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EXPERIMENTO DIALÓGICO DE DOSTOIÉVSKI NO CINEMA: ENTRE A POLIFONIA E A POLIMORFIA

RESUMO

O presente ensaio indaga sobre as possibilidades de as obras de Dostoiévski serem traduzidas intersemioticamente pela linguagem audiovisual do cinema, respeitando-se o princípio dialógico criado pelo escritor e a noção de polimorfismo das recriações fílmicas. Para isso, contesta as adaptações baseadas num conteúdo temático simplificado em que a composição é reduzida ao monologismo característico de práticas herdadas das transposições de obras dostoievskianas para o teatro desde o século XIX. Baseadas no método de decupagem, tal simplificação elimina os conflitos psíquicos e a complexidade dialógico-discursiva do texto romanesco. Aproxima-se, assim, do cine-lubok, uma vertente do cinema russo do início do século XX que procurou levar a obra de Dostoiévski para grandes esferas da população por meio de um trabalho de linguagem concentrado no diálogo. A análise segue os fundamentos teóricos da tradução intersemiótica e do princípio dialógico para examinar duas versões fílmicas do romance O idiota e uma de Crime e castigo, acompanhando uma trajetória que se inicia no primeiro cinema russo, atravessa o período soviético e chega ao final do século XX. Como resultado, equaciona os procedimentos da linguagem audiovisual com os processos criativos que, no cinema, se aproximam das conquistas do experimento polifônico e da dialogia discursiva dos romances.

Dostoiévski; romance; princípio dialógico; experimento polifônico; polimorfia; tradução intersemiótica; cinema

ABSTRACT

The present essay investigates the possibility of translating Dostoevsky’s works intersemiotically to the audiovisual language of cinema, considering the dialogic principle created by that writer as well as the notion of polymorphism of filmic recreations. To that end, the article challenges the adaptations based on the thematic content, which reduces the author’s works to monologism, inherited from the transposition of Dostoevsky’s work to the theater in the 19th century and relied on the method of decoupage, thus eliminating the psychic conflict and the dialogic-discursive complexity of the novel. Hence, the essay approximates lubok films, a style of Russian cinema from the beginning of the 20th century that aimed to take Dostoevsky’s works to larger spheres of the population by working language with a focus on dialogues. The analysis follows the theoretical principles of intersemiotic translation in addition to the dialogic principle to investigate two filmic versions of The Idiot and one version of Crime and Punishment, in a trajectory that begins in the early Russian cinema, through the Soviet Union, and reaches the end of the 20th century. As a result, the procedures of audiovisual language are equated to the creative processes that, in cinema, approximate the conquests of the polyphonic experiment and the discursive dialogism of novels.

Dostoevsky; novel; dialogic principle; polyphonic experiment; polymorphism; intersemiotic translation; cinema

Introdução

Qual é o modo certo para se executar as obras de Bach? A cravista polonesa Wanda Landowska (1879-1959) tinha uma resposta precisa: “Você toca do seu jeito, que eu toco do jeito dele.” Com isso, ela acreditava manter-se fiel ao compositor, deixando a traição para os outros. Embora antiga, a questão movimenta pontos de vista controversos, enquanto multiplicam-se as ousadias traiçoeiras. É dessa forma que o crítico musical Arthur Dapieve (2021)DAPIEVE, A. Prelúdios. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles. 24 mar. 2021. Programa da Rádio Batuta. Disponível em: https://radiobatuta.com.br/programa/bach-polimorfo/. Acesso em: 07 mai. 2021.
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, em seu programa radiofônico Prelúdios, abre o episódio denominado Bach polimorfo. Na tentativa de contribuir com esse debate interminável, Dapieve apresenta algumas indagações não menos desconcertantes. Segundo seu raciocínio, se a fidelidade fosse levada “ao pé da letra”, somente os instrumentos da época de Bach poderiam ser considerados no momento de executar sua obra; nenhum outro instrumento de cordas, nem mesmo o piano, estaria à altura do cravo bem temperado do compositor. Contudo, tal crença seria a evidência do desconhecimento do fato de que o próprio Bach não só retrabalhava temas de suas peças, como adaptava obras de outros compositores. E mais: de que lado estariam as interpretações de Glenn Gould, que além de executar as peças de Bach no piano, eternizou suas interpretações em gravações que fazem parte do repertório musical de todo amante de música clássica? Como ficariam as transcrições dos prelúdios e fugas do mestre barroco que Villa-Lobos produziu para coro? Ao longo do programa, Dapieve reproduz as obras supracitadas para que o ouvinte acompanhe e compare as interpretações que caracterizam o polimorfismo das obras bachianas.

Evidentemente, faltaram as recriações de Bach para “instrumentos” nada convencionais. Para abrir o nosso programa imaginário com ousadias muito mais traiçoeiras, lembramos aquela praticada pelo compositor Bobby McFerrin, que, seguindo o seu estilo jazzístico, ousou traduzir as notas do cravo para as cordas de sua voz. Num outro extremo, estaria Walt Disney, que transformou a Tocata e Fuga em Ré Menor, BWV 565 em desenho animado – o filme Fantasia (1940), produção da indústria do entretenimento. Numa execução da Orquestra Filarmônica da Filadélfia, o maestro Leopold Stokowski conduz a peça com uma gestualidade tão marcante que acabou por coreografar com seu corpo a entonação rítmica dos movimentos, antecipando, o que o coreógrafo Rodrigo Pederneiras e o músico multi-instrumentista Marco Antônio Guimarães criaram para a coreografia do espetáculo Bach (1995), realizado pela companhia mineira de dança Grupo Corpo. Para a profana movimentação dos bailarinos, Guimarães rearranjou diversos fragmentos de peças bachianas, executando-os com diferentes instrumentos de corda construídos por ele com tubos de PVC e outros componentes de engenharia. Evidentemente, essas ousadias seriam consideradas fora dos limites com suas heresias execráveis.

As mais diversas recriações que músicos consagrados e respeitados em sua maestria realizaram (e realizam) da obra de Bach nascem da necessidade que eles sentem de travar um contato íntimo com uma obra insuperável, mas não indomável. Uma obra que, em nosso entendimento, é dialógica, inclusiva, afeita às interações onde houver instrumentos de cordas (incluindo as cordas vocais) dispostos a executá-la, o que prova seu poder de viver no “grande tempo da cultura” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Os estudos literários hoje. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 360-366., p. 362) e com ele interagir. Nenhuma das reações adversas conseguiu, até agora, interromper e apagar a chama com a qual a música de Bach ilumina a criação humana, preservando sua natureza polifônica e polimórfica.

Bach não está sozinho nesta galeria de artistas das mais variadas expressões sensoriais, incluindo os artistas que se dedicaram ao signo por excelência do diálogo: os poetas da palavra. Ainda que artistas do verso e da prosa resistam muitas vezes a ver sua obra em composições musicais e em obras dramáticas do palco e das telas, o fato é que o diálogo constitui a artéria que mantém acesos polifonias e polimorfismos, acompanhando o movimento do vetor irreversível do tempo. O diálogo não morreu quando a voz de Sócrates deixou de ecoar seus discursos, pelo contrário, cresceu, multiplicou-se e transformou-se em possibilidades inimagináveis para o filósofo. O poder dialógico da obra poética com sua poiesis é maior do que a vida de seus criadores, embora muitos resistam em aceitar isso. E este é o caso do artista da palavra que criou, na arte do romance, formas dialógicas capazes de transformar em voz as mais difíceis formas de interlocução e de interação que a faculdade mais preciosa do ser humano desenvolveu como linguagem. Tudo o que foi dito a respeito de Bach foi apenas a introdução ao entendimento do experimento dialógico-polifônico e polimórfico criado por Fiódor M. Dostoiévski, que não para de atiçar recriações de sua obra para o palco e para as telas – no teatro e no cinema –, e que serviram de motivação para este estudo.

À revelia do artista, novelas e romances dostoievskianos nunca deixaram de inquietar a alma humana e a necessidade de, cada um a seu modo, imprimir-lhe sua voz. Nem mesmo quando a língua russa enfrentava dificuldades para se fazer entender, transitando com muita precariedade para além de suas fronteiras territoriais, a obra de Dostoiévski (assim como de Gógol, Gorki, Turguêniev, Tolstói e tantos outros) nunca deixou de abrir seu diálogo com falantes de outras línguas. Graças às traduções, a obra venceu fronteiras, até mesmo políticas, caso das proibições de que foram vítimas no regime soviético. Contrariando o próprio escritor, novelas e romances despertavam (e continuam despertando) gerações de dramaturgos que, sem nenhum temor, encenavam (e continuam encenando) a palavra dialógica em performances do palco.

Não é de se estranhar que cineastas encontrassem no escritor russo uma fonte inesgotável de possibilidades desafiadoras na transposição de suas obras para as telas, arriscando recriá-las com a polimorfia dos dispositivos audiovisuais. Recriações que, no contexto russo, floresceram no espírito dos próprios dramaturgos. Recuperar um pouco dessa trajetória é o objetivo central do presente ensaio, que propõe examinar, não a mera transposição da narrativa das obras para o cinema, monologizando o procedimento estético criado pelo escritor. O objetivo é examinar a ousadia e a capacidade de cineastas que, em distintas realizações, traduziram o experimento dialógico-polifônico em imagens sonoras, visuais e cinéticas polimórficas. Para a análise de tão delicada e difícil operação, o presente trabalho orienta-se pelo princípio dialógico de Mikhail Bakhtin (2008)BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., apoiado no exercício da tradução intersemiótica formulado por Roman Jakobson (1971)JAKOBSON, R. Aspectos linguísticos da tradução. In: JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. Tradução de I. Blikstein; J.P. Paes. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 73-86.. Assim, entendemos ser possível ultrapassar a mera adaptação que, presa às fabulações, não consegue alcançar a dimensão icônica da bivocalidade do discurso dialógico no polimorfismo audiovisual, o que tem justificado a transformação do experimento dialógico-polifônico num roteiro monológico.

