Acessibilidade / Reportar erro

Viver, aprender e trabalhar: habitus e socialização de crianças em uma comunidade de pescadores da Amazônia

Living, learning and working: habitus and socialization of children in an Amazonian fishing community

Resumos

O texto tem por objeto de análise a comunidade rural Matá, localizada no baixo Amazonas, Pará, a aproximadamente 55 km da cidade de Óbidos. É uma abordagem etnográfica do cotidiano dos moradores, especialmente em suas atividades na pesca, focalizando, mais precisamente, a participação das crianças. Tomamos como referência o conceito de habitus, desenvolvido por Pierre Bourdieu, para demonstrar que as atividades desenvolvidas pelas crianças e pelos jovens dessa comunidade na pesca não têm o caráter aviltante, que geralmente está associado à ideia de trabalho infantil; ao contrário, a inserção das crianças no trabalho funciona como uma estratégia de socialização e de autorreprodução, indispensável para o fortalecimento dos laços familiares, para a construção da distinção entre a fase adulta e a meninice e para a aprendizagem das técnicas de lidar com os ecossistemas dos quais fazem parte.

Comunidade rural; Pescador; Trabalho infantil; Socialização; Habitus


The article analyzes Matá, a rural community of the lower Amazon approximately 55 km from the town of Óbidos. Using an ethnographic approach to daily life, the article focuses especially on families involved in fishing activities and the nature of children's participation. Using Pierre Bourdieu's concept of habitus, the analysis suggests that the activities undertaken by children in the community are not demeaning or exploitative, such as typically associated with the idea of child labor. Rather the inclusion of children in adult work acts as a strategy of socialization and self-reproduction essential for strengthening family ties, constructing distinctions between adulthood and childhood, and learning about the ecosystems of their environment.

Rural community; Fisherman; Children work; Socialization; Habitus


ARTIGOS

Viver, aprender e trabalhar: habitus e socialização de crianças em uma comunidade de pescadores da Amazônia

Living, learning and working: habitus and socialization of children in an Amazonian fishing community

Luis Fernando Cardoso e Cardoso; Jaime Luiz Cunha de Souza

Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência Luis Fernando Cardoso e Cardoso Av. Augusto Corrêa, 01 – Guamá Belém, PA, Brasil. CEP 66075-110 ( luiscardt@gmail.com)

RESUMO

O texto tem por objeto de análise a comunidade rural Matá, localizada no baixo Amazonas, Pará, a aproximadamente 55 km da cidade de Óbidos. É uma abordagem etnográfica do cotidiano dos moradores, especialmente em suas atividades na pesca, focalizando, mais precisamente, a participação das crianças. Tomamos como referência o conceito de habitus, desenvolvido por Pierre Bourdieu, para demonstrar que as atividades desenvolvidas pelas crianças e pelos jovens dessa comunidade na pesca não têm o caráter aviltante, que geralmente está associado à ideia de trabalho infantil; ao contrário, a inserção das crianças no trabalho funciona como uma estratégia de socialização e de autorreprodução, indispensável para o fortalecimento dos laços familiares, para a construção da distinção entre a fase adulta e a meninice e para a aprendizagem das técnicas de lidar com os ecossistemas dos quais fazem parte.

Palavras-chave: Comunidade rural. Pescador. Trabalho infantil. Socialização. Habitus.

ABSTRACT

The article analyzes Matá, a rural community of the lower Amazon approximately 55 km from the town of Óbidos. Using an ethnographic approach to daily life, the article focuses especially on families involved in fishing activities and the nature of children's participation. Using Pierre Bourdieu's concept of habitus, the analysis suggests that the activities undertaken by children in the community are not demeaning or exploitative, such as typically associated with the idea of child labor. Rather the inclusion of children in adult work acts as a strategy of socialization and self-reproduction essential for strengthening family ties, constructing distinctions between adulthood and childhood, and learning about the ecosystems of their environment.

Key words: Rural community. Fisherman. Children work. Socialization. Habitus.

INTRODUÇÃO

Há uma acentuada produção de estudos no Brasil em relação às condições de trabalho infanto-juvenil. Boa parte dessa produção aborda a questão utilizando parâmetros teóricos nos quais as especificidades culturais não são devidamente consideradas. Uma das consequências desse tipo de abordagem é um sentimento de rejeição à participação infanto-juvenil nas atividades que não sejam as da escola e certa subvalorização do caráter cultural que essa modalidade de trabalho pode apresentar (Dauster, 1992; Dubar, 2005). No entanto, é preciso considerar que existem dinâmicas sociais que apresentam espectros diversos, inclusive híbridos, que comportam simultaneamente várias faces do tradicional e do moderno, nas quais o trabalho infanto-juvenil pode ter um papel importante como estratégia de socialização (Setton, 2009). Essa autora acrescenta que há uma espécie de habitus híbrido em muitos segmentos sociais brasileiros, como, por exemplo, na região Norte, presente em todos os momentos da experiência de socialização, marcada pela circularidade de ideias, objetos e valores, que se adensa e se mistura em um processo complexo e dinâmico, em ritmos diferenciados, mas disponível para todos. Os elementos de ruptura, mas também de continuidade, apontados pela autora, estão em consonância com as dinâmicas específicas das comunidades tradicionais da Amazônia e de seus mecanismos de socialização, constituição e reprodução do modo de vida.

Em algumas situações, evidencia-se, claro, o caráter aviltante e explorador das condições de trabalho às quais crianças e adolescentes são submetidos, sobretudo em momentos nos quais tal atividade não possui caráter de formação à vida adulta, nem a perspectiva de um saber local formador de sujeitos à sociedade. É no trabalho concebido sob uma perspectiva efetivamente aviltante que devemos empenhar nossos sentimentos de solidariedade no sentido de eliminar as situações de iniquidade e, com isso, recriminar e extinguir tal situação.

Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado com o intuito de proteger as crianças e os adolescentes nos aspectos principais de sua vida social, houve importantes avanços no que diz respeito às discussões relacionadas ao trabalho infanto-juvenil, com o estabelecimento de um leque de punições àqueles que insistem em submetê-los a atividades laborais penosas, não amparadas pela lei. Mas, por outro lado, o problema dessa perspectiva é a inexistência de uma delimitação clara entre a exploração do trabalho infantil e o papel do trabalho enquanto aspecto cultural e elemento importante no processo de socialização das novas gerações, dimensão esta especialmente importante nas comunidades tradicionais amazônicas e na agricultura em geral.

A indefinição de tais limites faz com que a exploração do trabalho infantil e a dimensão socializadora das atividades que as crianças realizam junto com seus pais caiam, ambos, no mesmo fosso da ilegalidade. Por isso, não se tem conseguido estabelecer com precisão o cerne do problema, pois, muitas vezes, atribui-se a culpa do trabalho infanto-juvenil exclusivamente aos pais e às suas carências materiais, sem considerar que a atitude de colocar os filhos para trabalhar pode ser uma demanda cultural, além de uma necessidade de sobrevivência.

