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Em virtude do muito desejar: a personagem Flora, do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, à luz do desejo mimético

By virtue of deep desiring: the character Flora, from the novel Esau and Jacob by Machado de Assis, in the light of mimetic desire

Resumo

Em estudo sobre as metáforas machadianas, Dirce Côrtes Riedel (1979) identifica, no capítulo LXXXIII de Esaú e Jacó, a presença de nove grandes paradoxos estruturantes do modo como é narrada a situação vivida por Flora, no decorrer de uma noite de insônia, em que sofre a angústia da cisão interna de seu desejo oscilante entre os irmãos Paulo e Pedro. Este trabalho parte da premissa de que a personagem corresponde à personificação do desejo e que o paradoxo funciona, na literatura e na poesia, como um eficiente recurso de figuração desse impulso humano. Pretendemos mostrar de que maneira o dilema da “inexplicável” Flora diz respeito ao próprio modo de ser e à própria dinâmica de funcionamento do desejo. Para alcançarmos esse objetivo utilizaremos a teoria do desejo mimético, tal como a desenvolveu René Girard em seus principais livros, Mentira romântica e verdade romanesca e Coisas ocultas desde a fundação do mundo.

Palavras-chave:
desejo mimético; Esaú e Jacó; René Girard

Abstract

In a study of Machado’s metaphors, Dirce Côrtes Riedel (1979) identifies, in chapter LXXXIII of Esau and Jacob, the presence of nine great paradoxes structuring the way that Flora’s situation is narrated, during a sleepless night, while she suffers the anguish of the inner split of her oscillating desire between the brothers Paulo and Pedro. This paper starts from the premise that the character corresponds to the personification of desire and that paradox operates, in literature and poetry, as an efficient resource to represent this human impulse. We intend to show how the dilemma of the “inexplicable” Flora concerns her own way of being and the dynamics of desire. To achieve this aim, we will use Rene Girard's theory of mimetic desire, as developed in his main books, Deceit, Desire, and the Novel: Self and Other in Literary Structure and Things Hidden Since the Foundation of the World.

Keywords:
mimetic desire; Esau and Jacob; Rene Girard

Resumen

En el estudio de las metáforas machadianas, Dirce Côrtes Riedel (1979) identifica, en el capítulo LXXXIII de Esaú e Jacó, la presencia de nueve grandes paradojas estructurantes del modo como es narrada la situación vivida por Flora, en el transcurso de una noche de insomnio, en la que sufre la angustia de la escisión interna de su deseo oscilante entre los hermanos Paulo y Pedro. Este trabajo parte de la premisa de que el personaje corresponde a la personificación del deseo y que la paradoja funciona, en la literatura y la poesía, como un eficiente recurso de figuración de este impulso humano. Pretendemos mostrar cómo el dilema de la “inexplicable” Flora dice respecto al propio modo de ser y la propia dinámica de funcionamiento del deseo. Para lograr este objetivo utilizaremos la teoría del deseo mimético, tal como la pensó René Girard en sus principales libros, Mentira romántica y verdad novelesca y Cosas ocultas desde la fundación del mundo.

Palabras clave:
deseo mimético; Esaú e Jacó; René Girard

O desejo segundo o Outro é sempre o desejo de ser um Outro. Há um único desejo metafísico, mas os desejos particulares que concretizam esse desejo primordial variam ao infinito.

René Girard

Principiemos por recorrer à teoria do desejo mimético de René Girard, atentando para o trecho escolhido como epígrafe, mais pontualmente a partir do termo “metafísico”, que, na passagem citada, cumpre a função de adjetivar aquela que é a noção central da teoria mimética: o desejo humano. Há bem pouco da carga semântica da antiga tradição filosófica no empréstimo que Girard faz da palavra: o metafísico do desejo, no sentido girardiano, diz respeito ao fato de que somos mobilizados menos por força dos objetos ou pessoas que nos despertam o interesse do que por um ímpeto de nos apropriarmos de um “ser” que nos é exterior e a partir do qual julgamos estar desprovidos. Por trás do desejo “físico” (de ordem objetal, sexual: desejo de posse, em suma) atua o metafísico, e isso repercute exatamente no grau de interesse que o objeto desperta no sujeito desejante. O significado dessa afirmação pressupõe que se entenda o que Girard, ainda na citação da epígrafe, chamou de “desejo segundo o Outro”.

Trata-se da premissa central da teoria mimética, já presente no primeiro livro publicado pelo autor em 1961, o Mentira romântica e verdade romanesca, e constantemente reiterada em suas publicações posteriores. Em sua obra de estreia, Girard afirma: “para que um vaidoso deseje um objeto, basta convencê-lo de que esse objeto já é desejado por um terceiro a quem se agrega um certo prestígio.” (2009GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009., p. 31). Há algo nessa explicação sobre o funcionamento do desejo de um vaidoso que é válido, em princípio, para a dinâmica de todo desejo humano: a mediação. A explicação girardiana irá pressupor, portanto, a presença de um “terceiro” (ao qual o teórico se refere como “mediador” ou “modelo”) que se interpõe entre sujeito desejante e objeto desejado. Na verdade, a rigor, é sempre o sujeito desejante o elemento “terceiro” da triangulação na medida em que esse sujeito sempre irá “imitar” o desejo alheio, tal como, para que o interesse do vaidoso pelo objeto seja despertado, ele precise de um algum acionamento externo.

