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Ella escribía poscrítica apesar das ruínas: Margarita Mateo Palmer entre a crítica e a ficção

Ella escribía poscrítica (despite the ruins): Margarita Mateo Palmer between criticism and fiction

Resumo

O artigo apresenta uma análise de Ella escribía poscrítica, de Margarita Mateo Palmer, publicado por primeira vez em 1995, com segunda edição definitiva em 2005. Mais do que discutir seu argumento, buscamos analisar as imposturas do gênero que caracterizam o livro, que defendemos ser construído a partir da colagem de textualidades de diferentes naturezas. O objetivo principal do artigo é analisar alguns dos significados produzidos por essa estratégia de escrita na crítica literária, especialmente no que se refere à relação com o contexto do Período Especial cubano.

Palavras-chave:
crítica cubana; pós-crítica; práticas inespecíficas; Período Especial; Margarita Mateo Palmer

Abstract

This paper presents an analysis of Ella escribía poscrítica, by Margarita Mateo Palmer, first published in 1995, with a second definitive edition in 2005. More than to discuss its argument, we seek to analyze the book's characteristic genre transgressions and read it defending that it was constructed with the collage of diverse textualities. The main objective is to analyze some of the meanings produced by this writing strategy in literary criticism, especially regarding the relationship with the context of the Cuban Special Period.

Keywords:
Cuban critics; post-criticism; non-specific practices; Cuban Special Period; Margarita Mateo Palmer

Resumen

El articulo presenta un análisis de Ella escribía poscrítica, de Margarita Mateo Palmer, publicado por primera vez en 1995, con segunda edición definitiva en 2005. Más que discutir su argumento, buscamos analizar los incumplimientos de género que caracterizan el libro, que defendemos se construye a partir del collage de textualidades de diferentes naturalezas. El objetivo principal del artículo es analizar algunos de los sentidos que produce esta estrategia de escritura en la crítica literaria, especialmente en lo que se refiere a la relación con el contexto del Período Especial cubano.

Palabras clave:
crítica cubana; poscrítica; practicas inespecíficas; Período Especial; Margarita Mateo Palmer

Em 1995, a escritora, professora e crítica literária cubana Margarita Mateo Palmer (La Habana, 1950) publicou pela primeira vez Ella escribía poscríticaMATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005.. Apesar de sua circulação restrita no momento, o livro ganhou dois prêmios literários, Razón de ser, da Fundación Alejo Carpentier, e o Premio Nacional de la Crítica Literaria, em 1996. A obra, no entanto, só foi lida com maior atenção após a sua segunda edição, em 2005, já com maior tiragem e publicada pela Editorial Letras Cubanas, de maior impacto. A nova edição contou ainda com o acréscimo de textos pela autora e o lançamento de um DVD intitulado De la piel de la memoria, com registros multimídia dos primeiros lançamentos, além da digitalização do livro.

Trata-se de um ensaio sobre a recepção do pós-modernismo em Cuba. Em linhas gerais, Mateo Palmer elabora uma crítica tanto daqueles pensadores que negam veementemente a validade dessa corrente de pensamento ou o interesse sobre ela, quanto daqueles que a aceitam passivamente, sem colocá-la sob processo crítico para mediação e filtragem. Diz, ainda, que as leituras caribenhas e cubanas do pós-modernismo parecem carecer de análises precisas sobre o contexto dessa linha de pensamento europeu, inicialmente, e então de suas possibilidades de aclimatação para se pensar a realidade local:

[...] muchos de estos análisis son realizados al margen de la propia dinámica a que responden estos textos, y de su peculiarísimo devenir, lo cual deja la sensación de que se ha producido, en relación con ellos, una apropiación superficial que desconoce su función y significado mayor en su contexto preciso, para subordinarlos a categorías ya existentes en un discurso crítico ajeno. Se trata, entonces, no ya de incorporar una moda, sino de la necesidad cada vez más creciente de generar un pensamiento a partir de nuestra propia problemática - posmoderna o no - que articule con mayor coherencia los cánones del posmodernismo a la producción literaria latinoamericana. (MATEO PALMER, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 17).

Por sua vez, ao longo do livro, Mateo Palmer busca esboçar um entre-lugar cubano (segundo conhecido conceito de Silviano Santiago), que articula como o “peculiar posmoderno cubano” (MATEO PALMER, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 33), em meio a uma discussão contemporânea à obra sobre as relações de diversas expressões culturais da cultura nacional com uma episteme radical que já tinha certo espaço e recepção nos núcleos da academia ocidental; com o adendo, no entanto, que esse esforço é feito desde dentro da ilha, ou seja, desde a vida em um projeto moderno, como foi a Revolução Cubana, e sua política cultural. Para tal, busca rastrear os traços pós-modernos que estariam em obras literárias e ensaísticas do cânone cubano, 1 1 Segundo a autora, “tampoco debe permitirse que el temor de ser arrastrados por el afán de búsqueda de lo posmoderno lleve a ignorar que, en el caso de la literatura cubana - y más allá de las influencias que se puedan recibir desde los tradicionales centros hegemónicos de la cultura -, existen textos que ponen en juego procedimientos estilísticos, actitudes y gestos que hoy son considerados representativos de la posmodernidad” (MATEO PALMER, 2005, p. 118). ou seja, aqueles que seriam pós-modernos antes do tempo, apontando caminhos para uma releitura de Fernando Ortiz, Jorge Mañach, Alejo Carpentier, Virgilio Piñera, José Lezama Lima, Severo Sarduy e Guillermo Cabrera Infante2 2 Especialmente em: MATEO PALMER, M. “Donde se mencionan algunos ilustres antecedentes posmodernistas en la literatura cubana o ¿vale la pena mirar hacia atrás?” Ella escribía poscrítica. La Habana: Letras Cubanas, 2005, p. 118 - 167. .