Quando o Jakobson concebeu a tradução intersemiótica como a possibilidade de diferentes formas expressivas operarem uma “transmutação”, em que os signos verbais pudessem ser interpretados por signos não-verbais, o que se colocava em seu horizonte analítico era o mecanismo semiótico de recodificação, próprio a todo processo de interpretação (JAKOBSON, 1971). Em sintonia com as práticas estéticas que, a exemplo das experiências com as obras de um Bach, não se intimidaram e extrapolaram limites para ampliar o potencial dialógico dos artistas e suas criações, espera-se explorar as realizações que foram vencendo dificuldades e enfrentando desafios, com acertos e erros, mas com o firme objetivo de alcançar a dialogicidade que mudou a compreensão da ressonância da voz nas representações da comunicação humana.

Afinal, se não há limites para a interpretação da obra de Bach, por que haveria para a obra de Dostoiévski?

A poética de Dostoiévski entre a resistência do autor e a persistência das obras

Quando as ideias sobre as traduções intersemióticas da obra de Fiódor M. Dostoiévski orientaram uma parte da investigação sobre o tema, motivadas pelas constantes adaptações realizadas para o cinema já há mais de um século, indagávamos: é possível construir experimentos dialógico-polifônicos com linguagem fílmica? Desconfiávamos de que fosse possível traduzir em códigos audiovisuais a complexidade das relações dialógicas criadas pelo escritor. As fortes convicções de Dostoiévski contra as representações teatrais de suas obras pesavam muito sobre nosso entendimento. A análise de alguns filmes realizados a partir de sua obra não apenas traiu a postura irredutível do escritor, como nos obrigou a uma revisão crítica das traduções audiovisuais de obras literárias para o cinema. Acompanhar o percurso desta mudança é o que se propõe com o presente ensaio.

Ainda que não tenha impedido que as personagens de seus grandes romances ganhassem vida no palco, na pele de renomados atores e atrizes do teatro russo na segunda metade do século XIX, Dostoiévski não via com bons olhos tais atuações. Confrontando-se com o legado da tradição russa de interação entre as artes, o escritor era adepto da especificidade, conforme manifestação explícita de seu pensamento.

Existe um tipo de mistério na arte: a forma épica não tem equivalente na forma dramática. Até acho que para cada forma artística exista uma série correspondente de pensamentos poéticos particulares, de modo que nenhum pensamento possa ser expresso de uma forma que não seja a sua. (DOSTOÏEVSKI, 1872 apudJACQ, 2017JACQ, J. L’adaptation à l’écran des oeuvres de Dostoïevski en Russie/URSS (1908-2015). In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 50-68., p. 50, tradução nossa)2 2 Segundo levantamento de Dostoïevski à l’écran (ESTÈVE; LABARRÈRE, 2017, p. 171-178), são 155 produções audiovisuais entre longas e curtas metragens, incluindo séries televisuais, estabelecidas a partir de fontes variadas e orientadas pelas informações do site IMDb. .

A que forma Dostoiévski se refere quando afirma que o pensamento poético só pode ser expresso em sua forma particular e unicamente sua? Se, por um lado, o escritor parece preservar a pureza literária de sua prosa artística, por outro, manifesta desconfiança de que o teatro ou a ópera possam ser capazes de transpor a poeticidade de sua obra romanesca e a complexidade interna de seus personagens. Não obstante suas crenças, os fatos contrariam seus desejos, uma vez que seus romances jamais foram ignorados pelos realizadores do palco e da tela. Nem mesmo o alegado estranhamento de seu texto à dramaturgia e à transformação audiovisual foi suficiente para impedir versões teatrais e fílmicas de suas obras, que hoje já contam com mais de uma centena de filmes3 3 No original: […] una voz habla de algo, al mismo tiempo, se nos hace ver otra cosa y en fin lo que se nos dice está debajo de lo que se nos hace ver. Esto es muy importante, este tercer punto. (DELEUZE, 2012, p. 11). em diferentes cinematografias. Como reconhece Arlete Cavaliere (2016CAVALIERE, A. Dostoiévski: Polifonias contemporâneas. RUS: Revista de Literatura e Cultura Russa, São Paulo, v.7, n. 7, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/114016/111869. Acesso em: 23 nov. 2020.
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, p. 18), “a obra de Dostoiévski vem tecendo uma narrativa artística sobre si mesma, uma forma de metalinguagem, a combinar diferentes vozes e discursos na expressão e no processo criativo de outros criadores”.

Se nem a complexidade dos dramas e discursos de suas personagens impediram as transposições para as diferentes formas artísticas, só nos resta entender como os realizadores vence(ra)m os obstáculos colocados pelo texto dostoievskiano. Um contato inicial com os títulos dessa cinematografia, desde as primeiras investidas no campo das transposições fílmicas, mostra que os maiores desafios e impedimentos de transposição da literatura para o cinema são, paradoxalmente, os potenciais criadores de possibilidades artísticas que Dostoiévski jamais poderia imaginar.

Sabemos que Dostoiévski revolucionou o modelo discursivo da forma romanesca ao liberar diferentes pontos de vista que, no caso do romance, gravitam em torno dos discursos das personagens e do narrador. Contudo, traduzir o experimento dialógico-polifônico em linguagem audiovisual não é tarefa fácil, visto que demanda articulação icônica de procedimentos dialógicos dos mais conturbados cenários do mundo interior e da alma humana.

Do ponto de vista de nosso argumento, seria necessário acompanhar o trabalho de tradução intersemiótica que reconhecesse não só a distinção entre literatura e cinema, como também entre as linguagens literária e cinematográfica em seus respectivos códigos, verbal e audiovisual. Dizendo em termos deleuzianos, seria preciso operar a disjunção entre “dizer” (ou falar) e “ver” para alcançar a especificidade da ideia cinematográfica. Em outras palavras, seria compreender que “uma voz fala de algo ao mesmo tempo em que nos faz ver outra coisa e, por conseguinte, aquilo de que nos fala está sob aquilo que nos faz ver. Esse terceiro ponto é muito importante.” (DELEUZE, 2012DELEUZE, G. ¿Qué es el acto de creación? Fermentario, Montevideo, n. 6, 2012. Disponível em: http://www.fermentario.fhuce.edu.uy/index.php/fermentario/article/view/110/70. Acesso em: 03 jan. 2021.
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, p. 11, tradução nossa)4 4 O temor de Dostoiévski é fundamentado em premissas que hoje são reconhecidas teoricamente. Para André Bazin (2018, p.135), “o drama da adaptação é o da vulgarização”, que pode ser entendida tanto pelos recortes e recontextualizações operadas na transposição da narrativa literária para a tela, quanto pelo próprio caráter icônico da linguagem audiovisual, que coloca em cena atores falando e vivendo o drama das personagens representadas. . Quer dizer, ao operar com códigos icônicos, a linguagem audiovisual dimensiona visualidades e espacialidades que projetam universos sensoriais de outra natureza, como os ambientes sonoro-acústicos – algo que extrapola a performance dos signos verbais. Resulta de tal configuração a questão de fundo do ensaio: como o cinema explorou o universo semiótico da linguagem audiovisual para recriar na tela as formas discursivas mobilizadas pelo confronto dialógico de ideias – centro da revolução artística de Dostoiévski e de seu “experimento polifônico” (PONZIO, 2010PONZIO, A. Presentazione. Dialogo e polifonia in Dostoevskij: come è stato frainteso il pensero di Bachtin. In: BACHTIN, M.M. Problemi dell’opera di Dostoevskij (1929). Bari: Edizione dal Sud, 2010. p. 5-30.)?

O escritor depositou na trama dialógica das ideias a potência criadora dos diferentes pontos de vista que transformaram os procedimentos estéticos da obra romanesca em princípios de composição artística. É como discurso de ideias que a complexidade do mundo interior – com suas angústias, sofrimentos, amor, ódio, desejo de vingança, descrença na punição, – é tecida numa trama não menos complexa, alvo das muitas abordagens interpretativas de caráter filosófico, religioso, político. Tal trama, tão bem tecida pelas ideias em confronto, levou Mikhail Bakhtin a conceber a dialogia como processo elementar de composição das ideias em embates discursivos responsáveis pela tensa arena ideológica geradora de formas (BAKHTIN, 2008) – aquelas formas que Dostoiévski julgava serem específicas da arte verbal da prosa romanesca, distintas, pois, do teatro e do cinema e que, neste ensaio, ousamos submeter a uma revisão crítica.

