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Orientalismos zoológicos, querelas de camelos

Zoological orientalisms, camel quarrels

Resumo

O artigo trata de histórias sobre o camelo no imaginário zoológico do Ocidente. Tem como centro uma querela entre artistas e letrados que ocorre na Academia de Pintura e Escultura, em Paris, no fim do século XVII, sobre a ausência de camelos em um quadro de Poussin, em época na qual códigos retóricos e poéticos invadem a pintura. O problema enfrentado diz respeito à pertinência da contiguidade entre o animal e o homem na pintura de história, com seus temas e personagens elevados; e tem como desdobramento a questão da admissão do animal no universo da semelhança do homem. Há duas questões de fundo, uma diz respeito ao animal incômodo, na mediação entre culturas, aquele que é veículo e símbolo do outro e está prestes a atravessar a fronteira, criando desconforto no universo das taxonomias e no sistema de representações; outra, relativa à constituição simbólica do dualismo global Oriente-Ocidente, na qual o camelo terá um papel.

Palavras-chave:
camelo; orientalismo; fisiognomonia; classificações zoológicas; Oriente/Ocidente

Abstract

The article deals with stories about camels in the zoological imaginary of the West. The focus lies in a quarrel that occurred between artists and scholars at the Academy of Painting and Sculpture in Paris in the 17th century about the absence of camels in a Poussin painting, at a time when rhetorical and poetic codes invaded painting. The problem addressed is about the significance of contiguity between animal and man in history painting, with its lofty themes and characters, and the question of the admission of the animal in the universe of man’s resemblance. There are two fundamental questions, one concerns the bothersome animal, in the mediation between cultures, the one that is the vehicle and symbol of the other and can cross the boundaries, creating discomfort in the universe of taxonomies and in the system of representations; the other concerns the symbolic constitution of the global East-West dualism, in which the camel will play a role.

Keywords:
camel; orientalism; physiognomy; zoological classifications; East/West

Résumé

L'article traite des récits du chameau dans l'imaginaire zoologique occidental. Il est centré sur une dispute entre artistes et érudits qui eut lieu à l'Académie de peinture et de sculpture, à Paris, à la fin du XVIIe siècle, à propos de l'absence de chameaux dans un tableau de Poussin, à une époque où les codes rhétoriques et poétiques envahi la peinture. Le problème posé concerne la pertinence de la contiguïté entre l'animal et l'homme dans la peinture d'histoire, avec ses thèmes et ses personnages élevés ; et elle a pour dépliement la question de l'admission de l'animal dans l'univers de la ressemblance de l'homme. Il y a deux questions fondamentales, l'une concerne l'animal qui gêne, dans la médiation entre les cultures, celui qui est le véhicule et le symbole de l'autre et qui s'apprête à franchir la frontière, créant un malaise dans l'univers des taxonomies et dans le système des représentations ; l'autre concerne la constitution symbolique du dualisme global Est-Ouest, dans lequel le chameau jouera un rôle.

Mots-clés:
chameau; orientalisme; physionomie; classifications zoologiques; Est/Oues

Este artigo é resultado de reunião de fragmentos heteróclitos acumulados em anos de pesquisas com finalidades e objetos distintos, que apresentou de forma surpreendente uma feição próxima do que poderia ser um pequeno capítulo de orientalismo, no sentido de Edward Saïd. Se no começo tinha como primeira peça uma estranha observação de Borges em uma conferência de 1951, aos poucos foi agregando situações de outros quadrantes, até que os fragmentos, ainda não reunidos, começaram a se encontrar por mecanismos de contiguidade, semelhança, oposição ou complementaridade. Quase todas as peças do quebra-cabeças que agora apresento tinham alguma coisa a ver com camelos, em situações um tanto esdrúxulas, mas que começavam a revelar um certo desígnio. Cronologicamente, a última que chegou até mim foi o tocante relato de Elias Canetti sobre camelos no caminho do matadouro em uma praça de Marrakech, em 1954, afinal, come-se camelos e a venda de um mais velho pode gerar recursos para comprar até dois, jovens. Para o escritor, quando sentados, aqueles seres prosaicos aparentavam ser velhas inglesas, compostas e entediadas, conversando na hora do chá; sem se dar conta de que, na manhã seguinte, teriam suas jugulares cortadas de maneira apropriada ao alimento do bom muçulmano (CANETTI, 2006CANETTI, Elias. As vozes de Marrakech. São Paulo, Cosac & Naify, 2006., p. 11).

Há diferentes aspectos nessa pequena coleção de histórias e referências sobre camelos, alguns dizem respeito ao lugar em que podem estar, à sua adequação ou decoro em um determinado tipo de representação; outros dizem respeito ao seu caráter e ao lugar que ocupa em comparações com outros animais; que, além de interrogações sobre origem, utilidade, beleza, docilidade, podem ser resumidos a algumas perguntas mais específicas: onde pode estar? por que não está? com quem se parece? a quem simboliza? quem pode ser? - no sentido de “o camelo que há no homem” -; e, sobretudo, em se tratando de animal domesticado, a pergunta: “de quem é o camelo?”

Para a interpretação, poderia lançar mão de correntes mais atuais, como as do multinaturalismo (DESCOLA, 2016DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas. São Paulo: Editora 34, 2016.; CASTRO, 2002CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 345-399.),1 1 Certas indagações aqui desenvolvidas têm alguma proximidade com problemas tratados por Viveiros de Castro (2002) em Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena, mas não acompanho sua virada ontológica, considero, no entanto, sugestiva a ideia de que, em certos âmbitos de cultura, animais são vistos ou “[...] se veem como gente. Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs” (CASTRO, 2002, p. 351). Não trato de xamãs, mas de artistas e fisiognomonistas, que se imbuíram da tarefa de “ver” o animal no homem ou seu inverso; o que significa a opção de não limitar a ideia a uma área cultural específica. O universo intelectual do artigo são formas simbólicas e representações coletivas. mas opto por tratar dessa história de camelos de forma um pouco mais antiga, como uma ressonância longínqua de “algumas formas primitivas de classificação” (DURKHEIM; MAUSS, 1903DURKHEIM, E.; MAUSS, M. Algumas formas primitivas de classificação. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1999 [1903]. p. 399-455., p. 402), em que se diz que “é de boa-fé que um Bororo imagina ser uma arara”. Não tomo como referência, aqui, os modelos totêmicos australianos ou dos Zuñis do Novo México, tratados por Mauss e Durkheim, que são altamente estruturados, mas a configuração que é logicamente posterior ao esmigalhamento [émiettement] das classificações, quando os itens, antes agarrados aos segmentos clânicos, colam-se a um outro tipo de operador “independente de toda a organização social” (DURKHEIM; MAUSS, 1903DURKHEIM, E.; MAUSS, M. Algumas formas primitivas de classificação. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1999 [1903]. p. 399-455. p. 442), como aquele do taoísmo ou do horóscopo chinês. O camelo não aparece no horóscopo, mas pode fazer parte do “tao”, cujo operador é extremamente aberto, dependendo do que se distribui a partir de referências como os pontos cardeais, as cores, as regiões, nas quais se liga a uma miríade de seres, coisas, elementos, ventos, emanações.

A hipótese central do artigo é que, no caso estudado, essa independência de toda organização social pode ter um caráter provisório, até que o termo seja capturado por uma formação maior, para além de fronteiras tribais ou âmbitos etnolinguísticos. Nessa hipótese, todas as indecisões, interditos, injúrias, confusões que recaem sobre camelos fazem parte do processo pelo qual, ao instituir-se como centro de uma ordem planetária, o Ocidente hesitou quanto ao lugar do camelo. Na produção de seu outro, entre os séculos XVII e XVIII, antes mesmo do élan orientalista,2 2 Os marcos temporais nem sempre são muito claros em Orientalismo, mas Saïd afirma que sua plena eclosão se deu no período napoleônico, quando das disputas entre ingleses e franceses nas campanhas do Egito; quando a um orientalismo latente, “de positividade quase inconsciente”, se substitui um orientalismo manifesto, com sua carga de saberes sobre “a sociedade, as línguas, as literaturas, a história, a sociologia e outras coisas orientais do gênero.” (SAÏD, 1996, p. 212) as querelas de camelos, altamente específicas e circunstanciais, já indicavam o impasse da distribuição de seres e coisas entre mundos opostos, na formação do grande operador binário, que colocava, de um lado, as liberdades civis do Ocidente, e, de outro, o despotismo oriental e a escravidão (MONTESQUIEU, 1748MONTESQUIEU, -. De l’Esprit des lois. Troisième partie (Livres XIV à XIX), 1748. [Document numérique, Classiques de l’Université de Quebec (s./p.)].). O que significa dizer que o problema tratado começa em época de orientalismo latente, marcado em grande parte por uma “positividade quase inconsciente” (SAÏD, 1996SAÏD, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 212).

