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Voltar ao Moreira, escrever a leitura: experiência e risco em César Aira

Returning to Moreira, writing the reading: experience and risk in César Aira

Resumo

Retomamos a narrativa de Moreira, de César Aira, considerando-a em sua rede discursiva e nas disputas interpretativas de que ela participa, para, a partir dela, discutir como a leitura constitui-se num elemento central de sua poética. Inscrevendo-se no interstício em que escritura e experiência se conectam e problematizando a oposição entre o relato e sua interpretação, entre sincronia e diacronia, a leitura funciona como potência que articula e dá origem ao autor, à obra e ao leitor de Aira em Moreira e, desse modo, torna-se um dos elementos do jogo convocados na configuração do “efeito Aira”.

Palavras-chave:
César Aira; leitura; experiência; autoria; Juan Moreira

Abstract

This paper approaches the narrative in César Aira’s Moreira from its discursive network and the interpretative disputes in which it takes place in order to discuss how reading constitutes a central element in Aira’s poetics. By inscribing itself into the interstice in which writing and experience are connected, and by questioning the opposition between narrative and its interpretation, between synchrony and diachrony, reading becomes a power that articulates and originates the author, his work and reader in Moreira, and thus reading becomes one of the elements of the game that configures the “Aira effect”.

Keywords:
César Aira; reading; experience; authorship; Juan Moreira

Resumen

Se retoma la narrativa de Moreira de César Aira desde la red discursiva y las disputas interpretativas en las que participa, y se discute cómo la lectura se constituye en un elemento central en su poética. Al inscribirse en el intersticio en el que escritura y experiencia se conectan, y al cuestionar la oposición entre el relato y su interpretación, entre sincronía y diacronía, la lectura deviene en potencia que articula y origina al autor, a la obra y al lector de Aira en el Moreira y, así, se convierte en uno de los elementos del juego que se convocan en la configuración del “efecto Aira”.

Palabras-clave:
César Aira; lectura; experiencia; autoría; Juan Moreira

Nunca me importó relatar, ni en general hacer nada que espere el lector. (César Aira. Anticipo de La ola que lee, Página/12, 2021AIRA, César. Anticipo de La ola que lee, Página/12, 2021. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/339031-anticipo-de-la-ola-que-lee-antologia-de-articulos-de-cesar-a . Acesso em: 16 jul. 2021.
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)

Un lector es también el que lee mal, distorsiona, percibe confusamente. En la clínica del arte de leer, no siempre el que tiene mejor vista lee mejor. (Ricardo Piglia. El último lector, 2006PIGLIA, R. El último lector. 2. ed. Buenos Aires: Anagrama, 2006., p. 19)

[…] voy a asumir el riesgo calculado de achatar este texto que se desarrolla y enrolla en una revolución permanente cuyas vueltas están hechas para desafiar todo achatamiento. (Jacques Derrida. “La ley del género”, 1980DERRIDA, J. La ley del género (La loi du genre). Tradução de Ariel Schettini (ad hoc). (exemplar xerocopiado). Originalmente publicado em: Glyph. n. 7, 1980. p.176-201., p. 13)

No capítulo “Los Moreira” de El cuerpo del delito. Un manual, Josefina Ludmer comenta que Juan Moreira - e toda a mitologia associada a essa personagem, as narrativas que a difundiram e, enfim, as inúmeras expressões e relatos que a converteram em mito popular - também é um instrumento de medição dos movimentos literários na Argentina, porque, cada vez que reaparece, aponta para um movimento ou processo de “fundação da literatura”. Apesar do exagero no modo como a autora expressa tal ideia, o próprio excesso retórico presente na formulação ajuda a compreender o alcance do mito (textualizado, narrado, parodiado, subvertido, revisitado, ampliado), ao menos desde que o evento factual da morte de Juan Moreira, em 1874, foi registrado pela polícia bonaerense e, principalmente, desde que Eduardo Gutiérrez publicou seu Juan Moreira (1879-1880) em folhetim, a partir do qual surgiram diversos outros escritos sobre a personagem em sua longa genealogia: na literatura, no circo, no teatro, no cinema, no tango, nos quadrinhos, na ficção científica (LUDMER, 1999LUDMER, J. El cuerpo del delito. Un manual. Buenos Aires: Libros perfil, 1999.; VILLANUEVA, 2005VILLANUEVA, G. Avatares de Moreira. Revista Iberoamericana, v. 71, n. 2013, p. 1167-1178, 2005.). Nesse sentido, é possível admitir a proposição da autora, para quem os Moreiras “articulan, dividen, conectan culturas”, especialmente porque a personagem (seu mito, suas figurações) “define cada vez algún tipo de territorio, de frontera, de enfrentamiento y de debate, y desencadena guerras de sentido, o por la interpretación, donde se delimitan diferentes líneas de la cultura argentina” (LUDMER, 1999LUDMER, J. El cuerpo del delito. Un manual. Buenos Aires: Libros perfil, 1999., p. 244-245).

Mutante como personagem e como escritura, Juan Moreira caracteriza-se justamente pelas voltas que imprime ao relato (essencial) que sustenta o mito, mas também pelo relato que, a cada inflexão criativa, reaparece, volta, marcando e reajustando sua relação com a história (literária) e o tempo. O que Aira transpõe para a literatura, com seu Moreira, por sua vez, é a realidade da própria literatura (ou de algumas de suas vertentes) nacional, massiva, popular, oral e aberta às torsões e adulterações a que, na escritura, ela está sempre sujeita, livre das convenções prévias acerca da verossimilhança ou de qualquer lógica causal que obrigue o relato a apresentar-se integralmente (começo, meio e fim) ou como totalização. Nesse sentido, qualquer das partes do “mito” pode figurar em qualquer nível ou posição da narrativa (de Aira), inclusive autonomamente como sendo o próprio relato, pois “para César Aira la productividad y el valor subversivo del mito moreiriano no residen en su capacidad para repetirse más o menos literalmente, sino en su vitalidad para pervertirse y para dar lugar a un despliegue de sentidos totalmente imprevisibles” (VILLANUEVA, 2005VILLANUEVA, G. Avatares de Moreira. Revista Iberoamericana, v. 71, n. 2013, p. 1167-1178, 2005., p. 1174). A lógica, aqui, é tanto a da tradição oral do romance1 1 Entendido como gênero poético em verso oriundo da tradição popular e oral, cujas origens remontam à época medieval. Tal ideia, por sua vez, aparece explicitamente numa cena do Juan Moreira, de Leonardo Favio, em que uma senhora canta os feitos de Moreira para os transeuntes de uma feira livre, num jogo heterônomo entre memória e visualidade, visto que o faz, também, a partir de um conjunto de gravuras que narram a vida do herói. quanto a das vanguardas históricas, e ambas se sobrepõem na dinâmica da forma e da genealogia do relato aireano.