Embora a exploração da mão de obra infanto-juvenil seja uma situação deplorável, que está presente no seio de muitas famílias, especialmente daquelas com poucos recursos econômicos, esse é um tipo de fenômeno que se encontra difundido em amplos segmentos da sociedade, tanto no meio rural quanto no urbano, não sendo, portanto, uma prerrogativa exclusiva das comunidades tradicionais amazônicas. É inegável que existem crianças exploradas em grande número, todavia, é possível identificar outras realidades nas quais o trabalho infantojuvenil não assume o caráter depreciativo, com o qual normalmente é rotulado.

Nesse sentido, buscamos fornecer, a partir de uma descrição etnográfica, a possibilidade de tomar outro entendimento dessa questão, buscar um outro encontro com este fenômeno, diferente daqueles veiculados na mídia e cultivados nos trabalhos acadêmicos, que têm posições ideologicamente mais rígidas a respeito da condição das crianças e dos adolescentes. A experiência de pesquisas em algumas comunidades de pescadores1 1 A bibliografia sobre as comunidades de pescadores é vasta. Desde a década de 1960, se produz nesse campo. Diegues (1999), um dos maiores especialistas brasileiros do que se convencionou chamar, desde a década de 1970, de Antropologia Marítima, Sócio-Antropologia Marítima, Antropologia da Pesca ou, ainda, Antropologia das Populações de Pescadores ou Haliêuticas, fez uma excelente revisão das publicações mais expressivas desse campo de pesquisa. Tal material pode direcionar os interessados a navegarem em águas seguras quando o assunto é a problemática relacionada às comunidades de pescadores do Brasil. Na Amazônia, os trabalhos mais expressivos atualmente sobre tal problemática são os de Furtado (2006) e Maneschy (2005). da Amazônia, adquirida por meio da participação no Projeto "Populações tradicionais haliêuticas: impactos antrópicos, uso e gestão da biodiversidade em comunidades ribeirinhas e costeiras da Amazônia brasileira" (RENAS), do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), levou-nos a acreditar que o trabalho, em certos contextos socioculturais, define a condição de sujeito pleno em direitos e deveres, e que tal definição se dá no decorrer de um longo processo de assimilação, que configura aquilo que Pierre Bourdieu define como habitus.

Com o intuito de tornar evidente essa assertiva, propomos neste artigo fazer uma descrição de aspectos da vida infanto-juvenil em uma comunidade rural remanescente de quilombos, de nome Matá, localizada no baixo Amazonas, aproximadamente a 55 km da cidade de Óbidos, no estado do Pará. O nome da comunidade advém de, no passado, ter sido fácil 'matar' caças e peixes na floresta, nos lagos e nos igarapés que circundam a localidade. Tomamos como referência o fato de que o território2 2 Castro (1997) usa o conceito de 'população tradicional', tendo como caso específico a população amazônica, mostrando, entre outros aspectos, a relevância do território para tais grupos sociais. No entanto, ao nos referirmos ao conceito de 'tradição', como bem salienta Almeida (2008, p. 98), temos consciência de que o mesmo está mudando. Ele não está ligado necessariamente à história ou ao passado remoto, mostrando-se, ao contrário, vinculado a reivindicações contemporâneas de parte da população brasileira. Desse modo, entendemos que "populações tradicionais são as que conquistaram ou estão lutando para conquistar (prática ou simbolicamente) uma identidade pública conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presenças de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados" (Cunha, 2009, p. 300). explorado, tanto hoje como antes, é central na construção da identidade social dessa comunidade, na medida em que ele ativa uma memória quase sempre adormecida no cotidiano das relações internas ao grupo.

Nossa pretensão é compreender o significado do trabalho enquanto mecanismo de inserção dos meninos nos costumes e nas tradições da comunidade, e, portanto, como forma de assimilação de um habitus. A opção por investigar tais aspectos na vida dos meninos ocorre pelo fato de eles estarem mais diretamente ligados ao universo exterior à casa, atuando com os pais, parentes e amigos na exploração dos recursos naturais. Tal aspecto torna a socialização mais complexa, e o produto desse processo é a capacidade de manejar, com destreza, o meio ambiente ainda com pouca idade. Os moradores da comunidade do Matá têm como formas básicas de produção a agricultura, a pesca e a criação de gado. No entanto, apesar de explorarem vários ecossistemas, são as atividades da pesca que assumem uma posição central e que formatam sua identidade como pequenos produtores amazônicos. Por isso, nossa análise incidirá somente nas atividades de pesca, buscando compreender a importância que esse trabalho assume como forma de subsistência dos grupos familiares e como fonte de saber prático e simbólico, capaz de ser transmissor do habitus às novas gerações.

Os dados apresentados nesse artigo foram obtidos em pesquisa de campo, com duração de aproximadamente três meses, de maio a julho de 2001, período durante o qual residimos na comunidade. Enquanto estivemos no local, realizamos entrevistas, observação direta do cotidiano da população, bem como conversas informais direcionadas à compreensão do processo de socialização. A observação etnográfica, portanto, possibilitou "estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos nativos, levantar genealogias, mapear campo, manter um diário, e assim por diante" (Geertz, 1989, p. 15). Portanto, as orientações teóricas e metodológicas dadas pela sociologia e antropologia foram fundamentais para observação, coleta e análise dos dados empíricos ora apresentados.

O TRABALHO INFANTIL COMO HABITUS

Há uma dificuldade em definir precisamente 'criança' e 'juventude', pelo universo de ambiguidades que habita este campo (Pais, 1990, 1993). Haygert e Dickie (2004) argumentam quanto à dificuldade de definir certas categorias sociais levando em consideração a faixa etária, uma vez que os parâmetros numéricos não são marcadores fiéis da idade de vida no meio rural, um fenômeno não universal. Ainda segundo estas autoras, a idade é, antes, uma construção imaginária com finalidades práticas e simbólicas.

Haygert e Dickie (2004) comentam quea interpretação da idade da vida, produzida culturalmente, tem inscrição em instituições e comportamentos sociais determinados, com expressões linguísticas, mitológicas, técnicas e políticas; daí os aspectos etários serem somados, na medida do possível, a outros, para dar maior clareza do que seja criança e jovem.

Nessesentido,ascriançaseos jovens,nascomunidades rurais da Amazônia, recebem os meios intelectuais necessários para se utilizarem da natureza, tornando-a um instrumento de trabalho – o trabalho do saber –, como um método pedagógico que acompanha o neófito e sobre ele opera, criando, ao mesmo tempo, um trabalhador pelo saber técnico, capaz de produzir, e também percepções a respeito da idade e do gênero. São esclarecedoras as palavras de Woortmann e Woortmann (1997), quando afirmam que o domínio do saber trabalhar, em contextos de populações tradicionais (camponeses, pescadores, seringueiros, ribeirinhos, comunidades quilombolas rurais etc.), é que constrói o ser homem ou ser mulher, no sentido de um adulto pleno3 3 Sobre o assunto, ver Colbari (1995). , capaz de construir nova família.