Grosso modo, as considerações do parágrafo anterior pretendem chamar a atenção para a principal intuição girardiana: a de que sempre desejamos à luz, por assim dizer, do desejo alheio. É isso que explica a opção pelo termo “mimético” de que Girard se valeu para designar a sua teoria. A figura do mediador teria o papel de “iluminar” os objetos desejáveis, transfigurando-os aos olhos do eu desejante. Desse modo, as coisas são investidas de valor a partir do fato mesmo de terem sido desejadas por outrem, antes, pois, que o sujeito as desejasse. Isso mostra que a figura do mediador/modelo ocupa um importante lugar nessa teoria e, de fato, a depender do tipo de mediação ou da dinâmica com que ela se articula, diferentes modalidades de afetos e paixões de toda ordem se manifestam: ciúmes, rivalidades, ódio, vaidade, masoquismo e até psicopatologias.

Segundo René Girard (2009GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009.), as sociedades modernas, fortemente laicizadas e refratárias à figura de um mediador/modelo transcendente, porém, ao mesmo tempo, incapazes de extirpar o mimetismo intrínseco às relações interpessoais, realizam aquilo que ele considerou como sendo uma “transferência desviada para o humano” da qual a literatura de Proust e, em maior grau, a de Dostoievski, seriam testemunho. É desse modo que é possível entender a relação inversamente proporcional entre o físico e o metafísico presente na citação do parágrafo anterior: se o meu modelo é um ser espiritualmente distante ou transcendente, meu desejo mantém-se ocupado com os objetos, já que o ser desse mediador me é inalcançável, o que praticamente interdita o desejo metafísico. Por outro lado, a proximidade do mediador a que Girard se refere diz respeito a esse desvio da transcendência para o humano, o que alimenta consideravelmente o desejo metafísico e todas as suas consequências, entre as quais a rivalidade.

No âmbito da rivalidade mimética ou, pelo menos, em seus níveis mais acirrados, o circuito da triangulação sofre alguma perturbação que pode ser explicada por dois movimentos. O primeiro é a identificação entre o objeto e o modelo ou, em outras palavras, a conversão do mediador em obstáculo para o acesso ao objeto desejado. O segundo movimento, de consequências mais profundas, é o próprio apagamento do objeto e a tomada total do terreno pelo antagonismo e pela rivalidade pura. Acompanhemos o seguinte comentário de Girard no livro Coisas ocultas desde a fundação do mundo, de 1978:

Essa transfiguração que não corresponde a nada de real faz, no entanto, aparecer o objeto transfigurado como aquilo que há de mais real. Podemos qualificá-la de ontológica ou metafísica. Podemos decidir não empregar a palavra desejo senão a partir do momento em que o mecanismo incompreendido da rivalidade mimética tenha conferido essa dimensão ontológica ou metafísica àquilo que antes era apenas um apetite ou necessidade. Aqui somos obrigados a empregar termos filosóficos. [...]

A noção de desejo metafísico não implica nenhuma tentação metafísica de minha parte, muito pelo contrário. Para compreendê-la, é necessário e suficiente enxergar o parentesco entre aquilo de que estamos falando agora e o papel desempenhado por noções no fundo muito próximas como a honra, o prestígio, em certas rivalidades socialmente regradas: duelos, competições esportivas etc. É a rivalidade que gera essas noções; elas não têm realidade tangível e, no entanto, o fato de se rivalizar por elas faz que pareçam mais reais do que qualquer objeto real. (2008GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. A revelação destruidora do mecanismo vitimário. Tradução de Martha Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008., p. 338)

Retraimento da realidade física e recrudescimento do metafísico encontram-se conectados pelo fenômeno da rivalidade, como a passagem citada permite perceber. Se até aqui nos ativemos a considerações circunscritas às relações de âmbito interpessoal, convém mencionar as importantes reflexões que Girard empreendeu sobre esse tema no terreno da antropologia.

Como destaca Golsan (2014GOLSAN, Richard. Mito e Teoria Mimética: Introdução ao Pensamento Girardiano. Tradução de Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2014. , p. 59), à proporção que Girard desenvolveu sua teoria, foi inevitável refletir sobre o caráter violento do desejo mimético. O teórico, por isso, compreendeu que, diferentemente das sociedades modernas e legalmente estabilizadas, a procura por uma vítima substituta considerada culpada pelas desavenças que ameaçavam a harmonia coletiva tinha a finalidade de proporcionar às comunidades antigas uma espécie de catarse por meio de sua expiação que, por sua vez, era responsável por garantir uma estagnação, provisória, da violência na comunidade. Nesse sentido, o religioso, por meio dessa substituição sacrificial, promovia o papel de evitar o colapso social usando a própria violência como um preventivo para uma crise maior. Desse modo, torna-se evidente, para Girard (1990GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. ), que a rivalidade e o desejo estão intimamente ligados, de maneira que, se todos os homens imitam, logo, eles também rivalizam em diferentes níveis, como nas relações afetivas e nas ambições profissionais.

O agravamento das angústias causado pela crença na ilusória promessa de que é possível possuir o ser do outro ocorre, ainda, devido a uma espécie de “liberalização” dos costumes, típico das sociedades modernas. Para o pensador, a visão transgressora do desejo tem o potencial de causar conflitos porque ela pode transformar certos interditos culturais (alguns deles têm uma razão evidente para existir a exemplo da interdição da violência) em obstáculos. Girard (2008GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. A revelação destruidora do mecanismo vitimário. Tradução de Martha Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008., p. 32) considera que essa concepção pode ser entendida de melhor forma ao ponderarmos que a nossa compreensão de violência é diferente daquela adotada por muitas sociedades primitivas que, pela razão de serem desprovidas de um sistema judiciário, bloqueavam o avanço das discórdias através dos interditos.