Apesar de interessante, o argumento principal colocado pela autora não é, em geral, novo para a época: em termos de metodologia, um olhar semelhante havia sido discutido por Silviano SantiagoSANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: MORICONI, Ítalo (org.). 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 23-37. 3 3 SANTIAGO, S. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. MORICONI, Í. (org.). 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 23 - 37. , por exemplo, enquanto os debates sobre a recepção do pós-modernismo dividiam críticos literários e culturais desde os anos de 1970. Não à toa a argumentação de Mateo Palmer está baseada em críticos e críticas latino-americanos(as) como Carlos Rincón, Ticio Escobar, George Yúdice, Roberto González Echevarría, Mempo Giardinelli, Nicolás Casullo e Nelly Richard, que já estavam comprometidos com esse debate, estabelecendo relações entre o pós-modernismo e seus contextos locais, bem como com uma agenda latino-americanista de modo mais amplo. Além disso, especificamente no que se refere aos casos caribenho e cubano, já circulava La isla que se repite. El Caribe y la perspectiva posmoderna (1989), do crítico e escritor cubano Antonio Benítez-Rojo, conjunto de ensaios dedicados a pensar a literatura e a história do Caribe a partir do pensamento pós-moderno, especialmente de Deleuze & Guattari.

Contudo, há outras questões importantes na obra de Mateo Palmer: uma das razões por trás dos anos que levaram à segunda edição e posterior discussão por parte dos críticos tem relação com a recepção tensa de determinadas perspectivas teóricas na própria escrita de Mateo Palmer, conflituosas com as políticas de escritura da crítica cubana do período. Além disso, a escritora enfrentou as dificuldades estruturais do Período Especial Em Tempos de Paz, ou apenas Período Especial, como ficou conhecido, com complexos efeitos políticos e materiais, especialmente carências de diversas naturezas, enquanto buscava refletir sobre esse contexto.

Fora de suas relações insulares, por sua vez, pela sua escritura que transgride os gêneros, a obra pode dialogar com outros textos e obras publicados nessa virada de século, que também se valeram do uso de procedimentos literários dentro de/ em meio à crítica universitária, como Ricardo Piglia, Josefina Ludmer, Flora Süssekind, Silviano Santiago ou Diamela Eltit.

Ela escrevia a pós-crítica e caçava livros

Ella escribía poscríticaMATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005. é uma obra composta por 19 textos de diferentes gêneros. Ao longo do livro, há artigos que poderiam ser categorizados como sendo de crítica universitária (“La literatura latinoamericana y el posmodernismo” ou “Una recreación posmodernista del topos del heroísmo: Cañon de retrocarga”), que são intercalados por textos de teor cronístico homônimos ao livro, “Ella escribía poscrítica”), o que lhes dá certo destaque dentro da composição geral. Nesses textos, de características autobiográficas, a personagem principal muda de nome constantemente: é por vezes Dulce Azucena, Surligneur-2, Siemprevela, além disso, neles, narram-se diversas ações do cotidiano, positivas e negativas, incluindo comentários sobre aulas e a própria pesquisa para planejá-las e para escrever o livro que agora analiso:

Extenuada, pudiera decirse, terminaba Surligneur-2 estos intensos y prolongados ejercicios académicos. Corría entonces a fregar los platos - pero no había agua -, se acercaba a la cocina - pero no había gas -, encendía la hornilla dispuesta para estos trances cotidianos - pero no había electricidad -, buscaba el reverbero - pero no había alcohol - […] y pensaba entonces - en una versión original de una canción de la infancia que adquiría ahora aterradores tintes autofágicos -: otro lunes sin almorzar, otro lunes sin almorzar, otro lunes sin almorzar… (MATEO PALMER, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 75).

Aparecem também entrevistas e ensaios que se debruçam sobre grafites espalhados por Havana, dichos populares e tatuagens. Não somente, há gêneros menores - como a carta, a lista (de livros, no caso) ou a entrada de arquivo bibliotecário -, que têm espaço próprio na sintaxe do livro. Por exemplo, em uma das seções intituladas “Ella escribía poscrítica” (MATEO PALMER, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 29), aparece uma lista de sete livros comumente lidos dentro da corrente de pensamento analisada pela autora, de autores como Ann Kaplan, Gianni Váttimo ou Mempo Giardinelli. Junto às obras aparecem entradas como “No hay luz”, “No aparece” ou “Se robaron la revista” (Figura 1):

Figura 1.
Lista de livros representantes da corrente de pensamento analisada por Margarita Mateo Palmer.

Esses gêneros menores, por sua vez, exercem um papel fundamental: sua pragmaticidade e teor arquivístico trazem à luz de forma visual algo da performance do ato de pensar, da experiência intelectual e, em relação com o todo textual, do enlace entre a situação concreta e a experiência de um contexto social mais amplo, que são constituintes da obra de Mateo Palmer, e são traços do ensaio, ao cabo, segundo Weinberg (2007WEINBERG, Liliana. Pensar el ensayo. México: Siglo XXI Editores, 2007., p. 11). No entanto, também abrem uma inflexão de leitura: as listas e registros de busca revelam os impasses da pesquisa e da formulação de determinado repertório crítico, justamente aquele sobre o qual propõe-se o debate e, assim, são expressões dos entraves (e caminhos possíveis, paradoxalmente) da análise da literatura cubana desde uma biblioteca considerada como pós-modernista ou que discutiria os limites da modernidade na ilha caribenha. Trata-se, desse modo, de um livro que não só assume, mas elabora uma reflexão a partir de um paradoxo: como analisar um tema a partir de uma determinada biblioteca sem o acesso a ela? Em si, colocar isso em jogo é romper com a totalidade e impessoalidade pressupostas à crítica literária, especialmente a acadêmica, o que se torna mais interessante na medida em que parte da exposição desse paradoxo se dá a partir do uso de estruturas literárias.