Num de seus retornos, Moreira reaparece para marcar outra “fundação”: a de César Aira como escritor.2 2 Cronologicamente, é importante lembrar que Las ovejas foi escrito em 1970 (apesar de só ter sido publicado depois, em 1984), portanto, antes de Moreira, concluído em 1972 (Cf. CONTRERAS, 2001). Por esse prisma, pode-se aproximar o mito popular de Juan Moreira à trajetória de um autor cuja obra já beira, também, a dimensão do mito ou, ao menos, do extraordinário, com mais de 100 novelitas publicadas. Moreira funciona como uma primeira novela de Aira, além de problematizar a cronologia de sua obra, visto que o procedimento de marcar a data de conclusão da redação aparece frequentemente em seus textos ficcionais, mas também pode constituir-se numa espécie de ficcionalização dessa cronologia, ou mesmo integrar outra das torsões de seus relatos no jogo frequente com sincronias e diacronias que sua obra estabelece com a literatura. Em mais uma coincidência, o Moreira de Aira é publicado em 1975, um século depois da morte de Juan Moreira, ocorrida em 1874, e o livro também é sobre morte, renascimento e sobrevivência (de Moreira, do relato); e é escrito em 1972, cem anos depois da primeira parte de Martín Fierro (1872), visto por Ludmer (1999LUDMER, J. El cuerpo del delito. Un manual. Buenos Aires: Libros perfil, 1999.) justamente como um antecedente fundamental da versão de Aira, que, segundo ela, seria o desdobramento possível do poema de Hernández. Ocorre que o próprio autor gosta de dar vazão à sua figura de escritor e lembra (ou narra, ficcionaliza, como saber ao certo?) que esse não teria sido seu primeiro livro, ou não de modo autoevidente:

Yo no tengo primera novela por un salto en el tiempo, porque la primera novela mía que se imprimió fue Moreira, en el año ’75 o ‘76. Y mi editor, mi recordado y querido amigo Horacio Achával, no pudo terminar de ponerle la tapa, y la novela -ya impresa- quedó en un sótano hasta el año ‘82, después de haberse publicado Ema, la cautiva”, dijo César Aira en una charla pública.

En ese sótano -aclaró-, Achával le puso la tapa y la lanzó a la venta con el colofón y el ‘se terminó de imprimir en el año ‘76’. Es un mecanismo que yo usaba mucho en mis novelas, con esos saltos al revés del tiempo. Pero a mí me pasó en la realidad. Siempre que me dicen: ‘su primera novela’, o me preguntan cuál es mi primera novela, me quedo en la duda porque no sé cuál es (FIRPO, 2021FIRPO, H. Moreira: el libro de debut de César Aira es figurita difícil y cuesta 95 mil pesos. Espectáculos. Clarín, 24 abril de 2021. Disponível em: https://www.clarin.com/espectaculos/moreira-libro-debut-cesar-aira-figurita-dificil-cuesta-95-mil-pesos_0_aPT-ljpRM.amp.html . Acesso em: 16 de jul. de 2021.
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, s/p).

Seja por um efeito do acaso, seja como produto de uma obra cujos limites parecem transitar pela realidadeficção - e valho-me livremente, aqui, de outra noção cunhada por Ludmer, mas sem a menor pretensão de identificar Aira a qualquer aspecto do debate pós-autonomista -, o Moreira de Aira corrobora a hipótese de Ludmer (1999LUDMER, J. El cuerpo del delito. Un manual. Buenos Aires: Libros perfil, 1999.) no que diz respeito a desencadear disputas pela interpretação e pelo sentido, o que acaba colocando em evidência a figura do leitor, seja ele crítico especializado ou leitor comum (caso essa oposição simplista ainda possa ser momentânea e estrategicamente empregada aqui). Não me parece coincidência que esse livro do autor seja visto com certa desconfiança por leitores acadêmicos e não acadêmicos, em relação ao conjunto de sua obra. Contreras, por exemplo, observa que, apesar de Moreira ser, cronologicamente, uma das primeiras novelas escritas pelo autor, “desde Ema, la cautiva (1978) la literatura de Aira adopta un perfil propio sustentado en premisas diferentes” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 5) quanto aos pressupostos da vanguarda e da revolução política que aparecem naquele livro. Por sua vez, o jornalista Pablo Schanton comenta a Hernán Firpo que “Moreira se lee de otro modo que el resto de los relatos de Aira” (FIRPO, 2021FIRPO, H. Moreira: el libro de debut de César Aira es figurita difícil y cuesta 95 mil pesos. Espectáculos. Clarín, 24 abril de 2021. Disponível em: https://www.clarin.com/espectaculos/moreira-libro-debut-cesar-aira-figurita-dificil-cuesta-95-mil-pesos_0_aPT-ljpRM.amp.html . Acesso em: 16 de jul. de 2021.
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, s/p). É difícil esclarecer se se lê Moreira de outro modo em razão da superação das vanguardas políticas dos anos 1970 na literatura, ou se porque a obra posterior de Aira de fato adotou uma perspectiva radicalmente diferente do livro (simbolicamente) primigênio, ou, ainda, se se criou outro “mito” acerca do quase inencontrável “primeiro livro de Aira”, cujo caráter fundador o teria tornado muito mais uma referência do que objeto de leitura associado ao conjunto de sua obra.

Contudo, eu insistiria que é possível ler Moreira articulado ao conjunto da obra do autor, sem descaracterizá-lo em sua singularidade. Apesar das particularidades formais desse relato, de seu experimentalismo e da intrusão nele de fragmentos de ideias teóricas ligadas ao marxismo e à psicanálise, não há claros indícios de uma mudança de concepção tal, por parte de Aira, em relação à sua obra e ao relato, que justificaria tranquilamente o “isolamento” a que o livro normalmente é relegado em relação aos demais escritos de sua produção.3 3 Ao dizer isso, não nego a existência de “voltas” ou “viradas” na obra de Aira, como cuidadosamente demonstrou Contreras (2001). Aliás, pode-se estabelecer um paralelismo e dizer que “contra el oportunismo ideológico de la novela político-social de los años 70, que ocupaba para Aira el mismo lugar que para Borges en el 40 el humanismo de la novela psicológica o la chatura del costumbrismo nacional”, desde Moreira Aira propõe “la opción por la pasión de la literatura” (CONTRERAS, 2013CONTRERAS, S. Aira con Borges. La biblioteca, n. 13, 2013, p. 185-198., p. 193). Além disso, a não exemplaridade e o irrepetível são marcas características da obra do autor:

[…] no hay un solo relato construido del mismo modo que otro, que aun en aquellos que pueden agruparse en series o ciclos el principio organizador de la forma actúa cada vez de un modo diferente. Es la tensión que define a la poética del relato de César Aira: la tensión entre procedimiento y canon único, entre receta e inejemplaridad (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 227).

No entanto, as premissas anteriores acarretam outras perguntas: a leitura do Moreira articulada no conjunto da obra de Aira seria produto de um olhar retrospectivo que “contamina” esse livro com o “efeito Aira” e os modos de ler sua obra já alavancados pelas próprias novelas do autor, por seus ensaios e, também, pelas leituras da crítica? Ou Moreira apresenta possibilidades de leitura geralmente pouco exploradas pela crítica, que talvez tenha lido esse livro do autor de modo excessivamente “sério” (ou politizado), apesar de, posteriormente, ter assumido a frivolidade como um traço marcante da literatura de Aira, que problematiza todos os compromissos prévios (éticos, morais, políticos, teóricos, ideológicos)? Parafraseando aqui o que diz Jacques Derrida em “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, suspeito que esses constantes esforços para “virar a página” de Aira (do Aira de Moreira) para, então, ler sua literatura posterior, acabem resultando num modo complicado (insuficiente) de ler seu Moreira, e que seria mais produtivo lê-lo “de uma certa maneira” com toda a sua obra e seus diálogos com outros textos, épocas e escrituras, em vez de separá-lo ou abandoná-lo numa tentativa de passar para além da própria obra do autor.

