que abandona a família para mudar-se para o Pensionato na capital paulista rompe com a estrutura familiar, visto que as filhas só deixavam a casa dos pais após o casamento. A personagem rompe com essa estrutura, mas leva somente bons momentos de sua infância, pois diferentemente de Lorena e Ana Clara, Lia traz, por meio da memória, a sensação de amparo e aconchego do meio familiar. Mas tinha que romper com a tradição pela grande necessidade de experiência e desejo de se ver desvinculada da mesma. (RODRIGUES, 2014RODRIGUES, Vanessa Aparecida Ventura. As marcas da memória na escrita de As meninas, de Lygia Fagundes Telles. 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) -Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115783/000805858.pdf?sequence=1 . Acesso em: 13 jan. 2021.
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
, p. 73).

Quando lembra da infância, Lia não o faz com saudosismo e nostalgia. Encara sua vida como uma sequência de ciclos que se abrem e naturalmente se fecham. Lia reconhece o amor dos pais, a sua baiana e o seu alemão, como afetivamente se refere a eles; inclusive, menciona que esse amor, o ambiente familiar, a sufoca. Diferentes dos percalços das outras meninas, os seus começam quando se muda para São Paulo e entra na militância política, construindo, assim, a personagem como uma típica comunista daquela época: praticante do desapego e revoltada com as injustiças do mundo.

Além disso, o seu enredo familiar é cruzado por um passado obscuro, presente na figura do pai, Herr Paul, um nazista que foge do Terceiro Reich e da Segunda Guerra. Lia, no entanto, não tem um sentimento de amargura em relação ao pai: “Quando meu pai que é distraído à beça viu de perto o que era realmente o nazismo, arrancou a farda e veio trotando por aí afora até Salvador” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 50). O pai, que era “um nazista de águia no peito” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p.50), não é objeto de ressentimento de Lia pelo seu passado como militar ao lado do Führer. Em seu discurso, a personagem, inclusive, exime o pai de culpa ao enfatizar sua personalidade distraída.

É por Lia que se erige, de uma forma mais proeminente, um testemunho ficcional do momento político que o país atravessa. É Lia que apresenta a Madre Alix um trecho de depoimento de um torturado:

Não consigo mais ficar sentada, me levanto. Assumo o risco. - Não, Madre Alix. Confesso que estou mudando, a violência não funciona, o que funciona é a união de todos nós para criar um diálogo. Mas já que a senhora falou em violência vou lhe mostrar uma - digo e procuro o depoimento que levei pra mostrar ao Pedro e esqueci. - Quero que ouça o trecho do depoimento de um botânico perante a Justiça, ele ousou distribuir panfletos numa fábrica. Foi preso e levado à caserna policial, ouça aqui o que ele diz, não vou ler tudo: Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam, Traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial frequentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resisti e resisti também às surras que me abriram um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choques em mim mesmo e em meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-de-arara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos, mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido às algemas, minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas. E etecetera, etecetera. (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle., p. 125-126).

É fazendo da enunciação um ato de agência que Lia passa adiante aquele depoimento da dor e da violência do regime. Ela assume o risco em um ato de coragem, pois Madre Alix poderia ser partidária da ditadura. Lia, então, representa a resistência ao regime: delata a violência, toma partido contrário à barbárie, assume uma posição comunista. Isso no cenário de “caça” aos comunistas que atravessou a Guerra Fria no cenário internacional e que é base para a Ditadura Militar no Brasil.

Lia encerra sua jornada com a fuga para a Argélia, em companhia do namorado. Assim, fechando um ciclo, como é o percurso de sua vida. Nesse sentido, a personagem tem a sua construção alicerçada na militância política: um olhar sensível às desigualdades, a resistência ao poder capitalista, os esforços em posicionar-se contra o regime e a narrativa familiar que se enraíza no nazismo. Assim como as outras personagens, é a sua voz e a sua agência no seu cruzamento com a matriz histórica que conduzem os processos de produção de sentido que engendram a figura ficcional.

