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Migrante e refugiado empreendedor (de si): modos vernáculos de trabalho imaterial como (re)invenção de si no país de destino

Resumo

Com base na abordagem da Autonomia das Migrações, este artigo objetiva analisar modos de singularização de migrantes e refugiados a partir da criação de atividades laborais na perspectiva do trabalho imaterial. O método da cartografia permitiu a produção de dados por entrevistas e observações-participante em Porto Alegre (Brasil), fundamentados em eventos-atividades, informantes-chave e migrantes econômicos e refugiados do sul global que trabalham com música, dança, alimentação, moda, idioma e representação político-cultural. Conclui-se que a mobilização dos migrantes e refugiados em rede de cooperação destaca as referências vernáculas e a situação de migração/refúgio, tornando-os empreendedores de si. Percebe-se um modo de singularização referente a um mercado de trabalho para migrantes e refugiados vinculado ao afeto e à política, que permite, pelo trabalho imaterial, a (re)invenção de si no país de destino.

Palavras-chave:
Trabalho Imaterial; Autonomia das Migrações; Refugiado

Abstract

This article adopts the Autonomy of Migration approach to analyze the singularization of migrants and refugees from creating work activities based on the perspective of immaterial labor. The cartographic method was used to collect data from interviews and participant observation in Porto Alegre (Brazil), exploring events-activities, key informants, and economic migrants and refugees from the global south who work with music, dance, food, fashion, language, and political-cultural representation. The findings show that the mobilization of migrants and refugees in a cooperation network stresses the vernacular references and the migration/refuge situation, making them entrepreneurs of themselves. A mode of singularization is perceived regarding a labor market for migrants and refugees linked to affection and politics, which allows, through immaterial labor, the (re)invention of the self in the destination country.

Keywords:
Immaterial labor; Autonomy of Migration; Refugee

1. INTRODUÇÃO

Os fluxos migratórios se configuram como fenômeno misto, complexo, multifacetado, e têm alcançado patamares históricos que continuam em ascensão (UNHCR, 2019UNHCR, The United Nations Refugee Agency. (2019). Global Trends - Forced Displacement in 2019. https://www.unhcr.org/5ee200e37.pdf
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). Nos últimos anos, o Brasil tem sido destino de migrantes econômicos e refugiados do sul global- africanos, árabes, caribenhos e latinos (Brasil, 2018Brasil, Ministério da Justiça e Segurança Pública. (2018). Refúgio em números 2010-2017. (3ªed.). https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/refugio-em-numeros
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).

Migrante econômico é aquele que migra em função de cenários de baixa qualidade de vida ou colapsos econômicos, financeiros e políticos que impedem condições de vida satisfatórias (IOM, 2019IOM, International Organization for Migration (2019). International Migration Law - Glossary on Migration. https://publications.iom.int/system/files/pdf/iml_34_glossary.pdf
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). Refugiado é aquele que foge devido a fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opinião política ou grave violação de direitos humanos (UNHCR, 2019UNHCR, The United Nations Refugee Agency. (2019). Global Trends - Forced Displacement in 2019. https://www.unhcr.org/5ee200e37.pdf
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). Ambos necessitam de acolhida e oportunidades de trabalho para recomeçarem suas vidas em terras estrangeiras (Sayad, 1979Sayad, A. (1979). Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP.; UNHCR, 2019UNHCR, The United Nations Refugee Agency. (2019). Global Trends - Forced Displacement in 2019. https://www.unhcr.org/5ee200e37.pdf
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).

Evidenciam-se modos de individuação (Guattari & Rolnik, 1996Guattari, F., & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.) de migrantes e refugiados pela sociedade que comumente lhes atribui rótulos de “coitados” e “desqualificados”, mesmo quando possuem qualificação (Altenried et al., 2018Altenried, M., Bojadžijev, M., Höfler, L., Mezzadra, S., & Wallis, M. (2018). Logistical Borderscapes: Politics and Mediation of Mobile Labor in Germany after the “Summer of Migration.” The South Atlantic Quarterly, 117(2), 291-312. https://doi.org/10.1215/00382876-4374845
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), limitando-os aos postos mais precarizados de trabalho (Sayad, 1979Sayad, A. (1979). Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP.), aqueles menosprezados por nativos (Hilario et al., 2018Hilario, C.T., Oliffe, J.L., Wong, J.P., Browne, A.J., & Johnson, J.L. (2018). “Just as Canadian as Anyone Else”? Experiences of Second-Class Citizenship and the Mental Health of Young Immigrant and Refugee Men in Canada. American Journal of Men’s Health, 12(2), 210-220. https://doi.org/10.1177/1557988317743384
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). Por outro lado, é possível identificar modos de singularização nesse processo, enxergando além dos estereótipos (De Genova, Garelli, & Tazzioli, 2018De Genova, N., Garelli, G., & Tazzioli, M. (2018). Autonomy of Asylum? The Autonomy of Migration Undoing the Refugee Crisis Script. South Atlantic Quarterly, 117(2), 239-265. https://doi.org/10.1215/00382876-4374823
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).

Nesse sentido, toma-se a abordagem teórica da Autonomia das Migrações, que não desconsidera a sociedade enquanto agente perpetuadora de preconceitos, exclusão e dominação, mas avança ao visar tensionamentos subjetivos desses migrantes e refugiados em busca de (re)invenção e singularização, especialmente relativos ao trabalho (Mezzadra, 2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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). Paralelamente, toma-se o trabalho imaterial, aquele em que as atividades corporais, manuais, intelectuais, criativas, afetivas e comunicativas - próprias de cada trabalhador -, são valorizadas como condição indispensável à produção e à rentabilização do trabalho (Grisci, 2011Grisci, C.L.I. (2011). Trabalho Imaterial. In A. D. Cattani & L. Holzmann. Dicionário de Trabalho e Tecnologia (pp. 456-458). Porto Alegre: Zouk.; Lazzarato & Negri, 2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A.). Assim, ao rentabilizar seus saberes e bagagem cultural, o indivíduo se torna empreendedor (de si), gerando valor ao trabalho (Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras.; Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.). O trabalho imaterial pode ser visto como via de controle de subjetividades e, também, como via de constituição de indivíduos sociais independentes e autônomos (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.; Negri, 2018Negri, A. (2018). Travail Vivant contre capital. Paris : Les éditions sociales.).

Ao considerar que migrantes e refugiados busquem se distanciar do mercado de trabalho precarizado, argumenta-se que é, justamente, pela via do trabalho imaterial que desponta a (re)invenção de seus modos de viver no país de destino, o que faz notar, por sua vez, o movimento da Autonomia das Migrações. Para tanto, objetivou-se analisar modos de singularização de migrantes e refugiados a partir da criação de atividades laborais na perspectiva do trabalho imaterial.

O estudo desenvolveu-se no município de Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil, onde, nos últimos anos, o afluxo de migrantes visibiliza-se na paisagem, nos destaques da mídia, nas ações de governo, de associações de migrantes e de organizações da sociedade civil, vindo a corroborar a informação de que o município se encontra na oitava posição dentre os municípios brasileiros com maior registro de migrantes, e na 17ª posição entre aqueles com maior número de solicitações de refúgio (IBGE, 2019IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019). Perfil dos municípios brasileiros: 2018. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101668.pdf
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). Realizou-se uma cartografia com participação-intervenção de 36 eventos-atividades, cinco informantes-chave e 16 migrantes econômicos e refugiados. Estes desenvolvem trabalhos com música, dança, alimentação, moda, idioma e representação político-cultural, utilizando referências de seus países de origem: Venezuela, Haiti, Síria, Senegal, Costa do Marfim e Nigéria.

A contribuição deste artigo reside no processo no país de destino que envolve a fuga de um mercado de trabalho precarizado e desvalorizado socialmente à (re)invenção de si a partir do trabalho imaterial, o qual pressupõe e valoriza referências de origem e da própria situação de migração/refúgio.