Se, por um lado, “la literatura de Aira se quiere una poética de invención” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 63), mas, por outro, seu Moreira inscreve-se numa série mais ampla (não poderia ser de outro modo) que implica uma relação simultânea de continuidade/descontinuidade com os relatos que trataram antes da figura de Juan Moreira, pode-se perguntar se seria possível ler Moreira como parte do contínuo - “ese pliegue que nos hace pasar de un cuento a otro como de un punto a otro por completo heterogéneo” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 73-74) -, entendido aqui não só como elemento articulador de cada relato de Aira, mas como contínuo de/em sua poética. Se o lermos como parte desse pressuposto - não importa se participa de tal processo a partir de uma relação de continuidade ou de ruptura/tensão -, não poderia ser esse, também, um dos textos fundadores não mais (ou não apenas) da vanguarda dos anos 1970, como insiste Ludmer (1999LUDMER, J. El cuerpo del delito. Un manual. Buenos Aires: Libros perfil, 1999.), mas do próprio Aira, ou melhor, do “efeito Aira”? Não se trata de atribuir-lhe um sentido retrospectivo que talvez nunca tenha tido, mas de explorar um sentido que, potencializado no relato quando tomado como parte do jogo da escritura aireana, tem sido frequentemente deixado de lado em nome de sua aproximação com os signos do pensamento político da década de 1970, mas que parece chocar-se com aquilo que, extensamente, Aira mostraria como marca de sua literatura, desobrigada de quaisquer compromissos políticos ou morais a priori.4 4 Isso se torna mais evidente se compararmos o Moreira, de Aira, ao Juan Moreira, de Leonardo Favio, lembrando que são contemporâneos entre si. No filme de Favio, de 1973, a inscrição política vanguardista situa a figura do protagonista não só no âmbito do mito popular e em suas raízes históricas - especialmente a partir do folhetim de Gutiérrez -, mas aproxima-o, também, da figura popularizada de Jesus Cristo e da imagem difundida do militante/guerrilheiro, para o que a própria caracterização da personagem colabora - barba e cabelos longos -, especialmente em cenas como as que configuram a sequência constituída pelo cerco ao protagonista no prostíbulo, até o desfecho do relato cinematográfico (para uma discussão sobre o Juan Moreira de Favio como relato sacrificial-cristão, Cf. Gamerro [2014]). Esse efeito se acentua em razão do contexto de violência final, no filme: todos contra um, o Estado/a Justiça contra Moreira. Não deixa de ser irônico, nesse sentido, que, apesar de ser no texto de Aira que aparece a incitação politizada de um Juan Moreira que, a certa altura, mobiliza seus ouvintes - “y entonces con voz clara pronunció su famosa exhortación: -Sean marxistas.” (AIRA, 1975, p. 61) -, é no filme de Favio que a exortação politizada é tomada a sério. No conjunto do relato de Aira, em cujo desenvolvimento a cena em questão se articula à fábula e ao delírio, tais palavras de ordem soam como um disparate. Nesse sentido, retomo Jacques Derrida para lembrar que,

[...] se a leitura não deve contentar-se em reduplicar o texto, não pode legitimamente transgredir o texto em direção a algo que não ele, em direção a um referente (realidade metafísica, histórica, psicobiográfica, etc.) ou em direção a um significado fora do texto cujo conteúdo poderia dar-se, teria podido dar-se fora da língua, isto é, no sentido que aqui damos a esta palavra, fora da escritura em geral (DERRIDA, 1973DERRIDA, J. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1973., p. 194).

Há, ao menos, dois argumentos que corroborariam uma leitura do Moreira, de Aira, articulado ao conjunto de sua obra e da constituição de sua persona de escritor e do “efeito Aira”. O primeiro relaciona-se ao próprio diálogo com a figura do gaucho e seus desdobramentos na literatura argentina. A esse respeito, Julio Premat comenta que “la pampa es un lugar de identidad y de proyectos ideológicos, pero al mismo tiempo constituye un marco mítico para el nacimiento del escritor argentino” (PREMAT, 2009PREMAT, J. Héroes sin atributos: figuras de escritor en la literatura argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009., p. 17 - destaque meu). Desse modo, e, nesse sentido, na esteira de Borges, Aira reivindicaria para a criação de sua obra e de sua figuração como escritor inúmeras escrituras, estilos e obras à sua disposição, incluindo aqueles provenientes da literatura argentina, mas sem limitar-se a eles. A proposição faz lembrar que “la literatura de Aira constituye también -probablemente debamos decir al mismo tiempo- una singularísima lectura y puesta en acto de la literatura borgiana” (CONTRERAS, 2013CONTRERAS, S. Aira con Borges. La biblioteca, n. 13, 2013, p. 185-198., p. 185). Por essa via, ele não só se instala na dinâmica da literatura nacional, mas “crea a sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el futuro” (BORGES, 2005BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emecé, 2005., p. 160). E, enquanto escritor, Aira acabaria participando, ao menos ao fundar-se como tal, daquele horizonte mítico que

[...] funda una tradición y una identidad soñándose gaucho, el que se sitúa en el cruce ente pulsión y razón, entre civilización y barbarie, el que se pelea con el vacío pampeano como único lugar heredado, como única página posible desde donde leer y reescribir las bibliotecas europeas (PREMAT, 2009PREMAT, J. Héroes sin atributos: figuras de escritor en la literatura argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009., p. 18).

Assim, por mais que Aira “comece” em diálogo com a tradição nacional (e nela, com a figura do gaucho), ela é tomada pela perspectiva do desvio e do deslocamento, elementos que marcariam sua obra posterior. O diálogo com o pampa, os índios, os viajantes exploradores, a figura da cativa, reaparece em textos posteriores, configurando uma parte essencial de sua escritura, na qual a invenção de um autor situa-se no horizonte de uma “literatura en la que, pareciera, todo estuvo siempre escrito, incluso antes de que se la empezara a escribir” (PREMAT, 2009PREMAT, J. Héroes sin atributos: figuras de escritor en la literatura argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009., p. 239).

Já o segundo argumento diz respeito ao fato de que o Moreira de Aira, para além do jogo quase inescapável com a referência (que, como sabemos, remete a outros textos e, portanto, à linguagem), é todo escritura e, consequentemente, literatura, aspecto que ganha evidência em seu diálogo com certas perspectivas herdadas das vanguardas históricas, especialmente quanto ao jogo com o multiperspectivismo, com a montagem e com a ideia de uma escritura automática. Ao longo de toda a narrativa, sua condição de relato é marcada insistentemente, num exercício que afasta a referência do referente e deixa claro que aquilo que o leitor tem diante de si é linguagem, presentação.

Limito-me a mencionar alguns casos (entre inúmeros outros) em que o narrador (ou, excepcionalmente, alguma personagem) aponta para a dimensão escritural do relato, referindo-se à paisagem, por exemplo, como “escenas, figuras” (p. 7), ou apontando para as “miradas [que] eran pinturas” (p. 9), para os supostos indivíduos como “los personajes” (p. 16), lembrando que se trata de “Figuración total” (p. 13), que a sua “se trata de una lengua de ficción” (p. 10), que seu mundo é produto de sinestesias (“transmutación del orden sonoro al visual” (p. 13)), que seu relato trata não de uma pessoa, mas de um herói (que, como tal, está inscrito no âmbito da narração - e do mito): “el héroe, y una horda de gauchos: personajes y alegorías. El singular y el plural, el deseo, escribo más lentamente. ¡Algunas sirenas asomaron las cabezas, sonriendo con ironía!” (p. 7 - destaques meus).5 5 A fim de evitar a proliferação de referências, citarei o Moreira, de Aira, a partir daqui, apenas pelo número de página. O relato se desenvolve “como si caminara siempre por la misma ruta [do mito, de Moreira, de suas histórias, da intertextualidade]. Y la recta diera una vuelta” (p. 43) que transtorna toda sua aparência referencial, a qual, por sua vez, decorreria muito mais das histórias associadas à personagem popular Juan Moreira já inscritas na imaginação do público do que da escritura da novela de Aira. Aliás, o experimentalismo e a fragmentação da narrativa corroboram a perda do referente e da ilusão realista mais tradicionalmente associados ao mito de Juan Moreira. No Moreira de Aira, cuja perspectiva narrativa é a do amigo fiel Julián Andrade, que fala “Amable, automático” (p. 13), e nisso se inscreve na escritura do próprio Aira, “Todo es significante” (p. 13).