Limites críticos: resistência contra a simplificação monológica

Se Dostoiévski não aprovava as conversões de sua obra para a representação nos palcos, certamente não aprovaria a vulgarização5 5 Ideólogo é o homem cujas ideias se debatem em torno dos conflitos e dos pontos de vista elaborados por sua mente na experiência de suas vivências internas e interações na vida ordinária. Cada personagem é um ideólogo ao se movimentar em relação aos outros segundo as diretrizes de suas ideias, confrontadas no convívio com o outro (BAKHTIN, 2008). de sua arte para as telas, com atores falando no ritmo da tomada de câmera, reportando-se apenas aos fatos imediatos de uma trama simplificada, sem o tenso debate de ideias.

Contudo, no início do século XX, quando o cinema iniciou suas atividades na Rússia cultuando a tradição literária, as grandes obras de A. Púchkin, A. Tchékhov, L. Tolstói, N. Gógol, M. Górki e F. Dostoiévski, que integram o patrimônio nacional, não escaparam da tradição de síntese intertextual que acompanha as artes russas em sua história. (JACQ, 2017JACQ, J. L’adaptation à l’écran des oeuvres de Dostoïevski en Russie/URSS (1908-2015). In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 50-68.). Nem mesmo a religiosidade, o apego ao ocidente e a crítica aberta às ideias socialistas praticadas por Dostoiévski afastaram suas obras das adaptações para teatro, cinema e música, seja no período russo, durante o regime soviético e no pós-perestroika.

Seria muito ingênuo e, em certa medida, superficial, acreditar que a postura de cineastas com diferentes interesses estéticos filtrasse as contrariedades ideológicas do escritor em nome da grandiosidade de sua arte literária. Na verdade, as adaptações realizadas em nome da fidelidade, tanto no cinema russo e soviético, quanto nas mais distintas cinematografias, resultam, em grande parte, em simplificações, distantes das linhas de força da criação, mesmo ao pautarem questões filosóficas conflituosas. No período russo, anterior às experimentações da vanguarda construtivista da primeira década do século XX, a obra de Dostoiévski interessava pelas situações dramáticas que o teatro já havia aprendido a decupar em quadros, o que muito favoreceu as primeiras transposições para o cinema.

Conforme os estudos crítico-históricos conduzidos por Bakhtin (2008)BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., a crítica russo-soviética também considerava na obra de Dostoiévski apenas aquilo que garantia coerência com a análise temático-conteudística focalizada e justificada no âmbito da vida do autor e de seus interesses. Nestas análises, as personagens não passavam de tipos, correspondendo aos interesses de uma espécie de análise metodológica capaz de operar sínteses alheias à revolução da criação artística de Dostoiévski, que mudou para sempre o gênero romanesco. Tais premissas crítico-teóricas aplicadas à obra do autor se fizeram (e se fazem) presentes na construção fílmica, perpetuando aquilo que Bakhtin denominou monologização da criação dostoievskiana.

Só nos resta inferir que, se Dostoiévski fosse vivo, sua recusa em conceder os direitos de conversão de sua obra para o cinema seria legítima e pertinente, estando plenamente justificada como a única atitude plausível de preservação dos grandes processos criativos de sua invenção estética.

Ao viver e morrer no século XIX, Dostoiévski (1821-1881) desconheceu as adaptações fílmicas de sua obra no contexto do primeiro cinema russo no início do século XX. Para os cineastas desta geração, era imperativo aprender a linguagem do cinema para com ela produzir um filme. Assim, surgiram algumas experiências que ensaiaram possibilidades audiovisuais de expressão dos contrapontos de ideias na própria forma do filme, de modo que os personagens pudessem se impor como ideólogos6 6 Преступление и наказание (Prestupléniye i nakazániye), 1866. de conflitos humanos com todo o inacabamento do drama da existência. Se não se venceu a síntese monológica como prática dominante, pelo menos algumas experiências criativas coerentes com os princípios da arte dostoievskiana foram ensaiadas, como se espera examinar na sequência.

Adaptações de Dostoiévski: do cine-lubok ao agit-melodrama

A primeira adaptação de Dostoiévski para o cinema data de 1909, quando Vassili Goncharov traduziu em imagens o romance Crime e Castigo7 7 Идиот (Idiot), 1867-1869. . Por ser um filme de difícil acesso, o lugar oficial de primeira obra de Dostoiévski adaptada ao cinema coube à versão cinematográfica do denso romance O idiota8 8 O cine-lubok segue o princípio de composição dos lubki (plural de lubok): obras ilustradas de gravuras em madeira ou cobre que desde o século XVIII são utilizadas para compor narrativas gráficas de caráter popular. (MIGUEL, 2008). No cinema, serviu de base para as narrativas simplificadas de apelo popular. , por Piotr Tchardinine.Trata-se de um curta-metragem de 21 minutos, filmado em 1910, que condensou o volumoso romance em quadros ilustrados traduzidos conforme a experiência do cine-lubok9 9 Disponível em: https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Lubok&oldid=1052492485. Acesso em: 22 set. 2002. , familiar ao povo russo. Os chamados lubok são obras ilustradas de gravuras em madeira ou cobre que desde o século XVIII são utilizadas para compor narrativas gráficas de caráter popular. Nelas, os textos verbais são gravados na superfície sem uma sequência linear, obedecendo ao caráter episódico da composição narrativa, e com muitos atalhos, abrindo-se para um campo semântico ambivalente, como se pode notar na gravura que se segue (Fig. 1).

Figura 1
Os ratos estão enterrando o gato – Gravura lubok de 1760.

Com temas variados, o lubok aproxima contextos em oposição, parodiando temas e personagens da cultura oficial elevada, que sofrem rebaixamento, tal como no lubok reproduzido aqui. Nele, a legenda “O Gato de Kazan, a Mente de Astracã, a Sabedoria da Sibéria” constitui uma paródia dos títulos dos czares russos.

Segundo Géry (2017GÉRY, C. Dostoïevski et le Grand Muet: L’idiot de Piotr Tchardynine. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 108-114., p. 110, tradução nossa), o fundamental da gravura lubok é a potência semântica do episódio e, no caso de Tchardinine,

Trata-se de apresentar, de forma elementar, conteúdos actanciais e psicológicos dentro de uma série composta por cenas “chave”, mais ou menos arbitrariamente escolhidas dentre as mais espetaculares. A sucessão dos quadros animados reconfigura a obra original a uma trama digerível que leva em conta apenas sua principal linha narrativa, ignorando completamente suas múltiplas linhas secundárias, [...].11 11 Agit-prop: atividades de agitação – ou simplesmente atração – produzidas por poetas, artistas do teatro, cinema e artes de rua para promover a ação e reação das pessoas em espetáculos, concertos, eventos de arte. Reação no sentido de conscientização de conflitos de jogos de interesse político-econômico. O procedimento foi explorado por Maiakóvski em sua poesia e cartazes de propaganda (janelas Rosta – uma espécie de lubok construtivista) e também por Sergei Eisenstein em suas montagens teatrais do Proletcult.

O romance de quase mil páginas é transformado em algumas linhas episódicas, como se pode ler na decupagem que se segue.

  1. Viagem de trem: encontro entre o príncipe Míchkin e o comerciante Rogógin, que confessa sua paixão por Nastácia, amante do proprietário Tótski. Mostra a foto da mulher.

  2. Visita à casa do general Iepántchin, sua esposa e filhas. Encontro com Gavrila (ou Gania), secretário e pretendente a casamento com Nastácia, que também exibe a foto de Nastácia.

  3. Míchkin dirige-se ao alojamento da casa de Gania: a família discute o casamento. Visita de Rogógin, disposto a pagar cem mil rublos para Gania desistir de Nastácia.

  4. Festa na casa de Nastácia: o príncipe tenta impedir o casamento interesseiro e declara seu amor pela moça, em cujos olhos lê muito sofrimento. Na disputa, Nastácia, humilhada, decide lançar o pacote de cem mil rublos na lareira, desafiando Gania a salvá-los do fogo. Assustado, o rapaz desmaia; ela recolhe o dinheiro e lança-o ao lado do corpo caído. Foge com Rogógin.

  5. Míchkin recebe uma herança e, sem desistir de Nastácia, se aproxima de Aglaia, filha de Iepántchin. Depois de muitas disputas e trocas de agressões, Nastácia foge novamente com Rogógin, que termina por assassiná-la, convidando Míchkin para velar o cadáver numa noite assombrosa. O príncipe enlouquece.

Decisiva para esta síntese foi a concentração da ação em cinco espaços distintos: o trem; a casa do general; a casa da família de Gania; a casa de Nastácia e a casa de Rogógin, espaços privados que abrigam as discussões pessoais de modo público.

Diante da dificuldade de transformar em imagem visual a complexidade do mundo interior, o filme opera em duas direções: síntese episódica de quadros, que seguem uma articulação de tableaux vivants e transformação dos conflitos em núcleos dramáticos carregados de tensão, monologizando as relações dialógicas do romance sem jamais alcançar o sentido profundo das questões postas pelo escritor, como entendeu Andrei Tarkóvski (1994)TARKÓVSKI, A. Dostoiëvski au cinéma. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 476, p. 87-89, 1994.. Com isso, o filme lubok apenas cumpriu o desígnio de introduzir o escritor no “circuito do espetáculo de massa e da imagem”, contribuindo para enfatizar o caráter de “grande diálogo das artes pressuposto em toda adaptação” (GÉRY, 2017GÉRY, C. Dostoïevski et le Grand Muet: L’idiot de Piotr Tchardynine. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 108-114., p. 114) na melhor tradição da arte russa.