Ser constituído como ser pleno, o que só ocorre se reconhecido como tal pela coletividade, implica necessidade de dominar intelectivamente os sistemas de saber culturalmente específicos, como também a necessidade de poder ver, desde o início, o processo de formação do trabalho e o seu resultado final. É saber como e por que fazer. Nesse sentido, não é a idade que faz o homem pleno, a mulher plena, mas o saber que os tornam, para a sociedade, homens e mulheres plenos. Basicamente, nesse universo, a criança nasce em um mundo estruturado pelas representações sociais, o que lhe garante a tomada de um lugar em um conjunto sistemático de relações e práticas sociais, no qual, desde a mais tenra idade, a criança se defrontará com ideias e símbolos já cristalizados no mundo ao seu redor (Berger e Luckmann, 1983).

Tal processo de construção de si mesmo está ancorado em dois pontos fundamentais. O primeiro tem referência no passado, ao reproduzir os valores e comportamentos cultivados pelo seu grupo de pertencimento; o segundo está orientado para uma relação de assimilação, adaptação e atualização com o meio em que se encontra inserido. Tais fatores caracterizam aquilo que Bourdieu define como habitus.

Para Bourdieu (1977, 1983, 2002, 2007a, 2007b, 2009), o habitus é formado pelo conjunto de esquemas gerativos, a partir dos quais os sujeitos percebem o mundo e atuam sobre ele. Esses esquemas estão socialmente estruturados: foram formados ao longo da história de cada sujeito e supõem a interiorização da estrutura social do campo concreto de relações sociais, no qual o agente se configurou enquanto tal. Ao mesmo tempo, são estruturantes: são a partir das estruturas que se produzem os pensamentos, as percepções e as ações do agente. É a partir do habitus que os sujeitos produzem suas práticas.

Esse conceito tem uma importância fundamental para compreendermos a questão do trabalho infantojuvenil na comunidade do Matá, porque nos permite articular o individual e o social, as estruturas internas da subjetividade e as estruturas objetivas que constituem tal espaço social, ou seja, as chamadas condições materiais de existência das famílias que lá residem. Essas estruturas se apresentam como estados diferentes da mesma realidade, da mesma história coletiva que se deposita ou se inscreve nos corpos e nas coisas.

Ainda de acordo com Bourdieu (1977, 1983, 2002, 2007a, 2007b, 2009), enquanto sistema de disposições para atuar, perceber, sentir e pensar de certa maneira, interiorizado e incorporado pelos indivíduos ao longo de sua história, o habitus se manifesta em um sentido prático, isto é, em qualquer situação, sem necessitar recorrer a uma reflexão consciente, tudo isso graças às disposições adquiridas, que funcionam como automatismos. O habitus é, ao mesmo tempo, produto e produtor das estruturas, enquanto princípio de geração e estruturação de práticas e representações, que podem estar objetivamente reguladas sem constituir o produto de obediência a regras explicitamente formuladas.

Na localidade em questão, os homens não constroem as diferenças do trabalho por faixa etária. Todos se empenham, mesmo sem plena consciência disso, para manter a sociedade viva. Isso constrói em cada sujeito um habitus camponês, pescador, caçador, tornando-se, assim, ao final do processo de formação do sujeito, pleno em sua sociedade, em sua cultura. A idade, como pensam os moradores, não caracteriza a vida adulta. O indicativo do 'ser adulto' são as atitudes, as responsabilidades e, ainda, a posse do saber, que o possibilite manejar os sistemas produtivos locais. Brincar, divertir-se, não descaracteriza a condição de adulto, afinal, todos têm o direito a horas de diversão, sobretudo os solteiros, que trabalham intensamente com os pais e "são os que mais precisam de diversões" (Informante, 43 anos).

O trabalho liga as crianças aos vários sistemas produtivos manejados pelos pais, construindo e redefinindo, nessa relação, um habitus de pequenos produtores amazônicos, com forma específica de perceber e manejar os recursos naturais, mas predominantemente um habitus relacionado à atividade da pesca. Para McGrath et al. (1991, 1993), no baixo Amazonas, os pescadores atualmente gastam o dia ou a noite toda pescando e, portanto, têm pouco tempo e energia para se dedicar à agricultura ou outra atividade. Ao mesmo tempo, a agricultura não consegue competir com a pesca pela mão de obra disponível, já que, geralmente, pode-se ganhar mais pescando caso se tenha o fim comercial para o pescado.

A vida cotidiana dos adultos é intensamente compartilhada com as crianças, não existindo divisão nítida entre o universo de atividades entre ambos. As crianças participam, assim, do trabalho, do lazer, dos cultos religiosos e das conversas. Com a idade de cinco anos, elas já participam de atividades que poderiam causar escândalo às instituições de 'proteção' dos direitos das crianças e dos adolescentes nos centros urbanos. Isso porque os membros da comunidade têm outra percepção a respeito do que é vida, do objetivo de formação do indivíduo, de suas atribuições e da forma de conduzir as relações sociais. A vida infantil e juvenil é pensada e vivida considerando as experiências pessoais, o meio social local, o ambiente ecológico e o ideal do que é ser adulto.

Os moradores veem o trabalho4 4 Castro (1997, p. 168) reconhece que, nos povos tradicionais, a "organização das atividades de trabalho não está separada de rituais sacros, de festividades ou outras manifestações da vida e da sociabilidade grupal, responsável por maior ou menor integração das relações familiares e de parentesco". Esses aspectos ressaltam que o trabalho não é algo separado da vida, com hora definida para iniciar e terminar. Ele a compõe como um todo, e marca as etapas da vida. infantil como princípio de formação do sujeito, de aquisição de 'saber', considerado pela imediatez da situação, em certos momentos, como simples ajuda, mas que compreendem como se estivessem construindo um novo ser social. Portanto, o significado dado ao trabalho não o coloca numa dimensão separada da vida, pelo contrário, o coloca no centro, tornando-o a própria vida.

O trabalho infantil, desse modo, não é encarado apenas como dispêndio de energia ou como apêndice da atividade dos pais, como se iguais fossem meninos e meninas; há uma hierarquia5 5 Woortmann (1990), ao tratar teoricamente do campesinato enquanto campo moral, argumenta pelo conceito de 'campesinidade', sendo um de seus elementos importantes a hierarquia familiar, mesmo que esta esteja em amplo processo de transformação. , que perpassa os detentores do saber e que tem expressão na condição de gênero das crianças. De uma maneira geral, a participação das crianças nas atividades de trabalho encadeia um conjunto de significados simbólicos. O mesmo processo de socialização, que é capaz de marcar os espaços sociais de meninos e meninas, não o faz quando se trata de diferenciar as atividades dos adultos e das crianças. Ou seja, o menino fica ligado ao universo masculino e realiza as mesmas atividades que o pai, só que em menor proporção; e a menina, ao feminino, realizando as atividades semelhantes às da mãe. O símbolo que marca a separação entre esses dois sujeitos é a força física, usada em ocasiões onde é necessário definir e justificar as diferenças entre eles. Tal perspectiva percebe alguns sujeitos como frágeis e 'incapazes', e outros como fortes e ágeis.