2. AUTONOMIA DAS MIGRAÇÕES

O trabalho condiciona a existência do imigrante. Porém, não se trata de qualquer trabalho, nem é possível encontrá-lo em qualquer lugar. Na década de 1970, Sayad (1979Sayad, A. (1979). Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP., p.55) já alertava que o disponível para imigrantes - hoje também para refugiados - “é o trabalho que o ‘mercado de trabalho para imigrantes’ lhe[s] atribui e no lugar em que lhe[s] é atribuído: trabalhos para imigrantes que requerem, pois, imigrantes”. Essa concepção ainda persiste e, em consonância com Marinucci (2017Marinucci, R. (2017). Migrações e trabalho: precarização, discriminação e resistência. REMHU, Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, 25(49), 7-11. https://doi.org/10.1590/1980-85852503880004901
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), ressalta-se que aos migrantes e refugiados da atualidade são destinados os nichos laborais mais precários e subpagos, deixando de serem valioso instrumento de incorporação nas sociedades de chegada para se tornarem vetor de discriminação e exclusão social.

Embora a Autonomia das Migrações não desconsidere tal perspectiva, Mezzadra (2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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) argumenta que, na visão desta, os processos de exclusão, estigmatização e discriminação, frequentes na literatura, aparecem como efeitos colaterais do capitalismo, negligenciando movimentos de lutas e resistências para adentrar esses pré-conceitos. Nesse sentido, a Autonomia das Migrações é voltada, essencialmente, aos processos de subjetivação, que fazem o migrante sair de sua terra em direção à outra, e aos modos de singularização, relacionados ao trabalho no sistema capitalista, caracterizando um movimento de Multidão.

Multidão é o conceito utilizado por autores como Hardt e Negri (2005Hardt, M., & Negri, A. (2005). Multidão: guerra e democracia na era do Império. São Paulo: Record.), Corsini (2007Corsini, L.F. (2007). Êxodo Constituinte: Multidão, Democracia e Migrações. [Tese de doutorado em Serviço Social] . Universidade Federal do Rio de Janeiro. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=89235
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), Mezzadra (2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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) e Negri (2018Negri, A. (2018). Travail Vivant contre capital. Paris : Les éditions sociales.) referindo-se a um conjunto de singularidades de dimensões política, produtiva e de classe. A Multidão se move por necessidades e desejos, formando laços afetivos e cooperativos em seu percurso. Para Mezzadra (2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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), a Multidão formada pelas migrações é capaz de construir “pontes” e destruir “muros”.

A abordagem da autonomia voltada às migrações, ainda conforme Mezzadra (2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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), surge no final dos anos 1980 em um contexto em que se fortalecia o regime de produção pós-fordista, caracterizado pelas mudanças no mercado de trabalho marcadas pela precarização e flexibilização. Logo, a perspectiva autonomista considera as migrações sob a lente da “composição do trabalho vivo e da produção de subjetividade ligada à mercantilização da força de trabalho”. Interessam-lhe as tensões e os conflitos produzidos no cotidiano entre a “ação de dispositivos heterogêneos de assujeitamento” e a “multiplicidade de práticas de subjetivação” - tais heterogeneidades se caracterizam, de um lado, pelas tentativas de controle das migrações para transformar o migrante em um ser assujeitado e, de outro, pelas práticas de expressão de autonomia (Mezzadra, 2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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, p.71).

Em outras palavras, a partir da visão de Guattari e Rolnik (1996Guattari, F., & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.) acerca de subjetividade, as particularidades vivenciadas por um indivíduo permitem que as subjetividades oscilem entre duas extremidades. De um lado, o indivíduo se submete às subjetividades recebidas em um movimento de alienação e opressão, denominado modo de individuação. De outro, o indivíduo consegue se reapropriar dos componentes de subjetividade recebidos em um movimento de expressão e criação, configurando-se modo de singularização. As subjetividades são coletivas e, ao se associarem, resultam em processo de singularização - uma afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções. As transformações que ocorrem no mundo advêm desse processo, que nada mais é do que a expressão de resistência ao controle social (Guattari & Rolnik, 1996Guattari, F., & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.).

Para os autonomistas, a mobilidade é um direito, e a migração é uma força criativa no interior das estruturas sociais, culturais e econômicas. Não se trata de uma visão romantizada de um migrante que se desloca exclusivamente pela sua autonomia, mas que traz luz a esse elemento (Mezzadra, 2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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). Observa-se que a abordagem tem a intenção de contribuir para uma visão de alguém que está buscando se (re)inventar, que se move porque, em meio à produção de subjetividades, surgem singularidades. Nesse sentido, a abordagem da Autonomia das Migrações permite, de antemão, associar a criação de atividades laborais de migrantes e refugiados à noção de trabalho imaterial. Trabalho este envolto por tensionamentos relativos à produção de subjetividade, ora via mercantilização do trabalhador, ora via autonomia relativa a modos de ser e de viver.

3. TRABALHO IMATERIAL

O trabalho imaterial refere-se ao “conjunto de atividades corporais, intelectuais, criativas, afetivas e comunicativas inerentes ao trabalhador, atualmente valorizadas e demandadas como norma impositiva que torna o trabalhador sujeito ativo do trabalho e como condição indispensável à produção” (Grisci, 2011Grisci, C.L.I. (2011). Trabalho Imaterial. In A. D. Cattani & L. Holzmann. Dicionário de Trabalho e Tecnologia (pp. 456-458). Porto Alegre: Zouk., p. 456). Desse modo, a base da produtividade se torna a subjetividade, o investimento no cérebro humano socializado, que requer o máximo de ruptura da relação disciplinar nas fábricas e o máximo de liberdade no trabalho (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.).

Trabalho imaterial trata-se, ainda, de uma força de trabalho social e autônoma (Lazzarato & Negri, 2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A.), constituída sob formas coletivas de redes, fluxos e cooperação produtiva por meio da vida (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.). Como potência de agir em direção ao trabalho imaterial, considera-se o afeto, uma expansão singular e universal. “Singular porque põe o agir para além de qualquer medida que a potência não contém em si mesma, em sua própria estrutura e nas reestruturações contínuas [que] ela constrói. Universal, porque os afetos constroem uma comunidade entre os sujeitos” (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras., p. 54). Na mesma linha, considera-se a política, relacionada às atividades que, pelo exercício do diálogo, buscam articulação coletiva e ajudam a compor a existência de grupos (Mansano & Carvalho, 2015Mansano, S. R. V., & Carvalho, P. R. (2015). Políticas de subjetivação no trabalho: da sociedade disciplinar ao controle. Psicologia em Estudo, 20(4), 651-661. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i4.28735
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).

Gorz (2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.) explica que trabalhadores pós-fordistas do trabalho imaterial entram em processo de produção com toda a bagagem cultural e a diversidade de capacidades heterogêneas desenvolvidas fora do trabalho estimulando vivacidade e cooperação. Também se apropriam do saber vernacular, explorando-o - são saberes diversificados, como matemática, retórica, arte, normas estéticas. Assim, o trabalho do sujeito é produzir a si mesmo continuamente por meio de saberes que são fonte de criação de valor (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.).

A utilização do próprio potencial de desenvolvimento alinhado a uma boa gestão de si possibilita a autorrentabilização, o que tem sido apontado e criticado como essencial para o sucesso do indivíduo trabalhador e também da sua empresa (Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras.; Bauman, 2011Bauman, Z. (2011). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar.). Isto significa que o trabalhador deve doar-se continuamente à gestão, deve produzir-se como sujeito para poder trabalhar. Surge, então, o autoempreendedor, aquele que empreende as suas capacidades as quais, por sua vez, são o seu capital fixo. Independentemente do seu estatuto, não há mais diferença entre o indivíduo e a empresa (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.).

Autoempreendedor (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.), empreendedor de si, gestor de si (Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras.) ou trabalhador autônomo (Lazzarato & Negri, 2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A.) fundamentam carreiras tanto de quem é dono de negócio quanto de quem é empregado. Isso ilustra a argumentação de que o trabalho imaterial tende a ser hegemônico (Lazzarato & Negri, 2001) no capitalismo flexível e globalizado (Harvey, 2017Harvey, D. (2017). Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola.).

