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Platão e Iris Murdoch: o Bem, o Amor e a retomada da ética das virtudes antiga na filosofia moral britânica

Plato and Iris Murdoch: Good, Love, and the Recovering of Ancient Virtue Ethics in British Moral Philosophy

Resumo:

Desde a publicação, em 1958, do famoso artigo A Filosofia Moral Moderna de G. E. M. Anscombe estabeleceu-se uma espécie de consenso em torno da necessidade de as teorias ético-filosóficas contemporâneas ampliarem sua agenda de análise para além das noções de dever e obrigação. Esse movimento conduziu à redescoberta de concepções morais antigas ligadas à constituição de um caráter virtuoso e da conquista da felicidade ou bem-viver, especialmente a ética de Aristóteles e dos filósofos estoicos. Nesse artigo eu mostro que a filósofa e escritora britânica Iris Murdoch participou desse movimento de redescoberta da ética das virtudes antiga, localizando na filosofia de Platão, e não na filosofia de Aristóteles ou dos estoicos, um instrumento de crítica às teorias morais de seu tempo, uma crítica caracterizada pela substituição da noção tipicamente moderna da vontade racional do agente por noções profundamente vinculadas à filosofia platônica, como o “amor” e “atração” pelo Bem, entendidos como constituintes de um modelo de orientação moral objetiva. Diferente de Platão, no entanto, o Bem e seu poder de engajamento e atração, é explorado como uma fonte ético-metafísica com um significado psicológico muito particular. Ele é caracterizado, em termos da psicologia moral de base psicanalítica por ela adotada, como um olhar amoroso do outro e como um desejo de ver a realidade, entendido como um desejo pessoal de sermos justos e bons, o que dá um sabor psicológico-naturalista à sua reinvindicação da filosofia platônica.

Palavras-chave:
Platão; Bem; Iris Murdoch; Amor

Abstract:

Since G. E. M. Anscombe’s famous article Moral Modern Philosophy was published in 1958, a consensus has been established around the moral philosophy’s need for expanding its analysis agenda beyond the notion of duty and obligation. This movement has resulted in the recovery of ancient moral conceptions focused on the constitution of a virtuous character and happiness, especially under the influence of Aristotle and Stoic philosophers. In this paper, I intend to show that the British novelist and philosopher Iris Murdoch engaged in this movement assuming some central notions of Plato’s moral philosophy as part of her criticism against the British moral philosophy of her age. Such criticism contends the replacement of the modern notion of a rational will by other platonic ideas, especially “love” and “Good”, understood as parts of an objective model of moral guidance. Unlike Plato, however, the Good and its power of engagement and attraction were not characterized in a metaphysical way but as a peculiar psychological and moral notion. Following Freud’s psychoanalysis, the Good is conceived as part of XX lovely attention to the other and as a desire to see the reality behind our egoism and the pitfalls of imagination, which gives a psychological-naturalistic flavor to Murdoch’s claim from Plato’s philosophy.

Keywords:
Plato; Good; Iris Murdoch; love

1. Introdução

Poderíamos dizer que a verdadeira moralidade é um tipo de misticismo não esotérico que tem sua fonte em um amor austero e sem consolo pelo Bem. (Murdoch, 2013MURDOCH, I. (2013). A soberania do Bem. São Paulo, Edusp., p. 126).

Uma boa parte das investigações éticas mais recentes têm se notabilizado por um retorno ao mundo clássico, da Grécia e Roma Antiga.1 1 Essa retomada dos gregos pode ser reconhecida no trabalho de filósofos morais tão diversos quanto Philippa Foot, Rosalind Hursthouse, Julia Annas, Richard Sorabji, Bernard Williams, Martha Nussbaum, Pierre Hadot, John Cottingham, entre outros. Esse movimento de retorno foi encabeçado pelos teóricos da assim chamada “ética das virtudes”, uma importante tradição contemporânea de abordagem da ética que, inter alia, se afastou do apelo às noções de princípios, dever e obrigação e passou a sustentar que o “caráter”, as “virtudes” e a “pessoa moral” desempenham um papel central no entendimento da moralidade (Hursthouse & Pettigrove, 2016HURSTHOUSE, R.; PETTIGROVE, G. (2016). Virtue Ethics.The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition). Edward N. Zalta (ed.). Available at https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/ethics-virtue/.
https://plato.stanford.edu/archives/win2...
). A reapropriação do pensamento ético antigo a partir do enfoque nas virtudes e no caráter da pessoa moral, nos diferentes sentidos em que veio a ser desenvolvida, revigorou o interesse por Aristóteles e Platão, pelo estoicismo romano e também pelos poetas trágicos. Ainda não conhecemos os resultados completos desse movimento, mas há alguns pontos que já podem ser identificados, sobretudo no âmbito da psicologia moral: onde antes se falava de deliberação, raciocínio prático e nas virtudes “calculadoras” do agente moral, hoje se atenta para o modo como o sujeito avalia narrativamente seus atos como parte integrante de sua personalidade ou projeto de vida, o modo como as emoções interferem no raciocínio e agência moral e o papel que noções como percepção e visão, em oposição a raciocínio e deliberação, desempenham em contextos morais2 2 Iris Murdoch teve um papel central nessa tarefa, mas autores como McDowell (1979) e, mais recentemente, Peter Goldie (2007) também passaram a enfatizar a ideia de percepção moral como central. . Em outras palavras, a retomada de modelos morais antigos contribuiu decisivamente para ver nossas vidas morais como a vida de pessoas que buscam a virtude e a felicidade através do uso da razão, mas também pela via da afetividade, da sensibilidade perceptiva e do cultivo do caráter, onde não somente nossos poderes racionais importam, mas também processos alternativos de cognição moral.3 3 Iris Murdoch insiste, por exemplo, no papel das imagens e metáforas na moralidade, mas aqui também é importante mencionar os resultados de estudos científico-filosóficos sobre o papel das emoções no juízo moral, bem como o debate entre “situacionistas” e os teóricos da ética das virtudes, que advogam uma concepção robusta do caráter e de seu papel na ação moral. Sobre isso, veja-se Kamtekar, 2004, e Merrit et al, 2010.