Por sua vez, o que imprime ao relato de Moreira o desafio interpretativo que parece, por vezes, inscrevê-lo e desinscrevê-lo na poética de Aira (além do diálogo com signos da vanguarda e da política dos anos 1970, a partir do qual ele frequentemente é lido) é o modo como, na escritura e, consequentemente, na leitura, é instalada a dúvida sobre a perspectiva pela qual o relato é narrado, ou melhor, sobre a perspectiva à qual se ajusta a visão que assume o papel testemunhal supostamente capaz de contar a verdade dos momentos finais de Juan Moreira.

Como se sabe, o enredo é tomado pelo prisma de Julián Andrade, mas a partir de uma dúvida seminal instalada no relato de Aira: “¿Estuvo presente Julián Andrade en los minutos finales del célebre Moreira?” (p. 42). Tal dúvida joga com certa reivindicação verista frequente nos relatos populares sobre Juan Moreira (desde a versão policial ao folhetim de Gutiérrez e, ainda, no modo como suas histórias ganharam popularidade e o converteram em mito), ao mesmo tempo em que inscreve a fabulação aireana no âmbito da especulação e da imaginação. Outra vez, a observação de Contreras é iluminadora: “La perspectiva del relato de Aira, siendo la de Julián, es entonces la de aquel que no vio la muerte de Moreira. El relato, en este sentido, se detiene unos segundos antes que el folletín de Gutiérrez, antes de la desaparición del testigo que podría contar la muerte” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 155). A perspectiva de Julián Andrade é esvaziada de qualquer autoridade testemunhal, configurando-se como uma fala (ou visão) que é o outro do testemunho, ou um suplemento, jogo de presença/ausência, percepção/imaginação, diferência. Como relato, ela dá vazão a outro pressuposto fundamental da poética de Aira: a aposta em seguir escrevendo, contando, narrando, sempre adiante, independentemente de pactos de verossimilhança anteriores. Seu Moreira não seria, portanto, rigorosamente um retorno ao mito de Juan Moreira, mas uma inflexão, um (novo) relato a partir do ponto de onde ele fora tomado pelo próprio Aira, isto é, a partir do ponto (imaginado) que Julián Andrade não poderia mais contar. Não por coincidência, o momento exato da morte de Juan Moreira nunca é narrado enquanto ação em curso na narrativa de Aira, sua morte aparece sempre como algo anterior ou posterior à enunciação, mas nunca coincidente com ela.

É preciso notar que o que ganha relevância, aqui, é a própria leitura como elemento central para a poética de Aira, juntamente com a imaginação e a invenção. Numa literatura avessa às operações de totalização como é a sua, os sentidos do relato (ou de cada relato) vão “gravitando” em torno de certas ideias, mas não se completam ou não se fecham, e vão alinhavando percursos possíveis ou pontos de partida infinitos (ou que se inscrevem numa série potencialmente infinita) abertos à constante reconfiguração. Essa é a lógica constitutiva do modo como, em sua poética, emerge uma zona intersticial na qual escritura e leitura se tocam, quase apagando a diferença entre “o representado e o representante, o objeto olhado e o objeto olhante” (DERRIDA, 1973DERRIDA, J. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1973., p. 374). Por meio dessa perspectiva, a escritura parece convocar a leitura para o primeiro plano do objeto estético, de modo que o leitor passa a estar implicado permanentemente na escritura, como se fosse desafiado pelo autor, pelo próprio relato: “e agora, sua premissa hermenêutica ainda se sustenta?, “admita, você está hesitando!”. A certa altura, diz o narrador de Moreira: “Empezábamos a perder el hilo” (p. 23), expressando nisso a dificuldade dos ouvintes, internamente ao relato, para acompanhar o que Julián lhes conta. Esse gesto desafiador, que aqui atribuo Aira em sentido amplo, acaba por lembrar-nos de que, enquanto leitores de um texto seu, estamos permanentemente diante de inúmeras escolhas possíveis e de que, ao optarmos por uma, as demais ficam à deriva, mas permanecem ali, gravitando entre os sentidos do relato, como potência, possibilidade. Cada interpretação e seu contrário atraem-se, simultânea e reciprocamente, “pareja irregular de lo uno sin lo otro en el que cada uno se cita regularmente en la figura del otro” (DERRIDA, 1980DERRIDA, J. La ley del género (La loi du genre). Tradução de Ariel Schettini (ad hoc). (exemplar xerocopiado). Originalmente publicado em: Glyph. n. 7, 1980. p.176-201., p. 3). A leitura como um dos núcleos do relato já não é, portanto, mera consequência da (ou resposta à) escritura ininterrupta e contínua, mas um de seus componentes constitutivos, uma das vias por meio das quais o relato se concretiza.

A leitura como experiência, risco e suplemento

Que leitura é essa e como ela se caracteriza? Como é possível captar essa sensação de “leitor à espreita”, mas também o risco iminente de tornar-se “cativo” do texto de Aira? E como escrever sobre tal experiência, ou como escrever a leitura? Mesmo já acostumado ao que se convencionou chamar de “efeito Aira”, o leitor da obra do autor não se sente, necessariamente, mais seguro ou menos desafiado ao deparar-se (novamente) com uma de suas narrativas. Ao contrário, aproximar-se das novelitas aireanas requer disposição para precipitar-se rumo ao abismo, ao incerto e ao inacabado, e, nesse movimento (por vezes, vertiginoso como o próprio relato), deparar-se com aquilo que a literatura é: esquivança, devir, desvio, desprendimento, avanço que acaba levando (de volta) ao literário. Nesse sentido, enquanto no plano da criação Aira dedica-se ao procedimento e à sua explicitação, e faz da trama um lugar de experimentação com gêneros, linguagens, fabulações e com o próprio relato entendido como núcleo onde a literatura acontece, seu leitor se vê impelido a criar (imaginar ou inventar) vias de leitura capazes de espreitar e perseguir o relato que tem diante de si, abandonando significados, modelos hermenêuticos e modos de ler dados de antemão, que se mostram pouco úteis à captura dessa experiência da/com a/na escritura, o que faz da leitura o “campo de la absoluta subjetividad” (BARTHES, 1994BARTHES, R. El susurro del lenguaje. Tradução de C. Fernández Medrano. 2. ed. Barcelona: Paidós, 1994., p. 49). Isso explica, em parte, a sensação de que as teorias do texto são insuficientes para ler a obra narrativa do autor. É como se, dada a dinâmica e a velocidade com que seus relatos avançam, a leitura - esse “campo plural de prácticas dispersas, de efectos irreductibles” (BARTHES, 1994BARTHES, R. El susurro del lenguaje. Tradução de C. Fernández Medrano. 2. ed. Barcelona: Paidós, 1994., p. 39) - tivesse que reinventar-se frequentemente, na tentativa de capturar os rastros que a escritura deixa na narrativa e em sua linguagem, que configuram o literário da trama.