Girard parte da ideia de que a violência, assim como o desejo mimético, é contagiosa. Um exemplo seria a vingança que, por meio das hostilidades recíprocas, pode levar a disputas sangrentas. À vista disso, o autor adota a expressão “bode expiatório” para se referir ao mecanismo vitimário que culpabilizava uma vítima ou um grupo minoritário pela desordem na qual a sociedade se encontrava. Alguns dos casos mencionados pelo autor sobre a prática expiatória são ambientados em comunidades arcaicas predominantemente religiosas. Todas as formas de expiação eram realizadas coletiva e ritualmente para evitar o círculo da vingança, que é uma forma de rivalidade viciosa responsável por apagar cada vez mais o objeto e pôr em destaque o adversário.

Para demonstrar os efeitos da proximidade entre sujeito desejante e mediador, Girard (2009GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009., p. 81) toma como exemplo o princípio filosófico da “morte de Deus”. Segundo o teórico francês, essa “boa nova da modernidade”, comum a todos os homens, promoveu a consciência de existir acompanhada pela crença de estar sozinho perante outros indivíduos. Isso também é causa de angústia em razão de se imaginar que os demais possuem aquilo que o sujeito desejante pensa não conseguir obter, a exemplo de bens materiais e posição social. Assim, com o apagamento de um mediador comum e transcendente, a divindade, outros mediadores encontram-se mais próximos, o que intensifica cada vez mais o desejo mimético.

Contudo, nem sempre a imitação do desejo é empreendida apenas pelo sujeito desejante. Considerando que o desejo mimético é contagioso, o modelo também pode voltar-se para o desejo de seu imitador, reforçando a posse ou a maior proximidade que ele tem do objeto. Com efeito, o sujeito sofre pela hostilidade do modelo, questionando-se o porquê de o objeto lhe ser recusado. Em contrapartida, o mediador, ao notar que o seu discípulo se aproxima daquilo que é desejado, volta-se contra ele, oferecendo maior dificuldade para a conquista do objeto.

Por isso, na teoria girardiana, é essencial compreender que as diferenças só são visíveis em um primeiro momento. Segundo o autor, com o tempo, é comum que as posições iniciais de sujeito e modelo alternem. A indiferenciação entre ambos representa o avanço do desejo mimético e da rivalidade. As formas de concorrência, portanto, são afloradas conforme os antagonistas perdem as diferenças um em relação ao outro. Como resultado, o objeto que, inicialmente, provocou a contenda, começa a desaparecer e os rivais disputam por qualquer outra coisa que é colocada entre eles.

Paradoxalmente, é a vontade demonstrada pelo antagonista em diferir que proporciona a perda das diferenças que se mostra na reciprocidade violenta ou na vingança. No ensaio Inovação e repetição, Girard (2002GIRARD, René. Inovação e repetição. In: GIRARD, René. A voz desconhecida do real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos. Tradução de Filipe Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 221-239., p. 226) explica, por exemplo, como o desejo de diferir nos âmbitos da arte e da cultura, por meio das rupturas, apresenta resquícios de mimetismo e de rivalidade. Quando os rivais tentam diferir um do outro é porque uma espécie de simetria foi instalada entre eles. Dessa maneira, não sendo mais possível diferenciá-los de forma bem definida, eles passam a ser duplos. Para René Girard (1990, p. 186), na obra A violência e o sagrado, o duplo é um fenômeno comumente presente nas relações humanas.

Em seus estudos antropológicos, Girard apresenta uma breve discussão quanto à natureza da discórdia entre irmãos. O autor observa que, em algumas comunidades arcaicas, os gêmeos provocavam temor, visto que a indiferenciação entre eles parecia anunciar a manifestação de uma violência maléfica, também contagiosa. Não apenas as semelhanças físicas dos gêmeos dão sinais de indiferenciação violenta, mas a fraternidade em si apresenta, mais do que qualquer outro grau de parentesco, poucas distinções.

Os gêmeos, conforme Girard (1990GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. , p. 84-85), não são mais predispostos à violência do que os outros homens ou irmãos. A fobia arcaica que repousa sobre eles é mítica, conquanto não se pode afirmar o mesmo sobre a presença da rivalidade entre irmãos. Desse modo, compreendemos que a distinção fundamental entre os gêmeos e os irmãos inimigos consiste no fato de que enquanto os primeiros apresentam a não-diferença por excelência ou de forma mais explícita, os segundos encontram-se em um contexto familiar “regular”, no qual a dissolução das diferenças ocorre em decorrência do conflito. À vista disso, conforme a rivalidade entre os irmãos avança, eles se tornam duplos que possuem não apenas o mesmo desejo, a mesma violência e estratégia, mas também as mesmas “vitórias e derrotas alternadas, as exaltações e as depressões: em toda parte encontra-se a mesma ciclotimia.” (GIRARD, 1990GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. , p. 198)

Considerar que a literatura machadiana se ocupou da problemática do desejo humano e suas implicações e efeitos como a vaidade, a rivalidade e o ciúme consiste numa platitude aqui evocada unicamente com o intuito de sugerir que, por esse motivo, ela se afirma como um excelente material para se pensar as sinuosidades do desejo mimético. Lembremos que a teoria girardiana é gestada justamente a partir da análise de obras literárias por meio das quais o pensador francês conferiu às já consagradas noções de “romântico” e “romanesco” outros significados. A primeira, aplicou ele às obras literárias que “refletem a presença do mediador sem jamais revelá-la” (2009GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. , p. 40) e a segunda reservou àquelas que revelam a presença do mediador.