A impossibilidade de encontrar as fontes aparece não só nas listas, mas ao longo das seções homônimas ao título do livro, como pode-se encontrar em trechos como: “Surligneur-2 accedió a Lyotard a través de las opiniones de Jameson - siempre el largo rodeo, el recorrido por las opiniones sobre otras opiniones [...]” (MATEO PALMER, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 59), ou “Pero ahora algunos teóricos posmodernos ponían demasiado énfasis en el problema de la individualidad, o quizá esa fuese una impresión suya, de tanto acceder a los originales de modo fragmentado y muchas veces a través de lo referido por otros autores” (ibidem, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 61) ou, finalmente, em trecho de subtítulo “PUNTOS QUE DE NINGÚN MODO PUEDO EXPLICAR EN CLASE”, no qual a autora diz “Erotismo posmoderno. Según una referencia de Cyntia Tompkins, lo debe explicar Hassan en The Postmodern Turn. Del libro, lamentablemente, solo conozco título y autor, pero va y ellos lo consiguen por algún recóndito laberinto de la ciudad y me lo prestan” (ibidem, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 68).

Nota-se ao longo da obra uma representação da precariedade do trabalho de pesquisa e formação, que parece condensar-se na imagem de uma “cita copiada en papel de estraza” (ibidem, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 60), em que uma citação central, para ser usada em uma determinada aula, é escrita em um pedaço de folha kraft de saco de compras: na imagem, aparece de modo potente a vulnerabilidade da escritura e da leitura, condensada na simplicidade e efemeridade desse papel de todo o dia, relacionada ainda à falta material de recursos para o trabalho intelectual, mas que acaba por tornar-se o receptor da discussão complexa e abstrata sobre a recepção do pós-modernismo no pensamento cubano.

Essas faltas materiais e buscas labirínticas por uma biblioteca de citações de textos estão relacionadas com os dilemas culturais do Período Especial, como foram chamados em Cuba os anos posteriores à queda do muro de Berlim e ao desmembramento da União Soviética, durando aproximadamente até o começo dos anos 2000. A queda do bloco socialista do leste europeu teve efeitos diretos sobre a ilha, especialmente no que se refere à falta de apoio econômico e ao fim de investimentos em projetos sociais e culturais, que haviam sido edificantes para o governo cubano frente à política de bloqueio levada a cabo por sucessivos governos dos Estados Unidos, que foi outro importante fator para o desmoronamento da economia nacional cubana desses anos, além de aspectos econômicos internos. Como é sabido, esses anos foram marcados por um recrudescimento da pobreza e por carências de várias estruturas e de vários recursos para a população: foram anos de “una espantosa soledad política y económica”, segundo Leonardo Padura (2002PADURA FUENTES, Leonardo. Vivir en Cuba, crear en Cuba. Riesgo y desafío. In: KIRK, J. (org.). La cultura y la Revolución cubana. Conversaciones en la Habana. San Juan: Editorial Plaza Mayor, 2002. s/p. Disponível em: http://www.editorialplazamayor.com/archivos/critico/vivir_en_cuba_crear_en_cuba_riesgo_y_desafio.html . Acesso em: 20 mar. 2023.
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, s/p).

Decorre daí a menção à impossibilidade de encontrar o livro, pela falta de luz ou pela própria falta de papel para a escritura e, inclusive, para a publicação de livros. Nesse ponto, vale notar que grande parte das obras analisadas por Mateo Palmer, especialmente dos Novísimos, não chegou a ser publicada até meados dos anos 2000, ainda que escritas entre o fim dos anos 1980 e durante os anos 19904 4 Muitos textos citados eram inéditos, outros circulavam em revistas literárias do período. Vale notar, ademais, o esforço de publicação dos Novísimos feito por Salvador Redonet em Los últimos serán los primeiros (Letras Cubanas, 1993). , o que parece ser uma das razões que levam a autora a se debruçar sobre outros modos e inscrições da escrita que não estavam em livros - como os grafites, os ditos populares ou as tatuagens - e, ao mesmo tempo, a poder formular leituras que abordam temas que aos poucos eram mais discutidos na ilha - como a relação entre a homossexualidade e a literatura - na medida em que se tratava de uma escrita para os leitores futuros, de certo modo, pois alguns desses textos literários não haviam sido publicados no momento da escrita da obra e de sua primeira edição5 5 A autora comenta textos de jovens escritores à época, como Rolando Sánchez Mejías (Diezmil años, Cinco piezas narrativas), Rogelio Saunders (El mediodía del bufón), Jorge Félix Rodríguez (Pasado mudo), Arsenio Rodríguez Quintana (Dos fugas) e Ronaldo Menéndez (Tocata y fuga en cuatro movimentos y tres reposos), além de ocasionalmente mencionar outros. . Em paralelo, dedicar ensaios aos grafites ou dichos cubanos do momento é um modo performativo de pôr à prova o desmoronamento da hierarquia de gêneros, questão crítica importante para diversos teóricos pós-modernistas, precisamente por não representar um olhar para a alta literatura, mas para gêneros do cotidiano, desauratizados e que lidam diretamente (e assim se expõem) com restos do real.

Em ensaio contemporâneo ao livro, e que trata sobre o mesmo período, o escritor cubano Antonio José Ponte (2005PONTE, Antonio José. Uma arte de fazer ruínas. BARROS, Rodrigo Lopes et al. (org.). Ruinologías: ensaios sobre destroços do presente. Florianópolis, SC: Editora UFSC, 2016. p. 155-175) elaborou uma imagem que já se tornou central para se compreender a cultura cubana durante o Período Especial: de um lado, a capital Havana como uma cidade em ruínas e, de outro lado, a tugurização como atividade central dos cidadãos, ou seja, a criação de habitações a partir dos materiais disponíveis em um determinado momento, apesar de escassos, com o objetivo de se construir abrigos. Seguindo a alegoria, trata-se de um olhar duplo para a cultura de um período, enxergando tanto os destroços do passado em um presente que ainda os mantém e se sustenta deles, o que parece constitutivo da imagem da ruína, quanto um movimento que vai contra a museificação ou o olhar turístico sobre essas ruínas, na medida em que se enfoca a produção social sobre essas estruturas, e seus efeitos problemáticos para a vida dos cidadãos.