Uma das autoras que mais contribuiu nessa renovação dos métodos e objetivos da filosofia moral na ética contemporânea foi a escritora e filósofa britânica Iris Murdoch. Em relação às doutrinas éticas modernas, Murdoch desafiou o principal conjunto de teorias éticas vigentes (inspiradas em Kant e Stuart-Mill, que admitem um sujeito racional que delibera num espaço mental livre da influência de laços sociais ou fatores subjetivos fortes) ao fornecer um modelo moral que desloca a escolha moral do plano da liberdade do sujeito, enfatizando, em troca, a profunda dependência do juízo moral adequado de fontes externas e objetivas de atração moral (nomeadamente a ideia do Bem) e, ainda, ao destacar quão irrealistas são as teorias que subestimam os obstáculos que o egoísmo e as autoimagens enganadoras colocam para as nossas tentativas de reconhecimento da boa ação no cotidiano. Incorporando o modelo clássico de pensamento moral socrático ligado às virtudes e às disposições do caráter, Murdoch concebeu a moralidade como uma “atividade contínua de nossas mentes e almas”, um esforço constante em que humanos aspiram, frequentemente sem muito sucesso, a tornarem-se bons. Seus ensaios provocativos, densos e carregados de imagens, também foram escritos como reações ao mainstream da filosofia moral analítica de seu tempo (dirigidos especialmente contra as concepções de Ayer, Ryle, Grice, Stuart-Hampshire e Hare), explorando as limitações das éticas “científicas”, centradas na análise da linguagem moral e pouco atentas à psicologia moral dos agentes, provocando seus defensores a pensar nos mecanismos práticos que podem nos levar ao aperfeiçoamento moral (o papel do amor, da arte, das technai, da religião, da literatura na moralidade) e a reconhecer as implicações da percepção e visão (além do raciocínio e deliberação a partir de princípios gerais) na apreensão de fatos morais. No curso do desenvolvimento de seu projeto, Murdoch se apropria e cita vastamente a obra de Platão, ilustrando, nesse sentido, o fenômeno de retorno aos clássicos descrito inicialmente, com a nítida pretensão de alargar o rol de preocupações e de questões que caberia à filosofia responder quando se volta à dimensão moral de nossa existência.

O objetivo desse ensaio será explorar dois aspectos em que a doutrina ética de Murdoch se apropria de conceitos centrais da ética platônica. Abordarei a metáfora da visão do Bem como constituinte central da moralidade e guia no caminho ou movimento metafísico-moral do não-Ser para o Ser e o lugar que o amor ocupa na transformação moral e no juízo moral. Fazendo isso, espero contribuir não só para o conhecimento da filosofia moral de Murdoch entre os pesquisadores de ética no mundo de língua portuguesa, mas, sobretudo, para os importantes desdobramentos que o pensamento de Platão conheceu na reflexão ética mais recente.

2. O projeto ético-metafísico de Platão

Embora seja um tanto quanto enganoso falar de um projeto filosófico platônico ou de um núcleo temático no pensamento de Platão, dada a diversidade de temas, estratégias e interesses que podem ser encontrados na filosofia de Platão, nesse ensaio seguirei a estratégia de apresentar a filosofia platônica a partir daquilo que chamarei de um ponto integrador ou unitário do legado de Platão. Seguirei a análise de Franco Trabattoni, que sugere que esse ponto integrador poderia ser localizado no influxo que a personalidade e as vicissitudes da vida de Sócrates provocaram em Platão. Trabattoni se pronuncia assim:

Ele [Platão] considerava altamente significativo o fato de a grande integridade moral de Sócrates ter sido mais de uma vez contraposta à práxis política impura vigente na Atenas do século V. Decidido a fazer filosofia continuando o trabalho de Sócrates e com os olhos concentrados sobre os negativos resultados da prática ética e política vigente da sua cidade, Platão inaugura uma idéia de filosofia na qual o saber que se procura (lembremos que a palavra filosofia significa ‘amor pela sabedoria’) não é só um saber que se encerra em si mesmo, voltado para o puro conhecer, mas é um saber que pretende identificar aqueles princípios gerais fundamentais, os únicos que podem promover o bem-estar do homem (ou seja, sua felicidade), tanto na vida privada como na vida pública. (Trabattoni, 2010TRABATTONI, F. (2005). Platão. Trad. Gabriele Cornelli. São Paulo, Annablume., p. 29)

Encontramos aqui o anúncio, bastante explícito, daquilo que chamei acima de um ponto ou visão integradora da filosofia platônica. Segundo essa visão integradora, Platão buscou edificar um projeto onde o saber filosófico não é uma doutrina especulativa pura, que estabeleceria os princípios últimos do universo (uma ontologia da realidade, com a indicação de substâncias primeiras, por exemplo, das quais tudo o mais é composto), mas, muito mais do que isso, ele procurou identificar certo tipo de princípios: precisamente o tipo de princípios que seriam adequados para a constituição de um modelo de vida individual e coletiva feliz, boa.4 4 Trabattoni afirma que as “investigações filosóficas de Platão, mesmo em temas como a metafísica e epistemologia, são, assim, atravessadas pela ideia de que a filosofia deve ser uma investigação que conduza à felicidade e os temas filosóficos são relevantes pois tratam de “como se deve viver” (Trabattoni, 2010, p. 30-31). Como completa Trabattoni: “Platão não se preocupa muito em descrever de modo detalhado e coerente a natureza dos princípios, mas se satisfaz muito mais em mostrar a existência de princípios de um certo gênero: a saber, aquele gênero que seja útil para fundar a práxis ética e política”.

A metafísica platônica não está, nesse sentido, essencialmente preocupada com a tarefa de responder a pergunta “o que é o ser?”, mas assume a prerrogativa de justificar a emergência de sentido e de valor já implícitos na experiência que não poderia ser explicada e compreendida sem recorrer aos princípios metafísicos. (Trabattoni, 2010TRABATTONI, F. (2005). Platão. Trad. Gabriele Cornelli. São Paulo, Annablume., p. 109)

Um segundo passo nesse caminho de formular uma metafísica apta a captar os princípios eternos do bem-viver inscritos na realidade, consistiu em reconhecer que não seria possível abordar o domínio da prática política e da vida ética sem apelar para um tipo especial de crítica: a crítica da práxis política impura. Platão pretende fornecer, portanto, ao mesmo tempo, uma concepção de filosofia comprometida com um tipo ideal de princípio que promove a felicidade humana e, ao fazê-lo, pretende que esses mesmos princípios sejam uma indicação do caráter falso ou aparente das concepções contrárias, particularmente das concepções sobre a justiça e felicidade humana assumidas pela tradição sofística. Embora Trabattoni não torne explícito nas passagens citadas, o tipo de princípios que Platão deu um lugar de centralidade em sua filosofia (como a ideia do Bem e da Justiça) são princípios que, no vocabulário contemporâneo, são chamados de princípios morais. Platão procurou mostrar que o todo cósmico que vemos e no qual vivemos abriga ou tem no seu interior um sentido de bondade, de justiça, de Bem e que nossas vidas e instituições são justas e boas quando apreendem e manifestam esse sentido universal de bem. Nesse aspecto, a moralidade não constitui, tal como aparece para nossa experiência contemporânea, uma realidade separada da estrutura física e causal própria do mundo natural; o Ser, a Realidade e o Bem coincidem. Do ponto de vista cognoscitivo, a realidade do Bem e o próprio Ser são ideias eternas, independentes da existência e preocupações humanas e podem ser conhecidas pela alma humana racional (embora não como são em si mesmas). Ilustrarei esse ponto através de um rápido exame da ideia de justiça e especialidade, discutida na República, que envolve, a um só tempo, uma ontologia e uma ética ou visão moral do mundo.

