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EDITORIAL N° 3/2019 AMAZÔNIA AMEAÇADA

As queimadas que têm destruído vastas áreas na Amazônia e chamam atenção mundial são apenas a face mais visível da exploração e da degradação da maior floresta tropical do mundo. Por trás da derrubada da mata e do fogo, há diversos interesses econômicos privados que estão longe de gerar qualquer benefício ao Estado brasileiro ou de compartilhar eventuais benefícios com a sociedade. Em grande parte dos casos, essas queimadas ocorrem em terras da União, ao desabrigo da lei e sem que qualquer autorização oficial tenha sido concedida.

O fruto dessas ocupações e atividades ilegais - seja a madeira ou minério extraído ou os grãos ou proteína animal produzidos - é comercializado, via de regra, em canais ilegais pela impossibilidade de comprovação de origem lícita. Alimentam, portanto, uma cadeia de comercialização que não paga impostos e, em caso de produtos agrícolas, fica alheia a qualquer processo de verificação fitossanitária.

Não raro, essas áreas são defendidas por milícias armadas que repelem violentamente qualquer tentativa de fiscalização que não seja acompanhada pela Polícia Federal. Não raro, também, condições de trabalho análogas à escravidão são verificadas nessas áreas. Esse é apenas o aspecto econômico e social dessas ocupações ilegais. Há todo um impacto ambiental decorrente e que se estende para além das próprias áreas desmatadas.

Na década de 1970 apenas 1% da Amazônia estava desmatada. Atualmente o índice chega a 20%, segundo relatório da Procuradoria do Meio Ambiente do Ministério Público Federal. Segundo o relatório a destruição da floresta acompanhou a evolução do rebanho bovino na Amazônia, que passou de 47 milhões de animais em 2000 para cerca de 85 milhões atualmente. A pecuária ocupa 80% da área desmatada da região.

Isso demonstra que a exploração econômica da Amazônia está por trás dos 40 mil focos de incêndio que atingiram a floresta entre 1º de janeiro a 23 de agosto, detectados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Trata-se do maior índice de queimadas desde 2010. Existem evidências de que esta exploração tem sido acompanhada de um processo de desmonte das estruturas de monitoramento e fiscalização das práticas de desmatamento comumente utilizadas na Amazônia. O atual e preocupante processo político que se institui, também se coloca por meio de discursos radicais e antagonismos inconcebíveis. Esse quadro vem colocando às instituições de Estado em situação limite no que diz respeito ao cumprimento de suas funções mais fundamentais.

Os abruptos retrocessos no Fundo Amazônia, instituído pela Noruega e Alemanha junto ao Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, ilustram que esta iniciativa de décadas de financiamento exterior não apenas se coloca como bem sucedida e auditada, como também historicamente demonstrou não conferir qualquer ameaça à soberania nacional. Além disso, cerca de 60% dos recursos recebidos por esse fundo têm sido destinados a órgãos governamentais. Ou seja, ao extinguirem-se esses recursos, na situação de crise financeira estatal, provavelmente não haverá outras fontes de financiamento, o que irá acarretar mais desmonte do aparato público de comando e controle.

A postura de intolerância às organizações não governamentais também se configura de forma desmedida, generalizada e descabida. A sociedade civil organizada é fundamental em qualquer democracia, seu papel amplia o alcance de políticas públicas ao possibilitar diálogos mais próximos e adaptativos aos distintos contextos socioambientais. Na Amazônia, inúmeros projetos conduzidos por ONG´s tem sido merecidamente reconhecidos, inclusive, contribuindo com inovações para o desenvolvimento sustentável. O fortalecimento da construção de soluções criativas e transformadoras à partir das comunidades amazônicas contribui mais com a soberania que a postura de ceder a modelos industriais externos de exploração destrutiva

As queimadas que foram intensificadas entre junho e agosto de 2019 estão elevando o risco das 265 espécies ameaçadas de extinção que existem hoje na Amazônia, alerta o WWF-Brasil. São 180 espécies da fauna, das quais 124 ocorrem apenas nesse bioma, e 85 da flora. O risco é maior para as espécies que estão sendo atingidas pelo fogo e não estão submetidas a nenhum mecanismo de proteção.