A imagem criada por Ponte parece iluminar também algo da escritura de Mateo Palmer: a partir da biblioteca (aparentemente) fragmentária à qual tem acesso, a escritora procura arquitetar seu edifício escritural, composto tanto de bases teóricas quanto de análises de autores, em desenho e disposição, que conversem tanto com a região em que se insere quanto com as questões exteriores. Mateo Palmer estrutura uma crítica a partir das faltas, que dramatiza a figura do autor e a própria representação do fazer intelectual e do trabalho crítico no Período Especial. Desse modo, há uma figuração da intelectual, a despeito de suas máscaras, que se assemelha à atuação do tugur: em sua busca por materiais, por espaços possíveis, e em sua rearticulação desses componentes em prol de se criar um refúgio, no caso da obra, da própria escrita crítica - apesar da precariedade, apesar das ruínas.

Ela escrevia en papel de estraza

Neste momento, parece importante voltar a um ponto: à “cita en papel de estraza”, que leva a um paradoxo interno ao texto: muitos dos trechos que aparecem como não lidos, comentados por terceiros ou apenas inalcançáveis, estão de fato citados e são referências para as análises levadas a cabo nos artigos acadêmicos presentes na obra. Isso parece estruturar uma leitura de marginalia por parte da autora, bem como um jogo não narrado, mas sugerido, de leituras silenciosas, feitas à margem das condições dos meios oficiais e das visibilidades dadas e, em grande parte, dentro de um mercado paralelo de acesso à determinadas expressões culturais, sobre o qual comento a seguir.

Nos anos 19806 6 As precisões sobre o período podem variar, de acordo com as leituras. Begoña Huertas (1993, p. 8), por exemplo, em tese encomiástica, localiza o começo da mudança em 1976, com a entrada de Armando Hart Dávalos no Ministério de Cultura, o que para Huertas é a chave da mudança. No entanto, as obras comumente analisadas costumam ser publicadas a partir dos anos 80 e, especialmente, surgem projetos coletivos na virada dos anos 1980 para os 1990. Daí que Sonia Behar, por exemplo, enfoque a mudança a partir da entrada de novas medidas econômicas decorrentes do Período Especial, nos anos 90, como a chave da questão, na medida em que teriam subsidiado um incipiente mercado de bens simbólicos ( BEHAR, 2009, p. 29). , em coexistência com o Proceso de rectificación de errores y tendencias negativas7 7 Em linhas gerais, trata-se do período entre 1984 e 1991, aproximadamente, no qual buscou-se estabelecer reformas na economia, especialmente, e no governo, de modo mais amplo, em busca de um modelo mais estável de socialismo. Houve coincidência temporal entre esse período em Cuba e nos países do Leste Europeu e União Soviética. Foi identificado como um período de aberturas democráticas. , surgem em Havana alguns espaços de criação artística, debate intelectual e circulação de leituras em paralelo (por vezes em negociação, por vezes em confronto) com o arquivo revolucionário formulado pelo discurso oficial, especialmente em relação à literatura produzida no quinqüenio gris (1971-1975), período de forte parametrização cultural. Nesses espaços, de maneira privada, circulavam obras de autores como Michel Foucault, Roland Barthes ou Severo Sarduy. Segundo relato pessoal da poeta Reina María Rodríguez, por exemplo:

Fue un momento, en el que las teorías casi suplantaron las estéticas, y modelaron las poéticas. (Benjamín, Canetti, Kristeva, Blanchot, Barthes, Deleuze, Todorov). El pensamiento europeo llegado hasta la Isla, casi siempre en fotocopias (también en barcos que pasan como ocurrió en el siglo XIX, de contrabando) y luego (manoseado) fue convertido en ficción. (RODRÍGUEZ, 2012RODRÍGUEZ, Reina María. Poesía cubana: tres generaciones. LL Journal, v. 16, s/p, 2012. Disponível em: https://lljournal.commons.gc.cuny.edu/2012-1-rodriguez-texto/ . Acesso em: 2 fev. 2022.
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, s/p).

Pode-se dizer que se forma uma biblioteca - e deve-se notar nela aqueles autores associados ao pós-modernismo - que foi chave para diversos projetos literários e artísticos do período, como a própria Azotea8 8 A Azotea, como o próprio nome indica, indica o terraço da própria casa de Rodríguez, que funcionou como um espaço alternativo de leituras e discussão, por onde passaram diversos escritores e artistas tanto da Generación de los ochenta, quanto aqueles e aquelas que começavam a escrever no período. PAIDEIA, por sua vez, foi uma articulação que buscou negociar com o Estado um espaço de autonomia para os intelectuais, pautados fortemente pelas leituras de Gramsci. Já Diáspora(s) foi uma revista cultural e literária e um grupo para ações de política cultural que se articulou nos anos de 1990. Na revista, foram publicadas traduções e textos próprios, especialmente poemas e ensaios. da Reina María Rodríguez, por onde passaram escritores que estariam em PAIDEIA e em Diáspora(s), iniciativas centrais para se compreender as tensões entre literatura e política durante o Período Especial. De fato, Arnaiz (2015MOREJÓN ARNAIZ, Idalia. Pater familias por una literatura menor: la poética conceptual del grupo Diáspora(s). Revista Brasileira do Caribe, v. 16, n. 30, p. 195-205, 2015. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rbrascaribe/article/view/4027/2115 . Acesso em: 02 fev. 2022.
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, p. 196-197) defende que Diáspora(s) foi um dos locus teoricus da recepção do pós-estruturalismo em Cuba, na medida em que seus integrantes se valeram dessas fontes para interpretar e produzir a arte e a literatura daqueles anos. Assim, apesar da precariedade do acesso a essas fontes, como apontado também na citação de Reina María Rodríguez, configuraram-se no período formações intelectuais que podem ter permitido a aceitação do desafio epistemológico de pensar Cuba em meio às leituras acadêmicas que circulavam apenas porosamente na ilha.

