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Bakhtin - uma memória pessoal

RESUMO

O texto relembra e comenta, numa perspectiva pessoal, o impacto da descoberta de Mikhail Bakhtin no ambiente acadêmico brasileiro de modernização dos estudos da linguagem nas décadas de 1970 e 1980, quando retomavam-se as linhas de pesquisa do chamado “formalismo russo”, na esteira de uma ascensão da Linguística como ciência de ponta, em ondas de imigração teórica preponderantemente francesas. Neste panorama, o ensaio relembra os dois focos principais da obra de Bakhtin, o temático-literário e o estritamente linguístico, e destaca a permanência e vitalidade de seu pensamento na formulação de uma teoria do romance. Ao final, o texto faz uma breve reflexão sobre o sentido contemporâneo da sensibilidade literária, a partir da multiplicidade das vozes que constituem o tecido da literatura na perspectiva bakhtiniana.

PALAVRAS-CHAVE:
Dialogismo; Polifonia; Prosa e poesia; Sensibilidade literária

ABSTRACT

This text recalls and comments, from a personal perspective, on Mikhail Bakhtin’s impact on the Brazilian academic scene during the modernization of language studies in the 1970s and 1980s, when “Russian formalism” was revived as a research line, in the wake of Linguistics rising to a cutting-edge science, in waves of predominantly French theoretical immigration. Within this panorama, the essay looks back on the two main focuses of Bakhtin’s work – the thematic-literary and the strictly linguistic – highlighting the permanence and vitality of his thought in forming a theory of the novel. Finally, the text covers a brief reflection on the contemporary sense of literary sensibility, from the multiplicity of the voices that constitute the fabric of literature in the Bakhtinian perspective.

KEYWORDS:
Dialogism; Polyphony; Prose and poetry; Literary sensibility

Já estou há mais de dez anos afastado da Universidade, desde que decidi me desligar da vida acadêmica e me dedicar apenas à literatura de ficção1 1 Nesse sentido, gostaria especialmente de agradecer o convite honroso e generoso para participar deste Colóquio Internacional que comemora os 90 anos da obra clássica de Mikhail Bakhtin que, centrada em busca da definição da literatura de Dostoiévski, acabou por transformar e em boa medida revolucionar a percepção do romance como gênero e forma composicional. Digo generoso porque, para minha felicidade, o convite foi feito ao escritor, e não propriamente ao acadêmico, o que tecnicamente não sou mais. . Portanto, o leitor nem de longe estará diante de um estudioso atualizado sobre o tema. E a atualização informativa é crucial, especialmente no caso de Mikhail Bakhtin, e ainda mais neste distante espaço brasileiro numa época — quando entrei em contato com sua obra — em que quase toda referência a ele era indireta. Tratava-se de um autor que, envolto em densas sombras biográficas, havia passado uma vida inteira sob a censura soviética, tornando-se realmente conhecido e uma referência internacional importante apenas nas últimas décadas do século XX, depois de sua morte.

São tantos os meandros que envolvem a consolidação de sua bibliografia, que toda nova informação sobre ele é preciosa, na medida em que seus pressupostos teóricos e filosóficos prosseguem vivos e relevantes para o nosso tempo. Diante disso, com certeza o mais prudente teria sido recusar o convite, por declarada incompetência. Mas como a leitura de Bakhtin, ainda nos distantes anos 1980, foi fundamental na minha formação acadêmica e acabou por iluminar aspectos obscuros ou então puramente intuitivos do meu trabalho de ficção, e como venho mantendo com sua teoria uma relação de afinidade que é tanto intelectual como afetiva, aceitei correr o risco do desastre pelo prazer mesmo de conversar sobre Bakhtin. Tudo que diz respeito a Bakhtin me interessa. Aquela chama de interesse que, quatro décadas atrás, estalou uma espécie de “eureca” na minha cabeça de estudante, continua acesa. É sobre essa pequena epifania pessoal que eu gostaria de falar.

E que estalo foi esse na cabeça daquele candidato a escritor e acadêmico iniciante? É preciso contextualizar o momento. Como sabem os bons leitores de Bakhtin, as teorias não caem do nada na nossa cabeça, e nossa cabeça nunca é uma tabula rasa pronta a receber, em estado de pureza, as palavras do mundo. A palavra viva é sempre um animal contaminado e indócil. Pois bem, na passagem dos anos 1970 para 1980, o horizonte acadêmico brasileiro da área de Letras, sob o influxo da modernização dos estudos linguísticos, estava positivamente imergindo nas teorias formais da linguagem, em geral fundamentadas em pressupostos estruturalistas de grande prestígio, numa ampla confluência de muitas vertentes.

Bastará lembrar duas delas, afinal determinantes. A primeira vinha do forte e consistente renascimento das teorias da linguagem e da literatura que, por mais díspares e contraditórias que tenham sido, costumam-se definir pelo título englobante de “Formalismo Russo”. Este extraordinário conjunto de trabalhos teóricos que se concentraram principalmente na Rússia em menos de duas décadas virou de cabeça para baixo os parâmetros dos estudos literários, avançando lado a lado — aqui a segunda vertente — com a também espetacular ascensão da Linguística, assumida estritamente como ciência de ponta, com profundas consequências em toda a rede de disciplinas das ciências humanas que tinham a palavra, e seus derivados, como objeto de análise. Numa síntese simples, podemos dizer que o século XX descobria, acompanhando o aforismo de Wittgenstein, que os limites do mundo são os limites da linguagem. Se queremos saber o que é a realidade, comecemos por tentar entender o que é a linguagem que tenta defini-la.