O animal

Camelo é o nome genérico de duas espécies da ordem dos artiodáctilos, o dromedário, mais conhecido como camelo árabe, e o bactriano, que se distingue do primeiro pelo fato de possuir duas corcovas. Pertence à família dos camelidae, assim como a lhama e a vicunha. Apesar de estar quase sempre associado à paisagem do Oriente Médio e do Norte da África, não é um animal nativo dessas regiões. Há controvérsia sobre sua procedência, até meados do século passado supunha-se que teve origem no Turquestão, antiga província da Ásia Central, mas há também indicações de que seu ponto de partida foi o Novo Mundo.

A cultura grega, que mantinha intensas relações com o Oriente Médio e o Norte da África, possuía certamente um conhecimento direto do camelo, tanto que Aristóteles trata dele com algum detalhe em História dos animaisARISTÓTELES, -. Histoire des animaux. Paris: Gallimard, 1994., livro que data aproximadamente de 330 a. C. Conta o estagirita que a gestação do camelo dura dez meses, que ele permanece cerca de um ano junto da mãe, e que vive até mais de 50 anos. Além disso, faz referência à qualidade de seu leite e de sua carne, entre todos os mais agradáveis. Fala também de coisas curiosas como, por exemplo, que o jovem camelo jamais copula com a mãe, e que quando a isso é constrangido ataca seu criador com violentas mordidas, chegando a matá-lo.

Na História naturalPLÍNIO, O Velho. Histoire Naturelle. Traduction de Littré. Paris: Firmin-Didot, 1877. t. I, de Plínio, o Velho (23-79 d.C), as informações são mais precisas. Como Aristóteles, Plínio separa no gênero as duas espécies (Bactriae et Arabiae), distintas pelo tamanho e pelas corcovas; descreve seu uso civil e militar, seus longos percursos, sua velocidade, tão grande quanto a do cavalo, sua resistência à sede, e sua conhecida irritabilidade. Castrado, diz Plínio, ele é mais bem empregado nas guerras, e privado do coito torna-se mais corajoso. Quanto às suas aplicações alimentares e medicinais, a História natural - que é um verdadeiro tesouro nessas matérias - indica que seu cérebro ressecado, misturado com vinagre, é bom remédio para a epilepsia; que sua bile, misturada no mel, cura, entre outras coisas, anginas; que seu rabo, também seco e feito pó, é bom para soltar o intestino; e que a cinza de seus excrementos, misturada com óleo, é apropriada para frisar os cabelos. Outro dado relatado por Plínio diz respeito ao coito: escolhendo lugares desertos ou discretos o coito dos camelos chega a durar um dia inteiro, e é muito perigoso interrompê-los nessa atividade (Plínio, o Velho, 1877PLÍNIO, O Velho. Histoire Naturelle. Traduction de Littré. Paris: Firmin-Didot, 1877. t. I, p. 329).

Na História natural de maior prestígio no século XVIII, Buffon trata do camelo recuperando fontes clássicas, agregadas por notícias de viajantes modernos. No que diz respeito à origem, é dito que o camelo parece ser originário da Arábia, pois esse não é apenas o país no qual é encontrado em grande quantidade, mas é também aquele no qual ele está mais adaptado: a Arábia é o mais árido país do mundo e onde a água é mais rara; o camelo é o mais sóbrio dos animais e pode passar muitos dias sem beber; o território é quase inteiro seco e arenoso; o camelo tem os pés feitos para caminhar nas areias e não pode se sustentar em terrenos úmidos e deslizantes [...] (BUFFON, 1792BUFFON, M. le Comte de. Oeuvres d’Histoire Naturelle par M. le Comte de Buffon. Berne: Chez la Nouvelle Société Typographique, 1792. t. 19. [Nouvelle edition en quarente volumes.], p. 39).

Humboldt, em Tableaux de la nature (1866HUMBOLDT, A. Tableaux de la nature. Traduction de M. Ch. Galuski. Paris: Bibliothèque nationale de France, 1866. [1808]), conta que o camelo era desconhecido em Cartago, antiga civilização destruída pelos romanos nas guerras púnicas (século II a. C.), cuja geografia confunde-se parcialmente com a atual Tunísia; e afirma que sua primeira utilização com fins militares ocorreu entre os Marúsios, na parte ocidental da Líbia, quando os Césares alcançaram o poder. O camelo parece ser, portanto, um neófito nas regiões centro-ocidentais da África do Norte. Como os bois, as ovelhas e os cães, o camelo é um animal doméstico, e Humboldt informa que os Hiungnos, da Ásia Oriental, foram os primeiros a retirá-los da vida selvagem. Até o século XIX, pouco se sabia sobre essa espécie deixada a si mesma em estado selvagem, e as parcas referências a ela derivam da grande compilação chinesa, intitulada Historia Rigionum Occidentalium Quae Si-Yu Vocantur Visu et Auditum Cogitarum (Si-yu-wen-kien-lo) (HUMBOLDT, 1866HUMBOLDT, A. Tableaux de la nature. Traduction de M. Ch. Galuski. Paris: Bibliothèque nationale de France, 1866., p. 107), na qual está dito que existiam camelos selvagens no Turquestão oriental até o século XVIII; o que não significa necessariamente que tenham permanecido nesse estado desde os tempos paleolíticos, pois, como lembra Cuvier, em Le Règne Animal Distribué Selon Son OrganisationCUVIER, George. Le régne animal distribué d’après son organisation, pour servir de base à l’histoire naturelle des animaux et d’introduction à l’anatomie comparée. Paris: Chez Déterville, 1829., é mais provável que esses animais tenham voltado àquele estado depois de perdidos ou libertos por seus antigos pastores.3 3 - De fato, o que diz Cuvier, em uma pequena nota, é que “Pallas rapporte, sur la foi des Bouchares et des Tartares, qu’il y a des chameaux sauvages dans les déserts du milieu de l’Asie; mais il faut remarquer que les Calmouques, par principe de religion, donnent la liberté à toutes sortes d’animaux. (CUVIER, 1829, p. 257)

Apesar do pouco conhecimento sobre esse aspecto da história do camelo, sabe-se que ele é um dos animais que apresenta as maiores dificuldades para ser adestrado, sendo normalmente submetido a tratamentos os mais estúpidos, sem os quais é muito difícil obter sua cooperação. Talvez por isso seu nome ganhou outros significados, como na língua portuguesa, que chama de camelo o homem sem inteligência: burro, estúpido, idiota, camelório. Mas nem por isso o camelo deixa de ser visto com simpatia no bestiário contemporâneo. Popularizado em filmes com motivos médio-orientais, emprestou nome e figura para uma marca de cigarros vendida em todo mundo, que já pautou sua publicidade com imagens em que ele aparece com feições joviais e irônicas montado em motocicletas ou sob o sol em piscinas e praias paradisíacas, numa nítida inversão da antiga característica a ele atribuída. No lugar de um animal estúpido, é mostrado como um tipo esperto que, mais do que ninguém, sabe desfrutar os prazeres da vida. Além disso, é grande atração em zoológicos, e são famosos os passeios ao redor das pirâmides do Egito que turistas, cheios de fantasias beduínas, realizam instáveis sobre suas corcovas.

No Brasil, em meados do século XIX, cogitou-se da introdução do camelo no Nordeste, e sobre isso foi produzido um relatório em Paris - para o qual contribuiu Ferdinand Denis - em nome da Société Impériale Zoologique d’Acclimatation (DARESTE, 1857DARESTE, Camille. Rapport fait à la Société impériale zoologique d'acclimatation... sur l'introduction projetée du dromadaire au Brésil. Paris: Société Impériale Zoologique d'Acclimatation, 1857.), fundada por Isidore Geoffroy Saint-Hilaire em 1854.

Povo de terras firmes e desérticas, tão dependente desses animais, os árabes em sua poesia de hábeis metáforas o chamaram de nave do deserto ou navio terrestre. A metáfora tem lá seu engenho, e faz parte daquelas tantas transposições por meio das quais as culturas vão estabelecendo correspondências entre seres e coisas, próximas ou afastadas, como os argonautas do mar do norte que se referiam à nau como corcel das águas ou lobo das marés (BORGES, 1974aBORGES, Jorge Luis. Las kenningar. In: BORGES, Jorge Luis. Historia de la eternidad. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974a. p. 368-381., p. 374).

Na Bíblia, que é livro de intensos deslocamentos, nos quais os protagonistas são, na sua maioria, pastores nômades da área cultural do camelo, ele não está entre os animais mais citados. Bezerros, bois, jumentos, jumentinhos, carneiros, cabras, serpentes, cavalos, aves e insetos e outros animais, são referidos a todo tempo, algumas vezes com função alegórica, mas muitas vezes também naquelas passagens em que predomina algum realismo, quando se fala de rebanhos, de roubos, de trocas, de dotes e, principalmente, de oferendas e sacrifícios, minuciosamente regulamentados. A exceção apenas aparente está em Jó (1), em que são citados três mil camelos, arrolados entre outros rebanhos; mas não há por que ficar impressionado com tal número, que deve ser entendido como hipérbole para que se tenha a ideia das riquezas que o personagem central do livro perdeu em seu paciente infortúnio.