Um ponto fundamental da teoria platônica da justiça encontra-se no paralelo homem-natureza. Assim como existe justiça nas relações humanas, quando tratamos nossos pares como devemos fazê-lo, de acordo ou em conformidade com a medida certa, existe uma justiça ou uma razão justa incorporada na estrutura do universo. A razão ou justiça universal que se distribui entre todas as coisas é apreendida através das fontes do conhecimento presentes em nós. Essa justiça reinante na base de tudo, no entanto, não é sensível, no sentido de poder ser tocada, experimentada. Ela é inteligível, ou seja, supõe, para seu conhecimento ou apreensão, o uso de faculdades como o pensamento (raciocínio), a intelecção (nous, dianoia) e o discurso (logos)5 5 Cf. Tht. 186d. “Se atingir o ser é responsabilidade da alma, e considerando que, no pensamento e linguagem dos Gregos, ser e verdade de certa forma se correspondem, só o conhecimento da alma é conhecimento da verdade das coisas: não haverá conhecimento dos sentidos nas afecções, mas ‘no raciocínio que se faz em torno delas: porque por essa via é possível, como parece, tocar o ser e a verdade” (Trabattoni, 2010, p. 77). . Uma consequência prática relevante dessa concepção será admitir que a razão universal e justa distribui tudo justamente, de acordo com as leis do Ser, de um modo que não compete aos homens, como seres independentes e livres, questionar ou buscar aperfeiçoar aquilo que a razão bem distribuiu. Assim, embora para nossa consciência contemporânea pareça fazer pouco sentido pensar numa justiça independente dos interesses humanos, daqueles propósitos que elegemos como valiosos e dignos de serem perseguidos, na filosofia platônica, a justiça ou correção pressupõe a obediência ou submissão à razão universal. É daí que deriva a concepção da bela cidade, a psicologia dos tipos de homens e a ‘legalidade’ das leis da polis. Não podemos, do ponto de vista psicológico, encontrar tranquilidade na condução de nossas vidas se nossas funções na cidade não se ajustam à natureza de nossa alma, a qual, por sua vez, é determinada pelos elementos dos quais fomos constituídos. Essa concepção de justiça é frequentemente apresentada por Platão em conexão com a discussão da noção de especialização técnica ou perícia.

O perito domina as leis de um determinado ofício. Existe uma maneira adequada de fazer sapatos ou destrinchar um animal, de modo a permitir que a separação de partes do corpo de um animal e a confecção de calçados aproveitem bem os materiais disponíveis e produzam o melhor resultado: o melhor sapato ou o melhor aproveitamento da carne. Essa maneira adequada é conhecida pelo perito, por aquele artesão que possui o conhecimento da arte de fazer sapatos ou destrinchar animais. O especialista, como se revela aqui, domina a estrutura interna de seus objetos; ele conhece a razão ou lei que estrutura certo objeto e isso o faz mestre numa determinada atividade. Aquele que domina com precisão a ordem interna das coisas e de si mesmo, a justiça de cada coisa e de sua alma, se poderia dizer, é mestre de si e do mundo. É essa ideia que fundamenta a defesa do governo dos sábios na República. O sábio é um especialista no conhecimento das razões que animam o universo; ele conhece as junções e estruturas que estão por trás da realidade mutável e cambiante que experimentamos. Ao ordenar a cidade, o sábio não distribuirá os homens de acordo com suas vontades e aspirações: ele ajustará cada indivíduo à sua posição adequada no todo, e esse ajuste perfeito será, por sua vez, a expressão da adequada apreensão de leis universais e permitirá o florescimento da cidade mais justa e nobre dentre todas.

A imagem da perícia técnica mostra que existem, ontologicamente, posições naturais ou próprias a cada coisa. Em termos político-morais, essas posições próprias são também as posições que, nos diferentes domínios particulares e nos diferentes indivíduos, serão instâncias do bom e do bem supremos; logo, as leis universais que presidem cada coisa são também as leis da justiça e do bem de cada coisa e de cada ser humano. Fora dessa posição, o indivíduo não estará fazendo aquilo que é seu papel fazer; sua vida será de perturbação e contínuo sofrimento. A mesma tese aplica-se para a comunidade política. Uma comunidade política justa é aquela que melhor apreende as posições de cada um na totalidade e não aquela que melhor atende aos diferentes desejos e inclinações humanas, as quais geralmente são forças em luta constante entre si, como ilustram, nos diálogos platônicos, os conflitos entre razão e paixões no interior da alma individual e os conflitos sociais provenientes de facções políticas. A ideia, portanto, de que existem leis eternas da justiça (e, além delas, o próprio Bem), conhecidas pela alma inteligível, racional, constitui um pressuposto fundamental de todo o pensamento ético e político de Platão e também de sua metafísica. Platão é bastante claro, nesse sentido, em relação à cidade que a República pretendia fundar: trata-se de uma alegoria da alma justa e do lugar natural do homem bom.

Talvez haja um modelo estabelecido no céu, onde aquele que o deseja pode contemplar a cidade e se tornar seu cidadão. Mas não importa se essa cidade existe ou alguma vez existirá; é a única cidade em cuja política [o homem bom] pode tomar parte. (R. 592).

É através da apreensão inteligível da justiça que se instaura o núcleo da crítica platônica ao relativismo moral, às abordagens da vida ético-política fundadas “na medida humana das coisas”. Como explica Porchat, Platão funda a prática moral em noções metafisicamente carregadas como “o ser” e “a verdade”, enquanto a tradição sofística assumiu uma concepção prática e maleável centrada nos interesses humanos. Protágoras e Górgias engajaram-se num empreendimento comum: humanizar o logos. A razão que Platão via como eterna e independente de nossa vontade é humanizada pelos sofistas. Eles entendiam a razão humana como a capacidade de produção e organização da linguagem, não como uma faculdade divina de conhecer a realidade última das coisas. “O logos é um instrumento humano a serviço dos interesses dos homens. Um instrumento que compete aos homens utilizar para seu próprio benefício, individual e coletivo” (Porchat, 2007PORCHAT, O. (2007). Rumo ao ceticismo. São Paulo, EdUNESP., p. 279).

Platão reage a essa tradição explicitando a existência de um sentido de valor, bem, justiça e felicidade que é superior ao homem e que caberia buscar como bem primário para nossas vidas. A ética platônica é, nesse sentido, uma ética da submissão à soberania do Bem, da Justiça e da Beleza, como entidades independentes. E a filosofia adquire valor nessa exata medida: ela tem por missão conduzir a alma humana ao conhecimento do Ser, sua Realidade permanente, e extrair desse conhecimento os princípios de condução válidos no domínio da ação e de constituição do caráter nobre, belo. A filosofia não pode, nesse sentido, ser tomada como um instrumento para a felicidade pragmática dos sofistas, pois o verdadeiro valor não é objeto de eleição humana comum, desconectada do contato com o reino inteligível.