Não obstante, o modo de ler de Mateo Palmer foi alvo de críticas. Assinado pelo pseudônimo Ínclita de Mamporro, na edição de 2005, aparece um epílogo no qual se levantam comentários críticos sobre Ella escribía poscrítica:

[…] un libro que fue subvalorado por los críticos de su época y calificado como “muestra de eclecticismo perverso (Enrique Saínz), “superposición incongruente de textos disímilmente concebidos” (Denia García Ronda) e incluso, en filiación orticiana, “ajiaco estilístico, más propio de guaracheras de Regla que de mujeres cultas” (Ana Cairo). (MAMPORRO, 2005, p. 289).

Ainda que a leitura por terceiros, parcial e fragmentária de Mateo Palmer tenha sido lida como uma “falha” da obra, na verdade defendo que é interessante por revelar, ainda que desde silêncios, uma escritura em conexão com o período, um olhar de fato minucioso para textualidades menores do presente, bem como um empenho intelectual de escrever apesar da precariedade, construindo assim uma imagem específica de intelectual.

Sobre as críticas, ademais, vale lembrar que estava em jogo ainda a censura e a autocensura, presentes no período especialmente a uma zona francesa de leituras, que de fato não aparece, e não é citada ou sequer mencionada ao longo da obra, apesar de sua importância desde a História das Ideias para a formulação de uma biblioteca pós-modernista de modo mais amplo: não há Roland Barthes e não há Jacques Derrida citados ou mencionados em Ella escribía poscrítica, por exemplo.

Nesse sentido, vale notar que o próprio conceito de “pós-crítica”, central para a obra (dado que aparece no título, anunciando um gênero de leitura), de certo modo tem raiz nesse pós-modernismo à francesa. Ainda que tenha sido sistematizado e de fato proposto por Gregory Ulmer em “The object of postcriticism”, capítulo de The anti-aesthetic: essays on postmodern cultureULMER, Gregory. The object of post-criticism. In: FOSTER, Hal. The anti-aesthetic. Essays on postmodern culture. Washington: Bay Press, 1983. p. 83x-110., de Hal Foster (1985), o conceito se baseia essencialmente nas leituras de Ulmer, grosso modo, da crítica à mimese levada à cabo por Jacques Derrida na Gramatologia (1967) e no exemplar Glas (1974), bem como na leitura do discurso crítico feito por Roland Barthes em Crítica e verdade (1966), além de leituras do campo da arquitetura e da obra de John Cage.

Barthes, no livro mencionado acima, analisa duas vertentes da crítica: a universitária e a ideológica. Sobre a universitária, campo que nos interessa neste texto, diz que tal vertente viveria um “falso direto” (ibidem, 2007BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007., p. 26) e a “censura do verossímil” (BARTHES, 2007BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007., p. 198) como máscaras para esconder uma relação basilar por parte do crítico, que não seria com o objeto, mas com a própria linguagem. Ulmer retoma as leituras de Derrida e Barthes, posicionando-se contra uma crítica universitária lida como castradora. Por outro lado, vê em uma crítica da cultura dos anos 70 e 80 um processo distinto, no qual os textos pareciam ocupar não um espaço de clareza da exposição ou de meio para uma mensagem, e sim o de estabelecer distintas relações com a linguagem e as alteridades em jogo. Nesse sentido, Raúl Antelo e Maria Lúcia Camargo Barros (2007ANTELO, Raul; CAMARGO, Maria Lúcia de Barros. Pós-Crítica. Blumenau: Letras Contemporâneas, 2007. , p. 7) colocam, ainda que essas alteridades em questão na pós-crítica podem ser tanto de ordem interna a todo ato simbólico de linguagem - alvo de estudos da desconstrução derridiana -, como podem relacionar-se a um Outro já formado, em uma relação marcada pela colonialidade/poder.

Há algo de ambos os lados na pós-crítica de Margarita Mateo Palmer. De um lado, as relações de gênero parecem constituir uma força estruturante do livro. Nara Araújo (2001ARAUJO, Nara. Feminismo, posmodernidad y poscolonialismo en Ella escribía poscrítica. Signos literarios y lingüísticos, v. 3, n. 2, p. 75-84, 2001., p. 79) coloca que isso já é apontado desde o título da obra: Ella escribía poscrítica parece estabelecer uma intertextualidade com Ella cantaba boleros, do escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, seção intermitente do romance Tres tigres tristes. Contudo, desta vez, coloca-se a mulher como sujeito produtor intelectual, em contraposição à construção objetificada e fetichizada do corpo feminino que apareceria no romance de Cabrera Infante. Quanto a isso, diria ainda que, deve-se ter em mente as várias máscaras que constituem a escrita dessas crônicas. Nelas, uma figura autoral de traços autobiográficos associados à Mateo Palmer aparece com nomes como Surligneur-2, Dulce Azucena, Siemprenvela, Mitopoyética, Intertextual e Abanderada Roja, quase que heterônimos, na medida em que cada nome aparece em situações específicas, como se representassem diferentes facetas da autora, construindo, assim, um sujeito complexo. Araujo (2001ARAUJO, Nara. Feminismo, posmodernidad y poscolonialismo en Ella escribía poscrítica. Signos literarios y lingüísticos, v. 3, n. 2, p. 75-84, 2001.) coloca que a partir dessas máscaras são abordados temas importantes do pensamento feminista, como a relação entre o trabalho intelectual e a maternidade, os debates intelectuais em espaços hegemonicamente machistas ou a liberdade sexual. A autora diz que a obra de Mateo Palmer pertence a uma tradição de textos de escritoras mulheres latino-americanas que objetivam não enfrentar diretamente o patriarcado, mas “poner en entredicho” a associação entre poder, o conhecimento e o masculino, através da paródia, do pastiche, da mistura de gêneros e da construção de mitologias subversivas.