Em “Deuteronômio” (14), na parte que trata dos animais puros e impuros, e do regime alimentar que corresponde a essa divisão, entre os animais que podem ser comidos são listados o boi, o carneiro, a cabra, o cervo, a gazela, o gamo, o cabrito montês, o antílope, o órix e a cabra selvagem, entre outros que tenham o casco fendido e a unha fendida nos dois cascos. Contudo, diz ainda o texto, há ruminantes ou animais com casco fendido cuja alimentação é interditada, entre eles o camelo e o porco. Esse último está fora pois não rumina, já o camelo o que lhe falta é a fenda no casco.4 4 A explicação de Mary Douglas para o interdito, apesar de engenhosa, deixa a desejar no que diz respeito ao camelo. Por um lado, parte do princípio que camelos, carneiros e cabras eram considerados animais limpos, pois o contato com eles não requeria purificação antes da aproximação do Templo. Por outro, afirma que os ungulados ruminantes e de casco fendido eram o tipo adequado de comida para um pastor. Por fim, examina o caso do porco e do camelo, depois de explicar a proibição de certos animais que aparentam ser ruminantes, mas não têm o casco fendido, e conclui: “O mesmo [a proibição alimentar] ocorre com animais de casco fendido mas não ruminantes, o porco e o camelo.” [Similarly for animals which are cloven-hoofed but are not ruminant, the pig and the camel]. Ver: DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo, 1976, p. 70-72, (grifos meus). É sabido desde os antigos que o camelo é ruminante

Muito de passagem, camelos estão listados entre as riquezas de Labão, aquele que era pai de Raquel e Lia; reaparece discretamente em “José e seus irmãos”; e em todo o “Êxodo” é referido uma única vez, no episódio da “peste dos animais”, entre cavalos, jumentos, bois e ovelhas. Na travessia do deserto, onde deveria mais estar presente, nem sombra dele.

O episódio no qual o camelo é referido com mais insistência é aquele que conta os preparativos para o casamento de Isaac (Gênesis, 24), e é dele que deriva a primeira querela que aqui interessa.

Abraão, já muito velho, decide casar seu filho, Isaac, mas não admite que ele tome por esposa uma filha dos cananeus, entre os quais habitam, e pede a seu servo mais velho para dirigir-se às distantes terras de sua parentela, em Aram Naaraim, para lá escolher sua futura nora.5 5 - “O problema do casamento de Rebeca [...] resulta de uma contradição entre aquilo que os juristas do Antigo Regime chamavam de a raça e a terra. Sob as ordens do Todo-Poderoso, Abraão e os seus abandonaram o país de origem, na Síria mesopotâmia, para estabelecerem-se muito longe em direção ao oeste. Mas Abraão rejeita qualquer ideia de casamento com os primeiros ocupantes: e quer que seu filho Isaac espose uma jovem de seu sangue. E como é proibido tanto a um quanto ao outro de se ausentarem da Terra prometida, Abraão envia Eliezer, seu homem de confiança, à casa de seus parentes distantes para de lá trazer Rebeca.” C. Lévi-Strauss. “En regardant Poussin”. Regarder écouter lire; p. 25/6. Apesar de não estar indicado na Bíblia, reza a tradição que o servo é Eliezer, e o episódio é normalmente conhecido por “Eliezer e Rebeca”. O servo conduz em sua viagem uma caravana de dez camelos carregados de presentes para obter a benevolência da futura noiva e de seus parentes. Ao chegar ao seu destino, Eliezer “fez ajoelhar os camelos fora da cidade perto do poço, à tarde, na hora em que as mulheres saem para tirar água”. E, nesse momento, realiza para si um pensamento: “A jovem a quem eu disser: ‘Inclina teu cântaro para que eu beba’ e que responder: ‘Bebe, e também a teus camelos darei de beber’, esta será a que designastes [Iahweh] para teu servo Isaac”. E imediatamente dirigiu-se ao poço, onde encontrou uma bela jovem com o cântaro sobre o ombro, e a ela fez a pergunta, que logo foi respondida como em seu pensamento. Era esta jovem, portanto, a indicada por Iahweh: Rebeca, filha de Batuel, neta de Nacor, irmão de Abraão. Diante de tal evidência, Eliezer diz a que veio e presenteia Rebeca com brincos e braceletes preciosos. Mais tarde é levado por ela ao encontro de seu irmão Labão, a quem também presenteia com toda sorte de dádivas. Obtendo o consentimento de Rebeca e de sua família, Eliezer realiza o seu intento; e mais tarde Rebeca o acompanha na volta, até os cananeus para desposar Isaac, conduzida pelos camelos a quem deu de beber.

Paris, Academia de Pintura e Escultura, 1688

Esse episódio do Antigo Testamento foi motivo de inúmeras exegeses, mas é surpreendente que tenha gerado uma árdua polêmica na Academia de Pintura e Escultura, em Paris, no tempo de Luís XIV. Mais precisamente em janeiro de 1668, em que dois dos mais importantes pintores da época, Philippe de Champagne e Charles Le Brun, o primeiro pintor do rei, confrontaram-se em uma discussão sobre a ausência de camelos no belo quadro de Nicolas Poussin (1594-1665), falecido dois anos antes, dedicado a Eliezer e Rebeca, que hoje está exposto no Louvre.6 6 Os trechos mais significativos dos debates na Academia sobre o problema dos camelos no quadro de Poussin foram publicados por Stefan Gerner em apêndice do livro Vies de Poussin (Bellori, Félibien, Passeri, Sandrart)

Encarregado de uma conferência na Academia,7 7 Pode-se dizer que as conferências e os debates que as sucediam eram da mesma espécie que os julgamentos da Academia Francesa - fundada em 1638, sob os auspícios de Richelieu - que tiveram entre seus primeiros temas Le Cid, em processo que durou cinco meses, no qual Corneille foi condenado por diversas faltas; o que gerou um longo parecer intitulado Les Sentiments de l’Académie françoise sur la tragi-comédie du Cid, texto comumente atribuído a Jean Chapelain, sempre lembrado por seu caráter disciplinador (ver: CHAPELAIN, 1678). Champagne condena na pintura a ausência dos camelos referidos na Bíblia. Ao suprimi-los da representação, Poussin teria sido infiel ao texto, pecando contra a verossimilhança. Por outro lado, Le Brun vem ao socorro do pintor defendendo a ideia da licença poética do artista, livre para descartar minúcias e objetos bizarros. Diante dessas duas posições, os auditores acabam por dividirem-se entre aqueles que consideram que Poussin deveria ter incluído ao menos três ou quatro camelos, e os adeptos de Le Brun, que arremata seus argumentos por meio do sofisma que considera que os camelos lá estão, mas fora do campo de visão enquadrado pelo pintor.

E a discussão se prolonga por meio de outros argumentos. Enquanto Le Brun sustenta que cabe ao pintor privilegiar a ação principal, ressaltando nela o aspecto agradável, o que implica em deixar de lado elementos estranhos que possam desviar a atenção do espectador, Champagne contra-argumenta, com habilidade, dizendo que a feiura desses animais seria bem-vinda, pois teria o poder de realçar o brilho das belas figuras, que correspondem ao motivo central do quadro: uma imagem é tanto mais bela quando justaposta ao seu contrário.

Tudo isso, que parece um tanto frívolo para nós, remetia a questões cruciais para os pintores da época, recentemente organizados na Academia, em Paris, que havia sido fundada em 1648, sob os auspícios de Mazarino.

À fundação das Academias das artes do desenho nos séculos XVI e XVII correspondeu a elevação da pintura à condição de arte liberal, e o reconhecimento de um papel elevado principalmente para o pintor de história, agora não mais confundido com os oficiais mecânicos. Tal passagem teve como pressuposto um deslocamento do foco de atenção no trabalho do pintor da mão para o espírito. A pintura é coisa mental é uma máxima bastante apropriada para descrever o resultado desse processo, que se fez por meio da constituição de um novo tipo: o pintor erudito, versado em poética, retórica, geometria - no caso de Poussin, também em música -, três grandes núcleos das artes liberais.

As três mais importantes divisões do discurso, codificadas pela retórica, a invenção, a disposição e a elocução, passam a corresponder na pintura a três etapas do processo criativo, a invenção, o desenho e o colorido, sendo a primeira extremamente valorizada, já que é ela que articula o conceito que preside a fatura da obra. A imitação é o princípio que norteia o processo, mas o predomínio da imitação externa cede lugar à imitação interna, fundada na elaboração mental produtora da ideia. Invenção não significa, no caso, criação a partir do nada, mas a descoberta no tesouro das histórias legadas pela tradição dos elementos que o engenho articulará na fábula contada no quadro. Parte-se do pressuposto de que a pintura é como a poesia, e ao pintor erudito corresponde o poeta erudito.