Experiência um pouco distinta ocorreu em plena Guerra Fria, quando Iván Píriev – cineasta alinhado com o regime soviético, homem forte da Mosfilm (Мосфильм), seu presidente por quase uma década (1957-1965), ganhador do prêmio Stálin por diversas vezes e realizador de musicais da grande épica soviética (BO, 2019BO, J.L. Cinema para russos, cinema para soviéticos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.) – produziu uma controvertida adaptação de O idiota em 1958.

O projeto de Píriev ambicionava filmar a totalidade da narrativa em quatro séries, mas somente a primeira foi finalizada. Contando com uma equipe de diversos profissionais – da comédia, do teatro de Stanislavski e do cinema – o filme resulta de diferentes modos narrativos: melodrama e comédia burlesca; situações oníricas e realistas (HELLER, 2017HELLER, L. L’idiot d’Ivan Pyriev: fausses enigmes et vraies questions. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 115-119., p. 118) Tudo de modo a tornar o ator com seus olhares excêntricos o princípio construtivo da mise en scène (HELLER, 2017HELLER, L. L’idiot d’Ivan Pyriev: fausses enigmes et vraies questions. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 115-119., p. 118) capturada pela fotografia, sem, contudo, transformar a encenação em categoria psicológica, como queria Tarkóvski (1994TARKÓVSKI, A. Dostoiëvski au cinéma. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 476, p. 87-89, 1994., p. 87). Assim, Píriev explora a dramaturgia audiovisual pela combinação da mise en scène dos atores com o ponto de vista da câmera. Os olhares dos atores (ambientados nos aposentos) sob efeito da iluminação e enquadramento potencializam os efeitos dramáticos das cenas (Figs. 2 e 3).

Figura 2
Ator Iúri Iacoliév no papel de Míchkin em primeiro plano.

Figura 3
Ator Iúri Iacoliév no papel de Míchkin em primeiro plano.

Centrada nas performances dos heróis exemplares, a fotografia explora tonalidades, texturas e intensidade, traduzindo-as em temperamentos que rearticulam a linha dramática do que seria um melodrama exemplar. Ao carregar no tom tragicômico, acentua contrastes, perturbando o que era apenas entretenimento.

Embora Jay Leyda considere difícil levar a sério um trabalho que não passa de um agit-melodrama (LEYDA, 1973LEYDA, J. Kino: A History of the Russian and Soviet Film. London: George Allen & Unwin, 1973., p. 336), a adaptação de Píriev merece atenção. Tanto quanto o agit-prop12 12 Embora Hakuchi seja o termo da língua japonesa para designar idiota, ao longo do filme há o emprego 2de baka, sobretudo por Rogógin, tanto em tom ofensivo, quanto afetuoso (SOBRINHO, 2006). construtivista, o agit-melodrama conta com procedimentos capazes de interferir em comportamentos. Em vez de levar espectadores à ação por meio da consciência de problemas e conflitos – caso do agit-prop – o agit-melodrama promove a catarse de ações exemplares situadas no clímax dos conflitos, acelerando o envolvimento emocional, caso da atuação de Míchkin. Se, por um lado, o príncipe se apresenta apenas como idiota e epiléptico, por outro, age como um ser que sabe ler a profundeza da alma nos olhos das pessoas, cujo sofrimento rebate nos seus próprios olhos, tal como ocorrera quando viu e sentiu na foto de Nastácia o sofrimento de sua história de vida pregressa. Esta é a luta interior do príncipe em desacerto com o seu duplo. Assim, o príncipe se envolve na disputa de Nastácia com três homens diferentes: Rogógin, seu companheiro de viagem no trem para Petersburgo quando ele retornava da Suíça; Totsie, proprietário que acolhera a jovem quando órfã, fazendo dela mais uma de suas propriedades, e Gania, secretário cuja mãe vivia de aluguel de quartos.

A primeira cena da disputa acontece na noite do aniversário de Nastácia, quando ela iria decidir-se com quem se casaria. Encantada com a pureza do príncipe em sua quase devoção, Nastácia se mostra consciente de que não pode escapar do destino e destila sua ira contra os pretendentes, que negociavam sua vida num jogo perverso: Rogógin pagara a Gania 100 mil rublos para ser o vencedor. Abalada com a disputa, Nastácia revolta-se. Para este estado de alma, a câmera acompanha a violência dos gestos: uma tomada em contra-plongée alcança, num único plano, a profundidade de campo das salas e o primeiro plano do tronco da personagem, de modo que seu rosto ganha maior luminosidade e distinção em relação ao conjunto. A mulher caminha para atear cem mil rublos ao fogo, dominada pela ira no gesto de seu olhar (Fig. 4).

Figura 4
Nastácia se preparando para comunicar decisão de seu destino.

A tomada de Nastácia em contra-plongée e outra tomada frontal do ambiente, alcançando a reprodução do espelho, joga com a rarefação da luz, marcando o contraste que coloca a imagem da personagem em primeiro plano. Com isso, os dois ângulos se confrontam no interior do mesmo plano. O cineasta Sergei Eisenstein entenderia tal tomada como um plano com contraponto – procedimento construtivo que acabou se tornando um recurso relevante para o cinema: ao mesmo tempo em que unifica, promove uma desintegração (TORTAJADA, 2017TORTAJADA, M. Eisenstein et Dostoïevski. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoievski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 43-49.). O plano acaba assumindo a entoação do discurso e o olho da câmera torna-se a forma visual do enunciado. Os diferentes ângulos criam diálogos com todos os elementos cênicos em seus diferentes enfrentamentos dialógicos, assim como os closes recortam flagrantes conflituosos das cenas. Como bem observou Eisenstein ao analisar o jogo da mise en scène, a motivação interior que organiza o jogo de cena (mise en jeu) cria a forma visual do comportamento de um discurso interior graças ao mise en geste (TORTAJADA, 2017TORTAJADA, M. Eisenstein et Dostoïevski. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoievski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 43-49.).

De um certo modo, a organização das diferentes situações, bem como dos pontos de vista discursivos que as enunciam, mostram que a versão de Píriev caminha para a investigação dos eventos, superando a “crônica dos faits divers” – como chegou a se referir Eisenstein, ao se pronunciar sobre os vínculos entre Dostoiévski e o teatro de representação dos mistérios religiosos e as moralidades de modo a provocar efeitos emocionais. (TORTAJADA, 2017TORTAJADA, M. Eisenstein et Dostoïevski. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoievski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 43-49., p. 47) Ao recuperar a cinematicidade do agit-melodrama, operando na linhagem de um possível “cinema impuro” (BAZIN, 2018BAZIN, A. Por um cinema impuro: defesa da adaptação. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: UBU, 2018., p. 135), Píriev dá um passo importante na experiência da linguagem audiovisual em termos de experimento dialógico.

Tradução intercultural e a explosão dos conflitos em imagens de seus duplos

Ainda que importante, não coube a Píriev realizar uma tradução fílmica dialógica. Faltava-lhe conhecimento da mise en scène como espaço cênico do discurso interior em seus conflitos e ambivalências. Na verdade, o salto nesta direção já tinha sido dado quando, em 1951, Akira Kurosawa lançou o seu Hakuchi13 13 No orginal: Traduction plutôt qu’adaptation, le film de Kurosawa, loin de trahir l’univers et le style de Dostoïevski, en ofre une réécriture puissante, d’une grande beauté plastique L’émotion qui se degage du protagonist et de la constellation des personnages constitue un homage à la complexité du roman. […] Le décor d’une île japonaise battue par les vents et ensevelie sous la neige offer aux passions dostoïevskiennes un cadre à leur mesure, en exaltant leur dimension tragique. (POIRSON-DECHONNE, 2017, p, p. 128). , deslocando o ambiente da trama narrativa de O idiota para os espaços da província de ilha de Hokkaido, situada no extremo norte do arquipélago japonês, uma região devastada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), na divisa com a Rússia. As cores quentes dos palácios com gabinetes aveludados da monarquia russa cedem lugar para os espaços quase vazios das habitações japonesas. Com exceção da neve, nada lembra a Petersburgo de Dostoiévski.

A ambientação da trama num espaço hostil, sufocado pela guerra, pobre e isolado pela neve, compõe a plasticidade fílmica de Kurosawa. Se não foi um sucesso de público e de crítica, a tradução de Kurosawa mostrou, sem dúvida, uma competente habilidade do cineasta em levar às últimas consequências aquilo que traduz o espaço fronteiriço entre a alma e o espaço interior: vale dizer, o olhar. Diferentemente de Píriev, que focalizava o olhar que se dirigia para o espaço exterior a ele, o enquadramento de Kurosawa focaliza as personagens, Míchkin e Nastácia principalmente, como se fosse possível capturar-lhes o que ia pelo interior, o que era, aliás, característica de Michkin. Com isso, o olhar conduz o movimento das orientações dialógicas do filme.

Em vez de um príncipe encerrado em sua psique, o cineasta desenvolve em seu Hakuchi uma das premissas mais fundas do dialogismo dostoievskiano: o encontro do “homem no homem” – tornada categoria existencial do “homem de ideias”, que procura compreender a si mesmo no embate com o outro. Assim, o idiota de Kurosawa ensaia o papel do ideólogo: personagem cujas ideias sustentam o processo de humanização do “homem no homem”. Se não chega a se “reconstruir à imagem de Deus”, como entendeu Vladimir Zakharov, pelo menos exprime-se como um ser dotado da “plenitude possível do criador e da criação”. (ZAKHAROV, 2015, p. 7). Míchkin é a expressão mais acabada desse homem, cuja vida é dedicada à purificação da alma.