Pelo exposto, as três meninas, enquanto personagens que habitam o nível da história, constroem sentidos sobre si mesmas pela sua enunciação e agência. Com histórias de vida, classes sociais e posicionamentos distintos, situam-se em um contexto histórico-político e a sua relação com este é elemento chave para as suas dinâmicas figurativas. A configuração das personagens passa pelo crivo do seu posicionamento na cartografia política do século XX: a alienação de Lorena, a complexa “conivência” de Ana Clara e a militância de Lia. Três posicionamentos distintos que são fonte semântica para erigir a imagem das figuras ficcionais.

Desse modo, a História, a relação das personagens com a História, é central para os processos de produção de subjetividade desenrolados na narrativa e a construção da imagem das personagens para o leitor.

Wilhelm Schapp entende que

O essencial, o que conhecemos dos homens, parecem ser suas histórias e as histórias que o cercam. Através dessas histórias, entramos em contato com sua personalidade. O homem não é o homem em carne e osso. Em seu lugar impõem-se sua história, como o que ele tem de mais seu. (SCHAPP, 2007SCHAPP, Wilhelm. Envolvido em histórias: sobre o ser do homem e da coisa. Trad. Maria da Glória Lacerda Rurack, Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 2007., p. 118).

O filósofo alemão fala em um enredamento que compreende justamente esse envolvimento, esse atravessamento de histórias, de narrativas, que afetam o sujeito. Nesse viés, a própria História enreda o sujeito que, nessa posição, é como se estivesse envolto em uma teia em que cada fio é uma narrativa.

É isso que ocorre com as protagonistas de As meninas; elas estão enredadas em histórias: as histórias de vida de cada uma, suas histórias familiares, a narrativa nacional e a história mundial, como em uma progressão. Lorena é afetada pela história trágica do falecimento do irmão e em relação às narrativas mais amplas, do país e do cenário internacional, mantém-se alienada. Ana Clara, por sua vez, carrega a história familiar da exclusão e da violência sexual e toma uma posição de idealização do lado capitalista da História. Já Lia que tem o nazismo atravessando a sua narrativa genealógica, posiciona-se do lado comunista do conflito que domina a História do século XX.

Cada uma das três meninas toma uma posição diferente em relação à História, assim, enredam-se na narrativa histórico-política do século XX e isso se torna elemento decisivo nos seus processos de subjetivação. As personagens também são afetadas pelas histórias de vida de cada uma das outras, completando as amarras desse enredamento. Portanto, “os indivíduos compreendem a si mesmos e suas respectivas biografias diante do horizonte da História na qual eles se veem enredados” (STRAUB, 1998STRAUB, Jürgen. Geschichte erzählen, Geschichte bilden. In: STRAUB, Jürgen (Org.) Erzählung, Identität und historisches Bewußtsein. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1998., p. 91).6 6 Tradução livre de: “Auch Individuen begreifen sich bzw. ihre jeweilige Lebensgeschichte häufig vor dem Horizont der Historie, in die sie sich verstrickt sehen”.

Considerações finais

Procuramos evidenciar, neste artigo, que a produção literária, seja na sua articulação formal, ou nas temáticas contempladas, não fica alheia ao cenário político do conturbado século XX, a “era dos extremos”, nas palavras de Hobsbawn (1995)HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.. Nesse sentido, a ficção toma as movências da História como material de criação literária em que Literatura e História se ressignificam mutuamente.

Os eventos históricos que marcam o século XX, as grandes guerras, a tensão da Guerra Fria e os regimes de autoritarismo, não são isolados, um dá propulsão ao outro. As duas guerras mundiais exerceram influência na Guerra Fria que, por sua vez, na ânsia de combate ao comunismo, sedimentou a via para a instauração da Ditadura Militar no Brasil.

Esse cenário histórico é explorado no romance As meninas, de Lygia Fagundes Telles, de uma maneira muito particular. Na narrativa, o cenário político da segunda metade do século XX é trazido à tona não apenas como um fundo. No romance de Lygia, o foco principal não é como essas três personagens atravessam esse período da História, pelo contrário: é como esse panorama histórico-político dá as coordenadas para a efetivação das suas produções de subjetividade e a matéria para os seus processos de figuração.