No contexto de migrantes e refugiados, empreender(-se) na lógica do trabalho imaterial distancia-se do empreendedorismo comumente associado à ótica gerencialista a qual, segundo Gaulejac (2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras.), evidencia o empreendedor como modelo de sucesso, ligado às mais sofisticadas ferramentas de planejamento e cálculo de riscos e custos de um negócio inovador. Empreender(-se) aproxima-se de empenhar a vida como alternativa de trabalho em busca de um devir, mesmo que inconsciente. Nesse sentido, argumenta-se que empreender(-se) para migrantes e refugiados inclui a mobilização de si para a criação de modos de trabalhar no país de destino que reúnem especificidades da migração/refúgio e dos seus países de origem.

4. MÉTODO CARTOGRÁFICO

A cartografia é um método qualitativo para acompanhar processos de produção de subjetividades (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2015Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (Org.). (2015). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina .). Na Administração, Weber, Grisci e Paulon (2012Weber, L., Grisci, C.L.I., & Paulon, S.M. (2012). Cartografia: aproximação metodológica para produção do conhecimento em gestão de pessoas. Cadernos EBAPE.BR, 10(4), 841-857. http://dx.doi.org/10.1590/S1679-39512012000400005
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, p. 841) alertam que parcos estudos apontam sua potencialidade e encorajam seu uso como “alternativa aos métodos tradicionais de pesquisa, contribuindo, dessa forma, para a produção do conhecimento sobre o trabalho no cenário contemporâneo”. Uma vez que esta pesquisa versa sobre processos de produção de subjetividade, a saber, os modos de singularização de migrantes e refugiados, a partir da criação de atividades laborais na perspectiva do trabalho imaterial, a cartografia se apresenta como método coerente e fecundo. Afinal, acompanhar a processualidade de um fenômeno em movimento, como a migração, associando-a ao trabalho imaterial, requer acompanhar, ao mesmo tempo, a perda e a formação de sentidos, o desmantelamento e a criação de mundos que expressam afetos contemporâneos - características da cartografia, conforme Rolnik (2006Rolnik, S. (2006). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina .).

O método cartográfico não é prescritivo, mas conta com pistas, dentre elas, a imersão do cartógrafo em um território e a pesquisa-intervenção (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2015Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (Org.). (2015). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina .). A cartografia se apoia no conceito filosófico de território de Deleuze e Guattari - preza por expressividade, personagens rítmicos e paisagens melódicas (Alvarez & Passos, 2015Alvarez, J., & Passos, E. (2015). Pista 7 - Cartografar é habitar um território existencial. In: E. Passos, V. Kastrup & Escóssia, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp.131-149). Porto Alegre: Sulina.). Já a pesquisa-intervenção condiz com o processo em que pesquisador, objeto e sujeito de pesquisa interagem e produzem efeitos na investigação (Passos & Barros, 2015Passos, E., & Barros, R.B. (2015). Pista 1 - A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia(Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp.17-31). Porto Alegre: Sulina .).

O território de pesquisa constitui-se do enredo relativo à migração/refúgio desenvolvido no município de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, pelos participantes do estudo tomados em suas diversas possibilidades de relação. O Estado gaúcho tem sua história fortemente marcada por movimentos migratórios, sobretudo, pela colonização de imigrantes alemães e italianos ao longo do século XIX. Mas, assim como a história do Brasil, também teve sua população composta por portugueses, espanhóis, e africanos escravizados durante o período colonial e imperial. Após a independência até meados dos anos 1960, outras nacionalidades chegaram por políticas de migração estimulada a fim de angariar mão de obra qualificada. Já o período da ditadura militar até meados de 1990 é marcado pela criação de leis para controle restritivo às imigrações, sendo o imigrante visto como trabalhador “indesejável” (Zamberlam, 2004Zamberlam, J. (2004). O processo migratório no Brasil e os desafios da mobilidade humana na globalização. Porto Alegre: Pallotti.).

Desses movimentos originaram-se, em Porto Alegre, comunidades quilombolas urbanas e associações de imigrantes por nacionalidade. Também surgiram entidades da sociedade civil que até hoje atuam no acolhimento de migrantes e refugiados, a exemplo do Centro Ítalo Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (CIBAI), instituição vinculada à igreja católica, presente no município desde 1939 (Zamberlam et al., 2014Zamberlam, J., Corso, G., Bocchi, L., & Cimadon, J. M. (2014). Os novos rostos da imigração no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Solidus.).

Desde o início da década de 2000, Porto Alegre possui legislação municipal e setor específico na prefeitura responsável pelo tema da migração, mas ele só ganhou prioridade na agenda governamental com a chegada em massa de haitianos e senegaleses entre 2013 e 2015. Ademais, a cidade tem uma série de organizações civis e projetos vinculados a universidades em torno do tema. Inclusive é comum que migrantes e refugiados recém-chegados procurem essas instituições ao invés dos gabinetes governamentais (Otero & Lotta, 2020Otero, G. A. P., & Lotta, G. S. (2020). International Migration and Federative Co-ordination in Brazil: São Paulo and Porto Alegre Case Studies between 2013 and 2016. Contexto Internacional, 42(2), 277-301. http://doi.org/10.1590/S0102-8529.2019420200004
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).

Esse cenário criou uma agenda migratória no município, possibilitando a realização de uma pesquisa-intervenção que sustentou os procedimentos de produção de dados e ocorreu em três partes, entre janeiro de 2017 e dezembro de 2019. Tais partes não são subsequentes, incidiram de forma simultânea acompanhando a processualidade do território.

A primeira parte refere-se à realização de observação-participante e diários de bordo em 36 eventos-atividades de cunho acadêmico, político, social e/ou cultural a respeito do tema migração/refúgio, tais como seminários e projetos de extensão na universidade, reuniões de comitês do governo municipal e estadual, trabalho voluntário em ONG, feira de empreendedorismo imigrante em sede de projeto social e exposições artísticas em casa cultural, para citar alguns. É fruto de uma experimentação como flâneur-cartógrafa vivenciada na capital gaúcha, acionada pela rede de contatos de uma das pesquisadoras, abrindo caminhos para as demais partes. Conforme Romero e Zamora (2016Romero, M.L., & Zamora, M.H. (2016). Pesquisando cidade e subjetividade: corpos e errâncias de um flâneur-cartógrafo. Psicologia em Estudo, 21(3), 451-461. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i3.29787
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, p.457), “em suas caminhadas pela cidade o flâneur-cartógrafo vê, cheira, apalpa, encosta, pega e prova da urbe com seu corpo aberto à percepção das variações intensivas”. Nesses eventos-atividades verificou-se a ocorrência de acolhimento, demandas, reivindicações, decisões, conjuntamente discutidos por migrantes e refugiados, instituições públicas e privadas e sociedade civil. Isso mostra a pluralidade de ideias que circulava nesses espaços e a rede ali formada que constitui o organismo vivo da migração e refúgio na cidade e, por sua vez, a base de desenvolvimento do território desta cartografia.

A segunda parte refere-se a cinco entrevistas abertas com informantes-chave, membros de organização religiosa, sociedade civil, universidade e poder público, que atuam de forma direta com migrantes e eram participantes ativos dos eventos-atividades. Foram realizadas em formato de conversa focada nas suas experiências de trabalho e com vistas à indicação de migrantes/refugiados que trabalham fazendo uso de referências de seu país.

E a terceira parte refere-se a entrevistas abertas com migrantes e refugiados e à observação-participante de suas atividades laborais de forma presencial (em seus locais de trabalho/residência e/ou eventos-atividades) e virtual (Facebook, Instagram e WhatsApp). Abrangeram experiências componentes da vida desde o país de origem até o momento atual no Brasil. Cabe ressaltar que além das entrevistas formais, a presença nos eventos-atividades permitiu vários encontros e conversas informais com os entrevistados, registrados em diário de bordo. Isso permitiu o estabelecimento gradual do ethos da confiança necessário na cartografia e a participação engajada dos migrantes e refugiados no processo de pesquisa.

Foram identificados 20 potenciais participantes, porém quatro deles não demonstraram abertura para fazer as entrevistas e acompanhar seus trabalhos. Portanto, participaram da pesquisa 16 migrantes econômicos e refugiados, participantes ativos dos eventos-atividades ou indicados pelos informantes-chave, independentemente de sexo, com as seguintes características: (i) nativos de países do sul global; (ii) migraram ao Brasil em situação de incerteza; (iii) moram e trabalham em Porto Alegre ou região metropolitana; e (iv) trabalham em atividade que usa referências do país de origem. A Tabela 1 apresenta os participantes identificados pelos nomes dos principais rios de seu país, aludindo, assim, aos fluxos, aos movimentos, aos deslocamentos.