A floresta Amazônica abriga cerca de 30.000 espécies de plantas ou 30% de todas as espécies vegetais da América do Sul. As florestas abrigam bem mais da metade das espécies terrestres do mundo e são um dos principais agentes responsáveis pela captura de carbono, o que auxilia na mitigação da crise climática. A fauna silvestre, por sua vez, também é vital, cumprindo funções como a polinização e a dispersão de sementes, além de outros papéis essenciais para sua própria regeneração e o armazenamento de carbono.

As queimadas e as mudanças climáticas operam em um ciclo vicioso no qual quanto mais aumentam, mais emissões de gases de efeito estufa e, quanto mais o planeta aquece, maior será a frequência de eventos extremos, tais como as grandes secas que passaram a ser recorrentes na Amazônia. De forma concomitante, intensificam-se os conflitos socioambientais, incrementando as disputas fundiárias e a concorrência entre modos predatórios e sustentáveis de uso dos recursos florestais e ecológicos.

Ambiente & Sociedade traz neste terceiro editorial do ano, seu posicionamento face aos alcances desta situação que não é nova na Amazônia. Mas que se manifesta de forma mais preocupante em virtude do posicionamento do atual governo brasileiro quanto à política ambiental.

Destacamos dois aspectos que são fundamentais para compreender os impactos, de um lado o risco da perda dos serviços ecossistêmicos ligados ao ciclo da água, à captação do carbono e à biodiversidade. O segundo aspecto é a pouca e limitada resposta face aos métodos ilegais e violentos de apropriação de terras públicas na região. Esta ilegalidade se exprime igualmente nos dados da exploração madeireira, nas ameaças ao que deveriam ser áreas preservadas e indígenas, no desmatamento ilegal em áreas privadas e na potencialização de um cenário de injustiça ambiental.

O Brasil até recentemente tinha uma imagem pública positiva pela redução das emissões e tinha tornado visível um esforço de avançar para políticas que propõem transformar a floresta em base para o desenvolvimento sustentável.

Pela importância sistêmica da Amazônia nos contextos nacional e global, não é possível conceber que posturas de governo contrariem progressos de décadas realizados na conservação dos ecossistemas e na busca de alternativas cabíveis dadas à própria diversidade socioambiental contida neste bioma.

A concepção de que a Amazônia é nossa para que seja explorada de forma voraz e destrutiva em prol de uma monocultura de ideias e de produção pouco diversa e de larga escala nos remete a um passado de visões extremamente restritas e incompatíveis com os desafios contemporâneos. Isso também nos remete a posturas intolerantes, que se conformam em discursos unilaterais e autoritários, convenientemente desatentos à intrínseca fenomenologia e à pluralidade da Amazônia. Cabe notar que possíveis consequências extrapolam o território amazônico, podendo afetar outros ecossistemas a ele associados, como no que diz respeito à própria produção agrícola nas regiões sudeste e centro-oeste, dependente das chuvas produzidas no notável contínuo de florestas tropicais da maior bacia hidrográfica do mundo.

O contraponto do desenvolvimento sustentável para a Amazônia, representa o que Carlos Nobre, proeminente pesquisador do INPE, tem denominado de transição de uma economia da destruição da natureza para uma economia do conhecimento da natureza. Ambiente & Sociedade entende que num dos territórios contendo a maior biodiversidade do Planeta torna-se fundamental apoiar todas as iniciativas que visam proteger uma área de 70 milhões de hectares coberta por florestas na Amazônia e que se encontra atualmente ameaçada pela ação de grileiros e desmatadores ilegais. Portanto é fundamental que estas áreas sejam destinadas a promover atividades que estimulem o uso sustentável da floresta. Isso demanda amplo reconhecimento e legítimo comprometimento de toda a sociedade e também, fundamentalmente, do governo.

Após esta breve reflexão, convidamos a todos para desfrutar da leitura dos novos artigos publicados correspondentes ao Volume Anual 2019.

Abrindo este novo grupo de artigos, apresentamos nossa seção Temas em Destaque, com o tema “Oceanos”, que traz o artigo Antártica e áreas além da jurisdição nacional no Antropoceno: desafios para a gestão sustentável dos recursos marinhos genéticos? Neste trabalho, as autoras Ana Flavia Barros-Platiau e Leandra Regina Gonçalves, a partir de uma abordagem interdisciplinar nas relações internacionais, literatura de ciências jurídicas e ambientais, concluem que a Agenda 2030 precisa incluir as empresas (atores globais) para melhorar a eficácia das regulamentações futuras frente aos novos desafios relacionados à tecnologia para o manejo sustentável da biodiversidade e acesso a recursos genéticos marinhos.