Esse poderoso entrelaçar de teorias de base formal chegou ao Brasil acadêmico preponderantemente em ondas de imigração teórica francesas, ao longo dos anos 1960 a 1980, e encontrou aqui um território fértil e receptivo, coincidente com a grande expansão do nosso ensino superior, e em boa medida atualizando o nosso repertório crítico bem antes que o próprio país estruturalmente se modernizasse, o que vem sendo até hoje a nossa regra.

O engraçado é que esta onda formal-racionalizante que entre nós, por reflexo, passava a dominar parte substancial dos estudos da linguagem e da literatura do período, que podemos sintetizar como a virada dos anos 1970, encontrava um contexto cultural global que parecia forçar justamente na direção contrária, ou epistemologicamente contrária. Explico melhor esta intuição: é como se a nova racionalidade teórico-científica que moveu os pioneiros do início do século XX, encontrasse, 50 anos depois, um ambiente que se movia em direção contrária.

Porque as décadas de 1960 e 70 foram a era dos irracionalismos libertadores, se podemos representá-las por uma metáfora. A desconfiança dos grandes sistemas explodia nesse momento, praticamente em todos os terrenos: o político, o religioso, o existencial e, também, o próprio terreno científico. “Desconstruir” — o que quer que se encontrasse de aparentemente sólido pela frente — passou a ser a regra. O conceito de magia, ou o culto da imprecisão, parecia perder o seu caráter amadorístico (ou mesmo charlatão) a que a ciência moderna relegara os impressionismos teóricos, e passava a ganhar um certo status transcendente, às vezes vagamente poético. A teoria ganhava a força da performance existencial, às vezes com ela se fundindo, e com frequência envolta numa aura estimulante de cannabis, mescalina, ou qualquer das substâncias naturais que abrissem as nossas “portas da percepção”, na expressão já clássica de Aldous Huxley. Clássica e popular: lembremos “The Doors”, a célebre banda de rock, cujo nome inspirou-se na imagem de Huxley, um intelectual acima de qualquer suspeita. Esta imagem - portas da percepção - é um signo poderoso da época.

Digamos que, nesse choque cultural, cujas consequências sentimos até hoje, os impulsos libertários e indeterminantes da existência lutavam contra a seca determinação das essências teóricas, se me permitem este trocadilho infame sobre o princípio existencialista. Na filosofia política, o desejo da desconstrução reencontrava os demônios explosivos de Dostoiévski. Na literatura, houve o surgimento, via pós-modernidade, de certo “cinismo narrativo” que buscava implodir a própria ideia de que uma narrativa, com um eixo estável de valor de referência a partir do qual o caos do mundo ganharia algum sentido, pudesse ser possível ou mesmo apenas desejável. Durante um bom tempo, escrevia-se para advertir o leitor de que a escrita era uma mentira, dando-lhe assim uma boa lição.

Enfim, faço esta simplificação grosseira ao olhar para trás porque, pela minha história pessoal, e vai aqui uma confissão anedótica, vivi esta passagem conflituosa intensamente. Meu projeto adolescente de escritor estava imerso na anarquia libertária, perfeitamente de acordo com o protocolo existencial típico daqueles anos. Afinal, fui me tornando adulto ao longo dos anos 1960. Mas, quando o sonho acabou - conforme a profecia de John Lennon -, e os meus projetos utópicos e comunitários naufragaram, lá fui eu, derrotado, estudar Letras, já tardiamente, em busca de um trabalho, um emprego, um meio prático de sobrevivência.

E, indócil na sala de aula, encontrei nas aulas de literatura tudo que odiei à primeira vista: análise estrutural da narrativa, equações categóricas, a trigonometria greimasiana, a bíblia do primeiro Todorov, súmulas esqueléticas de agentes narrativos angustiantemente redutoras, máquinas de significação, paralelos semânticos lacanianos, um conjunto complicado de imperativos formais e de corredores teóricos que poderiam se reduzir a um conceito primordial: extraia do texto, como irrelevante, tudo que não é literatura, e então você chegará à essência do objeto estético.

E o que não é literatura? Ora, psicologia, filosofia, história, religião, etc. Isso são questões temáticas que dizem respeito às suas respectivas ciências, não à literatura. Afinal, já não disseram que um poema é feito de palavras, não de ideias? A ideia era essa, por assim dizer. O resto é retórica e, portanto, besteira. Bem, vendo daqui, numa simplificação agressiva, tudo aquilo era nada mais, nada menos, do que “formalismo russo” hardcore, radical, se fosse possível reduzir aquele movimento extraordinário a uma síntese vulgar. Como se os anos 1970, fascinados, redescobrissem os anos 1920 e por lá ficassem.