Nesses rastros - marcas da enunciação, da escrita enquanto linguagem mobilizada por um ato individual -, o leitor é convocado quase como uma presença, ainda que sem a garantia de um ponto de vista privilegiado. Não por acaso, é comum que os narradores de Aira interpelem uma espécie de destinatário indefinido (um tu que parece estar além dos próprios limites do texto, mas implicado nele), que se dirijam a ele, que façam breves explicações, retomadas, que se interroguem sobre o que narram (quando, na verdade, interrogam o próprio leitor, antecipando questões e surpresas que ele poderia apresentar, e provavelmente o fará). São inúmeros os casos desse tipo de intervenção em Moreira, entre os quais seleciono apenas alguns: “Pues bien, resumiendo...” (p. 7); “Intervalo” (p. 8); “(de los que más adelante nos ocuparemos)” (p. 9); “Has de saber” (p. 9); “se trata de una lengua de ficción, implicada en todas las combinatorias a la vez” (p. 10); “¿En qué pensarían?” (p. 12); “Permítanme llevar a cabo un pequeño ejercicio, para introducirlos en una reflexión” (p. 12); “¿Alguien puede imaginarse algo así?” (p. 17); “¡Si midiera dos metros más!” (p. 18); “El cielo se cierra sobre este fragmento del relato que Julián Andrade contaba a Paspartú” (p. 31); “[nosotros] los privilegiados turistas de la fantasía de un neurótico” (p. 43). Nesse sentido, o narrador de Moreira deixa claro que é ele que pauta o avanço do relato e de sua leitura. Trata-se, pois, de um jogo em que, na reivindicação da presença do outro (o leitor), está, também, sua “ausência, dissimulação, desvio, diferência, escritura” (DERRIDA, 1973DERRIDA, J. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1973., p. 171).

Por isso, como pontua Rafael Arce num ensaio em que coloca em questão justamente os desafios da leitura da obra de Aira e o risco de certas aproximações muito presas a premissas teóricas abstratizantes: “La literatura de Aira no pide especialistas, sino lectores fervorosos y lecturas inteligentes” (ARCE, 2019ARCE, R. A propósito de Aira y Cortázar. Präuse, n. 5, 2019. Disponível em: https://revistaprause.blogspot.com/2020/02/a-proposito-de-aira-y-cortazar.html . Acesso: 15 de maio de 2021.
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- sem número de páginas). Para além de teorias e abstrações, o que a narrativa do autor (e talvez toda literatura) exigiria é uma leitura capaz de flagrar os processos por meio dos quais a genealogia, os procedimentos, as autofigurações e, enfim, o próprio narrar articulam o que temos chamado de um “efeito Aira” e que talvez não seja outra coisa senão essa “volta a (ou do) relato” que Sandra Contreras (2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001.) identificou como sendo o modo fundamental pelo qual a literatura de Aira se constrói, ao mesmo tempo em que, incessantemente, avança em sua huida hacia adelante. Por sua vez, a “armadilha” do relato está no fato de que ele se configura como uma espécie de palco (espetáculo?) no qual as distâncias entre autor, obra e leitor são permanentemente redesenhadas, e o leitor não pode ser nem vidente (aquele que, acostumado a uma fórmula ou a um gênero, antecipa o que lê, seu desenvolvimento e seu desfecho) nem voyeur, visto que a narrativa desacomoda-o e não lhe oferece condições para simplesmente acompanhar seus desdobramentos de uma perspectiva distanciada, tranquila ou contemplativa.

O leitor não só se pergunta pelo “e depois?” - interrogação presente na origem de todo relato -, mas também pelo “o que isso significa?” na trama que ele lê. Ao desajustar a posição/distância fixa entre narrador, narrativa e leitor, o relato não só se inscreve numa dinâmica característica do romance moderno, como observara Adorno (2003ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ADORNO, T. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, 2003. p. 55-63.), tratando da posição do narrador no romance, mas, em Aira, também esgarça os limites do relato propriamente dito, visto que transtorna qualquer interrogação pela origem - do relato num sentido amplo, ou da narrativa lida, em particular. Pois o relato recomeça, internamente ao próprio narrado, não só em razão do abandono da trama (procedimento recorrente na obra do autor, conforme lembra Sarlo (2006SARLO, B. Sujetos y tecnologías. La novela después de la historia. Punto de vista. n. 86, p. 1-6, 2006.)), mas porque seu início e seu “fim” (ou volta) são contingentes. Desse modo, as posições seguras de contemplação da narrativa vão sendo minadas, e o que resta é o relato como experiência com a linguagem, que o leitor, por sua vez, poderá perscrutar apenas lançando-se a uma experiência semelhante, isto é, de/na/com a linguagem, em cujo “contato entre heterogêneos, experimenta-se o desconhecido e o conhecido se atualiza e se diversifica” (FRENKEL, 2017FRENKEL, E. Artes em contato, experiência e afecção. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 9, n. 2, p. 52-67, 2017., p. 54).

No que diz respeito ao Moreira, essa experiência convoca uma importante relação com as matrizes cultural e discursiva de um universo artístico fundamental à compreensão do “desafio de leitura” a que me referia acima: os gêneros populares e massivos (gestos, figuras, recursos escriturais, modos de captura e irradiação). Entre eles, estão o circo criollo, o folhetim, o fait divers, o melodrama, mas também o romance, e as histórias (orais) que circulam entre a gente e que, mesmo quando apresentam resíduos factuais, já surgem novelescas. O próprio narrador de Gutiérrez faz questão de sublinhar esse traço de sua personagem: “Moreira fue un tipo tan novelesco” (GUTIÉRREZ, 2003GUTIÉRREZ, E. Juan Moreira. Santa Fe: El Cid, 2003., p. 125). Por sua vez, a velocidade e o dinamismo das ações, tão frequente nos relatos de Aira, também podem inscrever-se, quanto ao procedimento, na lógica do folhetim, cuja liberdade inventiva se choca com as imposições do medium. (Naturalmente, as razões de Aira no uso desses procedimentos não coincidem com as do folhetinista do século XIX.)

Nesse processo de experiência de leitura e de tentativa de captura do procedimento do/no relato, não me refiro à incorporação de temas, motivos e estilemas associados aos gêneros massivos e populares - isso já foi amplamente explorado pela crítica, além de remeter a certa tradição e gosto intelectual pelas formas da cultura popular em certa vertente da literatura argentina. Sabemos que Aira faz desse material um “uso en el sentido más inmediato e instrumental del término” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 145). Falo, na verdade, de um diálogo com certos modos de consumo e leitura do popular e do massivo (escuta, alteração, recriação livre, fragmentação ou autonomização de fragmentos da anedota, não linearidade da narração, liberdade no tratamento das relações causais e temporais, metamorfoses) que não só figuram no Moreira, mas que integram a literatura de Aira num sentido mais amplo e que imprimem a suas narrativas uma aparência fantasmática que as torna difíciles de asir, e justamente por isso problematizam as operações de interpelação do texto sobre o leitor, mas também de quaisquer imperativos éticos ou morais sobre a escritura e o relato, na medida em que colocam em tensão o modo de ler que o relato encarna e nossos próprios modos de ver/ler - parafraseando aqui John Berger (1975BERGER, J. Modos de ver. Tradução de Justo G. Beramendi. Barcelona: Gustavo Gili, 1975., p. 13-16).

Desse modo, a obra de Aira parece reivindicar não só uma posição autoral em permanente risco (do que emerge todo o debate sobre o valor, que ultrapassa os limites deste texto), mas também uma postura de leitor capaz de imprimir à leitura suas marcas pessoais, único modo de captar a experiência de/na linguagem que o relato pode lhe proporcionar. Esse risco implica a articulação de uma dupla distância (próximo com distante) por meio da qual se entrecruzam na escritura o texto literário, a leitura e a autoria, não como obra aberta, no sentido de Umberto Eco, mas como uma espécie de “intimidade de uma presença a si” (DERRIDA, 1973DERRIDA, J. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1973., p. 374), na qual autor, texto e leitor se encontram, se enfrentam e se afetam na experiência do/com o relato, refundando o terreno da literatura como lugar de desprendimento onde essas três instâncias podem aparecer como não-sujeitos e, desse modo, resistentes a toda interpelação.6 6 Sobre a noção de não-sujeito, Cf. Moreiras (2004, p. 2). Essa seria sua política de leitura.