A relação que Girard estabelece com a literatura é substancial não apenas para o entendimento das interações miméticas que permeiam as relações entre as personagens, mas também no que se refere ao processo criativo dos escritores diante da revelação do mimetismo no desejo. Para o teórico, alguns autores conseguiram observar as consequências conflituosas do desejo mimético e as transportaram para suas obras:

Dois desejos que convergem para um mesmo objeto constituem um obstáculo recíproco. Qualquer mimese relacionada ao desejo conduz necessariamente ao conflito. Os homens são sempre parcialmente cegos para esta causa da rivalidade. O mesmo, o semelhante, nas relações humanas, evoca uma ideia de harmonia: temos os mesmos gostos, apreciamos as mesmas coisas, fomos feitos para nos entender. O que acontecerá se tivermos realmente os mesmos desejos? Apenas alguns grandes escritores interessam-se por este tipo de rivalidade. (GIRARD, 1990GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. , p.185).

Em Esaú e Jacó, o antagonismo entre irmãos pode ser discutido através da perspectiva do teórico francês sobre a rivalidade mimética. No capítulo “Teste David cum Sibylla”, de acordo com a personagem Plácido, o nome dos gêmeos Pedro e Paulo já indica “alguma rivalidade, porque esses dois apóstolos brigaram também” (MACHADO DE ASSIS, 2012MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Esaú e Jacó. São Paulo: Penguin Classics, 2012. , p. 64). No caso dos gêmeos, as discordâncias incidem mais sobre assuntos políticos do que religiosos, ainda que os motivos dos conflitos sejam diversificados. Essas noções divergentes interferem nas posições que cada um deles adota em relação aos acontecimentos da época, como a tomada do poder pelos liberais, a emancipação dos escravos em 1888 e a instauração da República em 1889. Tais eventos são mencionados no enredo, uma vez que ele é desenvolvido entre o início da década de 1870 e os últimos anos da década de 1880, período marcado pela instabilidade da monarquia no Brasil que culminou em sua derrocada.

A indiferenciação mostra-se, indubitavelmente, nas características físicas de Pedro e Paulo: “Os mesmos olhos claros e atentos, a mesma boca cheia de graça, as mãos finas, e uma cor viva nas faces que as fazia crer pintadas de sangue” (MACHADO DE ASSIS, 2012MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Esaú e Jacó. São Paulo: Penguin Classics, 2012. , p. 68-69). Para além dessas semelhanças evidentes na aparência, o desejo mútuo de divergir também indica, à primeira vista de forma paradoxal, a perda das distinções. Citando caso análogo, na infância dos rapazes, se Pedro era mais dissimulado, Paulo era mais agressivo. Já na idade adulta, a oposição é expressada, sobretudo, por meio das opiniões políticas, um monarquista e o outro republicano. Diante disso, o jogo da reciprocidade continua vigente, sem que os entes envolvidos o percebam. A diferença existente, neste caso, era a de que “cada um sabia melhor o seu gosto”, podendo usá-lo contra o outro dentro do relacionamento mútuo que ambos sustentam.

A advertência e a epígrafe, no início da obra, dão a entender que o assunto da relação rixosa dos gêmeos pode ser localizado desde a origem, Ab ovo, ou desde o nascimento, como infere-se da citação de um trecho da Divina comédia. Por conseguinte, o próprio narrador, a par de que o leitor ou leitora compreende que os irmãos sempre duelam, introduz a personagem Flora, a moça por quem ambos criam afeto. Logo, se os irmãos brigam por uma abundância de temas, é de se esperar que, no amor, isso também aconteça, como o narrador evidencia ao considerar a vontade de uma leitora para chegar logo ao capítulo que trate desse assunto: “Mas se duas velhas gravuras os levam a murro e sangue, contentar-se-ão eles com a sua esposa?” ou “[...] Já estou cansada de saber que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que assisto às blandícias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, às duas, se não é uma só a pessoa...” (MACHADO DE ASSIS, 2012MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Esaú e Jacó. São Paulo: Penguin Classics, 2012. , p. 89).

Para Antonio Candido (1977CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1977. p. 15-32., p. 26), a permanente rivalidade dos irmãos constitui uma representação simbólica do questionamento corriqueiro, no romance machadiano, sobre o sentido dos atos. De acordo com o crítico brasileiro, os gêmeos são oposições um do outro e o ato de cada um deles é uma resposta invariavelmente alternativa diante do irmão. Assim, os motivos, bem como algumas escolhas, sobrevêm do posicionamento oposto que eles adotam. É possível constatar, portanto, que Pedro e Paulo disputam por qualquer objeto, de modo que compreender o desejo deles significa considerá-los como duplos. Dado esse caráter, por assim dizer, arquetípico, no que diz respeito à representação da rivalidade, é a Flora que coube a dimensão profunda e, portanto, dilemática e psicologicamente mais complexa do desejo, razão pela qual é dela que nos ocuparemos para abordar os aspectos mais paradoxais pelos quais se manifesta o desejo metafísico.