É bom relembrar o que disse ao início: faço aqui apenas um retrospecto anedótico de uma experiência pessoal. Eu odiei tudo aquilo, é verdade, mas não tinha de fato repertório cultural nenhum para contrapor ao que lia e estudava. A única autoridade que eu tinha era a do “sentimento pessoal”, e eu, como um bom filho dos anos 1960, apenas sentia que aquela teorização sobre literatura não tinha nada a ver com o que eu imaginava que a literatura era ou deveria ser — e sentir, para parte ativa da minha geração, parecia ser uma categoria suficiente e necessária para explicar e mover o mundo. Estava difícil separar o olhar do escritor do olhar do analista — o que, aliás, nunca é fácil, em qualquer terreno.

O que me soava especialmente estranho era o fosso que eu pressentia haver entre a linguística e a literatura, sem conseguir entretanto formular a natureza dessa distância. No meu ingresso formal às Letras, a introdução à linguística foi uma verdadeira revolução teórica para mim, pelas mãos do meu mestre Carlos Alberto Faraco. Na verdade, uma revolução epistemológica, antes que eu ainda soubesse a implicação dos sentidos dessa palavra. Através do estudo básico dos conceitos linguísticos, aquele pequeno selvagem imerso nas utopias existenciais transcendentes de seu tempo chegava a algumas percepções da estrutura da linguagem, mesmo as elementares, às quais jamais chegaria por conta própria, se tentasse levar seu projeto autodidata adiante.

Isto é, contrariando a intuição do senso comum, eu percebi o básico — a língua não é um objeto óbvio de estudo, algo de que saberíamos tudo pelo simples fato de que sabemos todos falar e entender nossa língua. Se a língua é um fenômeno “natural”, o que dizemos sobre ela nunca o é. Esse foi um primeiro estalo na minha cabeça. A percepção das complicações do conceito de ciência, ou sobre o que é afinal o tal método científico, chegou até mim pela mão da linguística.

Se o método entretanto parecia tão útil e cristalino para dar conta dos fenômenos da linguagem, ou pelo menos colocá-la num trilho a partir do qual se pudesse chegar a algum lugar analítico consistente, a sua transposição mais ou menos mecânica para o mundo da literatura criava alguns problemas de método, ou de pressupostos, bastante complicados, que a cabeça caturra daquele escritor iniciante via-se incapaz de alcançar. Eu pressentia alguma coisa errada mas não tinha um andaime teórico para localizá-la.

A dificuldade me parecia especialmente verdadeira no caso da prosa. Se a poesia, ou as estruturas poéticas, digamos assim, pareciam obedecer mais docilmente à mão de ferro das reiterações formais, ao seu método descritivo abstrato, a prosa parecia sempre chucra demais, errática demais, diversificada demais, para se encaixar nas — vamos dizer a expressão que, ao fim e ao cabo, parecia estar à sombra do projeto teórico, o mordomo secreto do crime — ciências naturais. O próprio formalismo russo (sempre lembrando que a expressão genericamente engloba um grande número de linhas díspares e não poucas vezes contraditórias) encontrou na prosa um inimigo complicado para decifrar. Entre as estruturas reiteradas de Vladimir Propp, em busca de um DNA narrativo universal, e, digamos, o célebre conceito de estranhamento de Viktor Chklovski, tentavam-se encaixar as séries prosaicas em algum modelo formal domesticado - e houve mesmo quem simplesmente descartasse a prosa como gênero estético, relegando-a apenas ao campo de sua atividade temática, como expressão do jornalismo, da história, da psicologia, etc., um monstrengo tecnicamente híbrido e disforme sem lugar na classificação artística autêntica.

O ponto final desta perseguição teórica, que parecia reconhecer a estatura estética da prosa unicamente na medida em que ela fosse capaz de ser lida e decifrada como poesia, obedecendo aos seus parâmetros disciplinares, foi metodologicamente coerente - e por fim veio a pá de cal, decretando-se que “o romance está morto”. Pode-se dizer que este foi um mantra muito ouvido nos anos 1970 e seguintes. O romance morreu, e ponto final. Passava a ser academicamente dominante a ideia de que, na nova poética universal, a prosa, ou as formas tradicionais da prosa, não teriam lugar, exceto se se identificassem formalmente com a poesia2 2 Lembro que, nos limites deste breve ensaio, estou me atendo apenas à questão linguístico-formal que entrava em jogo. A “morte do romance” teve outros culpados e outros arautos, por assim dizer, girando em torno do que se pode chamar genericamente de crise da representação realista e consequente prestígio do que (também genericamente) se definiria como arte conceitual. Isto é, categorias críticas nascidas no campo das artes plásticas migravam com certa facilidade especular para o campo literário. .