Como artigos originais, o trabalho: Pagamento por Serviços Ambientais: Orientações para a identificação de áreas prioritárias com foco na biodiversidade, dos autores Caroline Picharillo e Victor Eduardo Lima Ranieri, identifica na literatura científica os elementos importantes para se priorizar áreas para a implantação de esquemas de PSA-biodiversidade, a fim de ser utilizados como referência para orientar a implantação de outros esquemas de PSA baseados na recuperação e manutenção de áreas naturais.

Os autores Daniella de Souza Marcondes e Sidnei Raimundo, no artigo Povos tradicionais e turismo: o TAUS como instrumento para gestão de conflitos? analisam a outorga do Termo de Autorização do Uso Sustentável (TAUS), instrumento de regularização fundiária baseado no reconhecimento do direito a moradia e na gestão de práticas socioeconômicas, às Comunidades Tradicionais Caiçaras, situadas na Praia de Castelhanos, Ilhabela (SP). Concluem que o TAUS poderá proporcionar ao caiçara o poder de decisão; contudo, apresenta aspectos desafiadores no que tange a gestão territorial e os conflitos com agentes externos

Por meio de entrevistas semiestruturadas e avaliação de ervas, com base em roteiro específico, o artigo: As paisagens da erva-mate: uso das florestas e conservação socioambiental, dos autores Anésio da Cunha Marques, Maurício Sedrez Reis e Valdir Frigo Denardin, estuda as diferentes paisagens dos ervais do Planalto Norte Catarinense (PNC) - principal região produtora de erva-mate nativa de Santa Catarina - e sua relação com a conservação socioambiental. Concluem que a atividade ervateira apresenta grande importância para a conservação socioambiental no PNC.

No artigo: Ameaças à biodiversidade do Pantanal Brasileiro pelo uso e ocupação da terra, os autores Cleber J. R. Alho, Simone Mamede, Maristela Benites, Bruna da Silva Andrade e Jose J. O. Sepúlveda, considerando o uso e a ocupação do solo, e empregando a experiência em pesquisa na região, identificam e analisam as ameaças à biodiversidade do bioma Pantanal. Embora este bioma mantenha ainda 80% de sua cobertura vegetal, a destruição e alteração de hábitats têm afetado os ambientes terrestres e aquático. Com base nisso, propõem estratégias de conservação da sua biodiversidade.

Os autores Bruno Benzaquen Perosa e Paulo Furquim Azevedo, apresentam uma pesquisa que revela que a eficiência dos mecanismos de governança ambiental depende dos custos que serão incorridos por produtores de forma a atingir os critérios exigidos pelas certificações, afetada pelo nível de regulação público pré-estabelecido. Esta regulação deve desenhar-se considerando seus efeitos tanto sobre produtores, como também sobre os critérios estabelecidos nas certificações privadas. Isto no artigo: A evolução de mecanismos de governança ambiental: uma ferramenta analítica institucional aplicado ao setor de biocombustíveis.

A continuação, apresentamos nossa seção Ideias em Debate, que conta com a contribuição dos pesquisadores Jeroen Warner, Elizabeth Nunes Alves e Robert Coates, da Universidade de Wageningen. O trabalho destes autores, intitulado: O queijo suíço no Brasil: cultura de desastres versus cultura de segurança, aponta razões estruturais no Brasil relacionados à “cultura de desastre” e “cultura de segurança” e como esses aspectos influenciam a gestão dos desastres, especialmente aqueles de baixa incidência e alta consequência, que não dão indícios para a tomada de decisão preventiva. Esta discussão considera o “Modelo do Queijo Suíço” de análise de risco proposto por James Reason.

Finalmente, os autores Diego Carlos Zanella, Anor Sganzerla e Leocir Pessini, apresentam uma Resenha do livro: A bioética global de V. R. Potter, analisando o conceito de bioética global na obra, de mesmo título, de Van Rensselaer Potter. Os autores ressaltam a visão mais abrangente desenvolvida por Potter, que abarca a dimensão ecológica da vida de todos os seres vivos ao mesmo tempo em que trata e se relaciona com as questões da ética biomédica.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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