Poussin, portanto, ao narrar a fábula, teria de obedecer aos princípios do decoro, da verossimilhança e da unidade, fundamentais em retórica e poética. E é esse o nó da questão. Excluindo os camelos teria cometido uma falta no que diz respeito à verossimilhança, por esconder um elemento importante tanto da paisagem local quanto do texto de referência; ao incluí-los correria o risco de faltar com o decoro, pois animais tão bizarros seriam vistos como um excesso em tão harmoniosa representação. Sobre esse aspecto, Le Brun agrega, ainda, que a inclusão dos animais corresponderia à mistura dos gêneros, inadmissível na perspectiva acadêmica: os camelos, com seu aspecto cômico, não seriam adequados à seriedade do tema. E sua exclusão teria sido um fator a mais no sentido de garantir o princípio da unidade. Na fábula relatada no quadro tudo ocorre em um mesmo tempo, em um mesmo lugar e tudo é subordinado ao tema central. Se o número de personagens representados é elevado (treze mulheres e um homem), e, no agrupamento à esquerda da tela, algumas mulheres parecem estar absortas em suas tarefas, alheias às figuras centrais, todos se articulam a eles por seus gestos e olhares. Por mais estáticas que sejam as figuras em suas elegantes poses, há um nítido movimento agrupando o conjunto. Eliezer acaba de se dirigir a Rebeca e é representado no exato instante em que oferece a ela brinco e bracelete, ambos visíveis em suas mãos. As três mulheres colocadas à direita se dão conta disso e olham atentas para eles, enquanto no grupo da esquerda apenas duas percebem o ocorrido, e a atenção das outras é, por hipótese, posterior. Tudo isso acontece alguns instantes depois de Rebeca dar de beber a Eliezer e aos seus animais.

Aparentemente, Le Brun surge nessa querela como a figura menos intransigente e mais fiel a Poussin, de todos o grande mestre. Não fosse pelo fato de Poussin ter pintado outros quadros com o mesmo tema. Quadros que, surpreendentemente, não são mencionados no debate, o que leva a supor que fossem desconhecidos daqueles que estavam presentes na reunião da Academia. Aliás, não apenas por esses, já que nas quatro biografias de Poussin escritas no século XVII - Bellori (1672), Félibien (1685), Passeri (1672-74) e Sandrart (1675) - nenhuma referência é feita a outras pinturas dedicadas ao mesmo tema, sendo que Félibien, que conviveu com o pintor e foi na época o melhor intérprete de sua obra, fala detidamente de “Eliezer e Rebeca” sem fazer referência a outras versões sobre o mesmo tema.

E os camelos estão lá, em dois outros quadros de Poussin. Um de 1629, que corresponde à fase inicial de sua carreira já em Roma; outro de data incerta, pintado provavelmente entre 1661 e 1664, que corresponde ao fim da vida do pintor, época em que, segundo Félibien (comentando outras pinturas), já era visível a fraqueza de suas mãos. Em ambos os quadros, Eliezer é pintado bebendo a água vertida pelo cântaro de Rebeca. No primeiro, três camelos ocupam o primeiro plano à direita do motivo central; no segundo, um camelo, um pouco mais discreto, é representado à esquerda, separado dos personagens centrais pela arquitetura do poço.

É Daniel Arasse, em seu livro Le DétailARASSE, Daniel. Le détail: pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris: Flammarion, 1996., quem resgata e coloca em série os quadros sobre o mesmo tema, até então desconhecidos, o que o leva a concluir que os argumentos de Le Brun na querela, aparentemente bons para explicar o quadro de 1648, são, no entanto, falhos quando cotejados com a série das três pinturas. O fato de ter voltado três vezes ao mesmo assunto, dando a ele diferentes soluções, revela as hesitações de Poussin quanto à melhor maneira de representar o tema: em 1629, três camelos em posição de destaque; em 1648, nenhum camelo; em 1661/1664, um camelo na condição de detalhe. Sendo que, nos dois quadros em que são representados, o momento escolhido é aquele em que Eliezer bebe, imediatamente anterior ao movimento de Rebeca, que, em seguida, dirige-se aos animais para dar-lhes também da sua água.

É de se supor, portanto, que Poussin não considerava os camelos indignos de representação em pinturas com assuntos elevados. E o mesmo pode-se dizer de Murillo (1618-1682), que, na mesma época do terceiro quadro do mestre francês, na década de 1660, na meridional Sevilha, deu ao tema de Eliezer e Rebeca um belo tratamento, e colocou em segundo plano, à esquerda da tela, dois camelos bastante discretos, embora suficientemente visíveis, mas a eles agregou um cavalo, por sua vez exótico à narrativa, como que para compensar, com um animal digno, aquelas bizarras figuras.

Neste sentido, tanto Poussin quanto Murillo, acompanham Andrea Mantegna (1431-1506) que não hesitou em figurá-los na “Adoração dos Magos”, que hoje se encontra na Galeria dos Ofícios em Florença. O que em absoluto teria sido necessário, já que em nenhum dos evangelhos do Novo Testamento há referência à maneira como os “magos” chegaram até a manjedoura onde estavam Maria e seu Filho. Hoje estamos acostumados com a associação dos “reis magos” a camelos, no entanto, na iconografia do Ocidente, os "magos" eram representados quase sempre chegando a cavalo, animal que nunca deixou de ter plenos direitos de cidadania nas mais variadas fases e estilos da história da arte.

Outro ponto que chama a atenção nessa história, diz respeito ainda a Charles Le Brun, que, na mesma Academia em que se discutiu a pertinência dos camelos no quadro de Poussin, três anos depois da querela, pronunciou uma conferência tratando do tema da fisionomia humana e de suas relações com os animais. Dando sequência a uma tradição muito antiga, que remonta ao pseudo-Aristóteles, a Polemon, a Adamantios e ao pseudo-Apuléio, que articulava o caráter do homem aos traços de animais presentes em sua fisionomia, e que desde então nunca deixou de ser evocada nos mais variados sistemas de pensamento, Le Brun não apenas expôs suas ideias sobre o tema, mas também apresentou toda uma série de preciosos desenhos de homens assemelhados a corujas, águias, carneiros, gatos, leões, cavalos, camelos... Ao todo 250 desenhos, hoje guardados no Cabinet de dessins do Museu do Louvre.8 8 As duas versões de Poussin e os desenhos de Le Brun podem ser conferidos em: Poussin, Eliézer et Rébecca (sem camelos) https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010062436 Poussin, Eliézer et Rébecca (com camelo) https://www.artfund.org/supporting-museums/art-weve-helped-buy/artwork/2250/eliezer-and-rebecca Le Brun, l’Homme-Chameau https://cdm21057.contentdm.oclc.org/digital/collection/coll5/id/39

O estudo da fisionomia animal no homem fazia parte do estudo das paixões, e o material preparado pelo primeiro pintor do rei visava à codificação em imagens das características fisionômicas de cada uma delas. O sistema apresentado por Le Brun é muito complexo para ser aqui exposto, mas um de seus detalhes consiste em uma análise geométrica das principais linhas que traçam a face e revelam o gênio de um homem e a natureza de um animal. E, por esse estudo, o elefante, o macaco e o camelo são classificados na condição de animais argutos (LEBRUN apudBALTRUSAITIS, 1999aBALTRUSAITIS, Jurgis. Fisionomia animal. In: BALTRUSAITIS, Jurgis. Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999a. p. 13-84., p. 39).

Jurgis Baltrusaitis, em “Fisionomia animal”, texto do qual retiro essas últimas referências, afirma que, até a aparição dos estudos de Le Brun, o camelo ainda não tinha adentrado nas iconografias a relacionar homens e animais, sendo, portanto, espécie inédita como o papagaio, o urso, a lebre, a raposa, o lobo, o javali.

É interessante notar o novo matiz que aparece nos argumentos de Le Brun sobre o camelo: na querela em torno de Eliezer e Rebeca ele era visto como animal cômico, em função de seu aspecto bizarro, indigno de tomar parte da cena em questão, já nos seus posteriores estudos sobre fisionomia, surge como exemplo de inteligência, ideia que vem desmentir boa parte das pré-noções até agora arroladas sobre o animal. Talvez seja possível dizer que no lugar do animal que faz rir aparece o animal irônico.

Em 1668, ano da querela, La Fontaine (1621-1695) publicou a primeira série de seis livros de Fábulas. A fábula X do livro IV trata do camelo e, surpreendentemente, parece conter uma espécie de resumo das hesitações de artistas e letrados de seu tempo, com solução favorável à admissão do polêmico animal. Com a simplicidade e bom senso que o caracterizam, La FontaineLA FONTAINE. Le chameau et les batons flottantes. In: Fables de La Fontaine. Paris: Flammarion , 1875. p. 177. (s. d., p. 117) aborda a questão nos seguintes termos:

Le premier qui vit un chameau S’en fuit à cet objet nouveau; Le second approcha; le troisième osa faire Un licou pour le dromadaire. L’accoutumance ainsi nous rend tout familier: Ce qui nous paroissoit terrible et singulier S’apprivoise avec notre vue Quand ce vient à la continue.