Prosseguindo a minha anamnese literária: para um prosador como eu, alguém que punha nas formas romanescas o seu projeto criador, aquela sentença de morte soava particularmente dolorosa. Claro que estou falando aqui de uma hipertrofia teórica caricatural, uma pequena voz sufocada nos limites da província brasileira, mas o sentimento era verdadeiro. Haveria alguma coisa errada naquilo, que, entretanto, eu não conseguia localizar. O que parecia se entender como “romance” - mas isso eu só formulei mais tarde - era apenas a forma composicional do célebre romanção do século XIX, uma espécie de modelo tecnológico (o “tecnológico” aqui não é exatamente irônico, porque, de fato, havia uma arrogante obsessão cientificista no ar) tornado obsoleto; assim como os sapateiros não produziam mais sapatos de quatro fivelas, escritores não devem mais produzir “romances”. Afinal, objetos estéticos são (ou eram entendidos como) “objetos” unilaterais, e não pontos de confluência de vozes vivas e contraditórias (mas isso também só me ocorreu mais tarde).

Exatamente neste momento, já entrando nos anos 1980, caiu-me à mão a cópia xerox de um capítulo de uma edição francesa de um certo Mikhail Bakhtin, sob o título “O discurso na poesia e o discurso no romance”. Trata-se do segundo capítulo de “O discurso no romance”, que hoje conta com uma tradução direta do russo de Paulo Bezerra (BAKHTIN, 2015, p.47-78BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. p.47-78.). Começando meu mestrado, eu estava atrás de algum embasamento teórico para tratar da distinção entre prosa e poesia, já que havia escolhido como objeto de estudo uma obra de prosa poética de um autor brasileiro (APA, 1977APA, W. R O povo do mar e dos ventos antigos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1977;; 1978APA, W. R. O santo da ilha na guerra dos rumos. São Paulo: Editora Brasiliense,1978.).

Aquele capítulo, que eu li e reli mil vezes, traduzindo linha a linha com o meu sofrido francês e tentando me familiarizar com seu estilo, seu vocabulário e seus pressupostos teóricos (que me soavam distantes do jargão escolar ao qual eu estava habituado), teve um impacto especial na minha cabeça e acabou por determinar a direção da minha carreira acadêmica. Já nos primeiros parágrafos Bakhtin parecia responder diretamente à minha inquietação ignorante sobre a natureza do romance - o fato de que os estudos da linguagem literária até então tinham sido incapazes de dar conta da especificidade do romance como gênero, ou, dizendo de forma mais ampla, e de certa forma revolucionária, do discurso romanesco, da natureza da prosa artística, em suas diferentes formas históricas. Aquele texto escrito na década de 1930 em algum rincão perdido da União Soviética parecia responder diretamente às questões teóricas ainda dominantes cinquenta anos depois.

O que me chamou especialmente a atenção era o fato de que Bakhtin deslocava a questão composicional dos gêneros do a priori em que se encontrava, isto é, o olhar da história dos gêneros como um conjunto de gavetas composicionais objetivas e estáveis, para um momento a posteriori do processo artístico. Em outras palavras - e tento reproduzir aqui o que se passou na minha cabeça durante a leitura -, na linguagem viva e concreta há uma prévia e obrigatória interação de vozes conflitantes em jogo na produção de texto e de seus sentidos literários, cuja natureza relativa, ou, mais precisamente, cuja rede de relações hierárquicas, definirá a estrutura composicional. Em síntese, eu percebia, via Bakhtin, que poesia e prosa não se definem propriamente por suas formas composicionais (exceto em sua redução didática e classificatória), mas pela natureza da complexa relação de intencionalidades entre o autor, seu objeto e aquilo que se diz sobre o objeto, as vozes que já ressoam sobre o objeto quando eu me debruço sobre ele para nele acrescentar a minha palavra.

O DNA desta percepção inicial estava simplesmente - sempre lembrando que o então leitor de Bakhtin era um jovem candidato a escritor e esforçado acadêmico em início de carreira - no fato de que, no texto poético em sentido estrito (isso é importante; trata-se de um gradiente amplíssimo, que vai, digamos, da extrema prosa à extrema poesia), a voz do poeta adere às suas palavras de uma forma absoluta e completa; o poeta assina embaixo de cada palavra que escreve. Assina ele mesmo, o próprio poeta; o poeta sempre diz declarando-se autor daquela fala no sentido imediato de sua voz. Ressaltava-se também nesta definição a ideia de isolamento da palavra poética, uma visível intencionalidade isolante, ou pelo menos o impulso pelo isolamento, que acaba por se realizar concretamente de forma composicional: a métrica, a música, o verso, a rima, o vocabulário, tudo no poema parece expressão determinada de um esforço de não se confundir com as vozes comuns em torno, ou pelo menos usá-las sempre e apenas a seu próprio serviço.

Enquanto isso, reduzindo didaticamente a questão a um esquema, podemos dizer que o prosador assume a palavra com outro “lugar de fala” (para usar esta expressão contemporânea), um lugar de fala propositalmente deslocado; o prosador, contrariando hereticamente um dos dogmas políticos do nosso tempo, abdica de seu próprio lugar de fala, criando um narrador, uma espécie de álibi narrativo - de fato, um outro autor, que vai a campo dizer o que diz, deixando à sombra a voz do próprio autor. Eu sinto que este princípio de deslocamento é um dos eixos centrais da visão de mundo bakhtiniana. Voltarei a esse ponto adiante.