A principal razão para adoção dessa postura crítica frente ao modelo pragmático do saber preconizado pelos sofistas parece estar localizada numa discordância de cunho metafísico: enquanto os sofistas veem a cidade e a realidade como determinadas por leis autoimpostas por forças sociais internas (muitas vezes contraditórias) e interesses práticos, Platão defende que os bens que derivam de desejos ordinários e vontades confusas devem ser calibrados ou avaliados pela métrica da verdade eterna, das leis universais, que podem, de modo um pouco exagerado, serem caracterizadas como independentes dos homens, na medida que elas não são postas por nós, mas apreendidas (embora, seja importante esclarecer, natureza e humanidade sejam efetivamente aspectos do todo, não havendo, em última instância, nenhum tipo de divórcio instransponível entre ser e dever-ser, entre natureza e cidade/eu). Platão assume, portanto, a tarefa de demonstrar que somente sua exigência radical de uma justiça e legalidade que não seja humana e, por conseguinte, versátil, permitirá determinar o que na verdade é vantajoso. (Rodis-Lewis, 1981RODIS-LEWIS, G. (1981). Platón. Madrid, EDAF.). Conforme Barker,

Neste aspecto, Platão é bastante conservador, embora possa às vezes parecer radical e reformista. Sua missão é provar que as leis eternas da moral não são simples ‘convenções’, que devam ser substituídas por um regime ‘natural’, mas que têm raízes no sistema do universo e na natureza da alma, as quais não podem ser destruídas. Por isto a República contém uma psicologia e uma metafísica: era preciso demonstrar que o Estado não é um ajuntamento causal de indivíduos, dominado predatoriamente pelo mais forte dentre eles, porém uma comunhão de almas unidas necessariamente em torno de um objetivo ético: comunhão que seria guiada para um tal objetivo, de modo racional e altruísta, pela sabedoria dos governantes, conhecedores da natureza da alma e da finalidade do mundo. (Barker, 1978BARKER, E. (1978). Teoria Política Grega. Brasília, UnB., p. 149)

De fato, sem consciência dessa transcendência das noções gerais da ética não se pode entender a ética platônica, pois ela não tem a pretensão primordial de oferecer uma teoria da ação e decisão racional no sentido de princípios orientadores da conduta, mas uma experiência de formação da alma. (R. 519c-d). O movimento de Platão em direção à defesa de uma verdade sobre-humana na ética, por assim dizer, é uma faceta de seu projeto filosófico mais amplo: estabelecer que a filosofia é a condução do homem do não-ser para o Ser ou do corpo, das verdades derivadas dos múltiplos impulsos sensoriais, para as verdades imutáveis da alma. É reconhecida a separação promovida por Platão entre a confiança (doxa) no variável e impermanente e seu fundamento metafísico: a transcendência do bem, do belo, da justiça que a alma, exilada aqui embaixo, aspira alcançar. Desde o Fédon, Platão esboça o tema da luz percebida como num espelho (99d), do homem das profundidades submarinas, que entreve os céus através do elemento líquido que deforma sua visão (109c-e); tal é a nossa atmosfera, por cima da qual haveria que alçar-se até esse lugar supraceleste que descreverá o Fedro (247c). Essa imagem encontra uma de suas formulações mais ricas e acabadas no mito da caverna, na qual o homem está preso desde sua infância, fascinado pelos jogos de sombras móveis que se projetam sobre o fundo. É necessário libertá-lo à força, obrigá-lo a subir na direção do esplendor do sol. Assim, para o homem daqui de baixo, vinculado às sombras, a filosofia é ascesis, conversão, evasão para o alto. A filosofia é o esforço do homem na direção da conquista de uma vida verdadeira, a vida da alma. A República apresenta a jornada da alma como uma ascensão em direção à iluminação, nos quais se descobre, progressivamente, em cada etapa, que aquilo que era tratado como realidade eram apenas sombras ou imagens de algo mais real. No fim da sua busca, ela alcança um primeiro princípio não hipotético que é a forma ou ideia do Bem que “a capacita a descer e retraçar seu caminho, mas movendo-se apenas através de formas ou de uma concepção verdadeira do que era anteriormente entendido apenas parcialmente” (R. 510-511). A mente que ascendeu à visão do Bem pode, posteriormente, ver os conceitos através dos quais ela ascendeu (a arte, trabalho, natureza, pessoa, ideias, instituições, situações, etc.) em sua verdadeira natureza e em suas relações próprias entre si. O bom homem enxerga o caminho no qual as virtudes estão ligadas umas às outras; ele também reconhece o esforço e o sentido que a Verdade e o Ser desempenham no domínio moral. O Bem é, nesse sentido, não propriamente um objeto do conhecimento, mas, como a luz do sol, “a luz que revela para nós todas as coisas como elas são” (Murdoch, 2013MURDOCH, I. (2013). A soberania do Bem. São Paulo, Edusp.). Como fundamento de todo o ser e de todo valor, não pode haver nenhuma experiência dessas realidades independentemente do Bem.

Iris Murdoch viu na imagem platônica da moralidade como um caminho que percorremos, uma espécie de jornada da alma do não-ser para o ser, guiado pela presença soberana do Bem, uma base fundamental para seu projeto de crítica da filosofia moral britânica. Ela foi, junto com Anscombe, a precursora de um modelo realista ou objetivo da moralidade, onde a coisa certa a fazer, o juízo moral ponderado, resulta de uma submissão e esforço de aproximação ao bem, que ela às vezes caracteriza como um trabalho do amor, de dedicação a algo exterior que tentamos capturar, como o pintor que se esforça para capturar a beleza numa forma particular. Em oposição aos modelos centrados na vontade livre e independente que filósofos morais defensores de modelos expressivistas e existencialistas propunham como, por exemplo, Alfred Ayer, que sustentou que juízos morais tem a função semântica de expressar as atitudes emocionais e não-cognitivas do falante e essas atitudes, geralmente, não contribuiriam para as condições de verdade das sentenças que os expressam, Murdoch viu na filosofia de Platão um antídoto e inspiração. O movimento argumentativo que levou a esse tipo de conclusão é complexo. Em parte, ele deriva das críticas aos modelos morais expressivistas e, em parte, de críticas aos modelos morais da tradição filosófica utilitarista, kantiana e do existencialismo, os quais aceitariam, conforme Murdoch, uma concepção espúria da liberdade da vontade racional na detecção do bom e do bem. Apresento a seguir uma versão simplificada das críticas de Murdoch à filosofia moral de seu tempo e, ainda, como a filosofia de Platão foi sendo, em diferentes direções, incorporada na articulação do seu novo modelo moral.

Segundo os expressivistas morais, ao dizer “Pedro é um covarde”, não estaríamos dizendo algo verdadeiro ou falso, mas apenas expressando nossa reprovação às atitudes covardes de Pedro, algo que uma análise mais detalhada de termos morais densos e rasos (thick and thin) iniciada por Murdoch (e depois desenvolvida mais amplamente por Bernard Williams) revelou ser equivocado, dado que os chamados conceitos morais densos são descritivo-normativos, isto é, eles integram componentes descritivos e normativos. Ao qualificar Pedro como covarde, registro um juízo acerca de certas qualidades de caráter que Pedro pode certamente ter e que, nesse sentido, permitem avaliar meu juízo descritivamente como “verdadeiro” ou “falso” acerca de alguém. Ao mesmo tempo, podemos ver nesse juízo também a presença de elementos de aprovação ou reprovação moral, pois ao notar que Pedro é covarde, não deixo também de manifestar um repúdio a esse aspecto de seu caráter. Juízos morais, segundo Murdoch, revelam, portanto, um caráter misto, descritivo-normativo, algo que não poderia ser acomodado nos modelos expressivistas tradicionais. Os estudos dos conceitos morais densos (como medroso, estúpido, asqueroso, bondoso, etc.) mostra que a separação dos domínios de fato e valor, cara aos expressivistas, carece de melhor justificação e pode ser, em última instância, arbitrária.