Por essa via, o caráter mutante da escritura em Moreira estabelece uma relação de consumo problemática, para a qual a pergunta pela originalidade deixa de ser relevante ou, para dizê-lo de modo menos contundente, somente tem relevância como constatação ou captação de um instante, o que faz emergir novamente a experiência da leitura como elemento fundamental para o relato. O tema das origens reconfigura-se, nesse sentido, numa dupla perspectiva - a da escritura e a da leitura -, inscrevendo o relato numa fantasia da forma (para remeter sumariamente ao Barthes da Preparação do romance), que faz da tensão entre forma fantasiada e desejo de escritura um núcleo em torno do qual gravita a gênese do relato, assim como seus saltos (sua origem, numa acepção benjaminiana acerca desse termo): morte e sobrevivência do mito, do relato, da escritura, do “efeito Aira”. Nesse sentido, não soa nada casual a opção por “introduzir-se na literatura” com Moreira, cuja personagem homônima caracteriza-se, justamente, pelas mutações, pelo risco de morte e pelas sobrevivências no mito e nos relatos que a transformaram naquilo que se tornou: “en esa diferencia originaria, la muerte se multiplica al infinito y el relato prolifera en la versión de las versiones, aquella que asegura la supervivencia y el eterno retorno del héroe, el nacimiento del Mito” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 155).

Apesar das diferenças entre Aira e Borges, haveria aqui um ponto de aproximação possível entre ambos, ao menos quanto ao jogo com as classificações e os territórios:7 7 Em “Aira con Borges”, Contreras sugere uma aproximação instigante entre os dois autores: “Desde el punto de vista de la forma sensible, quiero decir, la inmediatamente perceptible, tal vez no haya literatura que parezca más incompatible con la de Borges que la de César Aira. Pero, curiosamente, también desde el punto de vista de la forma, quiero decir ahora, desde el punto de vista de la preeminencia otorgada a las opciones y éticas formales, tal vez no haya otra, en la literatura argentina que va desde los años 70 al presente, que la convoque de un modo más comprehensivo, aunque a la vez sesgado y también secreto” (CONTRERAS, 2013, p. 185). certo desejo (e modo) de apontar para um pensamento (ou uma escritura) que coloca em evidência a dificuldade de pensar o limite ou a proximidade de qualquer vizinhança e que, numa escrita que parece ser capaz de articular todas as heterogeneidades possíveis, “solapa secretamente a linguagem” (FOUCAULT, 2007FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. XIII) porque transtorna as operações de nomeação e classificação, desvendando a existência de inúmeras ordens possíveis - para o relato, para a autoria, para a leitura.

Em Moreira, essa dimensão da escritura joga com a nomeação, deslocando permanentemente os significantes, de modo a abrir aquilo que parece fixo (o nome) a uma heterogeneidade permanente: Julián Andrade, Julián, J. A, Andrade, El señor Andrade, Julián Andrajo, Polonio Andrade, Andrajo, Judex, Julio, Julo; Paspartú, P. Fotosíntesis, Past, passe partout, Paspartín, Paspardo, Pasparto, Postpartu, Pasaparchú, Parsprototo, Paspartina; Felisa, Philisa, Phelizza, Feliza, Felizza.

Por sua vez, se a volta ao relato implica, de certo modo, resíduos da tradição, não seria desarrazoado imaginar que a literatura de Aira supõe, também, certa recolocação do leitor/ouvinte no horizonte do relato, “la escena arcaica en la que desde el comienzo ocurrió el arte de narrar: la escena entre el oyente y el narrador, entre el que escucha y el que fascina con su relato o su conversación” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 292). Esse horizonte é o de um leitor que não só escuta o contador/narrador, mas também reage ao que ouve/lê e, na experiência vital com o/do relato, oferece-lhe (através do olhar, dos gestos, das reações) as mínimas diretrizes que fazem com que quem narra possa imprimir suas marcas ao narrado e modular o próprio relato, como fazem os animais/ouvintes, em Moreira. Ou como faz o narrador de Cómo me hice monja, que, como criança “birrenta”, atrai a atenção dos passageiros do ônibus em que, com sua mãe, vai rumo à penitenciária para visitar o pai preso, e torna-se o núcleo do espetáculo: “Los pasajeros del colectivo ya habían entrado en la historia, lo que me excitó fuera de toda medida. Porque yo era la dueña de la historia.” E também porque, desse modo: “Yo palpaba el interés de la gente” (AIRA, 1994AIRA, C. Cómo me hice monja y La costurera y el viento. Rosario: Beatriz Viterbo, 1994., p. 64).

O “niño/niña Aira”, de Cómo me hice monja, é emblemático da perspectiva e do olhar maliciosos do autor, que fazem de sua obra um verdadeiro trompe d’oeil. Há, nesse sentido, algumas diferenças fundamentais com Borges que devem ser lembradas: enquanto neste a biblioteca emerge como lugar em que a leitura se converte numa poética, naquele, a leitura é convocada como experiência com/do/no próprio relato; além disso, ao “dar relevância ao ato de ler, Borges libera a literatura do preconceito biográfico” (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1980RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Borges: uma poética da leitura. Tradução de Irlemar Chiampi. São Paulo: Perspectiva, 1980., p. 72), enquanto Aira recoloca a figura autoral no centro de sua obra, não pela perspectiva de um biografismo plano, mas ao imprimir a “marca Aira” em cada um de seus relatos, seja pelo jogo autoficcional, seja pelas bruscas mudanças de rumo do relato, seja porque, à medida que sua obra cresce de modo quase megalomaníaco, torna-se difícil ler seus textos prescindindo do “fenômeno Aira” como parte do próprio sentido que sua obra impulsiona.

Desse modo, como observa Contreras, cada vez que a obra de Aira aparece, ela exige do leitor um “ato de avaliação”. Esse ato extrapola a pergunta pelo valor e impulsiona a interrogação pelos rumos da própria literatura: “nos preguntamos todo el tiempo: pero qué es lo que en realidade Aira quiere hacer con la literatura?” (CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001., p. 140). E esse desafio da suspensão (dos sentidos, do valor, dos gêneros) converte-se numa espécie de mola propulsora que sustenta a fuga para adiante que o autor imprime à obra e que o leitor tem de perscrutar, se quiser lê-la. O único compromisso de Aira, nesse sentido, é com o próprio relato e com sua lógica interna.

No entanto, essa observação soa um pouco óbvia quando enunciada hoje, depois que Aira publicou tantos livros, depois do “efeito Aira” ou, mesmo, depois do aparecimento de trabalhos fundamentais à leitura de sua obra. Retrospectivamente, esse diagnóstico figura como um sintoma - que aparece sempre atrasado, como algo que não pode mais ser ignorado, para lembrar o que diz Didi-Huberman (2011DIDI-HUBERMAN, G. Ante el tiempo. Tradução de Antonio Oviedo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011.) sobre tal noção. Mas, como consequência dessa longa especulação, surgem, ao menos, duas observações que merecem ser reiteradas: a primeira é que, já em Moreira, Aira convida/atrai um leitor atento, que lance mão de sua memória para a leitura do relato, mas o faz minando as possibilidades da memória desse leitor, visto que coloca em suspensão (e em suspeição) a pergunta pela origem; e a segunda é que, mesmo quando se trata de um texto cuja temática é extraída de tópicos ou relatos anteriores (como Moreira), a de Aira é uma literatura pautada no não construído, não se apresenta como representação de algo nem como repetição de algo com referente concreto, é “repetição expandida” (ANTELO, 2019ANTELO, R. Aira ou a literatura como reprodução ampliada. In: ROSA, V.; ERBER, L. O congresso de literatura: ensaios sobre César Aira. Dansk, 2019. p. 79-77., p. 76) ou desoriginada.