Assim, a forma composicional seria antes um resultado formal de um processo anterior, intrínseco à produção de sentido, e que poderia se definir fenomenologicamente por uma pergunta: ao escrever, o que eu faço com a voz dos outros? É uma pergunta que todo escritor, prosador ou poeta se faz antes de escrever a sua primeira palavra, mesmo que não pense nisso. A voz dos outros já está presente na palavra antes mesmo que ela seja escrita no papel: escrever é estabelecer, desde o primeiro sopro, alguma relação com uma voz intrusa. Pode ser um pacto de adesão. Ou uma guerra sem tréguas. Ou, mais uma vez, como tudo na vida real, um gradiente de gradações e nuances infinitas.

Esta breve epifania de um pequeno estudante - vamos dizer assim para dar algum colorido àquele momento - recolocava a questão do romance noutro patamar. Porque, afinal, era isto que eu estava descobrindo com aquele capítulo avulso de Bakhtin: o romance não é um gênero literário fechado como o soneto, ou não se define excludentemente como uma forma composicional mais ou menos delimitada no tempo ou no espaço. Em outras palavras, não, o romance não nasceu na bela manhã de 16 de janeiro de 1605 com o nome de Dom Quixote, e nem faleceu de morte morrida em 2 de fevereiro de 1922 com o monumental Ulysses, de James Joyce, como se nesse intervalo se esgotassem todos os recursos técnicos disponíveis para a construção daquele objeto científico-literário chamado “romance”, um trambolho incômodo que a teoria clássica não conseguia encaixar exatamente em lugar algum, como Bakhtin frisava.

O romance é uma linguagem, ou mais exatamente, uma arena de linguagens, linguagens que - o detalhe é importante - mantêm em algum grau a sua autonomia semântica e entonacional, linguagens que, mesmo depois de passar pela mão estilística e intencional do narrador, mantêm a sua especificidade, a sua “gramática histórica” lado a lado com sua intencionalidade de origem, por assim dizer. A forma composicional que resultava daí seria, digamos, a sua aparência de superfície, a sua concretização específica no tempo e no espaço, mas não a sua definição genética. A forma composicional é o fenótipo do romance, ou - é preciso aqui mudar a própria terminologia - da linguagem romanesca.

Sob esta perspectiva, a história da prosa literária ganhava outra dimensão. Por exemplo, a simples ideia disseminada e vulgarizada de que o romance seria a evolução natural da epopeia, ideia típica nascida de certo positivismo histórico e de um evolucionismo otimista e irreversível, era virada de ponta-cabeça por Bakhtin. Para ele, o gênero romanesco é justamente a destruição ideológico-formal da epopeia, e não a sua tranquila “evolução” - aliás, a própria ideia de “evolução” literária, a ideia de que sempre avançamos em direção a alguma perfeição futura, transplantada para a literatura, é esquisita, um hegelianismo colocado a fórceps na história das formas literárias. Como Bakhtin frisaria, é mais fácil, verossímil e consistente encontrar a origem do romance nos prosaicos diálogos platônicos do que nos versos épicos de Homero.

Porque, pensando bem, uma obra como Satiricon, do início da era cristã, em boa parte é estruturalmente tão “romance moderno” quanto o próprio Dom Quixote (e em alguns momentos, pelos seus traços psicológico-realistas, até mais, por antecipar formas de representação da intimidade que só se tornariam correntes do século XVIII em diante); e se as circunstâncias históricas e culturais do Império Romano, mais o talento de Petrônio, foram capazes de produzi-la, o longo inverno medieval irá esquecê-la completamente para avançar em outra direção, com tintas épico-religiosas renascidas. Porque a arena de linguagens mais ou menos autônomas que é o discurso do romance na visão de Bakhtin, exige certos pressupostos histórico-sociais para que se substancie, entre eles a coexistência conflituosa de linguagens distintas, fruto direto dos processos de concentração urbana, da viva multiplicidade de valores em contraste, do prestígio social da palavra escrita e de pelo menos relativa liberdade.

O meu momento “eureca” foi, assim, perceber que a ideia de que o romance estava morto era um equívoco teórico de origem ou mesmo apenas uma boutade arrogante. Porque havia, imbricados e inseparáveis do primeiro, dois outros Bakhtins além do teórico literário, daquela porta através da qual comecei a mergulhar nos seus textos. Um deles, fundamental, é o linguista. Para definir o romance substancialmente como uma arena de linguagens em luta e não como a voz unitária de alguém que define o mundo em seus próprios e únicos termos (como a poética clássica tendia a ver a prosa), Bakhtin recorria a uma concepção de língua que, obrigatoriamente, transcenderia os limites estruturais da ciência linguística. Ela não poderia deixar de ir adiante do esquema linguístico, porque, afinal, a literatura não é um fato da natureza, uma realidade imóvel, recorrente e fechada determinada pelos deuses, mas um fato semovente e plástico da cultura humana.

Tentar encontrar o Graal da “literaturidade” apenas nas formas composicionais neutras, deixando os chamados conteúdos para as suas respectivas áreas de estudo, é esvaziar a literatura do que ela de fato tem de literário e nos deixar apenas com um esqueleto mais ou menos linguístico na mão. Assim como em Freudismo, Volóshinov reclamará de Freud o fato de ele elaborar a teoria psicanalítica inteiramente fundada sobre a linguagem sem, entretanto, explicitar uma teoria da linguagem, Bakhtin lembrará que o formalismo acabava por fazer o mesmo ao tratar da literatura.