Tabela 1.
Apresentação dos migrantes e refugiados

As entrevistas ocorreram nos locais de trabalho, estudo ou residência dos participantes, ou em cafés/restaurantes. A média de duração foi uma hora, e a língua para comunicação escolhida pelo entrevistado: espanhol com três venezuelanos; inglês com um sírio; árabe com dois sírios (tradução simultânea português-árabe); e português para os demais. As entrevistas em idioma estrangeiro foram traduzidas para o português, e alguns trechos sofreram correção gramatical para melhor inteligibilidade.

A análise dos dados seguiu orientações de Barros e Barros (2013Barros, L.M.R., & Barros, M.E.B. (2013). O problema da análise em pesquisa cartográfica. Fractal: Revista de Psicologia, 25(2), 373-390. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200010
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), que defendem não haver procedimentos pré-determinados e sequenciais de análise na cartografia, mas que esta deve ser processual e inerente a todos os procedimentos da pesquisa. A análise cartográfica consiste, por conseguinte, em analisar processos de produção de subjetividades, o que vai ao encontro do objetivo da pesquisa, cuja compreensão dos conceitos demanda acompanhamento de processos de singularização que compõem o trabalho imaterial de migrantes e refugiados. Em linha com os autores, progressivamente com o contato com a experiência, este estudo implicou um rearranjo das fronteiras inicialmente estabelecidas entre sujeito e objeto, e logo, a cartografia produzida, pelas pesquisadoras e pesquisados, alcançou um conjunto de múltiplas relações e proliferação de sentidos singulares à pesquisa em questão.

As gravações das entrevistas contabilizaram, aproximadamente, 20 horas de áudio. Esse material foi transcrito e, juntamente com os diários de bordo, totalizou 434 páginas. Áudio e texto foram revisados e, em movimento de varredura, foram extraídos trechos que caracterizassem os modos de atuação laboral dos migrantes e refugiados, tanto pela perspectiva da fala dos entrevistados quanto dos registros das observações da cartógrafa. Os resultados, analisados à luz do referencial teórico, apontam para três conjuntos de modos vernáculos de trabalho imaterial relativos ao empreendedor de si: atividades artísticas, técnico-manuais e comunicacionais.

5. MODOS VERNÁCULOS DE CRIAÇÃO DE TRABALHO IMATERIAL

Conforme a Tabela 1, os participantes da pesquisa, em geral, vieram dos seus países de origem com ensino médio ou superior, qualificados e experientes em suas áreas de trabalho. Porém suas primeiras oportunidades no Brasil foram incondizentes às suas competências, formações e experiências. Eles tiveram trajetórias laborais formais e/ou informais, como empregados e/ou autônomos, em cargos operacionais e temporários nos setores de indústria, comércio, reparação e serviços. As ofertas de emprego, muitas vezes com direitos diminuídos, estavam atreladas à imagem individuada de mão de obra flexível, com urgência em suprir necessidades básicas (Altenried et al., 2018Altenried, M., Bojadžijev, M., Höfler, L., Mezzadra, S., & Wallis, M. (2018). Logistical Borderscapes: Politics and Mediation of Mobile Labor in Germany after the “Summer of Migration.” The South Atlantic Quarterly, 117(2), 291-312. https://doi.org/10.1215/00382876-4374845
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). Esse cenário põe em evidência um “mercado de trabalho para migrantes e refugiados”, com características de precarização e desvalorização social semelhantes àquele evidenciado por Sayad (1979Sayad, A. (1979). Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP.), compreendido, em linha com Guattari e Rolnik (1996Guattari, F., & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.), como um modo de individuação da ordem capitalista, que busca manter esses indivíduos nesse espaço.

Sentimentos de inconformidade e recusa suscitaram um traçado de linha de fuga (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Vol.3). São Paulo: Editora 34.), caracterizado pelo momento em que os migrantes e refugiados buscaram singularizar seus percursos, no sentido de (re)criar alternativas (De Genova, Garelli, & Tazzioli, 2018De Genova, N., Garelli, G., & Tazzioli, M. (2018). Autonomy of Asylum? The Autonomy of Migration Undoing the Refugee Crisis Script. South Atlantic Quarterly, 117(2), 239-265. https://doi.org/10.1215/00382876-4374823
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). O resgate da atividade profissional ou a criação de trabalho inédito para si (con)formam essas alternativas mobilizadas por uma potência de agir afetiva (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.) e política (Mansano & Carvalho, 2015Mansano, S. R. V., & Carvalho, P. R. (2015). Políticas de subjetivação no trabalho: da sociedade disciplinar ao controle. Psicologia em Estudo, 20(4), 651-661. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i4.28735
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), destacando as referências vernáculas dos países de origem dos entrevistados e a própria situação de migração/refúgio. Essa mobilização torna-os, então, empreendedores, ao criarem alternativas condizentes ao empreendedor de si, característica consubstanciada ao trabalho imaterial.

Tal cenário sustenta o argumento deste estudo, ao mostrar que migrantes e refugiados buscam se distanciar desse mercado de trabalho precarizado e ir em direção de atividades desenvolvidas em diferentes áreas nas quais o trabalho imaterial se evidencia. Os tipos de savoir-faire condizentes ao trabalho imaterial, anunciados por Lazzarato e Negri (2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A.), serviram de base para elaborar três conjuntos que marcam a pluralidade e vernaculidade da atividade-profissão-trabalho dos migrantes e refugiados: (i) atividades artísticas como expressão histórico-cultural-informativa - músico, dançarino, ator, produtor musical, professor de instrumentos musicais, professora de dança; (ii) atividades técnico-manuais como habilidade-criatividade-imaginação - cozinheiro, chef-confeiteiro, chef de cozinha, estilista, costureiro; e (iii) atividades comunicacionais como relações sócio-político-culturais - representante (presidente/secretário/gestor cultural) de associação de migrantes, palestrante cultural, professor da língua materna, tradutor, intérprete, poeta. Cada conjunto é apresentado a seguir.

5.1. Atividades artísticas como expressão histórico-cultural-informativa

As “atividades intelectuais, no que diz respeito ao conteúdo cultural-informativo” são nominadas, por Lazzarato e Negri (2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A., p.49-50), como atividades do trabalho imaterial. A partir da cartografia, acrescentam-se as atividades artísticas, cuja expressão nas áreas de música e dança contém, além de conteúdo intelectual e cultural-informativo, a história dos países dos migrantes e refugiados contada por meio da arte. Essa força de trabalho caracteriza-se por apresentações, aulas de instrumentos, vestimentas, coreografias e músicas típicas da Costa do Marfim, Nigéria e Venezuela.

Em relação à música, os migrantes Comoé e Níger eram profissionais da área em seus países. No Brasil, rearranjaram-se em novas parcerias, fazendo apresentações solo ou com bandas da cena independente, para tocar sons africanos (afrobeat e afrojazz). Suas apresentações envolvem canto, dança, atuação e manejo de instrumentos, especialmente de sopro e percussão, elementos culturais de seus países. A estratégia era inserção a conta-gotas:

Fui oferecendo oficinas de tambor. Foram só duas, três pessoas na primeira. Depois produzi um curso de três meses, aí vieram mais pessoas. Nesse período, eu estava estudando e conhecendo o sul, o Brasil, como funciona aqui, como eu poderia mostrar minha cultura para o povo daqui, sem invadir espaço de ninguém, sem ser mal interpretado. Busquei esse lado e consegui. Depois eu criei esse grupo, com ex-alunos[...]. Tinha só percussão e voz, cantávamos e tocávamos tambor. Naquela época usávamos instrumentos brasileiros, afro-brasileiro e congas (Níger).