As crianças de ambos os sexos iniciam suas atividades sempre no âmbito doméstico, tendo como parâmetros os aspectos já definidos ao longo deste texto. Mesmo que essas diferenças não sejam logo apontadas, isso vai sendo construído com a diferenciação dos espaços próprios a cada um dos gêneros. Isso porque o menino não é de imediato percebido como fazendo parte do universo do pai, mas sim da mãe, pela aparente fragilidade física e necessidade de cuidados6 6 Gostaríamos que ficasse claro, como ressaltado anteriormente, que os marcadores de idade não são fixos, variam com um conjunto de fatores, como o posicionamento na ordem de nascimento: se for o primeiro filho de um casal, logo nos primeiros anos de vida será requerido para certas atividades. Daí deixar a condição de criança mais precocemente que irmãos na mesma idade. . Depois dos sete ou oito anos de idade, as distinções entre as atividades dos meninos e das meninas vão se tornando cada vez mais acentuadas. A partir dessas idades, os meninos passam a realizar mais intensivamente, com os pais, atividades na pesca, na agricultura ou com o gado, enquanto as meninas permanecem mais ligadas à casa ou ajudarão as mães na roça. No decorrer dos anos, ambos terão aumento progressivo das atividades, em razão proporcional à aparente 'força física' e construção simbólica do grupo. Como indica o comentário de um informante, "as crianças começam cedo, a cada ano que passa vai aumentando o trabalho. Quando já podem com um terçadinho7 7 Na região Norte, os termos 'facão' e 'terçado' se equivalem. 'Terçadinho', portanto, é o diminutivo de terçado. Ele é sempre usado por crianças maiores de cinco anos, como forma de aprendizado do manejo correto desse instrumento, que, na grande maioria das vezes, é afiado e perigoso. , já ajudam o pai" (Informante, 56 anos).

O trabalho é fundamental para a caracterização do ser social no Matá. Os que trabalham, e não só 'ajudam'8 8 É interessante perceber que 'ajuda' é uma categoria que indica uma dependência com relação aos pais. Objetivamente, uma pessoa sai definitivamente dessa condição ao constituir sua própria família, colocando seus filhos, com o passar dos anos, nessa mesma situação. , são indicados como não fazendo parte do mundo das crianças, das 'meninices', dos que apenas brincam e estudam, e essa condição é adquirida independentemente de uma faixa etária determinada. Desse modo, o trabalho infantojuvenil assume a característica não somente de possibilitar maior quantidade de produtos adquiridos, com associação de forças para produção, que serão comercializados pelo grupo doméstico, mas, sobretudo, é divisor de águas entre o universo das brincadeiras, da vida infantil, e as outras etapas da vida. Fundamentalmente, a capacidade ou incapacidade produtiva – e não necessariamente a idade – é o aspecto primordial da identificação do 'ser adulto' ou do 'ser criança', porque implica a condição de 'o ser ou não responsável'.

A incorporação do trabalho na fase infantil cria disposições duráveis de um modo de vida, de uma forma de manejar a terra, de uma maneira de pescar e de cuidar do gado, que, apesar das mudanças tecnológicas, econômicas, políticas e sociais recorrentes às comunidades ditas 'tradicionais' da Amazônia, permanecem como valor central, tornando-se um meio de assimilação do saber local e uma estratégia para promover sua continuidade. Sob essa perspectiva, o trabalho infanto-juvenil "mostra-se como momento fundante de realização de ser social, condição para sua existência; é o ponto de partida para a humanização do ser social e o motor decisivo do processo de humanização do homem" (Antunes, 2000, p. 125).

A CONSTRUÇÃO DO HABITUS DE PESCADOR

Como nos informa Bourdieu (1977, 1983, 2002, 2007a, 2007b, 2009), a prática é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus, que, como sistema de disposições duráveis e transferíveis, funciona como matriz de percepções, apreciações e ações, e torna possível o cumprimento de tarefas diferenciadas. A prática – comenta o autor – tem a ver com as condições objetivas que precederam a constituição do habitus e com as condições presentes que definem a situação, onde a prática tem lugar.

Essa perspectiva expressa, de maneira bastante aproximada,asdinâmicasdeproduçãoedeautorreprodução mais frequentes em comunidades tradicionais amazônicas. Tavares (2000), ao analisar a vida da população do interior do município de Abaetetuba (PA), no igarapé Tauá, chega às mesmas conclusões sobre o trabalho infanto-juvenil. As práticas tradicionais de transmissão do conhecimento para os meninos, por meio do envolvimento nas atividades de seu grupo social, garantem a reprodução de um modo de vida e asseguram igualmente o futuro, com nível econômico que suprirá suas necessidades básicas.

Na comunidade do Matá, verificamos que ocorre um processo similar. Ter filhos com potencialidade para pescar é importante para a organização do grupo familiar e tem sentido prático na liberação do pai da obrigação inexorável de, diariamente, prover o grupo familiar de alimento. Isso é evidenciado na inclusão dos meninos na atividade pesqueira em tenra idade. Todo e qualquer menino, desde os primeiros anos de vida, entra em contato direto com a atividade pesqueira. Começa a ajudar na construção e manutenção dos instrumentos de pesca, e isso lhe dá acesso ao conhecimento das variadas formas de utilização dos arreios de pesca, ainda com pouca idade9 9 Furtado (1993, p. 201) lembra que "desde cedo, por volta dos cinco anos de idade, os meninos já começam a ir com seus pais ou parentes para a pescaria, para ajudar nas pequenas tarefas". ; possibilita, igualmente, identificar os ambientes ecológicos próprios ao seu uso, mesmo sem ter participado de grandes pescarias com os pais. Ainda bem pequeno, já sabe o nome e as funções da tarrafa, do arco e flecha e do arpão. Os meninos, nesse universo, já são direcionados para as atividades de pesca e agricultura, existindo poucas possibilidades de que eles, na vida adulta, não saibam pescar ou construir roça. Mesmo os que migram para as cidades, deterão o domínio dessas atividades, pois a formação do homem para aquela comunidade leva em consideração dominar os universos produtivos e simbólicos da pesca e da agricultura.

As coisas que eu gosto mais na minha vida é a pesca e a escola. Eu gosto de remar, ver a água, os peixes, as maresias. Eu gosto de ver meu jeito de pescar, de ver os peixinhos na linha, ver a canoa sair pra fora. Eu gosto de pescar peixe cachorro, bacu, surubim, essa é a minha pescaria preferida. Além disso, quando a gente chega, as pessoas perguntam cadê o peixe? (informante, dez anos).

Os meninos aprendem vários aspectos da atividade pesqueira com o fazer diário em conjunto com os pais, parentes e amigos. Nesse aprendizado se inclui o saber a respeito da existência da variação de tamanhos de arreios, que são os instrumentos de pesca construídos ou selecionados de acordo com a expectativa do pescador em capturar determinados peixes para atender às necessidades diárias de alimentação do grupo familiar e, se possível, comercializar o excedente. Usam-se iscas e armadilhas determinadas, a fim de capturar peixes igualmente determinados, tendo em vista a existência de um caráter simbólico que atribui formas benignas ou malignas a alguns pescados.