Sem dar vestígios a respeito de sua tomada de decisão, Flora recebe, com o mesmo carinho, as acirradas demonstrações de afeto, tanto de Paulo quanto de Pedro. Somada a essa correspondência equilibrada, a ausência de um gêmeo entristece a personagem, como se observa nos bailes em que um dos dois está ausente. Assim, é difícil predizer qual dos irmãos Flora irá escolher, já que o seu desejo parece comprometido pela complexidade que ela representa, conforme Aires tenta definir por meio do epíteto de “inexplicável”, referido também aos pintores que não terminam suas obras, retocando tanto as imagens “que alguns morrem entre dois olhos, outros matam-se de desespero” (MACHADO DE ASSIS, 2012MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Esaú e Jacó. São Paulo: Penguin Classics, 2012. , p. 102). Apesar de obscuro, como pensa Flora, o paralelo feito pelo conselheiro dá a entrever a impossibilidade da tomada de decisão que cresce à medida que a personagem se vê mais pressionada.

Estudiosos da obra machadiana também destacaram a complexidade de Flora e, consequentemente, sua inaptidão para escolher um dos dois irmãos, a exemplo de Henriqueta do Coutto Prado Valladares (2013VALLADARES, Henriqueta Do Coutto Prado. Esaú e Jacó: olhares sobre a leitura. São Paulo: É Realizações, 2013. 180 p., p. 174-180) que, em um estudo sobre Esaú e Jacó, destaca que Flora manifesta dúvidas e inquietações a respeito do papel feminino na sociedade de seu tempo, sobretudo quando recusa casar-se com Nóbrega. Ressaltamos, também, o comentário de Alexandre Eulálio (2012EULÁLIO, Alexandre. Tempo reencontrado: ensaios sobre arte e literatura. São Paulo: Instituto Moreira Salles; Editora 34, 2012. 119 p., p. 119) que sugere a aspiração metafísica da moça, razão pela qual ela se perderia no real que a impele cada vez mais a eleger ou Pedro ou Paulo:

Para além da zona estritamente psicológica da personagem, Flora representa claramente uma ânsia de infinito e de absoluto que só se pode estabelecer em contraposição à realidade fenomênica; por isso a atmosfera mais adequada, na qual ela se sente à-vontade, é a polida, inefável, da música (Flora e seu piano), da serenidade (Flora e seu ensinamento), da luz cristalina (os estáticos arroubos de Flora) - o espaço inalcançável de uma criação pura que renuncia ao ser, anteparo de outra realidade sublime mas irrespirável: Absoluto Ideal. Estamos diante da grande temática do século que, desde o Iluminismo romântico alemão, chegará ao simbolismo mallarmeano através de Nerval, Shelley, Keats e Baudelaire, tendo como avulso continente filosófico as sombras dialéticas de Locke, Kant, Hegel, Schopenhauer.

O “Absoluto Ideal” de Flora, que, para Eulálio (2012EULÁLIO, Alexandre. Tempo reencontrado: ensaios sobre arte e literatura. São Paulo: Instituto Moreira Salles; Editora 34, 2012. 119 p., p. 118), também representa um “mal metafísico” e uma “extraordinária modernidade”, demonstra-se pelo desejo, por ela externado, de que os dois irmãos se unam e transformem-se em um só, como sugerem suas alucinações, no capítulo “Fusão, difusão, confusão...”. Marli Fantini Scarpelli (2004SCARPELLI, Marli Fantini. Repetição e diferença: Esaú e Jacó, de Machado de Assis. In: JUNIOR, Benjamin Abdala; SCARPELLI, Marli Fantini (org.). Portos Flutuantes: trânsitos ibero-afro-americanos. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. p. 207-232. , p. 226) acrescenta que a totalidade desejada por Flora, resultante de sua inaptidão para escolher e do seu anseio pela perfeição, causa nela uma cisão interior que algumas vezes a induz a unir os dois irmãos (fusão) e em outras separá-los (difusão). Flora passa a confundir as vozes de Pedro e Paulo, da mesma maneira que tem sonhos com um ser constituído por ambos. Essas visões, repentinas e breves, ocorrem cada vez mais, o que proporciona à Flora, inicialmente, a sensação de deleite. Trata-se de uma transfusão na qual um outro é formado a partir da junção dos gêmeos, imagem que assusta a personagem quando, deparada com os dois irmãos “desdobrados”, percebe a fantasmagoria das cenas. Já no capítulo “Ai, duas almas” o narrador pede à Flora que recorra a Goethe para expressar sua situação inquietante e confusa a qual leva a personagem a se retrair pouco a pouco em si mesma, perdendo a alegria mesmo quando está com os rapazes. A leve indisposição de Flora agrava-se, como é possível depreender do capítulo “A realidade”, após a recusa do casamento com Nóbrega. Consequentemente, a moléstia evolui para a febre delirante que aparece projetada na imagem da enferma, no canto do quarto, rindo consigo mesma.

É possível aproximar o infinito almejado por Flora à concepção girardiana de desejo. Conforme expusemos, pela perspectiva mimética de Girard (2009GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009., p. 81-82), nem sempre o desejo é bem definido, por vezes ele pode aspirar ao ser do outro. É por acreditar que essa possessão é possível que o indivíduo desejante alimenta um desprezo por si mesmo, à medida que se imagina solitário diante dos outros:

Todos os indivíduos descobrem na solidão de sua consciência que a promessa é mentirosa, mas ninguém é capaz de universalizar essa experiência. A promessa permanece verdadeira para os Outros. Cada qual acredita ser o único excluído da herança divina e se esforça em esconder essa maldição. O pecado original não é mais a verdade de todos os homens como no universo religioso, mas o segredo de cada indivíduo, a única possessão desta subjetividade que proclama em alto e bom som ser todo-poderosa e alegremente dominante.