Manter a originalidade é marca registrada, inclusive, no nome da banda de Comoé, que significa “busca na raiz” no dialeto dos Akan, seu grupo étnico. A alteridade das atividades artísticas é comprovada nas performances. Nos shows de Comoé e Níger,

os holofotes do palco evidenciavam a etnicidade africana do figurino com tecidos coloridos e geométricos; o movimento livre do músico segurando o djembê, instrumento que ao ter formato de cálice permite passos de dança simultâneos ao batuque; as expressões faciais e corporais acompanhando o som vibrante emitido pela agilidade das mãos; a prece do cantor aos orixás, enquanto espalhava fumaça de incenso; a harmonia com os demais músicos brasileiros; e a vibração do público tentando cantarolar as letras em dialeto africano. Eles ainda explicam à plateia a origem e significado das letras, gestos, passos, instrumentos, reverberando, em um movimento político, a história de seus ancestrais e da (des)colonização da Costa do Marfim e da Nigéria (Diário de Bordo,03/08/2019).

O hibridismo com a música brasileira ocorre vez ou outra, já que os outros componentes das bandas são brasileiros. “A cultura, a música não tem fronteiras”, diz Comoé. Essa rede entre nativos e migrantes surge do encontro de interesses de profissionais e clientes, nesse caso, músicos brasileiros que veem nesse ensejo um laboratório de aprendizagem de ritmos e instrumentos musicais que explicitam a relação histórica África-Brasil. Tal novidade valoriza e rentabiliza o trabalho de nativos e migrantes por oportunizar a expansão de suas performances, individual ou coletivamente, caracterizando-se como um movimento de Multidão (Hardt & Negri, 2005Hardt, M., & Negri, A. (2005). Multidão: guerra e democracia na era do Império. São Paulo: Record.; Corsini, 2007Corsini, L.F. (2007). Êxodo Constituinte: Multidão, Democracia e Migrações. [Tese de doutorado em Serviço Social] . Universidade Federal do Rio de Janeiro. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=89235
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; Mezzadra, 2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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; Negri, 2018Negri, A. (2018). Travail Vivant contre capital. Paris : Les éditions sociales.). Por outro lado, Níger repreende a postura assimilacionista, sem viés crítico que, segundo ele, muitos migrantes adotam para serem aceitos - como indivíduos e trabalhadores - na sociedade de destino. Estudos de migração apontam que a sociedade tolera parcialmente o migrante, somente enquanto trabalhador, mas não quanto aos seus modos de expressão e existência plena (Sayad, 1979Sayad, A. (1979). Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP.; Hilario et al., 2018Hilario, C.T., Oliffe, J.L., Wong, J.P., Browne, A.J., & Johnson, J.L. (2018). “Just as Canadian as Anyone Else”? Experiences of Second-Class Citizenship and the Mental Health of Young Immigrant and Refugee Men in Canada. American Journal of Men’s Health, 12(2), 210-220. https://doi.org/10.1177/1557988317743384
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). A postura de Níger, ao contrário, é de resistência afetiva e política a esse modo de individuação:

Muitos africanos acabaram mudando para agradar os brasileiros. Ao invés de eles se colocarem como africanos com sua cultura, acabam cantando samba, frevo...não! This is not you! Essa não é sua história! Cadê Yorùbá? Cadê sua tradição? Eu vejo africano dançando pop, nããoo...até temos influência, tem histórias sobre pop também. Porém, cadê o tradicional dentro do pop? De onde vem a história tradicional, tu sabe? Tu buscou? Isso que vai fazer a diferença, não é você juntando a eles, que vai deixar você: ‘ah agora eles me aceitaram, porque estou fazendo esse tipo de coisa, porque falei que eles são legais, eles vão me aceitar mais’. Não, não são legais, não. Eles me discriminaram, me botaram pra fora, não deixaram eu fazer minhas atividades(Níger).

Na seara da dança, a venezuelana Unare, aos poucos tenta se inserir como professora para crianças, atividade que já exercia em seu país. Em movimento de rede de cooperação (Lazzarato & Negri, 2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A.) movido pela situação de refúgio, a chefe da sua mãe disponibilizou para os ensaios uma garagem equipada com espelhos, onde funcionava seu antigo salão de beleza. A notícia espalhou-se entre as colegas de sua filha e, aos poucos, a garagem virou uma lotada sala de “baile” para crianças.

Nas aulas de dança de Unare, o início dos passos era sinalizado pelo ‘uno, dos, tres’ cantarolado em portunhol pela professora e alunas. A batida da música latina não deixava nenhuma criança parada. Exceto quando Unare vestia sua saia rodada abaixo do joelho para fazer uma demonstração solo do “joropo”, um dos tipos mais conhecidos da dança tricolor (Diário de Bordo, Unare,06/07/2019).

Tenho doze gurias, estou ensinando pra elas a cultura do meu país”, diz Unare agenciando a dança à cultura venezuelana. Sua formação e experiência com as variantes da dança tricolor nacionalista renderam-lhe a aprendizagem de outros ritmos. Para aproximar-se do público brasileiro, ela mescla hits do Brasil e passos da dança venezuelana, perfazendo uma fusão das culturas de origem e destino possibilitada pelo movimento migratório.

Nas atividades artísticas, sobreleva-se a retomada gradual da profissão de Comoé, Níger e Unare, objetivo almejado desde a chegada no Brasil. A (re)inserção nos palcos ocorreu por vínculos com nativos e outros migrantes que reconheceram a notoriedade das performances, pelo conhecimento, experiência, singularidade e consolidação desses artistas-profissionais em suas terras natal.

Os vínculos, formados pela sensibilização com a situação de refúgio e pela simbiose entre ritmos, formam um coro polifônico (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.) na rede de cooperação das atividades artísticas, que ora canta (e dança) em harmonia, ora em cacofonia (Bauman, 2011Bauman, Z. (2011). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar.). Os tensionamentos ocorrem pela resistência em flexibilizar os modos de fazer arte - entre consentir a mescla de sons/ritmos nacionais e preservar a autenticidade de seu trabalho, isto é, na própria afirmação de seus modos de ser, afinal, o “trabalho artístico deve buscar, construir, defender e proteger seus próprios fundamentos” (Bauman, 2011Bauman, Z. (2011). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar., p.53).

5.2. Atividades técnico-manuais como habilidade-criatividade-imaginação

Capazes de “unir criatividade, imaginação, trabalho técnico e manual”, “as atividades manuais” consistem em um dos conjuntos de atividades do trabalho imaterial (Lazzarato & Negri, 2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A., p.50). Nessa perspectiva, os trabalhos dos migrantes e refugiados engendrados nas áreas de alimentação e moda são denominados, nessa cartografia, atividades técnico-manuais como habilidade-criatividade-imaginação. A primeira área consiste na preparação e venda de produtos alimentícios da Síria e Venezuela; a segunda, na costura e venda de roupas e acessórios feitos com tecidos africanos.

Os quatro sírios entrevistados configuravam uma rede de apoio (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.) que contempla família e nacionalidade. Como forma de dar continuidade ao negócio dos pais na Síria, os irmãos Eufrates e Orontes abriram uma confeitaria que comercializa esfihas e doces com especiarias. Convidado por Balikh por falar bem o português, Eufrates também entrou na sociedade de uma lancheria cujo carro-chefe é o shawarma, sanduíche típico do oriente médio. Khabur, que chegou há menos tempo, é funcionário da lancheria. Para a abertura da confeitaria, Eufrates e Orontes enfrentaram escassez de recursos financeiros e dificuldade de encontrar fiador para alugar um estabelecimento comercial. “Como somos novos aqui, é quase impossível encontrar alguém que confie em você” (Orontes). Situações típicas da sociedade que reverbera fragilidade de laços de confiança, ainda mais nas relações entre “estranhos” (Bauman, 2011Bauman, Z. (2011). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar.).

A culinária também gerou trabalho a famílias venezuelanas. Com a chegada do irmão e cunhada, Arauca, que já administrava sua empresa de tradução, queria oportunizar trabalho para si e os parentes. Investiu em uma lancheria de cozinha venezuelana, cujo cardápio contempla os famosos tequeños e arepas. “Eu já estava com essa ideia há tempos [...]de fazer algo pra família ter trabalho [...] pessoas de confiança que sabem o que estão fazendo e bem feito”(Arauca).