De outro lado, há uma alteridade própria da estruturação da sua escritura que também deve ser analisada. Desde a fortuna crítica da obra, reitera-se a leitura do texto como um ensaio (GONZÁLEZ, 2013GONZÁLEZ, María Virginia. Construcciones identitarias en la narrativa escrita por mujeres cubanas a fines del siglo XX. Tese (Doutorado em Letras) - Universidad Nacional de La Plata, La Plata, 2013. Disponível em: http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/tesis/te.895/te.895.pdf . Acesso em: 2 fev. 2022.
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; TORO, 2006TORO, Alfonso de. Margarita Mateo: posicionalidades y estrategias de hibridación. In: PERASSI, Emilia; REGAZZONNI, Susanna. Mujeres en el umbral: la iniciación femenina en las escritoras hispánicas. Sevilla: Renacimiento, 2006. p. 118-148.; ARAUJO, 2001ARAUJO, Nara. Feminismo, posmodernidad y poscolonialismo en Ella escribía poscrítica. Signos literarios y lingüísticos, v. 3, n. 2, p. 75-84, 2001.) ou até como um manifesto (RICCIO, 2004RICCIO, Alessandra. Maggie Mateo despilfarra su patrimonio. Pensar y escribir en el Período Especial. INTI, n. 59-60, p. 113-122, 2004.), enquanto se lida com a sua heterogeneidade constitutiva como um hibridismo classicamente pós-moderno (TORO, 2006TORO, Alfonso de. Margarita Mateo: posicionalidades y estrategias de hibridación. In: PERASSI, Emilia; REGAZZONNI, Susanna. Mujeres en el umbral: la iniciación femenina en las escritoras hispánicas. Sevilla: Renacimiento, 2006. p. 118-148.) ou um apagamento das fronteiras dos gêneros literários que se contaminam (ARAUJO, 2001ARAUJO, Nara. Feminismo, posmodernidad y poscolonialismo en Ella escribía poscrítica. Signos literarios y lingüísticos, v. 3, n. 2, p. 75-84, 2001.).

Entretanto, há algo que deve ser levado em consideração: se como livro, de fato, pode-se falar em um hibridismo dos gêneros, por outro lado, é importante ter em mente que cada texto parece responder a uma formação discursiva específica e reconhecível, inclusive no que se refere ao tom, à inscrição do enunciador e aos modos de construção da autoridade. A primeira pessoa - o eu - que reflete sobre os acontecimentos do dia a dia se subscreve a uma seção, por exemplo, enquanto há textos que poderiam facilmente ser identificados como de crítica universitária, pela objetividade e uso de citações para dar legitimidade a informações, e estão em outro espaço, e assim por diante. Nesse sentido, de fato há vários gêneros textuais em jogo, o que torna mais complexa a classificação do livro como um todo - se é que isso é necessário -, mas essa heterogeneidade não parece ser idiossincrática aos textos individualmente, que não são híbridos em si, pois podem ser associados a gêneros socialmente conhecidos.

O que pode estar em jogo, na verdade, é uma técnica de colagem ou de montagem literária como recurso para a crítica. Apesar de ser propriamente um recurso moderno, possivelmente introduzido pelo cubismo, trata-se de uma estratégia estética que coloca em jogo a relação mimética com o objeto: questão da pós-crítica, marco anunciado no título da obra. Não se trataria, nesse caso, de algo novo à escrita: já Benjamin, por exemplo, havia trabalhado a montagem de gêneros distintos, como o axioma, a fábula, o provérbio e outras estruturas textuais como o relato de sonho ou descrição de cenas da infância, com o objetivo de mostrar as multiplicidades descontínuas do mundo e das ideias: especialmente penso em Rua de mão única como exemplo. Nesse caso, a colagem estava associada ainda à arte de citar sem usar aspas, procurando representar mais do que argumentar. Algo de importante com relação à estrutura da colagem é ver como engendra um processo de significação complexo: cada pedaço é reconhecível e legível em si, dentro de sua tradição, mas também há outro sistema de significação dado a partir dos choques e diferenças produzidos pela nova organização em que os textos são cortados e organizados.

Ella escribía poscrítica pode ser lido, assim, como uma colagem de textos de distintos gêneros, o que seria mais preciso do que falar sobre um hibridismo inerente à escritura. Essa estrutura de colagem leva a geração de contínuos rompimentos e sucessivas reconfigurações da linearidade do discurso e, inclusive, dos pactos com o leitor, distintos entre uma crônica em primeira pessoa e um artigo acadêmico, por exemplo. Se há uma contaminação, por sua vez, ela pode se dar em meio às novas diferenças produzidas a partir da leitura linear dos textos, que permitem ler suas citações à contrapelo, como fiz no início deste artigo, ter em vista as sobredeterminações envolvidas na escrita universitária pela intimidade e pelo contexto social (normalmente separados da enunciação acadêmica), ou adentrar uma ficção que se constrói nas relações entre as máscaras-personagens de Margarita Mateo Palmer e os temas e leituras da cultura feitos em outros trechos.

Crítica e ficção em Ella escribia poscrítica

Se temos Ella escribía poscrítica inteiro como marco, de fato, estamos em frente a um texto de difícil categorização genérica. O livro se insere, por sua vez, naquela linha a qual se propõe, a pós-crítica à Ulmer, estabelecendo diálogo9 9 Diálogo no que se refere à linguagem. Sobre o tema do debate, estabelece um debate textual com La isla que se repite, de Antonio Benítez Rojo, publicado em 1989, e que pretendia dedicar-se também a verificar a pertinência da filosofia pós-moderna em relação à literatura e ao pensamento caribenho, como apontei anteriormente. em Cuba com a obra crítica de Severo Sarduy, que escrevia em clara conversa com o pensamento formulado e divulgado pelo grupo Tel Quel, na França - um dos núcleos do que se convencionou chamar pós-modernismo -, e de certo modo com os ensaios sobre arte e escritos por artistas tal como foram recompilados por Margarita González, Tani Parson e José Veigas em Déjame que te cuente (2002), em que também há textos híbridos entre acadêmicos, ensaísticos, confessionais e de fins estéticos.