Segundo o autor de A violência e o sagrado, o postulado moderno da “morte de Deus” constituiu um impulso significativo para a aproximação entre sujeitos desejantes e mediadores. Assim, é possível considerar que o “Absoluto Ideal” almejado por Flora também a expõe a um objeto metafísico que tem o seu valor aumentado à medida que o desejo cresce, distorcendo cada vez mais o plano do real na perspectiva da personagem.

A dimensão do plano físico diminui para Flora à proporção que sua doença se agrava. Se em alguns casos, tal qual Girard (2009GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009., p. 114) aponta, há a perda progressiva do prazer sexual em estágios mais avançados da doença ontológica do desejo mimético, no caso de Flora, entretanto, o embotamento do prazer ocorre diante da presença dos dois irmãos (como mostram os capítulos “Não ata nem desata” e “Retraimento”), apesar de ainda pensar neles com frequência. A doença que leva Flora à morte, no capítulo “Ambos quais?”, é aumentada com o padecimento interior dela, que se vê obrigada a tomar uma decisão.

A partir do exposto, estreitemos um pouco mais o escopo destas reflexões de modo a circunscrevê-las dentro do âmbito da hipótese aqui aventada: a de se considerar Flora como uma personificação do desejo mimético. Para demonstrá-la, comecemos por explorar um recurso do qual Machado lançou mão e que, no caso em questão, encontra-se em completa convergência com a matéria que está sendo tratada: o paradoxo.

No capítulo intitulado “Uma Beatriz para dois”, de seu Metáfora: o espelho de Machado de Assis, Dirce Riedel dedica-se à análise do capítulo 83 de Esaú e Jacó e considera-o “uma metáfora-nódulo da trama do romance”, o que significa dizer, ainda segundo a autora, que é dela que “se irradiam para trás e para diante, na narrativa, outras metáforas-chaves, que centralizam os paradoxos caracterizadores da ‘inexplicável’ Flora” (1979RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora. O espelho de Machado de Assis. São Paulo: Francisco Alves, 1979., p. 55). Ao todo, Riedel identifica nove ocorrências de paradoxos no referido capítulo, sendo o segundo deles subdividido em mais dois. Não pretendemos discorrer sobre todos os paradoxos arrolados pela autora. Interessa-nos, antes, explorar o caráter estruturante desse recurso e sua adequação à matéria em questão.

Enquanto elemento de retórica, Heinrich Lausberg aborda o recurso:

O paradoxo intelectual aparece não só como matéria, mas também como fenómeno de estranhamento e, portanto, como um pensamento que o orador encontra na inventio ou como figura de pensamento ou de palavra. Os fenómenos paradoxais da elaboração estão compreendidos no acutum dicendi genus. Deste género fazem parte, p. ex.: a ironia, a ênfase, a lítotes, a hipérbole, certas perífrases, o oximoro, o zeugma semanticamente complicado, o quiasma e fenómenos afins do ordo artificialis. (1972LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. 2. ed. Tradução de Rosado Fernandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972., p. 90).

Na retórica amorosa, o paradoxo (ou outros recursos nele incluídos, como o oximoro, sobre o qual falaremos adiante) é um tropo de amplo emprego, sendo inúmeros os exemplos disponíveis no patrimônio lírico e literário universal. Já na poesia arcaica grega, o próprio Eros se encontra definido em termos antitéticos, como atesta o seguinte fragmento de Safo traduzido por Giuliana Ragusa: “... Eros de novo - o quebra-membros - me agita, /doce-amarga inelutável criatura...” (RAGUSA, 2013RAGUSA, Giuliana. Lira grega. Antologia de poesia arcaica. São Paulo: Hedra, 2013., p. 128, destaque nosso). Há, também, uma sugestiva ambivalência na genealogia de Eros apresentada por Diotima em seu discurso, quando a estrangeira, pela boca de Sócrates, diz ser Eros filho de Poros e Pobreza, no célebre Banquete de Platão1 1 [...] E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente é sempre pobre [...]deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe [...]. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom [...] ávido de sabedoria e cheio de recursos [...]. (PLATÃO [203c-203e], 2016, p. 121) . Em se tratando da nossa tradição ibérica, o recurso consagrou-se na pena camoniana e foi emulado, posteriormente, por Quevedo nos célebres sonetos “Amor é fogo que arde sem se ver” e “Es hielo abrasador, es fuego helado”, respectivamente, ambos estruturados, quase que integralmente, em confrontos opositivos. Na prosa literária amorosa de língua portuguesa (e, no caso, também francesa), o expediente ganhou fina expressão na epistolografia pungente da enigmática Soror Mariana Alcoforado, só para ficarmos em alguns poucos exemplos.

Na base dessa figura, reiteradamente associada ao amor, encontra-se uma ideia de divisão inconciliável entre os termos envolvidos que beira, com frequência, a transgressão às convenções lógicas, de que o oximoro seria uma eficaz expressão formal. Desse modo, se assinala, no plano do significante, a mensagem contida no próprio assunto: a de que o amor não é redutível a uma explicação verossímil. As formulações frasais resvalam, portanto, na lacuna de sentido, contribuindo para o estranhamento, efeito retórico a que se presta o paradoxo, segundo Lausberg, diante do qual o leitor é inevitavelmente provocado a responder ativamente. No tópico dedicado ao paradoxo, no manual de Retórica anteriormente citado, encontramos a seguinte passagem, em franca afinidade com a prática literária machadiana:

O ouvinte é convidado a fazer o seu próprio raciocínio: ele tem de lançar uma ponte entre o paradoxo e o significado pretendido. Se o ouvinte conseguir levar a cabo esta tarefa, alegra-se então quanto à sua inteligência e toma-se, deste modo, “cúmplice de pensamentos do autor”. (LAUSBERG, 1972LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. 2. ed. Tradução de Rosado Fernandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972., p. 140).