Orinoco e esposa transformaram a cozinha de casa em espaço de trabalho para produzir, por encomenda, lanches (queijo colonial, arepas e empanadas) e pratos de almoço (hallaca). Ele conhecia, mas nunca tinha preparado alguns desses pratos. Nesse momento, a mobilização das capacidades adquiridas ao longo da vida é fundamental à produção (Grisci, 2011Grisci, C.L.I. (2011). Trabalho Imaterial. In A. D. Cattani & L. Holzmann. Dicionário de Trabalho e Tecnologia (pp. 456-458). Porto Alegre: Zouk.): “sempre fui muito criativo, visitei muitas cidades venezuelanas. Gosto da pesca, da agricultura” (Orinoco). Tais vivências ajudaram-no a encontrar bons fornecedores diretamente em fazendas da região.

No dia da entrevista em sua casa, fui recebida por sua esposa, filha e netos. Ainda pude experimentar a famosa empanada. ‘Essa foi minha filha quem fez. Aqui todos ajudam um pouco, enquanto não conseguem trabalhar fora’, disse Orinoco, enquanto sua esposa armazenava encomendas. Era mais um dia de entregas atravessando a cidade de ônibus (Diário de Bordo, Orinoco, 06/07/19).

Ademais, a casa também virou ponto de venda para os principais clientes, os próprios conterrâneos, reforçando a coexistência da dinâmica da vida pessoal, convivência familiar e funções do trabalho em um só tempo-espaço (Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras.; Lazzarato & Negri, 2001Altenried, M., Bojadžijev, M., Höfler, L., Mezzadra, S., & Wallis, M. (2018). Logistical Borderscapes: Politics and Mediation of Mobile Labor in Germany after the “Summer of Migration.” The South Atlantic Quarterly, 117(2), 291-312. https://doi.org/10.1215/00382876-4374845
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). Para Orinoco, a moradia transforma-se em local de trabalho que “emprega” os familiares. Assim, o lar no Brasil, refúgio para a família, também se transformou em refúgio do desemprego.

No tocante à moda, o figurino tipicamente africano dos shows de Comoé despertou desejo de consumo no público, o que, com base em Grisci (2011Grisci, C.L.I. (2011). Trabalho Imaterial. In A. D. Cattani & L. Holzmann. Dicionário de Trabalho e Tecnologia (pp. 456-458). Porto Alegre: Zouk.) e Gorz (2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.), denota o sujeito ativo e indispensável para a relação produção-consumo: Cada vez que eu ia tocar, as pessoas queriam comprar as roupas que eu uso! Eu vendia as minhas, mas logo ia ficar sem roupa (risos) [...]Liguei pra minha mãe me enviar os tecidos. Comecei a vender em casa, um tecido, dois, três... e começou a crescer (Comoé).

O apoio de parentes da Costa do Marfim para importação de produtos, somado ao crescimento das vendas, possibilitou a abertura de uma loja de tecidos, roupas e acessórios africanos em pequena sala alugada no centro da cidade. Comoé abre a loja diariamente e, sobretudo, aos domingos o movimento é maior, o que denota a necessidade de mobilização total para o trabalho (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.). Na vitrine, a diversidade de estampas dos tecidos chama atenção, e os desenhos, formas e cores indicam a origem identitária. Em vídeo divulgado no Facebook, Comoé explica que cada design possui um nome e “conta uma história, um fato da civilização de um povo africano”, explicitando estratos sociais, proximidade com o rei, festas, casamentos, etc.

O senegalês Casamance é estilista, possui sua própria marca, e é um dos parceiros que costura para a loja de Comoé, visibilizando a rede cooperativa (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.) entre migrantes de diferentes nacionalidades. Enquanto Comoé terceiriza a fabricação de roupas e as vende em loja física, Casamance possui ateliê em casa, e vende suas produções na rua, como ambulante, em feiras e parques. Também expõe suas criações no Facebook e Instagram. Está sempre alerta aos comentários dos clientes, usa “só o tecido africano, mas os modelos são do estilo das brasileiras. No Senegal poucas mulheres iriam usar roupas curtas”, diz ele.

Das atividades técnico-manuais, depreende-se que os modos de alimentar do país de origem tornaram-se fonte de trabalho para famílias inteiras. Para Eufrates e Orontes, surgiu como resgate da profissão herdada de antepassados, para Balikh, Khabur e Orinoco, permitiu a sobrevivência e, para Arauca, gerou emprego para familiares recém-chegados. A rede de solidariedade sensibilizada pela situação de refúgio e a clientela de nativos fortalecida pelos grupos de refugiados das redes sociais virtuais abriram passagem para concretização e singularização desses negócios.

Já os modos de se vestir oportunizaram a Comoé um complemento de renda, e a Casamance, o retorno da carreira como estilista-costureiro. A moda africana instigou capacidades moventes, sobretudo, de migrantes negros e da comunidade negra brasileira com interesse em valorizar sua ancestralidade.

Assim, as redes de cooperação nas atividades técnico-manuais se expandem pelo exercício do afeto (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.) e da política (Mansano & Carvalho, 2015Mansano, S. R. V., & Carvalho, P. R. (2015). Políticas de subjetivação no trabalho: da sociedade disciplinar ao controle. Psicologia em Estudo, 20(4), 651-661. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i4.28735
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) ao buscarem um lugar de valoração da alimentação e da moda do sul global. Há de se considerar que, mesmo havendo um apelo para associar gastronomia e moda internacional à sofisticação e à rentabilidade, a experiência de sentar-se à mesa em restaurante francês ou italiano, por exemplo, ou de comprar uma roupa de marca desses países, distancia-se do padrão atribuído à cozinha venezuelana ou síria e às vestimentas africanas. Na predominância do cenário que chefs de cozinha e estilistas renomados se apresentam com nomes associados a países do norte global, é expressão de resistência da classe política migrante (Corsini, 2007Corsini, L.F. (2007). Êxodo Constituinte: Multidão, Democracia e Migrações. [Tese de doutorado em Serviço Social] . Universidade Federal do Rio de Janeiro. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=89235
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) valorizar tais profissionais do sul global.

5.3. Atividades comunicacionais como relações sócio-político-culturais

As “relações sociais” configuram-se em um conjunto de atividades de trabalho imaterial voltadas à “estruturação da cooperação social” (Lazzarato & Negri, 2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A., p.50). Nessa cartografia, incrementam-se as atividades comunicacionais como relações sócio-político-culturais, que se referem a trabalhos relativos a idioma e representação político-cultural. O idioma diz respeito a aulas de francês ministradas por haitianos e a aulas, traduções escritas e interpretações orais de espanhol por venezuelanas. Já a representação político-cultural refere-se às atividades de associações de migrantes do Haiti e Senegal e a palestras/cursos sobre cultura e história de grupos étnicos e países africanos.

A língua materna mostrou-se possibilidade de trabalho pelo interesse dos brasileiros em aprender novo idioma para fazer turismo, passar em provas ou melhorar o desempenho profissional. Esse é o perfil dos alunos de Autrou e Tuy, que dão aulas de francês e espanhol em casa, cursos ou espaços cedidos pelo setor público. A atividade exige deles muita preparação, já que se trata de novidade como atuação profissional. “Uma coisa é saber falar a língua, outra é ensinar. Nunca planejei ser professora de espanhol, mas aqui estou, tentando fazer o melhor, sobretudo, aprendendo muito”, revela Tuy. Ademais, a aula de idioma envolve aprendizagem da cultura e história do país e, no caso do professor migrante/refugiado, também envolve certo fascínio por seu percurso de vida, o que, conforme Guattari e Rolnik (1996Guattari, F., & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.), demanda outras sensibilidades e percepções. “Eles têm muita curiosidade sobre mim. Conversamos bastante.[...]quando dou exemplo da minha vida, eles ficam encantados ouvindo”, afirma Estère.