Os discursos das três personagens situam as suas cosmovisões e, desse modo, são o elemento decisivo na dinâmica figurativa das três figuras ficcionais para o leitor. É pela enunciação, ou seja, pelos dispositivos retóricos, que entendemos a posição de cada uma das meninas em relação ao Regime Militar: Lia absolutamente contrária e símbolo de resistência; Ana Clara, que não se assombra com o contexto, inclusive faz pouco caso das preocupações de Lia; e Lorena, que não se envolve diretamente. Nesse sentido, é o fundo histórico que dá liga às dinâmicas que constroem a imagem das três personagens para o leitor. Assim, por meio desse processo de produção de sentidos que transita entre o ficcional e o histórico, as figuras ficcionais emergem. Em outros termos, a relação dialógica entre texto literário e matéria histórica é fundamental para que o leitor construa uma imagem das três meninas.

Portanto, o entrecruzamento entre ficção e História é essencial para o desdobramento das dinâmicas figurativas das personagens, assim como desvela o período de tensão política do século XX, sobretudo da Ditadura Militar no Brasil, por meio da costura de diferentes histórias de vida.

Referências

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  • GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.
  • HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • KLEIN, Christian; MARTÍNEZ, Matías (Org.). Wirklichkeitserzählungen Felder, Formen und Funktionen nicht-literarischen Erzählens. Stuttgart: J.B. Metzler, 2009.
  • ORTNER, Sherry B. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam Pillar; ECKERT, Cornelia; FRY, Peter Henry (Org.) Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova Letra, 2007. p. 45-80.
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  • RODRIGUES, Vanessa Aparecida Ventura. As marcas da memória na escrita de As meninas, de Lygia Fagundes Telles 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) -Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115783/000805858.pdf?sequence=1 Acesso em: 13 jan. 2021.
    » https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115783/000805858.pdf?sequence=1
  • SCHAPP, Wilhelm. Envolvido em histórias: sobre o ser do homem e da coisa. Trad. Maria da Glória Lacerda Rurack, Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 2007.
  • SILVA, Juremir Machado da. 1964 - Golpe midiático-civil-militar 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2014.
  • STRAUB, Jürgen. Geschichte erzählen, Geschichte bilden. In: STRAUB, Jürgen (Org.) Erzählung, Identität und historisches Bewußtsein Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1998.
  • TELLES, Lygia Fagundes. As meninas São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Edição Kindle.
  • TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo Trad. Caio Meira. 8. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2018.
  • ZILBERMAN, Regina. Conhecer é preciso. In: NIEDERAUER, Silvia; RODRIGUES, Inara de Oliveira (Org.). Brasil e Portugal: a ditadura entre luzes e sombras - leituras literárias. Frederico Westphalen: URI, 2015. p.13-17.
  • 1
    Preferimos a utilização do termo História, com inicial maiúscula, no sentido da ciência e narrativa historiográfica para diferenciá-lo de história, no sentido de nível narrativo no qual são arranjados os nexos causais e temporais do enredo.
  • 2
    Para Hannah Arendt, por exemplo, a história não é neutra; em suas palavras, é um constructo ideológico (ARENDT, 1973ORTNER, Sherry B. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam Pillar; ECKERT, Cornelia; FRY, Peter Henry (Org.) Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova Letra, 2007. p. 45-80., p. 108).
  • 3
    Tradução livre de: “die sprachliche Darstellung eines Geschehens, also einer zeitlich organisierten Abfolge von Ereignissen, […] auf reale Begebenheiten, auf Wirklichkeit”.
  • 4
    Por agência, um termo utilizado nos estudos antropológicos, entendemos o que Ortner (2007ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 64) descreve como “sinônimo das formas de poder que as pessoas têm à sua disposição, de sua capacidade de agir em seu próprio nome, de influenciar outras pessoas e acontecimentos e de manter algum tipo de controle sobre suas próprias vidas. Agência, neste sentido, é pertinente tanto no caso da dominação quanto no da resistência”.
  • 5
    Não deixamos escapar que expressões como esta, “as coisas podem estar pretas”, apresentada pela consciência da personagem carregam uma conotação racista. Inclusive, tal expressão, nesse sentido, colabora para a verossimilhança da personagem, que representa justamente a classe burguesa imbuída de seus preconceitos.
  • 6
    Tradução livre de: “Auch Individuen begreifen sich bzw. ihre jeweilige Lebensgeschichte häufig vor dem Horizont der Historie, in die sie sich verstrickt sehen”.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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