Os chamados 'peixes lisos'10 10 Os peixes lisos ou de couro são a dourada ( Brachyplatystoma flavicans), o filhote ( Brachyplatystoma filamentosum), a piramutaba ( Brachyplatystoma vaillantii), o surubim ( Pseudoplatystoma fasciatum) e tantos outros. são culturalmente rotulados como reimosos11 11 Reimosos são alimentos que fazem mal, venenosos, e só podem ser consumidos por alguém em perfeito estado de saúde; os não reimosos são inofensivos para as pessoas e podem ser consumidos em qualquer estado. Maués e Maués (1978) fazem uma análise a respeito das representações alimentares dos itapuenses, no município de Vigia, usando especificamente os conceitos ligados à reima. . Os de escamas, em sua maioria, são percebidos como não reimosos. Os pais enfatizam aos filhos que não podem comer determinado alimento por serem reimosos, por fazerem mal. Esta norma é respeitada por todos da comunidade e faz parte dos costumes locais. Inúmeras foram as situações presenciadas, durante a pesquisa, nas quais pessoas passaram até dois dias sem se alimentar normalmente devido ao fato de os pescadores não terem capturado peixes considerados saudáveis ao consumo dos doentes ou por causa daqueles que tiveram doenças graves no passado; também por essas pessoas não disporem, nesse momento, no quintal, de nenhuma ave que pudesse servir de alimento. As mulheres grávidas e as parturientes são as que sofrem maiores restrições ao consumo do peixe liso, devido à crença de que afetam diretamente a elas e às suas crianças, estejam ainda no útero ou sendo amamentadas.

Tais conhecimentos precisam ser adquiridos desde muito cedo, pois, à medida que a divisão de papéis vai sendo assimilada, também vão se definindo as responsabilidades quanto à construção das condições de preservação e reprodução do grupo, e também da obrigação de prover adequadamente as condições básicas de sobrevivência. Essas definições se concretizam em uma divisão de trabalho por gênero, que se cristaliza a partir da adolescência. Aproximadamente aos 14 anos de idade, um menino não é mais percebido como apenas criança ou adolescente, como poderíamos dizer no meio urbano, até porque a ideia de adolescência inexiste como sentido prático para designar uma etapa da vida. Inseridos no mundo do trabalho, que é basicamente o que marca seu processo de formação, os meninos desenvolvem atividades na pesca, na agricultura ou com o gado. Essas atividades são plenamente reconhecidas como trabalho, enquanto que as atividades domésticas não possuem o mesmo status. Todavia, embora as meninas nesta idade já sejam exímias trabalhadoras no ambiente da casa e, muitas vezes, também na roça, as suas atividades não são reconhecidas como trabalho, pois, para todos os efeitos, apenas ajudam a mãe. Assim como a mulher apenas ajuda o marido.

A arte da pesca é algo que inicia muito cedo na vida de qualquer menino, e isso o insere de maneira diferenciada no convívio local. Tanto que a participação dos meninos libera os pais para outras atividades, que não a pesca, e do compromisso, por certo período, de conseguir alimentos para o grupo familiar; obrigação esta que passa a ser do menino transformado, pela aquisição do habitus de pescador, em adulto, e que passa a ser reconhecido como tal. Mas, mesmo que isso ocorra e seja percebido e aceito por todos, contraditoriamente, a responsabilidade oficial de provedor da família continua sendo nominalmente do pai, mesmo que tal função não esteja mais sob seu domínio. Isso porque transferir a função de suprir a família de alimento representa deixar de lado sua posição na hierarquia familiar, posição fundamental, na compreensão dos agentes locais, de ser provedor. Portanto, passar a condição de provedor ao filho só realmente ocorre num período muito avançado da velhice, pois significa transferir também a condição de 'chefe' de família, o que altera a posição junto à comunidade.

O HABITUS NA UTILIZAÇÃO DOS EQUIPAMENTOS DE PESCA

O conceito de habitus se diferencia da noção de costume: este se caracteriza pela repetição, pelo mecanicismo e pelo automatismo. O habitus se caracteriza por seu poder gerador de novas práticas, pois, apesar desta capacidade se encontrar limitada pela sua constituição histórica, ela nem sempre se reproduz por completo. Os ajustes, impostos pelas necessidades de adaptação a situações novas e imprevistas, podem determinar transformações duráveis do habitus. Apesar destas modificações, permanecem dentro de certos limites, já que o habitus define a percepção da situação que o determina (Bourdieu, 1977, 1983, 2002, 2007a, 2007b, 2009).

Sob essa perspectiva, o habitus aparece como noção historicamente determinada: tanto no sentido do processo de socialização (internalização das estruturas sociais), como no sentido de que essas estruturas foram criadas por gerações anteriores. Poroutro lado, o habitus étambém potencialmente criador, na medida em que é produto de condicionamentos que se alteram com o decorrer do tempo. Essa especificidade do habitus é experimentada na comunidade do Matá, principalmente na utilização dos instrumentos de trabalho, nas mudanças que estes sofrem em decorrência de melhorias tecnológicas e nas mudanças que tais transformações geram no habitus relativo ao trabalho de pescador.

Os jovens da comunidade são sempre mais suscetíveis às inovações tecnológicas; os mais velhos12 12 Mannheim ( apud Groppo, 2000, p. 22) argumenta que, na juventude, os indivíduos realizam, pela primeira vez, a absorção consciente de suas experiências sociais, passam a ter realmente uma experimentação pessoal para com a vida. Já na maturidade, as novas experiências sociais recebem, em geral, elucidação racional e reflexiva, sendo julgadas e analisadas pelo indivíduo a partir de padrões de conhecimento já sedimentados. A resistência dos indivíduos maduros à mudança social é, portanto, muito maior que a dos jovens, pois os adultos já têm seu quadro de referência formado. são resistentes a elas. Isso é perceptível no uso dos apetrechos e equipamentos de pesca. Os pescadores mais velhos renegam o uso dos instrumentos de pesca considerados como modernos, como, por exemplo, a malhadeira e a rede. Da mesma forma, os pescadores mais jovens, meninos que estão iniciando na atividade pesqueira, renunciam ao uso dos 'velhos arreios' e equipamentos de pesca, considerandoos como coisas do passado, deixando aos seus pais ou avós o uso desses instrumentos.

Existe, de forma clara, uma tensão entre os dois modelos de uso dos instrumentos tidos como 'novos' e 'velhos', entre o mais eficaz e o menos eficaz. Essa tensão se concentra, mais especificamente, na sua qualificação positiva ou negativa. Em um dos pólos estão os instrumentos que há muito tempo compõem parte significativa da história da pesca na Amazônia, com clara influência lusitana e, sobretudo, indígena; no outro pólo estão os novos, entre os quais se incluem as redes, malhadeiras e tarrafas, normalmente adquiridas no comércio das cidades de Óbidos, Manaus e Santarém, e que são industrialmente produzidos.

Essa tensão está também relacionada à temporalidade dos pescadores, onde o tempo do velho13 13 Para aprofundamento da temática, ver a obra clássica que trata da memória dos velhos (Bosi, 1994). , segundo Nascimento (1995), é marcado pela lembrança e está voltado para o passado. Essa dimensão da temporalidade, referida pela autora aos pescadores do município de Maracanã, no estado do Pará, se expressa igualmente nas relações sociais na comunidade do Matá. Os velhos são associados aos métodos antigos e ultrapassados, mas são fontes inegáveis de conhecimento sobre a atividade pesqueira. Não se interroga um jovem, alguém que está iniciando sua vida na atividade pesqueira, sobre o assunto, sem que ele aponte um velho pescador como melhor fonte de informação sobre uma determinada atividade.