Não obstante, o protagonista de Hakuchi já não é um príncipe que retorna à Rússia de um tratamento na Suíça, tornando-se herdeiro de uma parente afastada e passando a integrar a sociedade petersburguense. Ao deslocar a trama para o mundo japonês, Kurosawa encaminha a narrativa no interior de um outro cronotopo: um outro espaço geográfico e um outro tempo histórico. Míchkin é Kameda; Nastácia é Taeko; Rogógin é Akama; Aglaia é Ayako; Gania é Kayama: todos se comunicam em japonês e vivem os problemas do pós-guerra. Tais são os protagonistas do filme em preto e branco que, em quase quatro horas de duração, recompõe as duas partes do romance, conservando seus intertítulos: “Amor e agonia” e “Amor e ódio”.

Já na primeira cena, quando um trem corta a paisagem tomada pela neve densa, a câmera desloca-se para o interior da locomotiva e flagra, em plongée, o vagão sem assentos onde os passageiros dormem, amontoados uns sobre os outros. Um grito corta o silêncio e, num dueto com o apito do trem, a sequência joga com cenários internos e externos. A câmera procura o foco sonoro e encontra o rosto aterrorizado de Kameda. Akama, o passageiro que dormia a seu lado, pergunta-lhe se tivera um pesadelo, pois o grito soava como um ato de desespero e de terror. Kameda confirma: sonhava que estava prestes a ser fuzilado, trauma do qual não se livrara como sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Justifica, assim, o mal que o acometera e o transformara em vítima de uma síndrome pós-traumática (POIRSON-DECHONNE, 2017POIRSON-DECHONNE, M. Kurosawa: quelle réécriture de L’Idiot de Dostoïevski? In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 120-128.). Tratara-se em Okinawa, ilha ao sul do Japão onde, durante a guerra, havia sido instalada uma base militar americana. O trauma da guerra define a tonalidade emocional pelas tintas da psicologia de um condenado à morte, organizando a entonação estrutural do filme – tal como preconizara Tarkóvski (1994)TARKÓVSKI, A. Dostoiëvski au cinéma. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 476, p. 87-89, 1994..

Numa única cena, Kurosawa conjuga três episódios do romance: o episódio biográfico da vida de Dostoiévski, que, de fato, fora sentenciado à morte, mas recebera indulto minutos antes da execução; o episódio do romance em que Míchkin relata uma cena de execução pública que assistira em Lyon; e o episódio vivido por Kameda durante a guerra. Reverberações que anunciam a constituição dos duplos.

Quando Kurosawa traduz o grito de Kameda como efeito de um episódio traumático que reconfigurou seu inconsciente, é todo o seu mundo interno que emerge num único signo – o que torna o fato um forte constituinte da dramaturgia audiovisual. Se, por um lado, sua demência epiléptica reaviva sentimentos de culpa, por outro, o leva a se reencontrar com o seu duplo (POIRSON-DECHONNE, 2017POIRSON-DECHONNE, M. Kurosawa: quelle réécriture de L’Idiot de Dostoïevski? In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 120-128.), aquele que revive o trauma da vertigem de sensações e sentimentos diante da morte. Tal vivência é plasticamente traduzida na dor e no sofrimento revivido por Kameda em diferentes contextos, nos quais seus próprios olhos sentem a dor do outro como algo que atinge todo seu corpo e seu espírito. Num lampejo, ele revive o estado de sofrimento profundo que o levara a pensar que se não fosse fuzilado, seria extremamente bom com todas as criaturas. (MENDOZA, 2003MENDOZA, L.M. Las buenas intenciones. Noosferato: Revista de Cine, Valência, n. 44, 2003. Disponível em: https://riunet.upv.es/handle/10251/39966. Acesso em: 23 nov. 2020.
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) A capacidade de olhar o sofrimento alheio e vivenciá-lo como se fosse seu imprime em sua consciência a clarividência que, para alguns, é apenas revelação de um ingênuo estúpido à beira da loucura.

Em Hakuchi, a clarividência de Kameda se manifesta como um estado de transe que o leva para um outro mundo, uma espécie de satori (SOBRINHO, 2006SOBRINHO, A.L. O sonho de um idiota: ensaio sobre algumas adaptações cinematográficas de obras literárias, feitas por Akira Kurosawa. 2006. 88f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2006.), fazendo-o compreender estados anímicos de deslumbramento e terror. Ao travar conversa com Akama, e com ele descer do trem, tal estado se insinua nos sentimentos confusos que o recém conhecido lhe desperta, um misto de afetos contraditórios, que oscila entre o amor e o ódio. Quando Akama lhe mostra a fotografia de Taeko, mulher por quem mantém uma louca paixão, Kameda percebe que algo o atingira. Ao caminharem por uma rua, defrontam-se com a mesma foto que estava em poder de Akama, só que, agora, ocupava a porção externa de uma vitrine. Uma estranha sensação de comoção e encantamento toma conta de Kameda. Os dois homens aproximam-se da vitrine e são focalizados olhando a fotografia: num primeiro plano, a câmera subjetiva alcança a foto e a tomada que focaliza os rostos dos dois homens refletidos no vidro entre a fotografia, toma toda a superfície do quadro (Figs. 5 e 6).

Figura 5
Jogo de tomadas entre olhares de ângulos distintos.

Figura 6
Jogo de tomadas entre olhares de ângulos distintos.

Quando a câmera se volta para o lado de fora, encontramos Kameda com os olhos lacrimejando; interrogado, afirma que vira nos olhos de Taeko um profundo sofrimento. Não revela que sentira a dor do sofrimento da mulher nos seus próprios olhos, no âmago de seu ser, mas Akama percebera no amigo uma perturbação inusitada.

Estava definida a linha do argumento: não apenas a disputa da bela mulher por Akama e Kameda, mas o envolvimento por um olhar e o conflito interior por ver-se refratado no outro, seu duplo. Ver-se a si mesmo como extensão refratada do outro cria uma tradução reversa entre as personagens, deslocando o eixo da narrativa das ações exteriores para os conflitos internos e condicionando a montagem das cenas em sequências ligadas por passagens contrapontísticas carregadas de tensão. Contrapontos entendidos aqui no sentido bakhtiniano: passagem de uma tonalidade de uma certa harmonia para outra carregada de tensão (BAKHTIN, 2008). Configuram-se as linhas de força do experimento dialógico do cinema segundo Kurosawa.

Isso é o que se pode observar de modo explícito na passagem da primeira para a segunda parte. Até esse momento, já sabemos que Akama disputa Taeko com Kayama por um milhão de ienes, ainda que este já houvesse se insinuado a Ayako, filha do Sr. Ono, o qual se aproveitara dos bens de Kameda enquanto ele estivera na guerra. Ao conhecer Kameda, Ayako descobre nele um homem puro, e vê nascer em si um profundo afeto por ele. Contudo, Kameda, no vértice da triangulação amorosa, se vê inclinado por Taeko.

Os acontecimentos de tal triangulação incluem duas visitas de Kameda à casa de Akama. Na última sequência da primeira parte, depois da festa de aniversário de Taeko, quando os dois partem de Sapporo para Tóquio, Kameda visita Akama na casa em que morava com sua mãe. Desconfiado de que o amigo o seguia, conversam, discutem e Kameda se assusta com uma faca de cortar papéis sobre sua escrivaninha. Discutem, mas percebem-se amigos e selam uma amizade fraterna trocando amuletos. Akama, muito contrariado, confessa ao amigo que Taeko o amava e deixa subentendido que ele estava desistindo de sua paixão pela mulher.

Segue-se uma passagem de ações que amplificam o conflito interior de Kameda numa dramaturgia audiovisual singular. Enquanto caminha, dois olhos imensos ocupam toda a lateral da rua que ele percorre. Uma carruagem desloca-se ao seu lado na mesma direção. Os cavalos trotam ao som de uma música de ritmo marcante ao mesmo tempo em que ruídos intensos ressoam de seus guizos. Atordoado, Kameda começa a andar trôpego e sem rumo. Trêmulo, entra numa casa de chá, com música circense ao fundo. Perturbado, não consegue sequer levantar a xícara de café, que se esparrama sobre a mesa. Reflexos no vidro da janela sugerem que alguém o segue. Kameda sai e atravessa uma passarela sobre a linha de trem. Olha para trás e vê Akama, que desaparece na fumaça e na neve. Kameda caminha e indaga-se sobre suas visões quando vê uma vitrine de facas iguais à de Akama. Corre por um corredor de neve, deserto e escuro, deparando-se abruptamente com Akama, que estava prestes a atacá-lo com a mesma faca: grita, urra e se contorce como se tivesse sido atacado e já estivesse ferido, o que assusta Akama e o faz desistir da agressão (Figs. 7 e 8).

Figura 7
Jogo entre imaginação e acontecimento.

Figura 8
Jogo entre imaginação e acontecimento.

A cena embaralha novamente o jogo dos afetos, o que ameaça o cumprimento da promessa fraternal: Akama não desistira de Taeko, virando do avesso o controverso mundo interior de seus duplos. Kameda é internado e retorna, na segunda parte, mais introspectivo ainda. Não sem grandes idas e vindas, ele volta-se para Ayako.