A outra dimensão bakhtiniana é a filosófica, mas isso eu só fui perceber bem mais tarde, e de uma forma subsidiária, porque a filosofia não era o meu campo central de estudo, embora sem a sua sombra seja difícil pensar com alguma nitidez sobre qualquer área de conhecimento que se relacione com a natureza da linguagem. A imersão bakhtiniana prosseguiu a partir daquele capítulo impactante, de forma sistemática. Minha próxima leitura foi, justamente, Problemas da poética de Dostoiévski, na edição de 1981, de capa verde, enfim com uma tradução direta do russo de Paulo Bezerra. O quadro de referências foi se ampliando. Quase que ao mesmo tempo, chegavam ao Brasil Marxismo e filosofia da linguagem, de Voloshínov (mas ainda atribuindo autoria a Bakhtin), este traduzido da versão francesa, e um pouco mais tarde Estética da criação verbal (1992), também tradução indireta, que agora já conta também com uma tradução direta do russo de Paulo Bezerra (2003). Deste volume, o texto O autor e o personagem na atividade estética foi outro momento marcante da minha vida de leitor. Aliás, considero-o uma obra verdadeiramente monumental sobre a natureza do romance; entre outras razões, é bom lembrar, porque é muito mais do que simplesmente uma teoria da linguagem romanesca.

Toda a minha vida acadêmica acabou se fazendo em torno dessas obras e de alguns de seus conceitos fundamentais. Muitos deles certamente refratados e transformados bakhtinianamente, digamos assim, pela minha cabeça, como acontece sempre nos processos de assimilação teórica, cultural e intelectual. No esforço de se compreender Bakhtin, havia muitas variáveis históricas em jogo naqueles anos, em especial no Brasil, cada uma delas com algum grau de ortodoxia, mas bastará frisar três delas.

Na vertente política, brilhava o marxismo — até que ponto ou em que medida o olhar de Bakhtin é “marxista”? Para um acadêmico brasileiro dos anos 1980 (ou ainda hoje, e quem sabe sempre) era uma questão às vezes crucial que poderia glorificá-lo ou demonizá-lo com intensidade semelhante. E dentro da imensa e variada catedral marxista, até que ponto ele era, digamos, “soviético”, ortodoxo, dissidente, etc. As sombras inquietantes de Voloshinov e Medvedev estavam ali, sempre presentes, em busca de uma resposta. (É preciso lembrar que o manuscrito de Para uma filosofia do ato, sua primeira obra, que recoloca esta questão filosoficamente em outros termos, só seria descoberto por último na sua conturbada história bibliográfica3 3 Meu primeiro contato com esta obra foi a edição americana de 1993 – Toward a Philosophy of the Act. Translation and Notes by Vadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1993. Em parceria com Carlos Alberto Faraco, fiz uma tradução deste livro para uso próprio quando comecei meu doutorado (orientado por João Roberto Faria), em 1998. A tese foi publicada com o título Entre a prosa e a poesia – Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. ).

Na vertente estritamente linguística ou literária, em que medida Bakhtin seria apenas mais um “formalista russo”? O engraçado é que, em vários momentos, esta acusação servia tanto para minimizar sua suposta originalidade (ora, ele apenas reproduz conceitos típicos do formalismo!), quando para reforçar sua importância, dando-lhe a dimensão e o prestígio de um movimento teórico consagrado (ao mesmo tempo em que se apagam suas supostas heresias). O fato de o próprio Bakhtin, ou Medvedev, repercutindo os mesmos pontos de vista, às vezes com as mesmas frases, vocabulário e mesma estrutura argumentativa, ser o autor dos textos mais demolidores dos pressupostos filosóficos formalistas não dizia muita coisa, quando o próprio Trótsky havia condenado o formalismo às trevas, e portanto seria preciso ler as entrelinhas históricas, sempre altamente relevantes no contexto soviético. Há uma delicada questão ética colocada em jogo quando se sabe que o movimento formalista entrou em desgraça política, o que com frequência era literalmente mortal naquelas circunstâncias.

E, afinal, o rigor teórico-filosófico de Bakhtin não tinha nada de esquemático ou panfletário (à exceção às vezes apenas do primeiro e do último capítulo do livro, destinados ao olhar do censor da era de Stálin), e há quem veja nele, sim, um formalista bastante rigoroso, que dá ao próprio movimento uma consistência metodológica e filosófica de que os seus defensores mais famosos careciam. Em qualquer caso, este seria sempre um ponto de tensão: guardando as devidas proporções históricas, do mesmo modo como ser formalista nos anos 1930 soviéticos, ser antiformalista nos anos 70 e 80 ocidentais não era uma posição academicamente confortável (ainda que, é sempre bom lembrar, ninguém felizmente fosse fuzilado por isso, o que é uma diferença substancial).