Ao mesmo tempo que desidratavam o vocabulário moral dando-lhe um sentido meramente expressivo, sem nenhum conteúdo valorativo em sentido objetivo, o bem, aquilo que devemos buscar em nossas ações, tornou-se na filosofia moral standard um objeto de escolha livre do sujeito, sem existência independente, um pensamento que Murdoch diz tornar a vida moral semelhante à atividade de entrar num antiquário e garimpar as peças que nos interessam (Murdoch, 2001). Contra esses dois direcionamentos, que retiram a objetividade dos conceitos morais e reforçam a imagem do homem como alguém que cria valor livremente, independentemente de qualquer autoridade externa inserida na natureza humana ou de caráter metafísico, Murdoch interessou-se, junto com Foot e Anscombe, pela velha ideia de uma realidade transcendente que rodeia o homem. Como ela diz, muito do pensamento moral e do engajamento no debate moral, tem o sentido de desejar obter, capturar o que é certo, algo determinado por coisas que estão além de nós e não são um ato criativo, uma livre invenção. Essa concepção que empurra a abordagem da moralidade para fora do sujeito, como se o valor existisse perenemente fora de nós, se opõe aos modelos dinâmicos centrados na deliberação e cálculo a partir de princípios ou da moral como um tipo de acréscimo normativo a um mundo por si só destituído de valor (como no modelo expressivista) e abre caminho para a apresentação de tarefas morais completamente inauditas, como, por exemplo, promover a ênfase na percepção e visão (em oposição à deliberação e escolha), como um elemento central da moralidade. É nesse sentido que Murdoch concebe a visão como um esforço de apreensão de um bem que existe por si mesmo, um esforço psíquico, na medida que envolve superar limitações psicológicas resultantes do egoísmo, e um esforço objetivo, racional, pois envolve constante revisão e autocrítica moral. É esse aspecto de seu projeto, com forte ligação com a imagem da alma que contempla a verdade, a justiça e a beleza a partir da luz do Bem presente na ética de Platão, que examinarei a seguir.

3. Visão e Amor do Bem no projeto ético-metafísico de Iris Murdoch

A imagem da condição humana traçada por Platão na República como uma condição de encobrimento cuja superação envolve um movimento em direção à realidade (concretizado, em última instância, na contemplação das Formas) e o lugar soberano do Bem na hierarquia dos conceitos foram, em larga medida, assumidos na filosofia moral de Murdoch. Ela descreve a moralidade e a própria condição humana como um exercício de aperfeiçoamento e cuidado da alma e a mudança moral é, em grande medida, dependente do poder de atração do Bem. Essa tese aparece como parte de uma avaliação crítica da filosofia moral analítica de caráter linguístico-behaviorista e do existencialismo e está ancorada, na parte positiva da filosofia moral de Murdoch, nas noções interligadas de amor, atenção, realidade e Bem. Retomemos agora um segundo ângulo do pano de fundo crítico de sua filosofia moral, àquele fornecida pelas divergências com as teorias morais utilitaristas e existencialistas.

Murdoch procurou superar a tendência dominante de constituir a filosofia moral como disciplina “científica”, preocupada em encontrar, de um modo abstrato e neutro, uma caracterização da boa ação inteiramente livre de compromissos morais particulares (o que ela chama, às vezes, de um modelo liberal de pensamento moral), em detrimento da conquista de uma vida mais virtuosa, tal como preconizavam os filósofos antigos. No seu famoso artigo “A soberania do Bem”, ela critica essa postura de análise:

a ética não pode ser meramente uma análise da conduta comum medíocre, ela deveria ser uma hipótese sobre a boa conduta e sobre como essa conduta pode ser atingida. Como podemos nos tornar melhores? É uma questão que os filósofos morais deveriam tentar responder. (Murdoch, 2001MURDOCH, I. (2001). The Sovereignty of Good. London, Routledge., p. 76)

Murdoch formula aqui um primeiro aspecto relevante para nossa compreensão do lugar de Platão em sua filosofia moral e do seu profundo débito com o modelo ético platônico: a ética não é apenas uma disciplina filosófica teórica, uma ciência ou teoria sistemática que fornece princípios que descrevem os passos que a vontade racional do agente deve seguir para encontrar a boa ação em contextos práticos, mas visa o cuidado da alma, visa tornar-nos melhores e tem um compromisso com vidas morais concretas. Em vários momentos, ela caracteriza a moralidade como uma jornada da alma em direção ao Bem. A moralidade ela diz, de modo bastante platônico, não diz respeito somente à conduta; ela trata “da atividade contínua de nossas mentes e almas e com nossas próprias possibilidades de sermos verdadeiros e bons”. (Murdoch, 1993, p. 250). Murdoch aceita de bom grado a tese que, ao lado de juízos morais particulares formulados em situações específicas, pessoas comprometam-se a constituir suas vidas a partir de modelos robustos do eu, o que ela também chama de “textura do ser”. Estamos continuamente projetando e moldando nosso ser e fixando imagens morais de nós mesmos e de nossos parceiros. Esse trabalho de constituição de si e aperfeiçoamento é constante e não envolve apenas raciocínio e escolhas corretas baseadas em princípios tal como tem sido amplamente enfatizado (“faça aquilo que maximiza o bem-estar de todos imparcialmente considerados”), mas também aquilo que ela descreve através das metáforas visuais do olhar: “visão” e “atenção” das realidades morais que são, frequentemente, impedidas ou bloqueadas pela fantasia e egoísmo. Nós podemos ver aqui claramente o sentido central que a orientação pelo bem como uma realidade objetiva, uma realidade por conquistar, exerce em sua caracterização da moralidade. Essa tese geral está inextricavelmente atrelada a outras noções de caráter platônico, especialmente as noções de visão e do amor. Vejamos como se dá essa aproximação.