Esse pacto de cumplicidade é familiar a qualquer leitor da ficção de Machado de Assis. Se se trata, como de fato vimos, de uma estratégia retórica, isso não implica negação de valor de realidade. Ao tratar das representações do desejo mimético na poesia de Shakespeare, o próprio René Girard (2010GIRARD, René. Amá-la de saber que a amo assim: figuras retóricas nos Sonetos. In: GIRARD, René. Shakespeare: teatro da inveja. Tradução de Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010. p. 543-559.) deparou-se com a questão da referencialidade de um recurso retórico e esposou a ideia de que um artifício literário pode vir carregado de referencialidade. Desse modo, Girard chega à conclusão, em suas leituras dos sonetos shakespearianos, de que o “oximoro é uma expressão elíptica do paradoxo mimético” ou, em outras palavras, o “paradoxo mimético cai como uma luva para o oximoro” (2010GIRARD, René. Amá-la de saber que a amo assim: figuras retóricas nos Sonetos. In: GIRARD, René. Shakespeare: teatro da inveja. Tradução de Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010. p. 543-559., p. 549).

Após o baile da ilha Fiscal, a personagem Flora, durante um episódio de insônia, pensa nos momentos de diálogo com Pedro, muitas vezes convertidos em monólogos, não esquecendo de Paulo, cuja ausência lhe incomoda. É nesse estágio de sua crise que se formula em seu íntimo, involuntariamente, a visão de um só vulto composto pela junção dos gêmeos. Tal imagem é incluída no sexto paradoxo apontado por Riedel (1979RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora. O espelho de Machado de Assis. São Paulo: Francisco Alves, 1979., p. 59) para quem a “fusão chegou a realizar uma unidade paradoxal, não mais 2=1, mas sim 3 (Paulo, Pedro e Flora) =1”. Envolta numa atmosfera de dubiedade, como bem assinala a autora ao chamar a atenção para a imagem da lamparina que vai se apagando, de modo a produzir o efeito de claro-escuro, vemos realizar-se o desiderato último do desejo amoroso, esse mesmo que, mutatis mutandis, Camões cantou no soneto que nos serviu de referência para o título deste artigo: o “Transforma-se o amador na cousa amada”.2 2 “Transforma-se o amador na cousa amada,/ por virtude do muito imaginar;/não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mim tenho a parte desejada.//Se nela está minh’alma transformada,/que mais deseja o corpo de alcançar?/Em si somente pode descansar,/ pois consigo tal alma está liada.//Mas esta linda e pura semideia,/que, como um acidente em seu sujeito,/assi co a alma minha se conforma,//está no pensamento como ideia:/o vivo e puro amor de que sou feito,/como a matéria simples, busca a forma.” (CAMÕES, 2003, p. 301) A evidente distância que separa esse “exemplo de sincretismo renascentista” (SPAGGIARI, 2011SPAGGIARI, Barbara. “Transforma-se o amador na cousa amada”. In: MARNOTO, Rita (coord.). Comentário a Camões. Vol.1. Sonetos. Lisboa: Edições Cotovia, 2011., p. 64) da obra machadiana não apaga o fato de ser o desejo, em ambas os casos, aquilo que, verdadeiramente, é colocado em jogo:

O tema do soneto não é tanto a transformação do amante no ser amado, como levaria a supor o incipit inspirado em Petrarca, como o desejo, ou seja, o conceito filosófico de appetitus. Em termos gerais, o desejo é entendido como falta, e portanto como aspiração a obter aquilo que falta (neste caso, o amante deseja a união com o objecto amado). (SPAGGIARI, 2011SPAGGIARI, Barbara. “Transforma-se o amador na cousa amada”. In: MARNOTO, Rita (coord.). Comentário a Camões. Vol.1. Sonetos. Lisboa: Edições Cotovia, 2011., p. 58).

Em síntese, a leitura da personagem Flora, segundo a perspectiva que adotamos, pode ser esquematizada tendo em vista os seguintes aspectos: o dilema que lhe constitui, a crise na qual afunda, a “solução” idealizante engendrada por seu delírio e, por fim, o desenlace fatal. Cada um desses aspectos encontra correspondência com um estágio do desejo em sua exacerbação metafísica.

A começar pela situação dilemática, com a qual a personagem se defronta, é possível identificar na aspiração pela totalidade, intimamente ligada, portanto, à profunda insatisfação com a insuficiência da realidade, a força motriz do desejo metafísico que, em determinados temperamentos, tende a projetar-se numa desenfreada escalada rumo a desejos cada vez mais inexequíveis. Na refutação que Girard propõe à noção freudiana de masoquismo na obra Coisas ocultas desde a fundação do mundo é possível encontramos uma explicação para esse fenômeno:

Freud separa o que seria preciso unir, por não reconhecer em seu princípio de prazer e seu princípio de morte dois efeitos parciais e pouco compreendidos de uma única e mesma causa, o desejo mimético. O desejo mimético acredita escolher o caminho mais fácil e mais vivo, mas na realidade é em direção ao obstáculo, à esterilidade e à morte que ele se dirige cada vez mais. Só o interessa aquilo que é hermeticamente fechado, apenas as portas que não se abrem quando batemos nelas. É por isso que ele bate ali onde não existe mais ninguém para abrir, e chega mesmo a ver como portas os mais espessos muros. (GIRARD, 2008GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. A revelação destruidora do mecanismo vitimário. Tradução de Martha Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008., p. 467-468).