Finalmente, cultua-se também um Bakhtin místico, um cristão ortodoxo na melhor tradição de uma Rússia profunda, talvez a interpretação que mais me tenha surpreendido a partir de tudo que eu li dele. Mas este tema, que muito provavelmente se relaciona com o papel central de Dostoiévski na criação de suas categorias críticas, e com o sentido ético, e eventualmente religioso, do que significa dialogismo e polifonia na sua visão de mundo, está muito além do meu repertório crítico e do meu conhecimento das raízes russas de seu pensamento, e assim faço apenas a referência como um ponto a se pensar e estudar.

Para fechar esta minha breve memória bakhtiniana, lembro que hoje eu o leio, sempre com prazer, sempre aguardando as novas traduções diretas do russo com que Paulo Bezerra e outros grandes tradutores vêm nos presenteando, menos como acadêmico — o que, como eu disse, não sou mais — mas como um leitor comum, esta ave cada vez mais rara. E aos 90 anos de sua obra-prima sobre a literatura de Dostoiévski, que continua vivíssima a nos desafiar, queria fazer uma breve reflexão sobre o sentido contemporâneo do que eu chamo intuitivamente de sensibilidade literária, e que eu considero como uma das condições de humanidade.

Em suma, o que a ficção literária, entendida como um modo muito particular de percepção, reconhecimento e representação das coisas da vida e do mundo, esta linguagem estranha que, como Bakhtin nos ensina, se apropria de todas as linguagens vivas da vida social mas não se confunde estritamente com nenhuma delas, tem a nos ensinar? Talvez o ponto central esteja na extraordinária categoria criada por Bakhtin em sua obra sobre o autor e o personagem: o que ele chama de “excedente de visão estética”, o fato de que o narrador sabe mais do que os seus personagens, está sempre adiante deles. Esta categoria literária, entretanto, não é especificamente literária, no sentido apenas instrumental do termo, como, digamos, os conceitos de trama, enredo, suspense, protagonismo ou antagonismo — ela deriva diretamente dos limites reais de nossa apreensão da realidade. Citando a tradução de Paulo Bezerra do capítulo sobre a forma espacial da personagem, “quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem” (BAKHTIN, 2003, p.21BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003.).

Mas é uma não coincidência intensamente ativa: a minha palavra, antes mesmo de ser proferida, internaliza a imagem e a intencionalidade do outro, e precisa delas, ainda que sejam apenas sombras, para ficar em pé e se realizar. Assim, a natureza intrinsecamente dialógica da linguagem — uma definição que está no campo originalmente estrito da teoria da linguagem — nas mãos de Bakhtin se torna uma espécie de alavanca de Arquimedes para entender a natureza da literatura, uma régua a partir da qual as diferentes manifestações históricas da literatura e suas formas composicionais específicas ganham uma hermenêutica original e produtiva.

A meu ver, este foi o princípio que moveu a sua abordagem revolucionária da obra de Dostoiévski, e a partir dela Bakhtin criou o conceito de polifonia romanesca; foi, igualmente, o princípio que gerou o seu conceito de carnavalização para compreender a obra de Rabelais. Polifonia e carnavalização não são, portanto, criações críticas instrumentais que funcionem como molduras reiteráveis que podem ser aplicadas a formas composicionais estritas, como acabaram se tornando por meio de sua inevitável vulgarização didática; são, isto sim, definições arquitetônicas de momentos históricos precisos, consubstanciadas em obras de autores específicos.

Gosto de pensar especialmente nessas duas categorias que nasceram em campos distintos, a primeira dos estudos da linguagem, a segunda dos estudos da literatura, que são dialogismo e polifonia. São duas categorias que estão no centro argumentativo desta obra extraordinária e fundadora, Problemas da poética de Dostoiévski. São definições que, pelo seu imenso potencial temático e argumentativo, a partir da inesgotável sugestão filosófica e existencial implícita em seus princípios, a noção de diálogo e a noção de multiplicidade de vozes, representam por si sós uma metáfora poderosa da carência política dos nossos tempos. São, igualmente, uma iluminação do potencial e da especificidade da literatura, num momento em que, talvez na esteira da arrogância tecnológica contemporânea, a arena literária parece se apagar, perder a sua força cultural de referência, a sua instintiva apreensão dos valores do tempo, em nome de deuses fragmentários mais rápidos, brutais, unilaterais e eficientes na guerra dos sentidos. Não há polifonia alguma no WhatsApp; e o que nasceu animadamente como um novo telégrafo parece que se transformou em pouco tempo na única arena dos sentidos culturais.

Muitos sinais inquietantes indicam a nossa, por assim dizer, crescente paralisia dialógica. Um deles talvez seja quase que clinicamente localizável num fenômeno tipicamente contemporâneo, mas que não se reduz ao nosso tempo, e que é mais ou menos recorrente na grande temporalidade, para usar uma imagem literária, que é a decadência da ironia. As vozes parecem que, hoje, só conseguem respirar numa única direção; há no ar como que uma dificuldade surda para se perceber a multiplicidade dos sentidos da vida real da linguagem. É como se o fato simultaneamente simbólico e concreto de que o outro terá sempre um excedente de visão sobre nós mesmos fosse apagado do nosso horizonte. Não apenas como se a ideia de polifonia estivesse se apagando; é como se não desejássemos que ela existisse.