Ao tensionamento do final da primeira parte, a sequência que marca a mudança no jogo de forças dos triângulos amorosos é uma paródia iconizada pela figura de gelo e pelos bonecos gigantes fazendo acrobacias por ocasião do festival da neve (Yuki Matsuri), cena introduzida por Kurosawa, que amplifica o conflito interior da dramaturgia audiovisual. Os duplos defrontam-se em triângulos amorosos: Ayako procura Kameda e encontra Kayama; Kameda encontra Akama, mas seus olhos procuram por Taeko, que não aparece, mas está tão presente como a figura colossal esculpida no gelo. Tudo acontece em meio às performances dos bonecos na neve com suas tochas de fogo.

As inversões que levam a mudanças nos rumos da história intensificam-se na sequência final de nossa análise, quando o paroxismo modela as passagens contrapontísticas. Ayako assume o protagonismo da sequência atuando no espaço que reverbera a figura ausente de Taeko. Ela provoca o envolvimento com Kameda e torna-se centro de outra disputa. Reúne, numa refeição familiar, Kayama, seu pretendente, e Kameda, que anuncia seu interesse em casar-se com ela, tomando a família de surpresa. Ayako solicita um encontro com Taeko e, na casa de Akama, os dois casais confrontam-se. Taeko teme encontrar Ayako, pois vê nela o duplo que a vida não lhe deixou viver. Apesar disso, a conversa entre as duas mulheres faz com que Taeko descubra na rival não uma menina doce e ingênua, mas uma pretensiosa arrivista, disposta a vencer a disputa pelo homem puro e bondoso que ambas cobiçam. Taeko percebe, aos poucos, os interesses da moça e parte para o ataque, propondo um desafio: estende a mão e pergunta a Kameda qual das duas ele prefere. Se ele pegasse em sua mão, Ayako perderia a disputa. Sob tensão, Kameda hesita, mas não consegue negar Taeko, confirmando a derrota de Ayako. Contudo, Taeko continua com Akama.

No último segmento do filme, Akama chama Kameda à sua casa, onde, supostamente, estaria Taeko. Ao chegar, descobre que ele fora chamado para velar, juntamente com o amigo, o corpo da mulher cruelmente assassinada pela fúria de Akama. Em transe e completamente atordoado, Kameda permanece ao lado do assassino e, juntos, velam o corpo inerte sobre a cama, na escuridão do quarto e da noite (Fig. 9).

Figura 9
Akama e Kameda velam o corpo de Taeko no aposento escuro.

A partir dessas poucas cenas, pode-se afirmar que a versão de Kurosawa ultrapassa os limites da adaptação e a trama especular imprime, nas articulações das cenas, dos planos e enquadramentos, a bivocalidade discursiva do drama interior das personagens e seus duplos. Bivocalidade que se abre para muitas inversões, incluindo a grande inversão temática entre amor e ódio; demência e lucidez; bondade e brutalidade; acordo e traição. Os duplos refletem e refratam, a um só tempo, os seus pares e seus demônios. Enfim, nada mais dostoievskiano do que a configuração de duplos com a inserção da morte na vida, que está no grito do início do filme, nas perseguições do desenvolvimento e no transe do final, quando os dois amigos e rivais velam a amada morta, cujo corpo não aparece, mas é insinuado tanto na penumbra que cobre o ambiente com a luz de algumas velas, quanto na imaginação de cada um que alcança Taeko por um ângulo distinto. Em nenhum momento Kurosawa perde de vista a dimensão de ambivalência das refrações e dos duplos que as ideias constroem em cada uma das personagens. Como conclui Marion Poirson-Dechonne (2017POIRSON-DECHONNE, M. Kurosawa: quelle réécriture de L’Idiot de Dostoïevski? In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 120-128., p. 128, tradução nossa):

Tradução, em vez de adaptação, o filme de Kurosawa, longe de trair o universo e o estilo de Dostoiévski, oferece uma reescrita poderosa, de grande beleza plástica. A emoção que emerge do protagonista e a constelação de personagens constitui um tributo à complexidade do romance. [...] A decoração de uma ilha japonesa batida pelos ventos e enterrada na neve oferece às paixões dostoievskianas uma estrutura à sua medida, exaltando sua dimensão trágica14 14 No original: J’ai une idée, que j’aimerais incarner à l’écran: c’est un film sur Dostoïevski, une sorte d’essai où interviendraient non seulement les problèmes de la personnalité de l’écrivain, de l’époque, de la création artistique, mais aussi les personnages eux-mêmes de Dostoïevski, et ses idées. Ce film ne serait ni une biographie ni une analuse critique, Je voudrais parler de Dostoïevski tel que j ele perçois, c’est-à-dire comme une partie de la nature et comme une expérience. Ce serait un grand bonheur pour moi de faire ce film, car je ne saurais pas parler de Dostoïevski autrement qu’en montrant ce que je veux montrer dans de film. (TARKÓVSKI, 1994, p, p. 89). .

Ressonâncias da experiência cinematográfica dialógico-polifônica

Ainda que não tenha vivido o suficiente para filmar Dostoiévski – um de seus escritores prediletos – Andrei Tarkóvski registrou sua intenção num de seus diários:

Eu tenho uma ideia que gostaria de corporificar na tela: é um filme sobre Dostoiévski, uma espécie de ensaio onde interviria não apenas os problemas da personalidade do escritor, da época e da criação artística, mas também as próprias personagens e suas ideias. Este filme não seria nem uma biografia nem uma análise crítica. Eu quero falar de Dostoiévski tal como eu o percebo, quer dizer, como parte da natureza e como uma experiência. Será uma grande felicidade para mim realizar este filme porque eu não poderia falar de Dostoievski senão mostrando o que quero mostrar no filme. (TARKÓVSKI, 1994TARKÓVSKI, A. Dostoiëvski au cinéma. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 476, p. 87-89, 1994., p. 89, tradução nossa)15 15 Преступление и наказание (Prestuplênie i nakazánie), cuja tradução literal em português seria Crime e punição. .

O filme nunca foi realizado, mas muitas das ideias esboçadas por Tarkóvski para a transposição de Crime e castigo (1866)16 16 No original: Non moins importante que l’histoire du crime est, dans cette oeuvre, l’histoire du châtiment, du rachat de la faute, autrement dit l’antithèse dialectique du crime lui-même, antithèse sans laquelle le roman n’existerait pas dans sa finalité éthique, et pour laquelle, à proprement parler, le roman a été écrit. (TARKÓVSKI, 1994, p, p. 88). para as telas podem ser perscrutadas na versão que Aleksandr Sokurov criou para o romance. Para Tarkóvski,

Não menos importante que a história do crime é, nesta obra, a história da punição, da redenção da culpa ou, dito de outro modo, a antítese dialética do próprio crime, antítese sem a qual o romance não existiria em sua finalidade ética e pela qual, estritamente falando, o romance foi escrito. (TARKÓVSKI, 1994TARKÓVSKI, A. Dostoiëvski au cinéma. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 476, p. 87-89, 1994., p. 88, tradução nossa)17 17 Скрытые страницы (Skrytyye stranitsy). A tradução equivalente em português seria Páginas silenciosas, obedecendo ao texto russo, tal como o fizeram os ingleses ao traduzir o título por Whispering Pages. Contudo, na exibição brasileira, adotou-se a tradução Páginas ocultas, segundo a opção francesa Pages Cachées, o que em russo seria Тихие страницы (Tikhiye stranitsy). .

O filme realizado por Sokúrov concentra-se na tensão da personagem que vive a punição e expiação de sua culpa. Seu título não poderia ser mais sugestivo: Páginas silenciosas (1993)18 18 Embora contralto seja substantivo masculino, a voz feminina qualificada como tal emite um som grave, de baixa tessitura e com um timbre intenso. , um média-metragem em preto e branco com pouco mais de uma hora de duração. Embaladas pelo som de águas, as imagens iniciais acompanham a virada de páginas de um livro com os créditos do filme e com uma epígrafe: trata-se de um trabalho baseado em obras de escritores russos do século XIX.

Na cena inicial, a câmera se desloca para retratar uma paisagem nublada, supostamente os escombros de um edifício com ruídos desconexos. Lentamente, a câmera começa a deslizar em movimento perpendicular descendente até focalizar a superfície de um rio e segue o curso das águas em direção à esquerda da tela. À rarefação da imagem cada vez mais apagada contrapõe-se a plasticidade do espaço sonoro-acústico, marcado tanto pelo contraste de ruídos abafados, quanto pela revoada estridente de aves que ressoam no sobrevoo pela paisagem líquida atravessada por “gritos e murmúrios, zumbidos de inseto, vento, ruídos de demolição, fragmentos musicais (distorcidos ou não) etc.” (MACHADO, 2002MACHADO, A. O planeta Sokúrov. In: MACHADO, A. (org.). Aleksandr Sokúrov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 9-64., p. 31).

Estridência que cresce com as falas, gritos e risadas de mulheres que se agitam, arrastando-se ou atirando-se de andares superiores nos escombros de uma habitação. Tal é o reverso de um cartão postal de Petersburgo, erguida sobre pântanos, por onde se movimentam os seres do filme de Sokúrov, cuja câmera continua seu caminho pela bruma fantasmagórica e passa por uma escadaria onde focaliza um homem sentado. Ao se deslocar para o interior escuro de uma passagem, a câmera alcança um homem silencioso que caminha em meio a outros homens famintos que se confrontam ao som de um canto lírico entremeado de gritos de mulheres, falas e conversas abafadas, que vão se ampliando e ganhando nitidez no primeiro plano da acústica cênica. O homem caminha, vagando sem destino (Fig. 10).