O papel moral do Bem e do amor é dependente da atividade mental da atenção. A atenção atua seletivamente, indicando fatos relevantes e saliências particulares. Pense, por exemplo, num filho cristão que decide levar uma vida resignada, dedicada aos cuidados de uma mãe doente. Ele pode ver essa tarefa como um ato de profundo amor, um amor do tipo que Cristo expressou com sua morte e sofrimento. Agora, imagine um filho treinado num modelo moral utilitarista. Ele pode considerar, ao ponderar sobre o quanto deve abdicar de seus projetos pessoais para cuidar de sua mãe, que tem seus próprios filhos ou carreira, e que dedicar um cuidado pessoal à sua mãe talvez não seja tão importante ou que seu bem-estar estaria melhor assegurado num asilo. Não pretendo sugerir que o utilitarismo nos levaria a conclusões imorais, o que é uma acusação comum, e frequentemente falsa, lançada contra os utilitaristas. O ponto em questão é que “os fatos” que um cristão (a imagem do amor de Cristo) e um utilitarista (que considera o ponto de vista imparcial e realista de todos os envolvidos) veem e que assumem um papel central nos seus juízos morais são profundamente distintos. Há uma Gestalt completamente diferente atuando em cada caso. Aquilo que vemos, que chama nossa atenção, é fixado, no primeiro quadro, por assumirmos noções como “deveres de amor”, “exemplo de Cristo” ou mesmo a vontade de Deus, enquanto a segunda orientação tem no seu quadro geral fatos morais que podem ser sopesados, como carreira pessoal, interesses de terceiros, razões imparciais, etc. Conforme o modelo moral geral, fatos inteiramente independentes aparecerão e ganharão relevância, influenciando atitudes e comportamento prático. A ideia que instituímos valor através da escolha livre, como se a alma fosse uma ferramenta de cálculo imparcial e que delibera num espaço neutro, é contestada por Murdoch a partir da indicação do entrelaçamento entre fato e valor:

Só posso escolher dentro do mundo que vejo, no sentido moral de “ver” que implica que a visão clara é um resultado da imaginação moral e do esforço moral. Também existe a “visão distorcida”, é claro, e a palavra “realidade” aparece aqui inevitavelmente como palavra normativa. [...] Se ignoramos o trabalho anterior da atenção e notamos apenas o vazio do momento da escolha, tendemos a identificar a liberdade com o movimento exterior, já que não há nada mais com que identificá-la. Mas, se levamos em conta como é o trabalho da atenção, como ele se dá de forma contínua, e a maneira imperceptível como ele constrói estruturas de valor à nossa volta, não ficaremos surpresos de que, em momentos cruciais de escolha, a maior parte do processo de escolha já esteja feita. (Murdoch, 2013MURDOCH, I. (2013). A soberania do Bem. São Paulo, Edusp., p. 54)

Ver tem aqui dois aspectos fundamentais: o aspecto do mundo que se apresenta para um agente individual no momento da escolha. O visto é, nesse sentido, segundo Lawrence Blum, o que é saliente para o agente em contextos morais, as propriedades de situações que a sensibilidade moral deve ser capaz de reconhecer e responder apropriadamente. “Se Jane não vê que o comportamento de Kendra sugere que ela está se sentindo humilhada e psicologicamente agredida pelas palavras e comportamento de Juan, Jane não terá visto algo moralmente importante na situação” (Blum, 2012BLUM, L. (2012). Visual Metaphors in Murdoch’s Moral Philosophy. In: BROACKES, J. (ed.). Iris Murdoch, Philosopher. A collection of Essays. Oxford, Oxford University Press, p. 307-325., p. 308). O que ela não vê são as saliências morais, ou seja, aquelas características apreendidas perceptivamente que “atuam ao caracterizar o mundo no qual o agente escolhe fazer coisas” (Blum, 2012BLUM, L. (2012). Visual Metaphors in Murdoch’s Moral Philosophy. In: BROACKES, J. (ed.). Iris Murdoch, Philosopher. A collection of Essays. Oxford, Oxford University Press, p. 307-325., p. 308). Contudo, Murdoch também entende a visão no sentido de visão acurada, o que requer atenção e esforço do agente, o qual é informado por justiça, amor, imaginação moral e a formas relacionadas de aprimoramento da atenção (Blum, 2012BLUM, L. (2012). Visual Metaphors in Murdoch’s Moral Philosophy. In: BROACKES, J. (ed.). Iris Murdoch, Philosopher. A collection of Essays. Oxford, Oxford University Press, p. 307-325., p. 309). É nesse segundo ponto que a atração pelo Bem é melhor explicitada através da figura do amor. O amor, assim como o Bem, são apreensões objetivas resultantes de um olhar justo e amoroso dirigido por um indivíduo à realidade exterior ao eu. A atenção envolve um tipo de apreensão de uma realidade moral que é um produto do direcionamento deliberado da atenção ou foco amoroso no outro. Nem todas as formas de apreensão externas são bem-sucedidas nesse sentido. O amor é, assim, um mecanismo de direcionamento da atenção, que potencializa nossa capacidade de vencer atitudes de autoindulgências, mecanismos de defesa psíquica e outras formas de evitar nossos compromissos e as necessidades dos outros.

Esse mesmo direcionamento em relação à realidade, de uma tentativa tenaz de sermos justos e bons, resulta, no plano pessoal, em processos de autoavaliação, através de pensamentos e elaborações interiores, que tem recebido pouca atenção nos modelos abstratos e impessoais da ética contemporânea. Aqui também o amor pelo Bem tem um papel fundamental, pois é dessa atração que depende a transformação moral, tal como o interesse em mecanismos de mudança comportamental de Murdoch ilustra. É precisamente nessa etapa de seu projeto filosófico-moral que a psicanálise de Freud ganha relevância e o modelo de orientação ou atração externa pelo Bem de Platão adquire um estatuto psicológico.

Murdoch apoiou-se na psicanálise freudiana ao sustentar que argumentos e raciocínios abstratos parecem ser de pouco efeito para uma visão realista e objetiva de caracteres morais, pois agentes morais não são seres racionais, independentes e autônomos, que dão às razões um papel essencial na orientação da conduta. Segundo Murdoch, as contribuições da psicanálise têm apresentado um retrato do homem como um ser deprimente, que sobrevive através de ilusões de si e que é frequentemente motivado a agir por egoísmo.6 6 A psyche é individual, historicamente determinada e um cuidado de si mesmo constante (relentlessly). Em certos aspectos, ela assemelha-se a uma máquina: para ser operada precisa-se de fontes de energia e predisposição a certos padrões de atividade. A área de sua liberdade de escolha independente (vaunt) não é usualmente muito grande. Um de seus principais passatempos é sonhar acordado. Ela reluta a enfrentar realidades desagradáveis. Sua consciência não é normalmente um vidro transparente através do qual se vê o mundo, mas sim uma nuvem de delírios mais ou menos fantásticos concebidos para proteger a psyche da dor. Ela procura constantemente por consolação, ou através de uma inflação imaginária do self, ou através de ficções de natureza teológica. Muito frequentemente, seus amores são, mais do que qualquer outra coisa, afirmações do eu. Eu creio que possamos provavelmente reconhecer nós mesmos nessa descrição deprimente (Murdoch, 2001, p. 76-77). Em vista disso, a tarefa da filosofia moral é, em grande parte, realizar um estudo dos mecanismos adequados para vencer o egoísmo. A imagem do humano da psicanálise é de um ser aberto às falsificações (na forma da racionalização, da autoindulgência, da autopiedade, do egoísmo) e outras estratégias psíquicas de sobrevivência. De modo um tanto pessimista, Murdoch localiza na psicanálise a base conceitual para sustentar que,