No entanto, esse vaticínio de La Fontaine - que julgava possível tornar familiar o estranho - não seria inteiramente confirmado. Na segunda metade do século XVIII, camelos reais eram acessíveis ao público em alguns lugares da Europa, como no caso de Paris, no Jardin de Monceau, onde, por volta de 1779, serviçais “fantasiados de tártaros e de hindus, de turbante, levavam a passeio animais da África e da Ásia, assim como camelos que transportavam os visitantes” (BALTRUSAITIS, 1999bBALTRUSAITIS, Jurgis. Jardins e terras de ilusão. In: BALTRUSAITIS, Jurgis. Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999b. p. 199-269., p. 243). Nessa época, chamam a atenção os comentários de Lavater (1741-1801) nada favoráveis ao camelo, expressos em seu famoso tratado sobre a fisiognomonia.

Para Lavater, o camelo e o dromedário são um composto do cavalo, da ovelha e do asno, desprovidos da nobreza do primeiro. Parecem ter também algo do macaco, ao menos pelo nariz, que não é apropriado para receber o arreio e o freio, pois é destituído de uma faculdade que é específica do cavalo: é entre os olhos e o nariz que se reconhece a necessidade do arreio. Nessa região, não há qualquer traço de coragem e de audácia. Não há nada do ar ameaçador do boi ou do cavalo nessas narinas de símio. Nenhuma força para o ataque, nenhuma voracidade na goela murcha, nem em sua parte superior: ele não tem nos olhos senão a paciência de uma besta de carga (ver: LAVATER, 1998LAVATER, Jean-Gaspard. La Physiognomonie ou l’art de connaître les hommes d’aprés les traits de leur physionomie. Paris: Delphica; L’Age d’Homme, 1998., p. 103).

Lavater foi um cientista suíço dos mais reputados. Goethe, seu amigo, tinha grande admiração pela orientação de seus estudos e chegou a colaborar em La Physiognomonie, na parte dedicada ao crânio dos animais (ver: BALTRUSAITS, 1999aBALTRUSAITIS, Jurgis. Fisionomia animal. In: BALTRUSAITIS, Jurgis. Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999a. p. 13-84., p. 54). Em seus exercícios fisiognômicos, parece que Lavater não observou no camelo nada daquilo que Le Brun extraiu dele. Faltam-lhe a nobreza do cavalo, coragem, audácia, força e voracidade, e é considerado inferior inclusive ao boi. No regime de semelhanças que preside o comentário, o camelo é definido por subtração, por aquilo que não tem; o pouco que lhe cabe são as narinas de símio - animal também desprezado no sistema de Lavater - e a característica de besta de carga, o que retoma a ideia de animal estúpido presente em certos contextos linguísticos e culturais em que a palavra camelo é empregada. Lavater foi, de fato, um sistemático promotor de preconceitos e muito de sua fortuna crítica, no século XIX, se deve a isso. Seus estudos de fisiognomonia foram práticos para se identificar de forma essencialista o caráter de tipos humanos a ter como ponto de partida suas feições; um grande alimento para os racismos de todo tipo que vieram a seguir. E o camelo foi, assim, aquele que emprestou suas feições aos homens empurrados para os trabalhos rudes e grosseiros. No século XIX esse tipo de operação mental só fez prosperar. E foram poucos aqueles que, no trato do camelo, escaparam das projeções essencialistas como as de Lavater.9 9 Nietzsche não foi indiferente ao camelo, mas só tratou dele quando assumiu a voz de um sábio oriental; para Zaratustraele é metáfora do “espírito sólido”, que é pleno de respeito, mesmo quando “se ajoelha como um camelo e quer ser bem carregado”. Mas Zaratustra não o condena a essas funções, pois vê nele um avatar: “Dei nome a três transformações do espírito, como o espírito vem a ser camelo, como o camelo vem a ser leão, e como, enfim, o leão vem a ser criança” (NIETZSCHE, 1898, p. 27-28). Com isso, no lugar de uma essência, o camelo é um termo na dialética do espírito, pois pode se transmutar em leão, que conquista a liberdade e quer ser senhor de seu próprio deserto; assim como em criança, que é inocência e esquecimento. "Você deve", é o que se diz ao camelo; "eu quero", é a reivindicação do leão; "a sagrada afirmação da inocência e do esquecimento" é a condição da criança, que pode vir a criar o seu próprio mundo.

É evidente que o problema do camelo não é similar ao de qualquer outro animal exótico descoberto nos sucessivos movimentos de expansão da Europa. Em primeiro lugar, ele nunca esteve tão longe, já que grande parte da paisagem do Mediterrâneo conviveu por séculos ordinariamente com ele. Além disso, é citado e descrito em boa parte das principais fontes letradas antigas da civilização europeia, a começar por seu principal livro sagrado, o que o distingue, portanto, por exemplo, do canguru ou da preguiça, na categoria dos muito distantes e diferentes; ou da lhama, em alguma coisa parecida, mas muito distante.

Arrisco dizer que a inquietação produzida pelo camelo deriva da proximidade e da semelhança e não da distância e da diferença. O problema do camelo é que ele é também um animal domesticado, tão útil como bom para pensar. Daí serem compreensíveis as analogias mobilizadas por Lavater, que o coloca no mesmo rol do cavalo, do asno, do boi e da ovelha, todos eles animais domesticados, os dois primeiros, de carga, condução e tração, os dois últimos bons para comer e para uma grande variedade de operações simbólicas, como fábulas e emblemas.

A partilha das margens do Mediterrâneo entre muçulmanos e cristãos correspondeu igualmente à partilha do Pentateuco entre as três grandes religiões monoteístas. É de se supor que os problemas das culturas da margem setentrional com o camelo tenham sido amplificados por essa divisão. Não é destituído de sentido pensar que, pelo fato de o camelo predominar nas margens islamizadas do Mediterrâneo, sua admissão na iconografia e a posição que ocupa no sistema de correspondências do bestiário ocidental tenham sofrido tantos percalços. Além de estúpido, feio e bizarro, o camelo é transporte rotineiro do infiel.

E os percalços do camelo não dizem respeito apenas ao seu lugar no imaginário zoológico. A despeito de ter sido aclimatado em muitas regiões do globo, frias ou quentes, planas ou elevadas, no Oriente Médio, na Ásia, na África e até na Austrália, onde chegou por último, a Europa e as Américas não o receberam, a não ser para ser mostrado em exposições e jardins zoológicos.

Buenos Aires, 1951

Um dos mais brilhantes ensaios de Jorge Luis Borges é “O escritor argentino e a tradição”, apresentado primeiro na forma de conferência em 1951, publicado na revista Sur em 1955 e, no ano seguinte, agregado na reedição de Discussão, livro cuja primeira edição data de 1932.

Esse texto é resposta aos nacionalismos literários de todos os matizes, particularmente àquele que diz respeito à tradição das letras argentinas. Borges começa por discutir a diferença entre a poesia gaúcha dos cantores populares errantes, ditos payadores, e a poesia gauchesca, cujo representante mais notável é o Martín Fierro, de Hernández. Enquanto as histórias literárias mais tradicionais articulam essas duas vertentes em uma mesma linhagem, Borges faz questão de distingui-las, demonstrando com clareza que Hidalgo, Ascasubi, Estanislao del Campo e Hernández, mestres do gauchesco, são muito mais devedores das tradições poéticas ocidentais, que podem ser consideradas eruditas, do que da poesia dos payadores, à qual eles se vinculam mais pela temática do que pelo vocabulário e pelos procedimentos estilísticos. Irônico, diz Borges, que, enquanto qualquer hispano-americano compreende sem grandes problemas os versos dos payadores, para entender Estanislao del Campo ou Ascasubi necessitariam de um dicionário; e que Hidalgo, já classificado como payador, começou compondo hendecassílabos, metro de origem italiana, introduzido na Espanha do século XVI por Garcilaso de la Vega, e absolutamente estranho à poesia popular argentina (ver: BORGES, 1974bBORGES, Jorge Luis. El escritor argentino y la tradición. In: BORGES, Jorge Luis. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé , 1974b. p. 267-274., p. 268).

Borges não está, com isso, menosprezando a poesia gauchesca, da qual é grande admirador e sobre a qual produziu comentários notáveis, além de incorporar muitos de seus temas em sua prosa e poesia. Está apenas demonstrando que esses poetas foram mobilizados por um grande desejo de ser argentinos, mas que longe de possuírem a espontaneidade dos cantores gaúchos, produziram uma poesia claramente artificial. E arremata seus argumentos lembrando que Racine ou Shakespeare não são menos francês ou inglês por terem tratado de temas gregos, latinos, italianos ou escandinavos. Para Borges, “o culto argentino da cor local é um recente culto europeu que os nacionalistas deveriam rechaçar por forasteiro” (BORGES, 1974bBORGES, Jorge Luis. El escritor argentino y la tradición. In: BORGES, Jorge Luis. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé , 1974b. p. 267-274., p. 270); e que muitas vezes a expressão nacional aparece de forma mais acentuada exatamente quando o escritor não está explicitamente empenhado em produzi-la.