Figura 10
Raskólnikov caminha pelos escombros da construção.

Eis como Raskólnikov, personagem central do romance Crime e castigo de Dostoiévski, é introduzido no filme Páginas silenciosas. Ao se deslocar pelo bas-fond da prestigiada Petersburgo, confunde-se com o espaço agônico de construções abandonadas, alagadas a confundir pessoas e ratos na disputa por alimentos. Uma cidade cujos becos e ruínas de suas diferentes ilhas não são visíveis pela Avenida Niévski, sobretudo porque, a cada enchente de seu imponente rio, sua população é devastada e lançada à sua própria sorte. A plasticidade audiovisual do filme reconstrói a parte da cidade em que Dostoiévski acompanha a perambulação e expiação de seu personagem, como se pode ler no relato que se segue.

Petersburgo é mostrada em sua obra por meio de sombras e miragens, em uma sensação embriagante onde nada pode ser visto com clareza: seja o futuro da própria cidade, criada por imposição do Imperador, contra a vontade da natureza, seja o destino dos personagens e da Rússia. Os protagonistas são acuados pelo estranho mundo fantasmagórico e trágico da cidade, seus pensamentos são atormentados. Por um lado, Petersburgo é um fundo social no qual se desenrolam os acontecimentos, por outro é um ator que testemunha atos bárbaros como o cometido por Raskólnikov e seu posterior arrependimento (AMÉRICO, 2016AMÉRICO, E. Petersburgo: a cidade atuante em Crime e Castigo. RUS: Revista de Literatura e Cultura Russa, São Paulo, v.7, n. 7, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/114018/111871. Acesso em: 14 jan. 2021.
https://www.revistas.usp.br/rus/article/...
, p. 50).

O relato traduz em palavras quadros de uma turbulência que a fotografia do filme de Sokúrov procura recompor iconicamente em sequências fragmentadas, descontínuas, com movimentos insólitos de uma cidade moldada pela paisagem indefinida das vidas que nela sobrevivem e se arrastam. E a cidade surge com traços minimalistas que muito favorecem a emergência de uma imagem dialógico-polifônica, como afirma Américo (2016AMÉRICO, E. Petersburgo: a cidade atuante em Crime e Castigo. RUS: Revista de Literatura e Cultura Russa, São Paulo, v.7, n. 7, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/114018/111871. Acesso em: 14 jan. 2021.
https://www.revistas.usp.br/rus/article/...
, p. 59): “O texto de Petersburgo é um poderoso espaço polifônico de ressonância, nas vibrações do qual já há tempo são ouvidas as alarmantes síncopes da história russa e os “maus” sons do tempo que congelam a alma”.

Raskólnikov é um desses seres fantasmagóricos e rastejantes que emergem das águas que transbordam do rio Nievá para viver o seu autoflagelo. É uma dessas pessoas que age como um zumbi, pouco afeito ao convívio. Ainda que ele se movimente como um espectro sem nada dizer, a sonoplastia dos ruídos forma um espaço acústico ressonante de um ambiente turbulento, hostil a gritar sua expiação, enquanto ele vaga silente tomado por seus delírios.

Se, no romance, a mente de Raskólnikov é invadida por delírios teóricos carregados de conflitos existenciais, religiosos e morais, no filme, ela deixa transparecer um forte nihilismo acompanhado por um não menos acentuado ceticismo. Sokúrov recorta apenas um momento do flagelo de Raskólnikov: quando ele se sente no ímpeto de uma confissão prestes a ser consumada, e que o filme toma como motivação para o enredo. Ao (re)viver a culpa de sua expiação, percebe-se um adensamento da tomada de consciência que o filme traduz em experiência – tal como desejara Tarkóvski. Nada disso ameniza o conflito interior de sua descrença no próprio ato da confissão, o que contribui para seu alheamento. Inútil querer reconstituir a linha divisória entre vigília e sono; sonho e pesadelo; espaço externo e interno; rua e quarto; lucidez e delírio. Tudo reverbera no volume das dissonâncias polifônicas de passagens contrapontísticas em que a própria personagem vive a tensão de todas as fronteiras (Fig. 11).

Figura 11
Raskólnikov na fantasmagoria de sua mente alienada do espaço exterior.

As passagens contrapontísticas que marcam a construção dialógico-polifônica são traduzidas, por um lado, pela errância da câmera que focaliza espaços de atritos, estridências, agressividades e perturbações mentais – índices da expiação de Raskólnikov; e, por outro, pelos longos planos, cujos cortes se tornam quase imperceptíveis, confundidos em texturas. Na confluência de tais passagens, Sokúrov elabora o tom discursivo da montagem que traduz o flagelo da personagem numa elegia: um discurso que espera ser sentido e não somente visto. Plasticamente, é a elegia que acaba organizando a diversidade dos constituintes fílmicos em construção significante – a página que acolhe todos os sussurros dispersos do espaço interior da mente.

Sabemos que a elegia é um gênero literário que, no mundo russo, marcou tanto a poesia de Maiakóvski, quanto o cinema de diferentes gerações de cineastas. Para Sokúrov, o que marca é a entonação, como se pode ler no seu relato recolhido por E Hill (MACHADO, 2002MACHADO, A. O planeta Sokúrov. In: MACHADO, A. (org.). Aleksandr Sokúrov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 9-64., p. 25):

A elegia é uma forma que ajuda a construir um sistema de indução a meu redor. Ela fornece um ângulo de visão para o olhar do cineasta. Com isso, resolve-se de saída que não terei toda a liberdade. A elegia, triste recordação daquilo que passou e não voltará jamais, marca uma tradição europeia. Trata-se de exprimir uma entonação, e a entonação é a coisa mais importante na arte. Se excluirmos a entonação, todo o resto será nada, pois ela é aquilo que é próprio do homem.

Entonação – chave criativa por excelência da montagem no cinema, da ideologia geradora de formas dialógicas e da energia criativa na poesia. Em todas as suas manifestações artísticas, a entonação é um conceito para marcar as passagens e os contrapontos. Na trama discursiva, há um único momento em que a entonação enuncia as ideias de Raskólnikov que se debatem contra a moral e a religião. Trata-se da cena em que, num diálogo com Sonia, dois pontos de vista radicalmente opostos entram em choque: a crença e o ceticismo – ambos perpassados por contrapontos internos. Sonia entrega-se à prostituição, mas é uma cristã devota. Além do autoflagelo, Raskólnikov é levado a confessar-lhe seu crime, não sem antes purgar seu martírio numa cena de grande envolvimento sensorial. Ao caminhar por entre troncos agigantados, fumaças e um barulho intermitente do fluir de águas revoltas, sua expiação ganha materialidade na plástica diáfana da paisagem. Segue-se sua visita ao comissariado para declarar seus pertences empenhorados e o encontro com Sonia para confessar-lhe o crime. Ela ouve e pede a ele que ajoelhe para rezar, o que se nega a fazer (Fig.12). Para Raskólnikov, sua confissão não implica perdão ou condenação, visto que ele não credita à lei, à religião ou à moral a condição de arbitrar seus atos.

Figura 12
Sonia pede que Raskólnikov se ajoelhe e peça perdão pelo seu crime.

O diálogo com Sonia torna-se a passagem em que o confronto das duas consciências é levado ao paroxismo. Tomada pela sua crença em Deus, a jovem suplica-lhe para pedir perdão pelo pecado. Raskólnikov dá voz ao seu ceticismo, que agora assume o tom de um discurso agnóstico e, quase num sussurro, afirma que Deus sequer existe. Sonia responde a isso com assombro no olhar, insistindo que Deus irá ajudá-la a não mais ter de vender seu corpo, ao que ele responde: “Deus sequer sabe de sua existência porque você é pobre e insignificante para ele.”

Nos últimos minutos do filme, Raskólnikov se aninha no ventre de uma estátua de leoa e, num gesto simbólico, suga-lhe o bico da teta esculpida ao som das águas que só deixam de ressoar quando o canto da contralto19 Lina Mkrtchyan é entoado numa interpretação da canção de Gustav Mahler, Kindertotenlieder, uma das peças integrante do ciclo de cinco canções do poema de Friedrich Rückert dedicado à morte de crianças. Se, no início, os ruídos dissonantes situavam as pessoas nos esgotos da cidade convivendo com os ratos, no final, a voz grave entoando a canção reverbera uma espécie de humanidade sonoro-acústica em que os conflitos humanos podem repousar com seus infortúnios.

Dramaturgia audiovisual como exercício libertador da tradução intersemiótica

O estudo das transposições fílmicas da obra de Dostoiévski foi iniciado por uma dupla motivação: a desconfiança de ser impossível traduzir tal obra para o cinema com base em posturas irredutíveis do escritor e a indagação que questionava se o experimento dialógico-polifônico, tal como criado verbalmente, encontraria expressão nos códigos da linguagem audiovisual. Parecia impossível recriar o discurso dissonante com as instituições, visto que, como entendeu tanto Tarkóvski quanto Eisenstein, “Dostoiévski construiu um mundo sem destino onde os personagens são levados a punir a si próprios” (TORTAJADA, 2017TORTAJADA, M. Eisenstein et Dostoïevski. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoievski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 43-49., p. 44).