César Aira, autor de Moreira (e de si mesmo)

No corpo a corpo com a linguagem e com o desafio de uma origem, é como se o (então aspirante a) escritor se visse ante a pergunta “mas o que escrever?”. A questão sugere o momento prévio à escritura ou à decisão de escrever, de iniciar a obra (e a Obra), o “deserto” das possibilidades, o encontro (não controlado) da circunstância que pode colocar o escritor no âmbito do novelesco. A essa interrogação Aira, em algum momento, teria respondido: Moreira! (Eureka! É isso!). Por um lado, emerge nessa escolha o desejo de invenção e, por outro, certa conexão com um princípio criativo cujas origens são tipicamente folhetinescas, espécie de ética do folhetim, que, como lembra Marlyze Meyer (1996MEYER, M. O folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.), compreende a escritura (especialmente para escritores iniciantes) como sendo aberta à adaptação, à recriação livre, à apropriação. Mas, em Aira, esse processo vem acompanhado de um “abandono declarado de toda referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a uma arquia absoluta” (DERRIDA, 1971DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 229-249., p. 240).

Opera-se, desse modo, em Moreira, um deslocamento do relato para outro eixo, que delega à leitura e ao leitor o desafio de imaginar não como Aira (seus narradores) conta sua história, mas como nós podemos contar (ou ler) a história que Aira contou e ser fiel à sua escritura, que então irrompe como repetição desviada, imaginação. Poderíamos dizer que esse movimento de jogo - substituições infinitas - “é o movimento da suplementariedade. Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais, como suplemento” (DERRIDA, 1971DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 229-249., p. 245). E vale a pena lembrar aqui que a substituição é um procedimento frequente nas narrativas de Aira: dois desenvolvimentos/duas histórias dentro do relato; substituição “acidental” de nomes ou de partes de nomes e de situações que, por vezes, dão uma torsão nos rumos da história narrada; duplicidades do gênero (literário ou sexual); tramas dentro da trama. Acompanhar esse jogo implica colocar-se nele, e o leitor “es esa travesía” (BARTHES, 1994BARTHES, R. El susurro del lenguaje. Tradução de C. Fernández Medrano. 2. ed. Barcelona: Paidós, 1994., p. 49) do/para o relato de Aira. Nesse sentido, se se procurar a fabulação nas origens, encontrar-se-á outra coisa (rasura, diferência). E, então, a leitura se descobre relatando a história de sua busca, seu próprio percurso infinito, visto que não há limites para o campo da significação (e do jogo).

Esse momento é aquele que me permite experimentar (ou imaginar que experimento) uma espécie de punctum, como se Aira e eu pudéssemos partilhar, num brevíssimo instante, a experiência de quem lê e a de quem escreve, também a de quem escreve sobre o que lê. E então o leitor interage com o relato por meio da memória e da afecção, “que fere e atualiza o passado no acontecimento do presente da leitura”, enquanto o texto “propõe trazer à tona uma memória espontânea” (FRENKEL, 2017FRENKEL, E. Artes em contato, experiência e afecção. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 9, n. 2, p. 52-67, 2017., p. 62). Por um instante, a oposição entre o sensível e o inteligível é superada ou posta em suspensão, neutralizada, e o literário aparece como experiência e afecção: “Lo que ‘yo’ ve y que ‘yo’ dice que veo en un relato que me/nos suma” (DERRIDA, 1980DERRIDA, J. La ley del género (La loi du genre). Tradução de Ariel Schettini (ad hoc). (exemplar xerocopiado). Originalmente publicado em: Glyph. n. 7, 1980. p.176-201., p. 26).

Porém, visto que a literatura e a leitura carregam em si mesmas a necessidade de sua própria crítica, tal experiência de afecção implica uma desconfiança imediata: qual a validade de uma leitura que parece deixar-se mover por certo patetismo, ao correr o risco de ser seduzida pelo próprio relato? Ou melhor: o que fazer com o patetismo que ela deixa vislumbrar? Essa pergunta coloca em cena o jogo com a perspectiva (do autor, do narrador, das personagens, do leitor) e aponta tanto para o desejo de controle da leitura, de qualquer leitura crítica - racionalizar, organizar, sistematizar, explicar -, desejo de impor um sentido ao texto, quanto para o anseio de liberdade e potência como enfrentamento a múltiplas subjetividades, diferenças de força e de poder que a literatura coloca em relação, instaurando um lugar de crises (dos saberes) e, portanto, de possível emergência da potência crítica. Nesse jogo, os riscos do impressionismo e do objetivismo aparecem com a mesma intensidade. A leitura surge permeada por esse duplo desafio, e não pode ser mais mera mediação ou reposição dos sentidos do texto, ela é outro texto, escritura, e faz ver não só como lemos, mas também o que lemos, quais “objetos interpelan nuestra lectura” (KOZIAK, 2017KOZIAK, C. Escribir la lectura. Hacia una literatura fuera de sí. Chuy, n. 4, p. 37-51, 2017., p. 42). Se não perdermos de vista que a discussão, aqui, situa-se em relação ao (ou à roda do) Moreira de Aira, de seus (re)começos, veremos que o multiperspectivismo, tornado visível na experiência da leitura, recoloca em cena o fato de que esse é um relato cuja leitura é, também, parte da história de uma rede de leituras que Aira (des)integra e convida o leitor a expandir.

Pois a história de Juan Moreira se confunde, talvez desde a época de seus contemporâneos, com a história das leituras sobre Moreira. E o Moreira de Aira estabelece com essa história uma relação de paralaxe, en fusión e en sincro, colocando em diálogo todos os Juan Moreira possíveis: “Hay quienes dicen que [Juan Moreira] es descendiente directo del Lobisón, pero yo no creo: sé que él solo es hijo de sus obras” (AIRA, 1975AIRA, C. Moreira. Buenos Aires: Achával, 1975., p. 72). De suas obras, de suas ações, também de suas histórias, de seus relatos, imaginará o leitor, num jogo em que as opções não se excluem. Como já se disse acima, há todo um movimento de aproximações e distanciamentos que faz do perspectivismo o núcleo da leitura de Moreira. Por vezes, o relato é miniaturização e, desse modo, explicita seu caráter novelesco, rompendo o efeito mimético e qualquer suposta relação de verdade instalada na realidade:

A lo lejos, hacia nosotros, marchaba un desconocido. Venía sentado en un majestuoso overo.

Quedamos como si hubiésemos muerto. Nunca creeríamos lo que veíamos. Nada era extraño en él, salvo una cosa: caballo y jinete medían en total menos de un centímetro de alto (!!)” (AIRA, 1975AIRA, C. Moreira. Buenos Aires: Achával, 1975., p. 17 - destaques meus; itálicos do autor).

“[C]omo si hubiésemos muerto”, é o relato/Moreira que se move aqui “hacia nosotros” - memórias, imagens, histórias. E, enquanto repetição, ele se abre e se revela forma (maquete), reconectando-se à invenção:

Cuál no sería nuestra sorpresa cuando de pronto vimos casi encima nuestro, avanzando con aquellos pasos únicos en la naturaleza, el mismo jinete-maquette que habíamos visto por allá. Pero lo más sobrenatural es que tenía el tamaño de un adulto… ¡y era más alto y fornido que cualquiera de nosotros…! ¡Y mucho más hermoso! (AIRA, 1975AIRA, C. Moreira. Buenos Aires: Achával, 1975., p. 20).