Dito isto, traz à tona a lembrança de uma leitura então recente, que confirmaria seus argumentos. Segundo Borges, Gibbon, em História do declínio e queda do Império Romano, teria observado que

[...] no Alcorão, livro árabe por excelência, não há camelos, creio que se houvesse alguma dúvida sobre a autenticidade do Alcorão, bastaria esta ausência de camelos para provar que é árabe. Foi escrito por Maomé, e Maomé, como árabe, não tinha por que saber que os camelos eram especialmente árabes; eram para ele parte da realidade, e não tinha por quê distingui-los; em troca, um falsário, um turista, um nacionalista árabe, a primeira coisa que teriam feito seria esbanjar camelos, caravanas de camelos em cada página; mas Maomé, como árabe, estava tranquilo, sabia que podia ser árabe sem camelos. Creio que nós argentinos podemos fazer como Maomé, podemos crer na possibilidade de ser argentinos sem exagero da cor local. (BORGES, 1974bBORGES, Jorge Luis. El escritor argentino y la tradición. In: BORGES, Jorge Luis. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé , 1974b. p. 267-274., p. 270).

Quando li pela primeira vez essas páginas, achei curioso o exemplo, que nunca escapou de minha memória. Mas, mais surpreso ainda fiquei ao ler, inicialmente em segunda mão, algumas considerações de Goethe sobre a língua árabe. No livro Divan, em uma pequena passagem intitulada “Elementos primitivos da poesia oriental”, diz o escritor que

Na língua árabe encontram-se poucas palavras primitivas, os radicais, que não possam ser associadas ao camelo, ao cavalo e ao carneiro, senão imediatamente, ao menos por meio de ligeiras modificações. Essa expressão altamente primitiva da natureza e da vida não deve nem mesmo ser dita figurada. Tudo que o homem enuncia com uma liberdade natural são relações vitais: ora, o árabe é tão intimamente unido ao camelo e ao cavalo quanto a alma ao corpo [...] (GOETHE, 1874GOETHE, -. Poésies Diverses - Pensées - Divan Oriental-Occidental. Paris: Hachette, 1874.).

O que me fez pensar que, no argumento de Goethe - e na suposição de que sua filologia tenha algum fundamento -, o profeta não precisaria mesmo ter falado de camelos, já que eles estavam por todo lado como um elemento intrínseco à língua. O que em absoluto contraditaria a observação de Borges, muito ao contrário, pode-se ver nisso um reforço aos seus argumentos, pois a linguagem com sua produtividade natural traria em si os elementos vitais que remetem à natureza e à cultura na qual o poeta está imerso. Dessa passagem de Goethe, poderíamos deduzir que na poesia árabe primitiva a “cor local” já está toda ela presente na própria linguagem, sendo prescindível então explicitá-la por outros meios.

Mas tudo isso faria sentido se não houvesse um engano nessa história, pois os camelos aparecem referidos no Alcorão diversas vezes (sura VI, versículo 144; VII, 73/77; XI, 64; XII, 65; XXII, 27; VXXXI, 4). Por certo não tanto quanto conviria a um nacionalista árabe ou a um turista, mas nem muito mais ou menos do que a maioria dos animais citados. A última referência que encontrei diz respeito ao sacrifício destes animais:

Os camelos devem participar da homenagem que deve ser rendida ao Senhor das Alturas. Disso poderão retirar múltiplas vantagens. Invoquem o nome do Senhor sobre aqueles que serão imolados. Que eles sejam colocados sobre três pernas, e ligados pelo pé esquerdo dianteiro. Logo que tenham sido imolados, alimentem-se de sua carne, e distribuam-na a todos aqueles que pedirem. Deus os submeteu ao vosso uso. E devem a Ele render graças por essa dádiva (Le Koran, XXIIMAHOMET, -. Le Koran. Paris: Garnier, 1993., 37).

As perguntas que ficam dizem respeito ao engano. Seria ele de Borges ou de Gibbon? Proposital ou involuntário?

Sabe-se que em castelhano a palavra camello refere-se evidentemente ao animal, mas camelo quer dizer também troça, engano, burla. O que imediatamente faz pensar nesse hábito tão comum em Borges de desnortear o leitor com falsas evidências ou atribuições errôneas. Mas o problema é um pouco mais simples. De fato, no terceiro volume de Declínio e queda do Império Romano, Gibbon trata do Islã, de sua cultura, de sua religião e desse personagem tão decisivo que foi Maomé. E fala também de camelos, referidos como sagrada e preciosa dádiva nas areias do deserto. E na descrição deste animal, de suas características e de seus usos, tece a seguinte consideração: “Vivo ou morto, quase todas as partes do camelo são úteis para o homem: seu leite é abundante e nutritivo; sua jovem e tenra carne tem o sabor da vitela, um valioso sal é extraído de sua urina [...]” (GIBBON, 1952GIBBON, Edward. The Decline and Fall of the Roman Empire II. London: Encyclopaedia Britanica Inc., 1952., p. 221-222).

E a esta pequena referência, agrega uma nota explicativa, no fim livro:

Qui carnibus camelorum vesci solent odii tenaces sunt, é a opinião de um médico árabe [...]. O próprio Maomé, que gostava de leite, preferia de vaca, e nem sequer menciona o camelo; mas a dieta praticada então em Meca e Medina era mais exuberante. (GIBBON, 1952GIBBON, Edward. The Decline and Fall of the Roman Empire II. London: Encyclopaedia Britanica Inc., 1952., p. 662, grifo meu).

Salvo engano, o problema parece então resolvido. Mohammed [...] does not even mention the camel foi interpretado por Borges, abstraindo o contexto, como a afirmação de que Maomé não fala de camelos no Alcorão. A preferência do profeta pelo leite de vaca, e o fato de nem mesmo fazer menção ao (leite de) camelo, esteve na origem de uma das mais espirituosas peripécias de Borges, que não prestou muita atenção no que leu.

O camelo e a roda

Para os desenvolvimentos finais dos argumentos desse artigo, cabe a referência a situações próprias de fronteiras, nas quais o camelo começou a ser marcado como animal do outro. Tomo aqui a investigação de uma romanista francesa contemporânea, que, em estudos sobre poesia medieval em línguas românicas, acabou por tratar de camelos de uma forma indireta, mas muito sugestiva. Michelle Szkilnik (2004SZKILNIK, Michelle. Roland et les chameaux. Sur la date de la Chanson de Roland. Romania, v. 122, n. 487-488, p. 522-531, 2004.), realizou uma minuciosa desconstrução de anedotas sobre o uso de camelos com finalidades militares nas relações medievais entre cristãos e muçulmanos; particularmente sobre a investida violenta de uma imensa tropa de camelos dos exércitos almorávidas que, empolgados por estrondosos tambores, venceram os exércitos cristãos, comandados por Afonso VI de Castela, na batalha de Zallaqa, em 1086.

Uma pequena passagem da Chanson de Roland foi, com frequência, utilizada como fonte secundária na erudição historiográfica desse acontecimento militar; e, indiretamente, a batalha, cuja data é bem estabelecida, passou a ser tomada como fonte de certificação da data aproximada da Chanson, sobre a qual muitas dúvidas recaiam. Há um quebra-cabeças de datas e enganos nessa história, a gesta de Rolando tem como episódio principal uma batalha do século VIII, acontecida nos Pirineus, onde supostamente os exércitos de Carlos Magno enfrentaram e foram derrotados por sarracenos, cerca de três séculos antes da batalha de Zallaqa. Tratam-se de duas derrotas, na mais antiga, a personagem heroica é Rolando, o comandante bretão da retaguarda do exército carolíngio que, depois de feitos os mais insignes, morreu de inúmeros ferimentos e se tornou, talvez, depois de Aquiles, o mais famoso herói guerreiro derrotado em batalha. De fato, sabe-se que a Batalha de Roncevaux, que ocorreu em 778, não foi vencida nem envolveu sarracenos, mas bascos, que não montavam camelos nem tocavam estrondosos tambores em suas cargas contra inimigos. O que faz supor que o autor de Rolando, tendo vivido entre fins do século XI e começo do XII, sem preocupações historiográficas, que eram incabíveis em seu tempo, poderia ter misturado na sua canção acontecimentos e personagens de tempos diversos.