Nem as inspiradoras ideias de liberdade, sinceridade e fiats da vontade, nem o conceito inteiramente raso de um discernimento racional do dever, parecem suficientemente complexos para fazer justiça ao que nós realmente somos. O que nós realmente somos parece muito mais como um obscuro sistema de energia, a partir do qual escolhas e atos visíveis da vontade emergem em intervalos, em formas que frequentemente não são claras, e frequentemente são dependentes das condições do sistema, nos intervalos dos momentos de escolha. (Murdoch, 2001MURDOCH, I. (2001). The Sovereignty of Good. London, Routledge., p. 53)

Em outros termos, a ênfase filosófica na deliberação racional, imparcial, mediada por argumentos manifesta uma confiança nos poderes da razão que não é condizente com nossa condição, pois, embora razões tenham um papel a desempenhar nas escolhas, a esfera de atuação da racionalidade e autonomia é muito mais restrita do que tendemos a reconhecer. É aqui, nessa dimensão pessoal, que o Bem, agora mais detalhadamente definido contra o pano de fundo de um sujeito governado por forças cegas da psique, uma vez mais aparece. Em função do pessimismo quanto à natureza humana, Murdoch insistiu na importância de apelar na literatura moral para metáforas orientadoras, para um sentido de amor pelo Bem e outros mecanismos de mobilização da vontade. Como ela diz, numa passagem que tem sido frequentemente citada para estabelecer a diferenciação entre esses dois modelos de investigação moral, agentes morais são melhor retratados como plasmando uma visão pessoal, uma atitude diante da vida construída a partir de antecipações imaginativas de si mesmo, na direção do Bem, em vez de agentes racionais que movem a si mesmos pelas melhores razões para fazer certas escolhas:

Tem sido facilmente assumido que ao dar tratamento aos dados com os quais o filósofo moral lida, podemos seguramente deixar de lado não apenas o monólogo interior e seus assemelhados, mas também manifestações externas de atitudes pessoais, especulações ou visões da vida tal como elas se manifestam na fala que não está diretamente voltada para a solução de problemas morais específicos. Essa imagem parece menos plausível quando concebemos a noção de ser moral como auto-reflexão ou um complexo de atitudes para a vida que estão continuamente sendo manifestadas e elaboradas na fala interna e externa, as quais não são separáveis temporalmente em situações. Aqui a diferença moral parece menos uma diferença de escolha, dados ou mesmos fatos, e mais diferenças de visão. (Murdoch, 1998MURDOCH, I. (1998). Existencialists and Mystics. London, Penguin., p. 79)

A vida moral individual não é, no essencial, como ela descreve aqui, um processo seguro de escrutínio de razões imparcialmente concebidas, mas uma sucessão de movimentos interiores de apreensão, de contínua transformação, em direção ao autoaperfeiçoamento, numa direção que somente a atenção amorosa aos outros e um desejo de ser justo e bom (alavancado pela atração do bem) pode abrir espaço e garantir um atendimento (ainda que precário). Como ela afirma num dos mais platônicos de seus textos, “The Sublime and the Good”: “O amor é a percepção dos indivíduos. O amor é a extremamente difícil percepção que algo diferente de nós mesmos é real. O amor, e assim, a arte e a moral, é a descoberta da realidade” (Murdoch, 1998MURDOCH, I. (1998). Existencialists and Mystics. London, Penguin., p. 112).

A alegação de Murdoch é que o amor- como uma percepção e descoberta da realidade de indivíduos distintos do eu- é a característica definidora da arte e moralidade. Os inimigos da arte e da bondade são a convenção e a neurose que bloqueia a percepção dos outros. Ela preocupa-se com o aspecto em que o ego impede a apreensão da realidade dos outros, tornando-os ficções em sua autorrepresentação. A imaginação e o amor colidem: o que nós amamos pode ser distorcido pelo que imaginamos; a imaginação cria objetos fictícios do amor. Mas a imaginação, na forma da grande arte, é um tipo de exposição objetiva. O que “torna a arte trágica perturbadora é que a forma autocontida é combinada com algo que desafia a forma: o ser individual e o destino das pessoas. Uma grande tragédia deixa-nos com uma dúvida eterna. É a forma da arte onde o exercício do amor é seu exercício moral mais provável” (Murdoch, 1998, p. 182). O amor é a habilidade que direciona o homem para fora de si mesmo e arte, enquanto forma de apresentação de seus objetos vinculada a particularidade e forma, manifesta o amor.

O grande artista vê seus objetos (e isto é verdadeiro quer eles sejam tristes, absurdos, repulsivos ou mesmo maus) à luz da justiça e da misericórdia. A direção da atenção é, contrariamente à natureza, para fora, para longe do eu que reduz tudo a uma falsa unidade, em direção à surpreendente e grande variedade do mundo, e a habilidade para assim dirigir a atenção é o amor. (Murdoch, 1998MURDOCH, I. (1998). Existencialists and Mystics. London, Penguin., p. 14)

Encontramos aqui, como outras vezes, uma reivindicação clara das bases do pensamento platônico, tal como ele aparece ilustrado mito da caverna: a verdade e a moralidade estão conectados de tal maneira que a ascese epistêmica (da opinião fugaz à verdade) é, ao mesmo tempo, uma ascensão à bondade. Ou seja, embora não tenhamos uma experiência do Bem, por ser uma realidade transcendental (o bem é uma condição e não um objeto do conhecimento), o bem atrai na forma do direcionamento da atenção para fora, para longe do eu. Reconhecemos esse sentido quando notamos que nossa experiência envolve alguma evidência da ideia de perfeição.

Um entendimento profundo de qualquer campo da atividade humana envolve uma revelação gradual dos estágios de excelência e frequentemente uma revelação de que há pouco que seja realmente bom e nada que é perfeito [...] Nós chegamos a perceber escalas, distâncias, padrões e podemos nos inclinar a ver como menos excelente o que estivemos inicialmente preparados para ‘deixar passar’... A idéia de perfeição opera dentro de um campo de estudo, produzindo um sentido gradual de direção (Murdoch, 2001MURDOCH, I. (2001). The Sovereignty of Good. London, Routledge., p. 61-62).