Outra atividade laboral que se oportunizou para duas venezuelanas foi a atuação como consultoras-intérpretes-tradutoras de espanhol para negócios. Tuy, que abriu uma empresa em sociedade com amigo venezuelano, considera que há mercado para atender instituições públicas e privadas: “O Brasil, devido ao Mercosul, está muito integrado ao latino-americano. Então, ajuda muito falar espanhol”. Arauca já está no mercado há cinco anos. Começou em casa, fazendo traduções de documentos e websites em espanhol, contando com a revisão do marido brasileiro. Com o tempo, a rede de contatos com profissionais da área, brasileiros e migrantes, foi se expandindo (Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.) e, atualmente, ela também atende demandas em inglês, italiano, alemão, francês e turco.

No tocante à atuação política, Saloum e Falémé trabalham na associação de senegaleses, e Artibonite e Autrou, de haitianos. Também se consideram como atuação política as palestras ministradas por Níger sobre cultura Yorùbá, e as comunicações de Falémé sobre cultura senegalesa e história da África.

As associações nascem da necessidade de organização e cooperação entre compatriotas. O engajamento e a pró-atividade direcionada à causa, somados ao tempo de imigração e à fluência em português, foram elementos que definiram as lideranças da associação:

Em 2014/2015 estava chegando grande quantidade de senegaleses. O governo do Acre tinha convênio com o do Rio Grande do Sul, então sempre que chegava senegalês na rodoviária, me chamavam pra ajudar, pra ser intérprete. Aí decidiram criar uma associação e me disseram que pra ajudar não tinha melhor que eu. Naquele dia me obrigaram a ser presidente (risos) (Saloum).

As associações têm ampla atuação evidenciando a força criativa e política da migração no interior das estruturas sociais (Mezzadra, 2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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): apoio na chegada a migrantes/refugiados; organização de eventos culturais/esportivos; encaminhamento de currículos; divulgação de ofertas de trabalho; e representação em eventos políticos, sociais, culturais e acadêmicos. Funcionam como uma rede de acolhimento e proteção, buscando articulação coletiva e impulsionando novas formas de organização (Mansano & Carvalho, 2015Mansano, S. R. V., & Carvalho, P. R. (2015). Políticas de subjetivação no trabalho: da sociedade disciplinar ao controle. Psicologia em Estudo, 20(4), 651-661. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i4.28735
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). Não se isolam em guetos, ao contrário, buscam integração com a sociedade de destino por meio de ações ativas e in(ter)ventivas. Os presidentes Saloum e Artibonite são presenças constantes nos eventos-atividades, sempre em defesa dos direitos dos migrantes.

As associações não preveem remuneração para seus membros, mas retribuem em forma de expansão de rede de contatos; aperfeiçoamento constante da compreensão do modus operandi da sociedade brasileira; e divulgação dos demais trabalhos dos integrantes. Saloum, por exemplo, abriu uma microempresa de serviços de construção junto a compatriotas da associação. O nome da empresa explicita que se trata de grupo africano, cuja sigla alude a uma palavra no dialeto senegalês (wolof) relativa à qualidade e agilidade nos serviços. Identificada a origem dos fundadores, tal estratégia dá visibilidade às novas formas de organização dos migrantes, gerando valor ao negócio (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.), tanto que a empresa geralmente é citada nos eventos-atividades como exemplo de empreendedorismo imigrante.

Das atividades comunicacionais, depreende-se que, seja por oportunidade e/ou necessidade, os saberes relativos aos modos de ser nacional de determinado país foram tomados como formas de trabalho (Lazzaratto & Negri, 2001Negri, A. (2001). Exílio seguido de valor e afeto. São Paulo: Iluminuras.). A subjetividade construída e exercida ao longo da vida dos migrantes e refugiados, seja pelo idioma, hábitos ou costumes, tornou-se recurso genuíno, distinto e singularizante, creditado pela rede de amigos, familiares, colegas de estudo/profissão, conterrâneos e brasileiros.

Para Tuy e Autrou foi a alternativa mais próxima de suas experiências/habilidades; para Estère, a (re)inserção profissional na sua área de formação; para Saloum, Falémé e Níger, a maneira de apresentar suas origens, mudar a visão estereotipada dos brasileiros e interceder pelos direitos de compatriotas, movimentos que caracterizam a Autonomia das Migrações.

6. DISCUSSÃO: um olhar sobre o empreender(-se) de migrantes e refugiados

A visão sobre a gente é muito de mídia. Vamos dar um reset! Reiniciar tudo! Então eu busco através da música, da contação de história, mostrar que não é isso que o povo está vendo na TV.[...] O que a gente tem que fazer é, cabeça pra cima. Segue e tentar desconstruir isso, fazendo coisas que tu sabe fazer, que vem da sua origem.[...] Mas é difícil, então eles [membros de ONG cultural] me orientaram muito, abrindo a rede deles para me ajudar (Níger).

As palavras de Níger dão forma ao pensamento de Deleuze e Guattari (1996Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Vol.3). São Paulo: Editora 34., p.53): “a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas de vida”. Estende-se essa ideia às atividades do trabalho imaterial - artísticas, técnico-manuais e comunicacionais - desenvolvidas pelos migrantes e refugiados. Tais atividades se revelam como alternativas traçadas por linha de fuga (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Vol.3). São Paulo: Editora 34.) em busca, sobretudo, de valorização pessoal e profissional, já que a imagem que eles têm de si não corresponde aos padrões individuantes e normatizados pelo mercado (Altenried et al., 2018Altenried, M., Bojadžijev, M., Höfler, L., Mezzadra, S., & Wallis, M. (2018). Logistical Borderscapes: Politics and Mediation of Mobile Labor in Germany after the “Summer of Migration.” The South Atlantic Quarterly, 117(2), 291-312. https://doi.org/10.1215/00382876-4374845
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; Guattari & Rolnik, 1996Guattari, F., & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.). As atividades empreendedoras relativas à capacidade de (auto)gestão atreladas às redes cooperativas operacionalizam esses trabalhos e oferecem, por um lado, sensação de liberdade e autonomia e, por outro, responsabilização por todo o ciclo de produção dos produtos/serviços, visibilizando as múltiplas e contraditórias facetas do trabalho imaterial.

O cenário que levou os migrantes e refugiados à alternativa do empreender (-se) não é descolado da realidade dos nativos. Flexibilização das leis trabalhistas, subemprego, emprego temporário e desemprego (Harvey, 2017Harvey, D. (2017). Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola.) avançam a ponto de faltarem alternativas dignas aos indivíduos em condições mais vulneráveis (Bauman, 2011Bauman, Z. (2011). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar.). Apesar da equidade de direitos laborais entre estrangeiros e nativos no Brasil, pesquisas denunciam que a maior vulnerabilidade recai sobre os migrantes/refugiados do sul global (Marinucci, 2017Marinucci, R. (2017). Migrações e trabalho: precarização, discriminação e resistência. REMHU, Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, 25(49), 7-11. https://doi.org/10.1590/1980-85852503880004901
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; Simões, Cavalcanti, & Pereda, 2019Simões, A., Cavalcanti, L., & Pereda, L. (2019). Movimentação do Trabalhador Migrante no Mercado de Trabalho Formal. In: L. Cavalcanti , T. Oliveira, & M. Macedo . Imigração e Refúgio no Brasil, Relatório Anual 2019. (Série Migrações). Observatório das Migrações Internacionais; Ministérioda Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração; Coordenação Geral de Imigração Laboral. (pp.50-72). Brasília: OBMigra. https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/relatorio-anual/RELAT%C3%93RIO%20ANUAL%20OBMigra%202019.pdf
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). Trabalhar por conta própria torna-se, então, uma alternativa que ultrapassa a ideia de empreender no sentido gerencialista, e ganha contornos do empreender a si mesmo, característico do trabalho imaterial. Dispositivos midiáticos e governamentais estimulam esses modos autogerenciais de trabalhar, conferindo prestígio e status ao (micro)empresário.

Os migrantes e refugiados significaram a importância de não serem vistos de modo individuado, diminuídos a seres que precisam de caridade e, por isso, capazes de se sujeitar às posições de trabalho mais precarizadas, mas como indivíduos que produzem e contribuem para a economia do país de destino. Essa mudança de imagem faz brotar uma acalentadora sensação de escape dos poderes dominantes, mesmo que, conforme Negri e Hardt (2001Negri, A., & Hardt, M. (2001). Império. (Trad. Berilo Vargas). Rio de Janeiro: Record .), não seja possível fugir das forças capitalistas. Contudo, tem-se por base o princípio de que as lutas são sempre anteriores ao desenvolvimento capitalista e a inovação, antes de técnica, é sempre social (Negri & Cocco, 2005Negri, A., & Cocco, G. (2005). Glob(AL): biopoder e luta em uma América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record.).