De todos os modos, como apontei na última seção, podemos afirmar que há o uso de procedimentos literários em meio à crítica universitária e cultural, o que não é exclusivo desse livro ou foi criado pela obra (o que não deve retirar o interesse em seu uso, por sua vez). De fato, à época de sua publicação já se mencionava como o traço principal de Ella escribía poscrítica a entrada do campo confessional na zona de esperada impessoalidade da crítica. Esse debate estava sendo feito com exemplaridade por Ricardo Piglia, na Argentina, que em romances e textos críticos (permeados por estratégias literárias), chegou a afirmar que “a crítica é a forma moderna de autobiografia” e que escrevemos a nossa vida quando escrevemos sobre as nossas leituras (2017PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. Buenos Aires: Debolsillo, 2017., p. 139). Além de Piglia, escritas híbridas entre a crítica universitária e outros gêneros, que deslocavam os sentidos originais esperados desses textos, estavam sendo feitos por outros e outras críticas da América Latina, como Flora Sussekind, Josefina Ludmer, Silviano Santiago, Leyla Perrone-Moisés, Diamela Eltit e Beatriz Sarlo. Assim, e saindo da definição generalista de pós-crítica, trata-se de uma obra que pode ser associada a diversos outros livros do período publicados na América Latina, que também articulam rompimentos com seus gêneros iniciais, seja em direção ao ensaio, à ficção, ou à inespecificidade genérica como horizonte.

No II Seminário Internacional de Crítica Literária: Crítica Literária Hoje: Impasses e desafios, a crítica literária e ensaísta argentina Josefina Ludmer lembrou que a literatura e a crítica literária andam juntas, e propôs que o rompimento dos limites entre crítica e ficção é concomitante (e fruto) dos questionamentos sobre os limites da literatura no fim do século XX (MAGDALENO, 2019MAGDALENO, Renata. Uma literatura que se quer crítica: diluição de fronteiras entre a crítica literária e a literatura contemporânea. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019., p. 14). Apesar de que se pode defender a existência de textos críticos com tons confessionais ou procedimentos literários anteriores, bem como textos literários que propõem reflexões críticas - características da modernidade ao cabo -, a ideia proposta por Ludmer é interessante para pensar textos como o de Mateo Palmer (e outros, como alguns dos críticos mencionados acima), na medida em que colocam em jogo as suas impertinências em relação aos gêneros, traço que ao cabo já parece ter certa tradição na América Latina.

Nesse sentido, uma leitura especialmente interessante para adentrar Ella escribía poscrítica foi elaborada por Nelly Richard, leitora da escena de avanzada chilena, grupo de artistas, escritores e críticos que propunham práticas marcadas pelo rompimento e desmontagem dos gêneros artísticos e literários (e das próprias regulações de masculino e feminino), em pleno período ditatorial. Richard vê nessa estratégia de escrita e performance (que pode ser associada àquela empregada por Mateo Palmer) 10 10 De fato, Richard chegou a assumir que se podia estabelecer uma relação entre o contexto chileno e o cubano dos anos oitenta: haveria traços parecidos entre os desafios artísticos e conceituais da Escena de Avanzada contra o totalitarismo militar e a ortodoxia de esquerda, e a cena artística cubana que se abre nos anos oitenta buscando transgredir o cânone do oficialismo cultural e político (RICHARD, 2013, p. 187). uma radical crítica tanto ao poder totalitário, quanto às formulações ideológicas e estéticas de uma esquerda mais ortodoxa:

Quizás lo más radical de la “nueva escena” dependa de esta pasión del desmontaje (de las gramáticas de articulación del sentido) que anima su “crítica de la representación”: crítica del poder - en - representación (el totalitarismo del poder oficial) pero también de las representaciones del poder (las totalizaciones ideológicas de la izquierda cultural ortodoxa). (RICHARD, 1991RICHARD, Nelly. El signo heterodoxo. Nueva Sociedad, n. 116, p. 102-111, 1991., p. 110).

A análise de Richard é precisa ao explorar criticamente o que há de radical nessas práticas de desconstrução da linguagem, com respeito tanto às suas lógicas quanto às ideologias políticas dominantes e modos de leitura e cooptação das ideias. Mateo Palmer parece apostar por um caminho semelhante, apesar das diferenças de contexto: opta pelo jogo estrutural com a linguagem da crítica, questionando e colocando entraves a uma leitura acadêmica totalizadora, fazendo frente ao problema sobre o qual debate sem distanciar-se dele ou distanciá-lo como objeto. Em Ella escribía poscrítica, há não só uma leitura crítica sobre um tema/objeto, como performaticamente se expõe a construção do andaime intelectual, íntimo e profundamente social que a gerou, posto também como matéria da análise. Esse processo engendra tanto uma representação das condições sociais do período em Cuba, quanto uma crítica às passividades críticas e estéticas (de recepção fácil das ideias pós-modernas, sejam de recusa ou corroboração, e da manutenção da fixidez dos gêneros), enquanto erige a figura autoral de uma mulher em trabalho intelectual e crítico contínuo (apesar das ruínas).

Considerações finais (ou “Ela escrevia apesar das ruínas”)

Este texto procurou se aproximar de algumas questões que envolvem a relação entre literatura e sociedade na obra Ella escribía poscrítica da escritora, ensaísta e professora Margarita Mateo Palmer, publicada pela primeira vez em 1995, e relançada em versão definitiva em 2005.

Busco analisar um paradoxo que surge da leitura à contrapelo dos textos de diversos gêneros que compõem esse livro: aquele das leituras parciais e fragmentárias da autora, ora inacessíveis, ora abertamente lidas desde diversos recortes (trechos, citações de outrem), e ora citadas e constituindo bases analíticas. Em Ella escribía poscrítica, narra-se de forma subjacente às análises uma caça borgeana por textos que possam compor uma biblioteca aparentemente inacessível, e isso em meio à obra revela não só as dificuldades da criação intelectual em uma época de crise, como foi o Período Especial, mas leva a configurações e políticas da escrita que desde sua forma conversam e constroem uma resposta aos dilemas que se colocam à intelectual: a saber, aqueles relativos ao diálogo entre as expressões culturais de Cuba e o pós-modernismo.