Machado de Assis não poderia ter sido mais ardiloso em sua estratégia: traz o desejo para o centro da cena, mas ludibria-nos, por assim dizer, ao nos fazer procurá-lo na disputa entre os gêmeos rivais quando, de forma mais eloquente, é nos subterrâneos da “inexplicável” Flora que ele efetivamente repercute. Lembremos que é ela, também, a “incurável”, como o é o desejo quando se deixa contagiar pela ânsia metafísica.3 3 “Convém que os homens afirmem o que não sabem, e, por ofício, o contrário do que sabem; assim se forma esta outra incurável, a Esperança. Flora, incurável também, se não preferes a definição de inexplicável, que lhe deu Aires, a graciosa Flora teve naquela noite a sua insônia.” (MACHADO DE ASSIS, 2012, p. 210) Essa marca de obstinação, que fez com que Freud teorizasse acerca de uma pulsão específica que a explicasse, é assimilada por Girard ao próprio mecanismo mimético do desejo.

A essa crise sucede, como vimos, sua “solução” pela via delirante que, no fundo (e essa é a razão das aspas), corresponde a seu paroxismo, no caso, a eleição do mais inacessível dos obstáculos: a totalidade, entendida como conciliação dos opostos e sua incorporação pelo próprio sujeito desejante! Esse estágio prefigura a etapa seguinte: a morte de Flora. A julgarmos esse desenlace em termos de alegoria do desejo metafísico, tal como estamos fazendo, o trecho da citação acima, em que Girard adverte que o desejo mimético caminha “em direção ao obstáculo, à esterilidade e à morte”, acaba por fazer sentido. Decerto que o reconhecimento de que “o desejo, no limite, tende para a morte, a do outro, do modelo obstáculo, e a do próprio sujeito” (2008GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. A revelação destruidora do mecanismo vitimário. Tradução de Martha Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008., p. 458), consiste numa importante medida a ser tomada de modo a conter tal risco. Tudo indica, entretanto, que Machado quis dar-nos uma imagem tanto mais contundente da escalada do desejo em toda sua completude e mostrou-nos Flora, à meia-luz, entre o real e o metafísico, a vida e o paradoxo.

Referências

  • CAMÕES, Luís de. Obra completa Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
  • CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos São Paulo: Duas cidades, 1977. p. 15-32.
  • EULÁLIO, Alexandre. Tempo reencontrado: ensaios sobre arte e literatura. São Paulo: Instituto Moreira Salles; Editora 34, 2012. 119 p.
  • GIRARD, René. A violência e o sagrado Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
  • GIRARD, René. Amá-la de saber que a amo assim: figuras retóricas nos Sonetos In: GIRARD, René. Shakespeare: teatro da inveja. Tradução de Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010. p. 543-559.
  • GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo A revelação destruidora do mecanismo vitimário. Tradução de Martha Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
  • GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009.
  • GIRARD, René. Inovação e repetição. In: GIRARD, René. A voz desconhecida do real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos. Tradução de Filipe Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 221-239.
  • GOLSAN, Richard. Mito e Teoria Mimética: Introdução ao Pensamento Girardiano. Tradução de Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2014.
  • LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária 2. ed. Tradução de Rosado Fernandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.
  • MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Esaú e Jacó São Paulo: Penguin Classics, 2012.
  • PLATÃO, -. O Banquete Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora 34, 2016.
  • RAGUSA, Giuliana. Lira grega Antologia de poesia arcaica. São Paulo: Hedra, 2013.
  • RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora O espelho de Machado de Assis. São Paulo: Francisco Alves, 1979.
  • SCARPELLI, Marli Fantini. Repetição e diferença: Esaú e Jacó, de Machado de Assis. In: JUNIOR, Benjamin Abdala; SCARPELLI, Marli Fantini (org.). Portos Flutuantes: trânsitos ibero-afro-americanos. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. p. 207-232.
  • SPAGGIARI, Barbara. “Transforma-se o amador na cousa amada”. In: MARNOTO, Rita (coord.). Comentário a Camões Vol.1. Sonetos. Lisboa: Edições Cotovia, 2011.
  • VALLADARES, Henriqueta Do Coutto Prado. Esaú e Jacó: olhares sobre a leitura. São Paulo: É Realizações, 2013. 180 p.
  • 1
    [...] E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente é sempre pobre [...]deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe [...]. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom [...] ávido de sabedoria e cheio de recursos [...]. (PLATÃO [203c-203e], 2016PLATÃO, -. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 121)
  • 2
    “Transforma-se o amador na cousa amada,/ por virtude do muito imaginar;/não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mim tenho a parte desejada.//Se nela está minh’alma transformada,/que mais deseja o corpo de alcançar?/Em si somente pode descansar,/ pois consigo tal alma está liada.//Mas esta linda e pura semideia,/que, como um acidente em seu sujeito,/assi co a alma minha se conforma,//está no pensamento como ideia:/o vivo e puro amor de que sou feito,/como a matéria simples, busca a forma.” (CAMÕES, 2003CAMÕES, Luís de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003., p. 301)
  • 3
    “Convém que os homens afirmem o que não sabem, e, por ofício, o contrário do que sabem; assim se forma esta outra incurável, a Esperança. Flora, incurável também, se não preferes a definição de inexplicável, que lhe deu Aires, a graciosa Flora teve naquela noite a sua insônia.” (MACHADO DE ASSIS, 2012, p. 210)
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2022
  • Aceito
    30 Jul 2022
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