A tensão manifestada entre o considerado moderno e o antigo parece ser um dos elementos que produz as mudanças sociais na comunidade. Essa mudança se expressa pela entrada de equipamentos que substituem os antigos, ao mostrarem maior eficiência, reduzirem o tempo de trabalho e aumentarem a produtividade. São estas as razões que levaram à substituição de antigos materiais utilizados para a produção da farinha de mandioca por outros considerados mais modernos. Como exemplos, a substituição do tradicional 'tipiti'14 14 Cesto cilíndrico de palha no qual se põe a massa de mandioca para ser espremida. pela prensa e a substituição do paneiro pelo carro de boi (este último sendo considerado como a inovação), ou ainda, os métodos de captura, como arco e flecha, arpão, caniço e outros, que são substituídos pelas malhadeira de nylon.

Os antigos instrumentos são preferidos pelos mais velhos, mas isso não os impedem de usar os novos. Já os jovens, ao contrário, apreciam os novos instrumentos de pesca por acreditarem que possuem maior eficiência. Mas o desacordo no uso dos instrumentos de pesca não causa maiores conflitos. Afinal, as posições de ambos os sujeitos são flexíveis, plásticas e negociáveis. Assim como os jovens acreditam nas novas tecnologias, também o fazem com relação ao conhecimento do pescador mais velho. O que se apresenta nessa situação, portanto, são maneiras diferentes de se comportar diante da escolha dos instrumentos de pesca, aspecto que reflete diretamente sistemas de disposições, modos de perceber, de sentir, de fazer, de pensar, que levam cada sujeito a agir de forma determinada, de acordo com as circunstâncias dadas pelo local onde pescará e o objetivo que imprime à sua atividade. A tensão entre o novo e o velho, que na comunidade está diretamente relacionada com a utilização dos instrumentos de pesca, tem as características aproximadas daquilo que Setton (2009) define como habitus híbrido, ou seja, um habitus mediado pela coexistência de distintas matrizes produtoras de valores culturais e referências identitárias.

A malhadeira, nesse sentido, é tida como melhor instrumento de pesca, por economizar tempo e desgastar menos o pescador, portanto, um equipamento moderno em relação aos demais. Um indicativo da transformação do habitus dos agentes da comunidade pode ser percebido no fato de que todos os meninos com idade acima dos doze anos já sabem fazer redes de pesca e/ou tarrafas, instrumentos prediletos dos pescadores mais jovens, usados na labuta diária a fim de conseguir alimentação para a família.

Logo após os dez anos de idade, os meninos realizam a pesca de malhadeira com a mesma destreza que seus pais, mas ainda não se arriscam a ir sozinhos buscá-la distante da comunidade, principalmente 'quando o sol esfria', respeitando os horários insalubres de retirá-la da água, antes do amanhecer, empreitada perigosa mesmo para pescadores experientes, porque podem se defrontar com cobras ou jacarés (crocodilianos aligatorídeos). Por isso, só colocam e retiram a armadilha da água quando o pesqueiro não é distante. Um informante, com 14 anos de idade, diz que, quando o pai não está disponível para realizar a pesca, ele é incumbido de realizá-la. Como participaram, desde o início, do processo de aquisição dos conhecimentos necessários para manejar com destreza os equipamentos de pesca, os pais sabem qual ou quais entre os filhos detêm o conhecimento necessário à execução dessa atividade. Sua fala evidencia isso: "Eu pesco, quando meu pai não vai pro lago eu vou, ele me manda ir, daí eu vou pegar um almoço, minha malhadeira é pequena".

Os pescadores costumam realizar sozinhos a pesca de malhadeira, como a maioria das atividades ligadas à pesca realizadas na comunidade; quando vão com alguém, levam um filho do sexo masculino a partir dos cinco anos, para conduzir a canoa, enquanto o pescador adulto põe a armadilha, ou para tirar água da canoa, ajudar a tirar o peixe capturado da armadilha ou remar junto com o pai, às vezes por longas distâncias. A prática de ir sozinho ou com o filho revela aspetos ligados à estrutura e ao fim da pescaria na comunidade: a subsistência do grupo familiar e a assimilação do habitus de pescador por parte dos mais jovens.

A pesca com tarrafa ou com malhadeira envolve meninos que estão na mesma faixa etária: aproximadamente dez anos. Nessa idade, são exímios tecedores de redes de pesca e tarrafas, por serem sempre solicitados a ajudar a consertá-las quando são danificadas pelas piranhas ou por ficarem presas em galhos submersos, o que geralmente produz grandes estragos nesse tipo de equipamento.

Os pescadores, mesmo quando vão para a roça, que no Matá fica à distância de 18 a 20 km da comunidade, levam as tarrafas e as malhadeiras, para, nas horas vagas, fazerem os devidos consertos. Os consertos e a confecção de novas tarrafas dificilmente são feitos apenas por uma pessoa. Os pais pedem aos filhos que teçam. Quando estes cansam, deixam tudo e 'vão dar uma volta pela rua', jogar bola, sobretudo ao final da tarde. Quando o pai está desocupado, retoma a atividade; quando cansa e tem amigo próximo, pede ajuda 'para dar uma tecida'. Assim, tecer ou consertar malhadeiras ou tarrafas é sempre uma tarefa coletiva.

No período do inverno (que, na região amazônica, é considerado de dezembro a junho, por ser a época mais chuvosa), os pescadores tecem suas tarrafas para usarem no período do verão. As pessoas contam que, nos meses nos quais os lagos secam, aos sábados, reúnem-se vários homens, inclusive alguns meninos, e vão ao lago pescar. Alguns levam cachaça e passam o dia à margem do lago, divertindo-se, fazendo 'piracaia' (peixe assado). Esse evento, como momento de sociabilidade masculina, reforça os laços de amizade e companheirismo. Vez ou outra, referem-se a estes eventos como momentos de embriaguez e comicidade. Daí surgem os compadres, amigos para o trabalho, os companheiros de pesca, quando se faz necessário, os convidados para o 'puxirum'15 15 'Puxirum', chamado de troca de dias, é uma forma de usar as relações de amizade e parentais para a troca de jornada de trabalho entre os diferentes grupos familiares nas atividades mais desgastantes nas roças, tais como: roçar a mata, derrubar e plantar. É uma espécie de mutirão. e para as futuras bebedeiras, que ocorrem com frequência em dias sem trabalho. Nesse momento, os meninos iniciam o processo de ingerir cachaça e consolidam futuras amizades. Prática que, como o trabalho, inicia cedo.

A pesca com tarrafa é própria do verão, pois esse apetrecho só pode ser usado onde existe considerável quantidade de peixe, ou seja, quando os lagos secam e diminuem em extensão, e os peixes ficam concentrados em corpos de água cada vez menores, sendo fácil capturálos em grande quantidade. A esse respeito, um informante de 13 anos relata:

Eu gosto mais de pescar de tarrafa e malhadeira, porque é mais fácil. A gente cerca com a malhadeira e tarrafa, do outro lado da malhadeira, pros peixes irem pra lá, pra malhadeira. A tarrafa espanta muito os peixes. Quando tem uma baixa que é cercada de terra, a gente cerca com a malhadeira lá na boca da baixa, e tarrafa lá dentro dela. E os peixes vêm todos para dentro dela.