Esse sentido de “direcionamento” para um ideal de excelência representado por uma imagem do Bem e com o auxílio da visão, o esforço amoroso de alcançar a realidade, representa o núcleo platônico mais evidente de seu pensamento. A consciência moral, ela diz, está fundamentalmente orientada para o Bem como um ideal. A atividade da consciência moral consiste numa peregrinação da aparência para o conhecimento aperfeiçoado da realidade, uma peregrinação que é manifestada em cada exemplo de exercício sério de compreensão, de atenção e amor pelo outro. Por essa razão, Antonaccio afirma que o Bem é, para Murdoch, “o princípio do conhecimento moral válido pelo qual a ação moral é libertada do seu aprisionamento na ilusão fantasiosa em direção ao conhecimento aperfeiçoado da realidade” (Antonaccio, 2000ANTONACCIO, M. (2000). Picturing the human: the moral thought of Iris Murdoch. New York, Oxford University Press., p. 129). A transformação moral do Eros, da energia que anima nossa consciência torna-se assim focada em buscar um esforço de atenção, visão e imaginação orientada pelo Bem. Os erros morais não consistem apenas em ver algo que não está aí, mas também em não perceber que nossa visão é parcial, incompleta e potencialmente injusta e é na imagem platônica do Bem e da perfeição, reformulada na linguagem da psicanálise, como uma fonte externa e orientadora que ela demarca sua alternativa às morais vigentes. Na medida em que a verdade moral envolve um movimento em direção ao aperfeiçoamento de nossa visão dos outros e o domínio das forças do ego e sua energia dominante guiada pelo amor, é uma representação do campo moral como um campo de forças em tensão que, sem o bem, seria sempre restrito e limitado, que ela ofereceu como resposta.

4. Considerações finais

Procurei, nesse pequeno ensaio, mostrar que Platão estabeleceu, como parte de seu projeto filosófico, a existência de ideias transcendentais de caráter moral como parâmetro, a um só tempo, ontológico e ético. As ideias morais de justiça, o Bem e o Belo são, para Platão, a fonte do valor e da verdade. É a migração na direção dessas ideias que habilita o homem à vida virtuosa, à vida da alma. A atividade filosófica, de saber como as coisas realmente são, de conhecer e tornar o real inteligível, aparece, assim, como uma atividade com implicações morais nítidas; ela habilita a alma, pelo contato e busca de certo tipo de princípios, ao exercício da bondade e da virtude.

Murdoch aceita o legado platônico que concebe nossa condição moral como guiada por uma ideia soberana, a soberania do Bem, que aparece ilustrada pela vinculação da moral com uma condição de contínuo avanço e aperfeiçoamento, entendido como o esforço amoroso, ilustrado também na arte, de capturar e fazer justiça à realidade do outro e à nossa própria, na medida que a mesma implica um compromisso com a bondade e a justiça, contra a tentação contínua do egoísmo e da falsificação. Esse avanço se dá através da consciência moral orientada por uma atenção amorosa ao outro é também um símbolo da atração pelo bem, na medida que exige vencer o egoísmo, na direção de uma apreensão mais realista de nós mesmos e dos outros. Nesse sentido, Murdoch aproxima as noções metafísicas platônicas de um tipo de naturalismo psicológico-moral, na medida que o Bem é também uma força com poder psicológico peculiar e aliado ao amor na luta da psique contra suas próprias falsificações. Assim também, embora o Bem nunca possa ser atingido, pois é uma perfeição que transcende a consciência, ele pode ser tangenciado através da consciência autorreflexiva, calibrada por um investimento afetivo das forças do eu, via amor, no outro. Esse ponto, por si só, é suficiente para indicar o tipo de mudança no panorama das investigações éticas que Murdoch está propondo. Se para Platão, a moralidade é instalada no contato da alma com o Bem, de um modo alegórico, como uma luz que ilumina tudo, na medida que incorpora a psicanálise freudiana, Murdoch promove uma caracterização deflacionada do Bem, onde a moralidade adquire um significado psicológico peculiar: ser parte de um disciplinado esforço de obtenção de uma visão purificada do outro pela consciência.

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  • RODIS-LEWIS, G. (1981). Platón Madrid, EDAF.
  • TRABATTONI, F. (2005). Platão Trad. Gabriele Cornelli. São Paulo, Annablume.
  • 1
    Essa retomada dos gregos pode ser reconhecida no trabalho de filósofos morais tão diversos quanto Philippa Foot, Rosalind Hursthouse, Julia Annas, Richard Sorabji, Bernard Williams, Martha Nussbaum, Pierre Hadot, John Cottingham, entre outros.
  • 2
    Iris Murdoch teve um papel central nessa tarefa, mas autores como McDowell (1979)MCDOWELL, J. (1979). Virtue and Reason. The Monist 62, n. 3, p. 331-350. e, mais recentemente, Peter Goldie (2007GOLDIE, P. (2007). Seeing what is the kind thing to do: perception and emotion. Dialethica 61, n. 3, p. 347-361.) também passaram a enfatizar a ideia de percepção moral como central.
  • 3
    Iris Murdoch insiste, por exemplo, no papel das imagens e metáforas na moralidade, mas aqui também é importante mencionar os resultados de estudos científico-filosóficos sobre o papel das emoções no juízo moral, bem como o debate entre “situacionistas” e os teóricos da ética das virtudes, que advogam uma concepção robusta do caráter e de seu papel na ação moral. Sobre isso, veja-se Kamtekar, 2004KAMTEKAR, R. (2004). Situationism and Virtue Ethics on the Content of Our Character.Ethics 114, p. 458-491., e Merrit et al, 2010MERRITT, M; DORIS, J.; HARMAN, G. (2010). Character. In: DORIS, J. The Moral Psychology Handbook. Oxford, Oxford University Press, p. 355-401..
  • 4
    Trabattoni afirma que as “investigações filosóficas de Platão, mesmo em temas como a metafísica e epistemologia, são, assim, atravessadas pela ideia de que a filosofia deve ser uma investigação que conduza à felicidade e os temas filosóficos são relevantes pois tratam de “como se deve viver” (Trabattoni, 2010TRABATTONI, F. (2005). Platão. Trad. Gabriele Cornelli. São Paulo, Annablume., p. 30-31).
  • 5
    Cf. Tht. 186d. “Se atingir o ser é responsabilidade da alma, e considerando que, no pensamento e linguagem dos Gregos, ser e verdade de certa forma se correspondem, só o conhecimento da alma é conhecimento da verdade das coisas: não haverá conhecimento dos sentidos nas afecções, mas ‘no raciocínio que se faz em torno delas: porque por essa via é possível, como parece, tocar o ser e a verdade” (Trabattoni, 2010TRABATTONI, F. (2005). Platão. Trad. Gabriele Cornelli. São Paulo, Annablume., p. 77).
  • 6
    A psyche é individual, historicamente determinada e um cuidado de si mesmo constante (relentlessly). Em certos aspectos, ela assemelha-se a uma máquina: para ser operada precisa-se de fontes de energia e predisposição a certos padrões de atividade. A área de sua liberdade de escolha independente (vaunt) não é usualmente muito grande. Um de seus principais passatempos é sonhar acordado. Ela reluta a enfrentar realidades desagradáveis. Sua consciência não é normalmente um vidro transparente através do qual se vê o mundo, mas sim uma nuvem de delírios mais ou menos fantásticos concebidos para proteger a psyche da dor. Ela procura constantemente por consolação, ou através de uma inflação imaginária do self, ou através de ficções de natureza teológica. Muito frequentemente, seus amores são, mais do que qualquer outra coisa, afirmações do eu. Eu creio que possamos provavelmente reconhecer nós mesmos nessa descrição deprimente (Murdoch, 2001MURDOCH, I. (2001). The Sovereignty of Good. London, Routledge., p. 76-77).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2018
  • Aceito
    11 Maio 2018
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