O último engano ficou também por conta dos camelos, mas é tão ou mais digno de nota. Sobre a batalha de Zallaqa não há dúvida sobre os adversários: exército muçulmano contra exército cristão, derrotado; mas os camelos, ao que parece, nem sombra deles. É disso que trata Michelle Szkilnik, com argumentos cortantes: nenhuma das fontes cristãs fala da participação de cameleiros nos exércitos que derrotaram Afonso VI, nem de tambores; e mesmo em fontes berbere-muçulmanas, cartas, testemunho, poema, crônicas, escritos no fim do século XI e durante todo o século XII, nenhum deles fala de camelos; e sobre tambores, em poucos casos aparecem, sendo tocados antes ou depois da batalha, como incentivo ou comemoração. É apenas em uma fonte de 1274, quase dois séculos depois da batalha, que aparecem, finalmente, os heroicos cameleiros e os ruidosos tambores na carga fulminante. Foi Ibn Khallikân, um jurista - Cadi, que viveu entre o Iraque, a Síria e o Egito -, uma espécie de Plutarco árabe, que os introduziu em seu obituário de homens ilustres: Wafayât al-ayân.

Quase certamente uma mistificação, porque os camelos pouco apareceram em guerras em toda a paisagem do Islã. Pois eram, sobretudo, animais de carga, de comércio e de peregrinação, enquanto a Jihad era montada a cavalo (SZKILNIK, 2004SZKILNIK, Michelle. Roland et les chameaux. Sur la date de la Chanson de Roland. Romania, v. 122, n. 487-488, p. 522-531, 2004., p. 525).10 10 Sobre o uso de camelos em guerras, Epstein (1954) apresenta muitos exemplos, mas em situações anteriores à expansão islâmica: camelos utilizados por Ciro na batalha de Sardis em 557 a.C.; esquadrões de camelos empregados por romanos em funções de reconhecimento e de correio no Oriente Médio; camelos utilizados pelas tropas do rei Juba da Numídia, aliado de Pompeu nas guerras contra César e outros exemplos, todos eles na Antiguidade. Mas mistificação altamente significativa, não só porque aos camelos agrega o rufar dos tambores, mas também os gritos dos animais, que deixaram os adversários aturdidos. Uma magnífica encenação de triunfo, com origem na aparição repentina desse animal desconhecido, que desnorteou os exércitos cristãos, para os quais começa a ser fixado o sintagma camelo-infiel: derrota. Szkilnik, no entanto, não vai além da descoberta da fonte na qual o erro fica evidente, e parece não perceber que a mistificação de Ibn Khallikân pode ter tido um duplo efeito simbólico dos dois lados da fronteira, de um lado, dificultando a passagem do camelo para Oeste, de outro, fazendo do animal abrâmico um descendente de Ismael e não de Isaac.

Reciprocamente, na mesma fronteira, há outra coisa que demorou a passar no sentido contrário, do Oeste para o Leste. Bulliet (1969BULLIET, R. W. Le chameau et la roue au Moyen-Orient. In: Annales. Economies, sociétés, civilisations. 24ᵉ année, n. 5, p. 1092-1103, 1969.) encontrou suficientes evidências para afirmar que, durante a Idade Média e mesmo depois, houve uma espécie de desaparecimento da roda no âmbito árabe e mesmo em outras regiões muçulmanas mais orientais como a Pérsia. E, ao que parece, não exatamente por razões funcionais, pois na Antiguidade essas regiões foram atravessadas em diversas direções por imensos exércitos - sumérios, romanos, persas e de outros impérios - munidos, de grande variedade de veículos de rodas de tração animal: carroças, carroções, carros de combate. Esse desaparecimento da roda chamou a atenção tanto de Volnay, no fim do século XVIII, como de Lévi-Provençal, no século XX. Tendo por base argumentos de ordem tecnológica - no que diz respeito à precariedade dos arreios quanto postos em camelos -, argumentos linguísticos e iconográficos, Buillet sustenta que ao menos desde a expansão islâmica, no século VII até o século XIV, a roda foi como quê banida das grandes extensões geográficas nas quais o camelo dominou não só as estradas como também as cidades com seus traçados estreitos e sinuosos, que impediam as manobras necessárias para a circulação carroças e charretes.

Remate: animal incômodo

Imagino que a querela de camelos possa ter tido muitos outros episódios no passado. No que diz respeito ao tempo, as referências aqui inventariadas espalham-se por um longo período, de Aristóteles a Borges, mas há uma concentração de exemplos entre os séculos XVII e XVIII, de Poussin a Montesquieu, Buffon e Lavater. Quanto à geografia, é importante ressaltar que são quase todas histórias relativas a um lado, aquele em que os camelos não circulam rotineiramente, que pode ser generalizado pelo termo Ocidente. No que diz respeito aos tipos, são três: o primeiro, remete à pertinência da contiguidade entre o animal e o homem na pintura de história, com seus temas e personagens elevados; o segundo, à admissão do animal no universo da semelhança do homem, pelo reconhecimento de traços daquele na fisionomia desse, ou pelo reconhecimento de elementos do caráter do homem na fisionomia do animal; o terceiro, a despeito de estar fundado em engano, relaciona-se ao tema do animal como emblema de nacionalidade ou universo cultural, e a peripécia de Borges termina por sugerir que a força do camelo é tamanha, que nem precisaria ser evocado para cumprir seu papel.

A Academia de Pintura e Escultura resistiu em aceitar o camelo em seu gênero maior. Le Brun, apesar de ter militado nessa recusa, nos estudos de fisiognomonia caminhou em direção à ideia de que o camelo tem algo de gente, que sua forma manifesta é uma espécie de envoltório que abriga elementos de humanidade e, no sentido inverso, ao reconhecer que, entre os homens, há aqueles que são camelos. Lavater, ao ressaltar suas precariedades e insistir na pura condição de besta, manteve o camelo em relativa distância, mas, como seu sistema está aberto aos mais variados tipos de conversão, o homem-camelo não está de todo descartado. Ambos são exemplos da incessante fabulação do animal dentro do homem, e da humanização da besta, traços comuns a todas as culturas.

Mas essa última constatação é um tanto genérica e dissolve o problema subjacente às querelas de camelos. No meu modo de entender, não basta pensar nele como outro animal, que teve dificuldade de ser acomodado no imaginário zoológico do Ocidente. Mais do que isso, há que se reter a ideia de que ele é animal do outro, e a chave da questão pode ser encontrada na transição brusca entre a ideia de animal estúpido para animal sagaz, no limite irônico, que aparece em mais de uma das histórias aqui narradas, como se o camelo pudesse estar nos dois extremos de um eixo que vai da bestialidade à inteligência. Esse tipo de trânsito entre extremos não é incomum nas fábulas que tratam de homens e animais. Mas o caso do camelo não pode ser diluído nesse universo. A passagem da condição de animal estúpido e cômico à de inteligente e irônico tem um caráter perturbador, pela possibilidade latente do desarranjo de uma hierarquia de valores.

O problema do camelo é histórico e antropológico e diz respeito a confrontos e mediações entre culturas, tópico que se esclarece no desenrolar dos argumentos de Buffon em sua História Natural, quando afirma que “o camelo é mais antigamente, mais completamente, mais laboriosamente escravo do que qualquer dos animais domésticos [...]” (BUFFON, 1792BUFFON, M. le Comte de. Oeuvres d’Histoire Naturelle par M. le Comte de Buffon. Berne: Chez la Nouvelle Société Typographique, 1792. t. 19. [Nouvelle edition en quarente volumes.], p. 50). Para o naturalista, enquanto o cavalo, o cão, o boi, o carneiro e o porco são ainda encontrados em vida selvagem, o camelo é por inteiro uma espécie escravizada, o que se revela até em alguns de seus hábitos, que confirmam sua submissão, como, por exemplo, quando docilmente se agacham, dobrando os joelhos para serem carregados com o fardo de seus donos.

Nessas observações não é de todo impróprio encontrar um eco das reflexões de Montesquieu em O espírito das leis (1748MONTESQUIEU, -. De l’Esprit des lois. Troisième partie (Livres XIV à XIX), 1748. [Document numérique, Classiques de l’Université de Quebec (s./p.)].), publicado poucos anos antes do período no qual Buffon escreveu os volumes de sua obra sobre os quadrúpedes (1753/1767). “De como as leis da escravidão civil estão relacionadas com a natureza do clima” é o título do “livro XV” de O espírito das leis. São duas as principais explicações de Montesquieu para a instituição abjeta do escravismo: de um lado, o despotismo político que anula a liberdade civil; de outro, o clima, porque “há países nos quais o calor enerva os corpos e enfraquece de tal maneira a coragem, que os homens não se dispõem a realizar um dever penoso a não ser em razão do temor do castigo [...]” (MONTESQUIEU, 1748MONTESQUIEU, -. De l’Esprit des lois. Troisième partie (Livres XIV à XIX), 1748. [Document numérique, Classiques de l’Université de Quebec (s./p.)]., livro XV, cap. VII). No tecer dos argumentos que explicam a escravidão, Montesquieu acaba por estabelecer uma fronteira entre o Ocidente, no qual se afirmam as liberdades civis, e os despotismos orientais. Fronteira que é demarcada pelas formas de governo que vinham banindo a escravidão:

[...] no governo monárquico, no qual é soberanamente fundamental não abater ou aviltar a natureza humana, não há razão para a existência de escravos. Na democracia, na qual todos são iguais, e na aristocracia, na qual as leis estão orientadas para que também todos sejam iguais, de tal maneira que a natureza do governo reprime a permissão; a escravidão é contrária ao espírito da constituição, ela serve apenas para dar aos cidadãos um poder e um luxo que não devem ter jamais. (MONTESQUIEU, 1748MONTESQUIEU, -. De l’Esprit des lois. Troisième partie (Livres XIV à XIX), 1748. [Document numérique, Classiques de l’Université de Quebec (s./p.)]., livro XV, cap. I).