Os pescadores utilizam tanto a malhadeira quanto a tarrafa em suas pescarias de verão, época considerada a de maior fartura. Eles sempre dizem que "no verão aqui fica uma beleza, a gente vai ali ao lago rapidinho e traz o peixe para a comida da família. Nesse período, a gente escolhe que peixe quer comer" (pescador, 28 anos). A tarrafa captura peixes de variados tipos e tamanhos. Ela é geralmente lançada da margem do lago ou de dentro da canoa a remo. Esse tipo de pesca é significativo por proporcionar maior facilidade na captura de peixe. A pesca não tem, na maioria das vezes, um caráter mercantil – mesmo que isso possa ocorrer – o que faz da escolha do equipamento apenas uma forma de realizar um menor esforço durante o trabalho, e não necessariamente a busca do aumento da quantidade de peixes capturados para comercializar. O objetivo da pescaria é fundamentalmente o consumo familiar.

Outra atividade de pesca que assume caráter importante, principalmente entre os mais velhos, é a pesca de espinhel. Os espinhéis são feitos de linha comprida com vários filamentos, onde estão amarrados três anzóis. Cada apetrecho deste tem de 15 a 30 jogos para dar-lhe maior eficiência na captura do pescado. Para se apanhar as iscas, vão todos os que participarão da pesca, inclusive meninos das mais variadas idades, ao igapó (região da floresta amazônica que permanece alagada, mesmo na estiagem dos rios). Nessa atividade, a habilidade dos meninos, a maioria na faixa de sete a 12 anos, é igual à dos adultos.

Capturar iscas é prática com a qual estão acostumados, fazendo isso desde cedo na margem do igarapé, em frente à comunidade, no período da cheia. Os espinhéis são colocados ao final da tarde, após 17h30, e são visitados pela primeira vez depois de quatro horas, para trocar as iscas e retirar os peixes capturados. A pesca de espinhel demanda um tempo considerável; em geral, desde a captura da isca até a chegada em casa, ao final da pesca, leva aproximadamente 20h. Sai-se às 13h para capturar as iscas, às 16h vai-se aos pesqueiros, às 17h coloca-se o espinhel, às 21h faz-se a primeira visita, às 4h vai-se buscar definitivamente os espinhéis, volta-se para casa e preparase para a saída no mesmo horário do dia anterior. Assim, passa-se a maior parte do tempo no barco, com exceção do sábado e domingo, quando não há pesca.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho dos meninos na pesca, na comunidade do Matá, entre outras dimensões, tem o caráter de aprendizagem para a vida adulta. Na realidade, é por meio das práticas cotidianas que se efetiva a reprodução de um modo de vida pautado num princípio de maior proximidade entre pais, filhos e parentes, e é reproduzido certo habitus, que garante

o provimento de alimentos para a família, mas que, em sua construção, forma o sujeito, inserindo-o, desde cedo, nas atividades produtivas, especialmente na pesca artesanal. Para os sujeitos locais, ser pescador é uma condição existencial, é uma forma específica de realizar a formação do adulto responsável e autossuficiente, e não simplesmente um processo de exploração aviltante do trabalho infantil. É pela assimilação do habitus, por meio do trabalho e, mais especificamente, na atividade da pesca, que os indivíduos apropriam suas formas de pertencimento e se integram aos processos de compartilhamento do dia a dia da comunidade.

Se este sistema tem seus problemas, por deixar as crianças e os jovens fora da escola antes que adquiram a educação formal completa, aspecto que preocupa a todos da comunidade, também é preciso levar em consideração que as condições concretas, com as quais as crianças e os jovens terão de se defrontar no seu cotidiano, exigirão muito mais conhecimentos da dinâmica da relação entre homem e natureza, cultivados por meio das gerações e passados de pais para filhos, do que propriamente o tipo de habilidade adquirido com a educação formal.

A inserção das crianças, desde cedo, nas atividades de trabalho, juntamente com os adultos, visa a prepará-las com os saberes básicos que as possibilitem, o quanto antes, tornarem-se adultos independentes, capazes, inclusive, de construir suas próprias famílias e iniciar seus próprios filhos no habitus local.

Se esta forma de organizar as relações na comunidade tem desvantagens, por descortinar um horizonte de perspectivas que não ultrapassa em muito o raio de ação das atividades possíveis aos membros da comunidade, e se também é verdade que as crianças, desde muito cedo, são inseridas nas atividades dos adultos e que essa poderia ser considerada uma circunstância inadequada para sua condição infantil, também é inegável que tal modo de criar e educar os filhos tem suas vantagens, na medida em que proporciona um ambiente familiar mais saudável, com os pais acompanhando integralmente o crescimento dos filhos em todos os sentidos, algo difícil de ser conseguido no meio urbano. A vida cotidiana dos adultos é intensamente compartilhada com as crianças e os jovens. Eles dividem as atividades e os aspectos simbólicos que as envolvem, não existindo divisão nítida entre o universo de atividades dos adultos e das crianças. Nesse sentido, o trabalho é uma forma de criação de um habitus, e não simplesmente uma forma de exploração da criança, como a ideia de trabalho infantil normalmente sugere em nossos dias.