A aparência de realidade ou de ficção, nos dois fragmentos citados, faz colidirem todas as fronteiras interpretativas, instalando-as no horizonte da escritura como lugar de indeterminação cujos restos (de relatos, de factualidades) cabe à leitura perseguir, a partir de uma relação que é de apropriação, mas também de desconfiança: “Trata-se de colocar expressa e sistematicamente o problema do estatuto de um discurso que vai buscar a uma herança os recursos necessários para a des-construção dessa mesma herança” (DERRIDA, 1971DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 229-249., p. 235). Já não se trata de perguntar qual a origem da/dessa novela de Aira nem por que Moreira, mas de seguir sua aposta na escritura para descobrir que ali onde o relato conhecido parece retornar (e também retorna) surge outro que transtorna o anterior e cuja função é, também, “crear a un autor” (PREMAT, 2009PREMAT, J. Héroes sin atributos: figuras de escritor en la literatura argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009., p. 240), criar César Aira, autor de Moreira e de si mesmo.

Por sua vez, como o autor somente se cria (de fato) quando é lido, ao criar-se ele convoca a leitura de sua obra e de si, isto é, cria seu leitor no momento mesmo em que surge, criado em/por sua obra. Se Aira se impõe o desafio de seguir escrevendo, o desafio que se impõe a nós, como seus leitores, é o de seguir lendo(-o), contínua e infinitamente, numa volta à (e da) leitura e ao (do) leitor ao centro do relato e da literatura. Poderíamos dizer que a aspiração de todo leitor, aqui, é tornar-se, também, o escritor que ele lê - ou seu escritor preferido, se se quiser dar à formulação ares meio novelescos -, justamente porque na origem (entendida como salto rumo ao dissonante e incerto) eles estão umbilicalmente relacionados, razão pela qual nem a escritura nem a leitura dependem unicamente da inteligência ou da percepção, mas, sim, de uma “razão imaginativa” (PATER, 1986PATER, W. The Renaissance: Sutides in Art and Poetry. Oxford: Oxford University Press, 1986.). Nascidos juntos, Aira e seu leitor, escritura e leitura de seu relato, essa origem parece tentar neutralizar não só as distâncias entre o sensível e o inteligível em sua obra, mas também a oposição entre sincronia e diacronia, o que faz com que, no (ou desde o) Moreira, o que Aira (re)funda é o desafio da leitura literária e, portanto, da própria literatura.

Ler a leitura (a do autor, a de sua obra, a que sua escritura potencializa) constitui-se, pois, num imperativo do/para o relato de Aira, escritor cuja obra, não por coincidência, surge no correr dos anos 1970, época em que a leitura começa a ganhar evidência no debate teórico (o ensaio de Barthes sobre a morte do autor é do final dos anos 1960, e Derrida publica seus primeiros livros sobre a desconstrução também entre o final daqueles anos e o início da década seguinte). Como lembra Claudia Koziak, “[n]os preguntamos por la lectura justo cuando la lectura de la literatura ha dejado de ser un hecho que demos por sentado”, “justamente cuando estos objetos [libro, lectura] ya no pueden darse por sentados” (KOZIAK, 2017KOZIAK, C. Escribir la lectura. Hacia una literatura fuera de sí. Chuy, n. 4, p. 37-51, 2017., p. 42). Nesse ponto, de fato a literatura de Aira (e seu Moreira, em particular) surge em relação com a vanguarda (política, mas também teórica, dos anos 1970, mas não só a vanguarda na Argentina). Aquele contexto de incertezas (que não desaparece de seu horizonte, no Moreira) torna essa origem tão atual ou contemporânea nossa quanto podia parecer no momento da publicação de sua novela “fundadora”, na medida em que se coloca a pergunta sobre os limites da literatura e sobre como ler a literatura (então, agora).

Referências

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  • 1
    Entendido como gênero poético em verso oriundo da tradição popular e oral, cujas origens remontam à época medieval. Tal ideia, por sua vez, aparece explicitamente numa cena do Juan Moreira, de Leonardo FavioJUAN Moreira. Direção: Leonardo Favio. Argentina: Centauro Films, 1973. , em que uma senhora canta os feitos de Moreira para os transeuntes de uma feira livre, num jogo heterônomo entre memória e visualidade, visto que o faz, também, a partir de um conjunto de gravuras que narram a vida do herói.
  • 2
    Cronologicamente, é importante lembrar que Las ovejas foi escrito em 1970 (apesar de só ter sido publicado depois, em 1984), portanto, antes de Moreira, concluído em 1972 (Cf. CONTRERAS, 2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001.).
  • 3
    Ao dizer isso, não nego a existência de “voltas” ou “viradas” na obra de Aira, como cuidadosamente demonstrou Contreras (2001CONTRERAS, S. La vuelta del relato en la literatura de César Aira en el contexto de la narrativa argentina contemporánea. Tesis (Doctorado en Letras) - Universidad de Bueno Aires, Buenos Aires, 2001.).
  • 4
    Isso se torna mais evidente se compararmos o Moreira, de Aira, ao Juan Moreira, de Leonardo FavioJUAN Moreira. Direção: Leonardo Favio. Argentina: Centauro Films, 1973. , lembrando que são contemporâneos entre si. No filme de Favio, de 1973, a inscrição política vanguardista situa a figura do protagonista não só no âmbito do mito popular e em suas raízes históricas - especialmente a partir do folhetim de Gutiérrez -, mas aproxima-o, também, da figura popularizada de Jesus Cristo e da imagem difundida do militante/guerrilheiro, para o que a própria caracterização da personagem colabora - barba e cabelos longos -, especialmente em cenas como as que configuram a sequência constituída pelo cerco ao protagonista no prostíbulo, até o desfecho do relato cinematográfico (para uma discussão sobre o Juan Moreira de Favio como relato sacrificial-cristão, Cf. Gamerro [2014]). Esse efeito se acentua em razão do contexto de violência final, no filme: todos contra um, o Estado/a Justiça contra Moreira. Não deixa de ser irônico, nesse sentido, que, apesar de ser no texto de Aira que aparece a incitação politizada de um Juan Moreira que, a certa altura, mobiliza seus ouvintes - “y entonces con voz clara pronunció su famosa exhortación: -Sean marxistas.” (AIRA, 1975AIRA, C. Moreira. Buenos Aires: Achával, 1975., p. 61) -, é no filme de Favio que a exortação politizada é tomada a sério. No conjunto do relato de Aira, em cujo desenvolvimento a cena em questão se articula à fábula e ao delírio, tais palavras de ordem soam como um disparate.
  • 5
    A fim de evitar a proliferação de referências, citarei o Moreira, de Aira, a partir daqui, apenas pelo número de página.
  • 6
    Sobre a noção de não-sujeito, Cf. Moreiras (2004MOREIRAS, A. Children of Light: Neo-paulinism and the Cathexis of Difference (I). The Bible and Critical Theory. n. 1, v. 1, p. 3-13, 2004. , p. 2).
  • 7
    Em “Aira con Borges”, Contreras sugere uma aproximação instigante entre os dois autores: “Desde el punto de vista de la forma sensible, quiero decir, la inmediatamente perceptible, tal vez no haya literatura que parezca más incompatible con la de Borges que la de César Aira. Pero, curiosamente, también desde el punto de vista de la forma, quiero decir ahora, desde el punto de vista de la preeminencia otorgada a las opciones y éticas formales, tal vez no haya otra, en la literatura argentina que va desde los años 70 al presente, que la convoque de un modo más comprehensivo, aunque a la vez sesgado y también secreto” (CONTRERAS, 2013CONTRERAS, S. Aira con Borges. La biblioteca, n. 13, 2013, p. 185-198., p. 185).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2021
  • Aceito
    15 Ago 2021
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