Lembro que, no meu aprendizado acadêmico, ao entrar em contato com o conceito de polifonia de Bakhtin, como definição central da arquitetônica literária de Dostoiévski, esbarrei em vários problemas teóricos complicados (alguns deles levantados pelo próprio Todorov em seu prefácio à edição francesa de Estética da criação verbal). Para sintetizar grosseiramente, a questão se resume à dificuldade de imaginar que um personagem de um romance possa estar à mesma altura argumentativa do seu próprio autor, e que o contraste ideológico entre eles não se feche numa voz narrativa autoritária. Essa espécie de “inacabamento ideológico” definiria o romance polifônico, realizado por Dostoiévski, como ponto culminante de uma corrente literária dialógica verdadeiramente milenar, de natureza descentralizante. E seria condizente também com a percepção de um “homem inacabado”, que, para Bakhtin, está no coração dos gêneros romanescos.

O curioso é que a série de exigências que Bakhtin estabelecia para, de fato, definir um romance como “polifônico”, praticamente reduzia a sua realização à obra de Dostoiévski. O próprio Bakhtin tinha dificuldade para apontar outro escritor polifônico. Bakhtin não definiu propriamente um gênero literário reiterável a partir de alguma forma composicional — ele criou uma categoria específica para dar conta da originalidade de Dostoiévski, tecendo os fios históricos de sua origem. Mas, longe de reclamar desta suposta “falha” metodológica, é preciso prestar atenção na chave crítica que Bakhtin oferecia para interpretar a literatura.

Anos depois, ao ler Para uma filosofia do ato, o seu primeiro manuscrito, me ocorreu o fato de que o Bakhtin que conhecemos nasceu como filósofo; e seu projeto de juventude era o de buscar uma filosofia que descrevesse os eventos da vida sem transformá-la numa abstração teórica, sem torná-la um objeto em que o sujeito não tivesse lugar, uma filosofia necessariamente moral e responsiva. Curiosamente, encontramos na obra sobre Dostoiévski uma imagem extremamente expressiva: “é preciso renunciar aos hábitos monológicos”, dizia Bakhtin, para se sentir em casa na esfera polifônica de Dostoiévski.

É como se, em busca de uma filosofia que a seus olhos se perdia nas circunstâncias históricas da origem da União Soviética, Bakhtin encontrasse em Dostoiévski, e no imenso potencial da criação literária, um campo inesgotável de representação dialógica. “Renunciar aos hábitos monológicos” é uma expressão que vai muito além da definição composicional de um gênero literário. É, de fato, a expressão de uma ética da vida concreta, que, desde sua primeira palavra, esteve sempre no centro do universo intelectual e existencial de Bakhtin.

Ao chamar nossa atenção para o potencial dialógico, e eventualmente polifônico, do romance, ele estava igualmente relembrando a generosidade intelectual implícita na expressão literária, que compulsivamente nos transforma em “outros” assim que escrevemos e lemos nossa primeira palavra. Para um tempo que parece assistir ao apagamento progressivo da sensibilidade literária e que parece incapaz de alcançar as sutilezas da ironia porque só consegue ouvir a própria voz, Mikhail Bakhtin permanece um extraordinário e necessário contraponto.

Notes

  • 1
    Nesse sentido, gostaria especialmente de agradecer o convite honroso e generoso para participar deste Colóquio Internacional que comemora os 90 anos da obra clássica de Mikhail Bakhtin que, centrada em busca da definição da literatura de Dostoiévski, acabou por transformar e em boa medida revolucionar a percepção do romance como gênero e forma composicional. Digo generoso porque, para minha felicidade, o convite foi feito ao escritor, e não propriamente ao acadêmico, o que tecnicamente não sou mais.
  • 2
    Lembro que, nos limites deste breve ensaio, estou me atendo apenas à questão linguístico-formal que entrava em jogo. A “morte do romance” teve outros culpados e outros arautos, por assim dizer, girando em torno do que se pode chamar genericamente de crise da representação realista e consequente prestígio do que (também genericamente) se definiria como arte conceitual. Isto é, categorias críticas nascidas no campo das artes plásticas migravam com certa facilidade especular para o campo literário.
  • 3
    Meu primeiro contato com esta obra foi a edição americana de 1993 – Toward a Philosophy of the Act. Translation and Notes by Vadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1993. Em parceria com Carlos Alberto Faraco, fiz uma tradução deste livro para uso próprio quando comecei meu doutorado (orientado por João Roberto Faria), em 1998. A tese foi publicada com o título Entre a prosa e a poesia – Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

REFERÊNCIAS

  • APA, W. R O povo do mar e dos ventos antigos São Paulo: Editora Brasiliense, 1977;
  • APA, W. R. O santo da ilha na guerra dos rumos São Paulo: Editora Brasiliense,1978.
  • BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. p.47-78.
  • BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1981.
  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Tradução a partir do francês de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • BAKHTIN, M. Toward a Philosophy of the Act. Translation and Notes by Vadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    04 Dez 2020
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