Seja por oportunidade e/ou única alternativa viável à sobrevivência, a conexão com as raízes mostra-se a principal engrenagem dos trabalhos dos migrantes e refugiados como caminho à valorização de si, gerando um processo de subjetividade que produz diferenciação mercadológica e singularização social. Tanto para os que resgataram sua atividade profissional quanto para aqueles cujo trabalho mostra ineditismo, a essência da atividade em si já lhes era conhecida e, mais do que isso, eles já a vinham exercendo ao longo de sua existência. Tais saberes perpassam conhecimentos não necessariamente formalizados ou codificados, mas atrelados a seus próprios modos de ser. Por estarem inscritos no próprio indivíduo, fazem com que ele produza outras formas de se relacionar com o trabalho, estabelecendo relações afetivas e políticas, circunscritas em atitude de Multidão (Hardt & Negri, 2005Hardt, M., & Negri, A. (2005). Multidão: guerra e democracia na era do Império. São Paulo: Record.; Corsini, 2007Corsini, L.F. (2007). Êxodo Constituinte: Multidão, Democracia e Migrações. [Tese de doutorado em Serviço Social] . Universidade Federal do Rio de Janeiro. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=89235
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; Mezzadra, 2012Mezzadra, S. (2012). Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. (Trad. Leonora Corsini). ECO-PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, 15(2), 70-107. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v15i2.900
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; Negri, 2018Negri, A. (2018). Travail Vivant contre capital. Paris : Les éditions sociales.), sem ignorar o contrapeso da relação econômica e legal, inerentes à sobrevivência e à segurança do estrangeiro. Salienta-se que esse modo de trabalhar só é empenhado por parte dos migrantes/refugiados em geral, e isso não significa que os que hoje investem nessa proposta não voltem à zona de inserções laborais como mão de obra barata e flexível.

Ampliando a noção de que o conhecimento gera valor (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.), o misto de ser nacional de determinado país, estar migrante ou refugiado e ter/produzir produtos ou serviços simbólicos (con)formam uma espécie de “capital imaterial” (Gorz, 2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume., p.29) que só passa a existir quando o indivíduo atravessa fronteiras. O trabalho é reconhecido como imaterial quando a subjetividade encontra-se na base fundamental do ciclo de produção (Lazzarato & Negri, 2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A.). Como os migrantes e refugiados do sul global geralmente não passam despercebidos aos olhos dos nativos, esse reconhecimento é facilitado. Características culturais, costumes e hábitos nacionais causam a sensação de alteridade, mas também produzem estranheza, encantamento, choque cultural ou, até mesmo, aversão e rejeição. Em linha com Pelbart (2013Pelbart, P.P. (2013). O avesso do niilismo - Cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições.), pode-se dizer que é nesse encontro com a alteridade que um sujeito é afetado, que tem extraída sua potência e capacidade de produzir diferenciação e formar novos territórios existenciais.

Empreender(-se) inscreve-se na lógica da micropolítica, suscitando pequenas resistências singularizantes em resposta aos jogos de individuação (Guattari & Rolnik, 1996Guattari, F., & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.) que buscam deixar migrantes e refugiados em espaço de subalternidade. Nesse processo, percebe-se o engendramento de outro mercado de trabalho para migrantes e refugiados, vinculado ao afeto e à política, distinto do postulado por Sayad (1979Sayad, A. (1979). Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP.). Conforme Altenried et al. (2018Altenried, M., Bojadžijev, M., Höfler, L., Mezzadra, S., & Wallis, M. (2018). Logistical Borderscapes: Politics and Mediation of Mobile Labor in Germany after the “Summer of Migration.” The South Atlantic Quarterly, 117(2), 291-312. https://doi.org/10.1215/00382876-4374845
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), este é um dos objetivos da Autonomia das Migrações: dar luz aos processos de reivindicação e (re)constituição contínua do mercado de trabalho de migrantes. Acompanhando as transformações do capitalismo flexível e globalizado, presenciou-se, nesta cartografia, um mercado de trabalho de migrantes e refugiados do sul global no Brasil que compõe, simultaneamente, vida e trabalho. Tal característica é inerente ao trabalho imaterial, o qual é capaz de explorar riquezas, mas também, (re)inventar a vida.

7. Considerações finais

A partir do exposto, reitera-se o argumento de que pela via do trabalho imaterial desponta a (re)invenção dos modos de viver de migrantes e refugiados no país de destino. Tal argumento se sustenta, pois foi possível verificar que a mobilização dos migrantes e refugiados em rede de cooperação destaca as referências vernáculas e a própria situação de migração/refúgio, tornando esses indivíduos empreendedores de si, o que condiz com a noção de trabalho imaterial específica ao estrangeiro, avançando a compreensão desse conceito e ampliando a perspectiva teórica da Autonomia das Migrações. Nesse processo, percebe-se um movimento de singularização que diz do engendramento de um mercado de trabalho para migrantes e refugiados, vinculado ao afeto e à política, condizente à tendência hegemônica do trabalho imaterial e à abordagem autonomista, o que não elimina as críticas encontradas em Bauman (2011Bauman, Z. (2011). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar.), Gaulejac (2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras.), Gorz (2005Gorz, A. (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.) e Lazzarato e Negri (2001Lazzarato, M., & Negri, A. (2001). Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A.) relativas à produção da figura do empreendedor de si. Migrantes e refugiados percebem, nas atividades artísticas, técnico-manuais e comunicacionais do trabalho imaterial, outras formas de viver, sentir, se envolver na vida já existente e, ao mesmo tempo, continuar em deslocamento, provocando outros devires e, assim, a (re)invenção de si no país de destino.

Esta pesquisa tem implicações para organizações e formuladores de políticas públicas que vislumbram investir no potencial histórico, cultural, informativo, criativo, social, afetivo e político das atividades laborais de migrantes/refugiados empreendedores (de si). Em relação às organizações, pondera-se que embora haja contratação de migrantes/refugiados, as competências, formações, referências dos países de origem e a própria situação de migração/refúgio desses indivíduos são pouco valorizadas/compreendidas. Políticas inclusivas de gestão de pessoas e relações de trabalho, como práticas de diversidade e interculturalidade nessa direção, podem ser fator para permanência de migrantes/refugiados nas organizações, culminando em modos de singularização tanto para eles, quanto para as organizações.

Para as políticas públicas, sugere-se concentração nas atividades autônomas do trabalho imaterial dos migrantes/refugiados relativas a música, dança, alimentação, moda, idioma e representação político-cultural, afinal seus empreendedores são participantes ativos da economia local, conectando-as à economia global. Tal função é crucial e urgente, sobretudo no atual momento que suas estratégias de produção laborais estão limitadas devido à pandemia.

Como limitação e desafio comum de pesquisas com migrantes/refugiados, ressalta-se a comunicação em idioma estrangeiro. Há o risco de se perder minúcias, expressões, sentimentos que são mais bem externalizados na língua materna - tanto pelos entrevistados que dialogavam em português, quanto pela cartógrafa que realizou entrevistas em inglês e espanhol.

Para estudos futuros, destacam-se sugestões que ampliem o conhecimento sobre migração/refúgio e atividades do trabalho imaterial: (i) o aprofundamento sobre redes de cooperação pela nacionalidade/etnia/ancestralidade (ex.: relação entre africanos e brasileiros do movimento negro); (ii) a intersecção entre marcadores sociais (gênero, raça, classe, etnia/nacionalidade); (iii) a revisitação da literatura sobre empreendedorismo étnico/imigrante/cultural; (iv) os formatos de trabalho imaterial de migrantes/refugiados nas práticas organizacionais de diversidade e interculturalidade; e (v) o processo contínuo de (re) invenção de si diante da crise econômica agravada pela pandemia de Covid-19.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2021
  • Revisado
    18 Maio 2021
  • Aceito
    26 Jul 2021
  • Publicado
    25 Fev 2022
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