Sobre esse ponto, defendo que seria importante um olhar mais detido sobre as estruturas de linguagem de Ella escribía poscrítica, argumentando que a autora parece construir uma colagem de textos de diversos gêneros, com filiações reconhecíveis, como estratégia estética para responder aos dilemas teóricos colocados e ao contexto social do período, ou seja, o Período Especial cubano, na medida em que as fissuras entre esses textos poderiam trazer outros caminhos para a leitura do livro, que passam pela representação do próprio fazer intelectual e crítico, do espaço reservado à mulher naquela sociedade e das próprias carências estruturais da sociedade, com seus impactos sobre a vida cotidiana.

Finalmente, procuro ler essa característica da escrita do livro em relação às práticas inespecíficas da escrita como modo de abarcar um campo de discussão teórica e expressão cultural que têm se dedicado à estética contemporânea a partir de/sobre a hibridez de gêneros, seus cruzamentos e transgressões, refletindo sobre os impactos de tais movimentos para as concepções modernas de literatura.

Referências

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  • WEINBERG, Liliana. Pensar el ensayo México: Siglo XXI Editores, 2007.
  • 1
    Segundo a autora, “tampoco debe permitirse que el temor de ser arrastrados por el afán de búsqueda de lo posmoderno lleve a ignorar que, en el caso de la literatura cubana - y más allá de las influencias que se puedan recibir desde los tradicionales centros hegemónicos de la cultura -, existen textos que ponen en juego procedimientos estilísticos, actitudes y gestos que hoy son considerados representativos de la posmodernidad” (MATEO PALMER, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 118).
  • 2
    Especialmente em: MATEO PALMER, M. “Donde se mencionan algunos ilustres antecedentes posmodernistas en la literatura cubana o ¿vale la pena mirar hacia atrás?” Ella escribía poscrítica. La Habana: Letras Cubanas, 2005MATEO PALMER, Margarita. Ella escribía poscrítica. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2005., p. 118 - 167.
  • 3
    SANTIAGO, S. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. MORICONI, Í. (org.). 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: MORICONI, Ítalo (org.). 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 23-37., p. 23 - 37.
  • 4
    Muitos textos citados eram inéditos, outros circulavam em revistas literárias do período. Vale notar, ademais, o esforço de publicação dos Novísimos feito por Salvador Redonet em Los últimos serán los primeiros (Letras Cubanas, 1993).
  • 5
    A autora comenta textos de jovens escritores à época, como Rolando Sánchez Mejías (Diezmil años, Cinco piezas narrativas), Rogelio Saunders (El mediodía del bufón), Jorge Félix Rodríguez (Pasado mudo), Arsenio Rodríguez Quintana (Dos fugas) e Ronaldo Menéndez (Tocata y fuga en cuatro movimentos y tres reposos), além de ocasionalmente mencionar outros.
  • 6
    As precisões sobre o período podem variar, de acordo com as leituras. Begoña Huertas (1993HUERTAS, Begoña. Ensayo de un cambio: La narrativa cubana de los 80. La Habana: Casa de las Américas, 1993., p. 8), por exemplo, em tese encomiástica, localiza o começo da mudança em 1976, com a entrada de Armando Hart Dávalos no Ministério de Cultura, o que para Huertas é a chave da mudança. No entanto, as obras comumente analisadas costumam ser publicadas a partir dos anos 80 e, especialmente, surgem projetos coletivos na virada dos anos 1980 para os 1990. Daí que Sonia Behar, por exemplo, enfoque a mudança a partir da entrada de novas medidas econômicas decorrentes do Período Especial, nos anos 90, como a chave da questão, na medida em que teriam subsidiado um incipiente mercado de bens simbólicos ( BEHAR, 2009BEHAR, Sonia. La caída del hombre nuevo: Narrativa cubana del Período Especial. Nova York: Peter Lang, 2009., p. 29).
  • 7
    Em linhas gerais, trata-se do período entre 1984 e 1991, aproximadamente, no qual buscou-se estabelecer reformas na economia, especialmente, e no governo, de modo mais amplo, em busca de um modelo mais estável de socialismo. Houve coincidência temporal entre esse período em Cuba e nos países do Leste Europeu e União Soviética. Foi identificado como um período de aberturas democráticas.
  • 8
    A Azotea, como o próprio nome indica, indica o terraço da própria casa de Rodríguez, que funcionou como um espaço alternativo de leituras e discussão, por onde passaram diversos escritores e artistas tanto da Generación de los ochenta, quanto aqueles e aquelas que começavam a escrever no período. PAIDEIA, por sua vez, foi uma articulação que buscou negociar com o Estado um espaço de autonomia para os intelectuais, pautados fortemente pelas leituras de Gramsci. Já Diáspora(s) foi uma revista cultural e literária e um grupo para ações de política cultural que se articulou nos anos de 1990. Na revista, foram publicadas traduções e textos próprios, especialmente poemas e ensaios.
  • 9
    Diálogo no que se refere à linguagem. Sobre o tema do debate, estabelece um debate textual com La isla que se repite, de Antonio Benítez Rojo, publicado em 1989, e que pretendia dedicar-se também a verificar a pertinência da filosofia pós-moderna em relação à literatura e ao pensamento caribenho, como apontei anteriormente.
  • 10
    De fato, Richard chegou a assumir que se podia estabelecer uma relação entre o contexto chileno e o cubano dos anos oitenta: haveria traços parecidos entre os desafios artísticos e conceituais da Escena de Avanzada contra o totalitarismo militar e a ortodoxia de esquerda, e a cena artística cubana que se abre nos anos oitenta buscando transgredir o cânone do oficialismo cultural e político (RICHARD, 2013RICHARD, Nelly. Crítica y política. Santiago de Chile: Palinodia, 2013., p. 187).
  • Declaração de financiamento:

    O trabalho que agora Alea publica foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
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