Acompanhando a experiência de três cineastas – Píriev, que projetou audiovisualmente a mise en scène das situações dramáticas; Kurosawa, que transformou os conflitos internos em refrações de duplos em luta consigo e com o outro, abrindo espaço para a reverberação de imagens polifônicas; e Sokúrov, que sobrepôs à fugacidade da paisagem visual a reverberação de um espaço acústico dissonante, tão perturbador quanto os conflitos das consciências errantes – constatamos ser possível à dramaturgia audiovisual traduzir os contrapontos das ideias que procuram dizer algo sobre o mundo humano em seu devir. As dúvidas sobre as impossibilidades anunciadas se dissiparam. Permaneceu o desafio de saber como as diferentes cinematografias poderiam libertar a obra dostoievskiana dos limites de seu tempo e do signo de sua especificidade.

Arriscamos submeter a uma revisão crítica a postura do escritor e indagar: até que ponto não foi a conduta irredutível de Dostoiévski a principal responsável pelas adaptações monológicas, incapazes de avançar na tradução intersemiótica e audiovisual dos procedimentos artísticos mais radicais simplesmente porque não conseguem romper com os vínculos que unem a obra à sua própria vida?

Se o próprio Dostoiévski libertou o discurso romanesco das amarras da visão onisciente do autor, não seria um retrocesso vincular tal liberdade criadora do discurso dialógico à uma visão monológica e acabada? Se aceitamos os argumentos dos estudiosos do círculo de Bakhtin sobre a diversidade das relações discursivas como maturidade dialógica e como forma emancipadora, é hora de enfrentar a dialogia também das versões, libertando-as dos enredos restritos a episódios da vida do autor que circunscrevem a psique das personagens aos limites do monologismo.

REFERÊNCIAS

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    » https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/108587/106881
  • 1
    No original: Il existe une sorte de mystère en art, voulant que la forme épique ne trouve jamais sa correspondance dans la forme dramatique. Je pense même qu’à chaque forme artistique correspond une série de pensées poétiques particulières, de sorte qu’aucune pensée ne peut être exprimée dans une forme qui ne serait pas la sienne. (DOSTOÏEVSKI, 1872 apud JACQ, 2017JACQ, J. L’adaptation à l’écran des oeuvres de Dostoïevski en Russie/URSS (1908-2015). In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 50-68., p. 50).
  • 2
    Segundo levantamento de Dostoïevski à l’écran (ESTÈVE; LABARRÈRE, 2017ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017., p. 171-178), são 155 produções audiovisuais entre longas e curtas metragens, incluindo séries televisuais, estabelecidas a partir de fontes variadas e orientadas pelas informações do site IMDb.
  • 3
    No original: […] una voz habla de algo, al mismo tiempo, se nos hace ver otra cosa y en fin lo que se nos dice está debajo de lo que se nos hace ver. Esto es muy importante, este tercer punto. (DELEUZE, 2012DELEUZE, G. ¿Qué es el acto de creación? Fermentario, Montevideo, n. 6, 2012. Disponível em: http://www.fermentario.fhuce.edu.uy/index.php/fermentario/article/view/110/70. Acesso em: 03 jan. 2021.
    http://www.fermentario.fhuce.edu.uy/inde...
    , p. 11).
  • 4
    O temor de Dostoiévski é fundamentado em premissas que hoje são reconhecidas teoricamente. Para André Bazin (2018BAZIN, A. Por um cinema impuro: defesa da adaptação. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: UBU, 2018., p.135), “o drama da adaptação é o da vulgarização”, que pode ser entendida tanto pelos recortes e recontextualizações operadas na transposição da narrativa literária para a tela, quanto pelo próprio caráter icônico da linguagem audiovisual, que coloca em cena atores falando e vivendo o drama das personagens representadas.
  • 5
    Ideólogo é o homem cujas ideias se debatem em torno dos conflitos e dos pontos de vista elaborados por sua mente na experiência de suas vivências internas e interações na vida ordinária. Cada personagem é um ideólogo ao se movimentar em relação aos outros segundo as diretrizes de suas ideias, confrontadas no convívio com o outro (BAKHTIN, 2008BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.).
  • 6
    Преступление и наказание (Prestupléniye i nakazániye), 1866.
  • 7
    Идиот (Idiot), 1867-1869.
  • 8
    O cine-lubok segue o princípio de composição dos lubki (plural de lubok): obras ilustradas de gravuras em madeira ou cobre que desde o século XVIII são utilizadas para compor narrativas gráficas de caráter popular. (MIGUEL, 2008MIGUEL, J. D. Das estepes ao sertão: lubok e cordel na construção da visualidade popular. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 4., 2008, Campinas. Anais [...], Campinas: UNICAMP, 2008. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2008/MIGUEL,%20Jair%20Diniz%20-%20IVEHA.pdf. Acesso em: 13 jan. 2020.
    https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/200...
    ). No cinema, serviu de base para as narrativas simplificadas de apelo popular.
  • 9
  • 10
    No original: Il s’agit pour lui de rendre sous une forme élémentaire des contenus actanciels et psychologiques à l’intérieur d’une série constituée de scènes “clefs” plus ou moins arbitrairement choisies parmi le plus spectaculaires. La succession de tableaux animés ramène l’oeuvre originelle à une digest qui ne prende n compte que sa ligne narrative principale et ignore totalement ses multiplex lignes secondaires, [...] (GÉRY, 2017, pGÉRY, C. Dostoïevski et le Grand Muet: L’idiot de Piotr Tchardynine. In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 108-114., p. 110).
  • 11
    Agit-prop: atividades de agitação – ou simplesmente atração – produzidas por poetas, artistas do teatro, cinema e artes de rua para promover a ação e reação das pessoas em espetáculos, concertos, eventos de arte. Reação no sentido de conscientização de conflitos de jogos de interesse político-econômico. O procedimento foi explorado por Maiakóvski em sua poesia e cartazes de propaganda (janelas Rosta – uma espécie de lubok construtivista) e também por Sergei Eisenstein em suas montagens teatrais do Proletcult.
  • 12
    Embora Hakuchi seja o termo da língua japonesa para designar idiota, ao longo do filme há o emprego 2de baka, sobretudo por Rogógin, tanto em tom ofensivo, quanto afetuoso (SOBRINHO, 2006)SOBRINHO, A.L. O sonho de um idiota: ensaio sobre algumas adaptações cinematográficas de obras literárias, feitas por Akira Kurosawa. 2006. 88f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2006..
  • 13
    No orginal: Traduction plutôt qu’adaptation, le film de Kurosawa, loin de trahir l’univers et le style de Dostoïevski, en ofre une réécriture puissante, d’une grande beauté plastique L’émotion qui se degage du protagonist et de la constellation des personnages constitue un homage à la complexité du roman. […] Le décor d’une île japonaise battue par les vents et ensevelie sous la neige offer aux passions dostoïevskiennes un cadre à leur mesure, en exaltant leur dimension tragique. (POIRSON-DECHONNE, 2017, pPOIRSON-DECHONNE, M. Kurosawa: quelle réécriture de L’Idiot de Dostoïevski? In: ESTÈVE, M.; LABARRÈRE, A.Z. (ed.). Dostoïevski à l’écran. Condé-sur-Noireau: Charles Corlet, 2017. p. 120-128., p. 128).
  • 14
    No original: J’ai une idée, que j’aimerais incarner à l’écran: c’est un film sur Dostoïevski, une sorte d’essai où interviendraient non seulement les problèmes de la personnalité de l’écrivain, de l’époque, de la création artistique, mais aussi les personnages eux-mêmes de Dostoïevski, et ses idées. Ce film ne serait ni une biographie ni une analuse critique, Je voudrais parler de Dostoïevski tel que j ele perçois, c’est-à-dire comme une partie de la nature et comme une expérience. Ce serait un grand bonheur pour moi de faire ce film, car je ne saurais pas parler de Dostoïevski autrement qu’en montrant ce que je veux montrer dans de film. (TARKÓVSKI, 1994, pTARKÓVSKI, A. Dostoiëvski au cinéma. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 476, p. 87-89, 1994., p. 89).
  • 15
    Преступление и наказание (Prestuplênie i nakazánie), cuja tradução literal em português seria Crime e punição.
  • 16
    No original: Non moins importante que l’histoire du crime est, dans cette oeuvre, l’histoire du châtiment, du rachat de la faute, autrement dit l’antithèse dialectique du crime lui-même, antithèse sans laquelle le roman n’existerait pas dans sa finalité éthique, et pour laquelle, à proprement parler, le roman a été écrit. (TARKÓVSKI, 1994, pTARKÓVSKI, A. Dostoiëvski au cinéma. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 476, p. 87-89, 1994., p. 88).
  • 17
    Скрытые страницы (Skrytyye stranitsy). A tradução equivalente em português seria Páginas silenciosas, obedecendo ao texto russo, tal como o fizeram os ingleses ao traduzir o título por Whispering Pages. Contudo, na exibição brasileira, adotou-se a tradução Páginas ocultas, segundo a opção francesa Pages Cachées, o que em russo seria Тихие страницы (Tikhiye stranitsy).
  • 18
    Embora contralto seja substantivo masculino, a voz feminina qualificada como tal emite um som grave, de baixa tessitura e com um timbre intenso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2021
  • Aceito
    1 Dez 2021
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