Quanto a Buffon, poderia simplesmente constatar que as notícias vindas de todas as partes do mundo jamais faziam menção a camelos em estado selvagem, mas optou por ir além, isto é, associá-los à escravidão; e a isso ele agrega afirmações precisas sobre o fato do camelo não ter se aclimatado na Europa. Com isso, apesar de seu entusiasmo com as características e capacidades do animal, atribuiu a ele um sentido a mais: o de simbolizar o Oriente despótico, lugar por excelência da escravidão. Operação mental que revela, de fato, uma incomensurável alienação, por ser coisa dita no auge do escravismo colonial - nunca antes visto em escala tão generalizada - que perduraria mais de século para ser banido das instituições econômicas e políticas das metrópoles europeias; e que permaneceria como prática tolerada não apenas nas fronteiras longínquas da expansão capitalista dos séculos seguintes, como muitas vezes bem próxima do centro nas formas de expropriação informal do trabalho.

Nesse sentido, escravizado por caráter, o camelo seria espécie de sinédoque do Oriente, a parte pelo todo; e quando a parte se torna o todo, aquele que assim o define está pronto a tomar o lugar do déspota, ao mesmo tempo em que, nas suas instituições modernas, formula a fábula do trabalho livre.

Referências

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  • 1
    Certas indagações aqui desenvolvidas têm alguma proximidade com problemas tratados por Viveiros de Castro (2002CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 345-399.) em Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena, mas não acompanho sua virada ontológica, considero, no entanto, sugestiva a ideia de que, em certos âmbitos de cultura, animais são vistos ou “[...] se veem como gente. Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs” (CASTRO, 2002CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 345-399., p. 351). Não trato de xamãs, mas de artistas e fisiognomonistas, que se imbuíram da tarefa de “ver” o animal no homem ou seu inverso; o que significa a opção de não limitar a ideia a uma área cultural específica. O universo intelectual do artigo são formas simbólicas e representações coletivas.
  • 2
    Os marcos temporais nem sempre são muito claros em Orientalismo, mas Saïd afirma que sua plena eclosão se deu no período napoleônico, quando das disputas entre ingleses e franceses nas campanhas do Egito; quando a um orientalismo latente, “de positividade quase inconsciente”, se substitui um orientalismo manifesto, com sua carga de saberes sobre “a sociedade, as línguas, as literaturas, a história, a sociologia e outras coisas orientais do gênero.” (SAÏD, 1996SAÏD, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 212)
  • 3
    - De fato, o que diz Cuvier, em uma pequena nota, é que “Pallas rapporte, sur la foi des Bouchares et des Tartares, qu’il y a des chameaux sauvages dans les déserts du milieu de l’Asie; mais il faut remarquer que les Calmouques, par principe de religion, donnent la liberté à toutes sortes d’animaux. (CUVIER, 1829CUVIER, George. Le régne animal distribué d’après son organisation, pour servir de base à l’histoire naturelle des animaux et d’introduction à l’anatomie comparée. Paris: Chez Déterville, 1829., p. 257)
  • 4
    A explicação de Mary Douglas para o interdito, apesar de engenhosa, deixa a desejar no que diz respeito ao camelo. Por um lado, parte do princípio que camelos, carneiros e cabras eram considerados animais limpos, pois o contato com eles não requeria purificação antes da aproximação do Templo. Por outro, afirma que os ungulados ruminantes e de casco fendido eram o tipo adequado de comida para um pastor. Por fim, examina o caso do porco e do camelo, depois de explicar a proibição de certos animais que aparentam ser ruminantes, mas não têm o casco fendido, e conclui: “O mesmo [a proibição alimentar] ocorre com animais de casco fendido mas não ruminantes, o porco e o camelo.” [Similarly for animals which are cloven-hoofed but are not ruminant, the pig and the camel]. Ver: DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo, 1976DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976., p. 70-72, (grifos meus). É sabido desde os antigos que o camelo é ruminante
  • 5
    - “O problema do casamento de Rebeca [...] resulta de uma contradição entre aquilo que os juristas do Antigo Regime chamavam de a raça e a terra. Sob as ordens do Todo-Poderoso, Abraão e os seus abandonaram o país de origem, na Síria mesopotâmia, para estabelecerem-se muito longe em direção ao oeste. Mas Abraão rejeita qualquer ideia de casamento com os primeiros ocupantes: e quer que seu filho Isaac espose uma jovem de seu sangue. E como é proibido tanto a um quanto ao outro de se ausentarem da Terra prometida, Abraão envia Eliezer, seu homem de confiança, à casa de seus parentes distantes para de lá trazer Rebeca.” C. Lévi-StraussLÉVI-STRAUSS, Claude. En regardant Poussin. In: Regarder écouter lire. Paris, Plon, 1993, p. 7-40.. “En regardant Poussin”. Regarder écouter lire; p. 25/6.
  • 6
    Os trechos mais significativos dos debates na Academia sobre o problema dos camelos no quadro de Poussin foram publicados por Stefan Gerner em apêndice do livro Vies de Poussin (Bellori, Félibien, Passeri, Sandrart)
  • 7
    Pode-se dizer que as conferências e os debates que as sucediam eram da mesma espécie que os julgamentos da Academia Francesa - fundada em 1638, sob os auspícios de Richelieu - que tiveram entre seus primeiros temas Le Cid, em processo que durou cinco meses, no qual Corneille foi condenado por diversas faltas; o que gerou um longo parecer intitulado Les Sentiments de l’Académie françoise sur la tragi-comédie du Cid, texto comumente atribuído a Jean Chapelain, sempre lembrado por seu caráter disciplinador (ver: CHAPELAIN, 1678CHAPELAIN, Jean. Les Sentiments de l’Académie françoise sur la tragi-comédie du Cid. Paris: Académie Française, 1678.).
  • 8
    As duas versões de Poussin e os desenhos de Le Brun podem ser conferidos em: Poussin, Eliézer et Rébecca (sem camelos) https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010062436 Poussin, Eliézer et Rébecca (com camelo) https://www.artfund.org/supporting-museums/art-weve-helped-buy/artwork/2250/eliezer-and-rebecca Le Brun, l’Homme-Chameau https://cdm21057.contentdm.oclc.org/digital/collection/coll5/id/39
  • 9
    Nietzsche não foi indiferente ao camelo, mas só tratou dele quando assumiu a voz de um sábio oriental; para Zaratustraele é metáfora do “espírito sólido”, que é pleno de respeito, mesmo quando “se ajoelha como um camelo e quer ser bem carregado”. Mas Zaratustra não o condena a essas funções, pois vê nele um avatar: “Dei nome a três transformações do espírito, como o espírito vem a ser camelo, como o camelo vem a ser leão, e como, enfim, o leão vem a ser criança” (NIETZSCHE, 1898NIETZSCHE, Friedrich.Ainsi parlait Zarathoustra: un livre pour tout le monde et personne. Traduit par Henri Albert. Paris: Société du ‘Mercure de France’, 1898., p. 27-28). Com isso, no lugar de uma essência, o camelo é um termo na dialética do espírito, pois pode se transmutar em leão, que conquista a liberdade e quer ser senhor de seu próprio deserto; assim como em criança, que é inocência e esquecimento. "Você deve", é o que se diz ao camelo; "eu quero", é a reivindicação do leão; "a sagrada afirmação da inocência e do esquecimento" é a condição da criança, que pode vir a criar o seu próprio mundo.
  • 10
    Sobre o uso de camelos em guerras, Epstein (1954EPSTEIN, H. Le dromadaire dans l'Ancien Orient. Revue d'histoire des sciences et de leurs applications, v. 7, n. 3, p. 247-268, 1954.) apresenta muitos exemplos, mas em situações anteriores à expansão islâmica: camelos utilizados por Ciro na batalha de Sardis em 557 a.C.; esquadrões de camelos empregados por romanos em funções de reconhecimento e de correio no Oriente Médio; camelos utilizados pelas tropas do rei Juba da Numídia, aliado de Pompeu nas guerras contra César e outros exemplos, todos eles na Antiguidade.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
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