Recebido em 16/10/2009

Aprovado em 15/02/2011

  • ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Antropologia dos Archivos da Amazônia Rio de Janeiro: Casa 8; Manaus: Fundação Universidade do Amazonas, 2008.
  • ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 7. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2000.
  • BERGER, Peter I.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade Petrópolis: Vozes, 1983.
  • BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • BOURDIEU, Pierre. o senso prático Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
  • BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2007a.
  • BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007b.
  • BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática: precedido de três estudos sobre etnologia Cabila. Oeiras: Editora Celta, 2002.
  • BOURDIEU, Pierre. questões de sociologia Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
  • BOURDIEU, Pierre. outline of a theory of Practice Cambridge: Cambrigde University Press, 1977.
  • CASTRO, Edna. Território, biodiversidade e saberes de populações tradicionais. In: CASTRO, Edna; PINTON, Florence (Eds.). faces dos trópicos úmidos: conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Belém: CEJUP; UFPA-NAEA, 1997.
  • COLBARI, Antonia L. Ética do trabalho: a vida familiar na construção da identidade profissional. São Paulo: Letras & Letras, 1995.
  • CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios São Paulo: Cosac Naify, 2009.
  • DAUSTER, Tânia. Uma infância de curta duração: trabalho e escola. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 82, p. 31-36, ago. 1992.
  • DIEGUES, Antônio Carlos. A sócio-antropologia das comunidades de pescadores marítimos no Brasil. Etnográfica, v. 3, n. 2, p. 361-375, 1999.
  • DUBAR, Claude. A socialização Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • FURTADO, Lourdes Gonçalves. Origens pluriétnicas no cotidiano da pesca na Amazônia: contribuições para projeto de estudo pluridisciplinar. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 1, n. 2, p. 159-172, maio-ago. 2006.
  • FURTADO, Lourdes Gonçalves. Pescadores do rio amazonas: um estudo antropológico da pesca ribeirinha numa área amazônica. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1993.
  • GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: LTC, 1989.
  • GROPPO, Luis Antonio. Juventude: ensaios de sociologia e história das juventudes modernas Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
  • HAYGERT, Maria Lúcia; DICKIE, Maria Amélia. Produzindo vida: jovens rurais, ethos camponês e agroecologia. In: AUED, B. W.; PAULILO, M. I. S. (Orgs.). Agricultura familiar Florianópolis: Insular, 2004. p. 109-132.
  • MANESCHY, Maria Cristina. Sócio-Econômico: trabalhadores e trabalhadores do mangue. In: FERNANDES, Marcus E. B. (Org.). os manguezais da costa norte brasileira Belém/São Luís: Petrobrás/Fundação Rio Bacanga, 2005. v. 2.
  • MAUÉS, Raymundo Heraldo; MAUÉS, Maria Angélica Motta. O modelo de "reima": representações alimentares em uma comunidade amazônica. Anuário Antropológico, Brasília, v. 2, p. 120-147, 1978.
  • MCGRATH, D. G.; CASTRO, F.; FUTEMMA, C. R.; AMARAL, B. D.; CALABRIA, J. A. Manejo comunitário da pesca nos lagos de várzea do Baixo Amazonas. In: FURTADO, L.; LEITÃO, W.; MELLO, A. F. (Eds.). Povos das águas: realidade e perspectivas na Amazônia Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1993. p. 213- 229.
  • MCGRATH, D. G.; CALABRIA, J.; AMARAL, B.; FUTEMA, C.; CASTRO, F. Varzeiros, geleiros e o manejo dos recursos naturais na várzea do baixo Amazonas. Cadernos do nAEA, v. 11, n. 4, p. 91-125, 1991.
  • NASCIMENTO, Ivete. Tempo da natureza e tempo do relógio: tradição e mudança em uma comunidade pesqueira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia, v. 11, n. 1, p. 5-18, 1995.
  • SETTON, Maria da Graça Jacintho. A socialização como fato social total: notas introdutórias sobre a teoria do habitus Revista Brasileira de Educação, v. 14, n. 41, p. 296-307, maio-ago. 2009.
  • PAIS, José Machado. Culturas juvenis Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993.
  • PAIS, José Machado. A construção sociológica da juventude alguns contributos. Análise social, v. 25, n. 105-106, p. 139-165, 1990.
  • TAVARES, Aderli Góes. Velhices: saberes tradicionais e inovações no rio tauá 2000. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Universidade Federal do Pará, Belém, 2000.
  • WOORTMANN, Klaas. "Com parente não se negocia": o campesinato como ordem moral. Anuário Antropológico, n. 87, p. 11-73, 1990.
  • WOORTMANN, Ellen F.; WOORTMANN, Klaas. o trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora da UnB, 1997.
  • Autor para correspondência
    Luis Fernando Cardoso e Cardoso
    Av. Augusto Corrêa, 01 – Guamá
    Belém, PA, Brasil. CEP 66075-110
    (
  • 1
    A bibliografia sobre as comunidades de pescadores é vasta. Desde a década de 1960, se produz nesse campo. Diegues (1999), um dos maiores especialistas brasileiros do que se convencionou chamar, desde a década de 1970, de Antropologia Marítima, Sócio-Antropologia Marítima, Antropologia da Pesca ou, ainda, Antropologia das Populações de Pescadores ou Haliêuticas, fez uma excelente revisão das publicações mais expressivas desse campo de pesquisa. Tal material pode direcionar os interessados a navegarem em águas seguras quando o assunto é a problemática relacionada às comunidades de pescadores do Brasil. Na Amazônia, os trabalhos mais expressivos atualmente sobre tal problemática são os de Furtado (2006) e Maneschy (2005).
  • 2
    Castro (1997) usa o conceito de 'população tradicional', tendo como caso específico a população amazônica, mostrando, entre outros aspectos, a relevância do território para tais grupos sociais. No entanto, ao nos referirmos ao conceito de 'tradição', como bem salienta Almeida (2008, p. 98), temos consciência de que o mesmo está mudando. Ele não está ligado necessariamente à história ou ao passado remoto, mostrando-se, ao contrário, vinculado a reivindicações contemporâneas de parte da população brasileira. Desse modo, entendemos que "populações tradicionais são as que conquistaram ou estão lutando para conquistar (prática ou simbolicamente) uma identidade pública conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presenças de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados" (Cunha, 2009, p. 300).
  • 3
    Sobre o assunto, ver Colbari (1995).
  • 4
    Castro (1997, p. 168) reconhece que, nos povos tradicionais, a "organização das atividades de trabalho não está separada de rituais sacros, de festividades ou outras manifestações da vida e da sociabilidade grupal, responsável por maior ou menor integração das relações familiares e de parentesco". Esses aspectos ressaltam que o trabalho não é algo separado da vida, com hora definida para iniciar e terminar. Ele a compõe como um todo, e marca as etapas da vida.
  • 5
    Woortmann (1990), ao tratar teoricamente do campesinato enquanto campo moral, argumenta pelo conceito de 'campesinidade', sendo um de seus elementos importantes a hierarquia familiar, mesmo que esta esteja em amplo processo de transformação.
  • 6
    Gostaríamos que ficasse claro, como ressaltado anteriormente, que os marcadores de idade não são fixos, variam com um conjunto de fatores, como o posicionamento na ordem de nascimento: se for o primeiro filho de um casal, logo nos primeiros anos de vida será requerido para certas atividades. Daí deixar a condição de criança mais precocemente que irmãos na mesma idade.
  • 7
    Na região Norte, os termos 'facão' e 'terçado' se equivalem. 'Terçadinho', portanto, é o diminutivo de terçado. Ele é sempre usado por crianças maiores de cinco anos, como forma de aprendizado do manejo correto desse instrumento, que, na grande maioria das vezes, é afiado e perigoso.
  • 8
    É interessante perceber que 'ajuda' é uma categoria que indica uma dependência com relação aos pais. Objetivamente, uma pessoa sai definitivamente dessa condição ao constituir sua própria família, colocando seus filhos, com o passar dos anos, nessa mesma situação.
  • 9
    Furtado (1993, p. 201) lembra que "desde cedo, por volta dos cinco anos de idade, os meninos já começam a ir com seus pais ou parentes para a pescaria, para ajudar nas pequenas tarefas".
  • 10
    Os peixes lisos ou de couro são a dourada (
    Brachyplatystoma flavicans), o filhote (
    Brachyplatystoma filamentosum), a piramutaba (
    Brachyplatystoma vaillantii), o surubim (
    Pseudoplatystoma fasciatum) e tantos outros.
  • 11
    Reimosos são alimentos que fazem mal, venenosos, e só podem ser consumidos por alguém em perfeito estado de saúde; os não reimosos são inofensivos para as pessoas e podem ser consumidos em qualquer estado. Maués e Maués (1978) fazem uma análise a respeito das representações alimentares dos itapuenses, no município de Vigia, usando especificamente os conceitos ligados à reima.
  • 12
    Mannheim (
    apud Groppo, 2000, p. 22) argumenta que, na juventude, os indivíduos realizam, pela primeira vez, a absorção consciente de suas experiências sociais, passam a ter realmente uma experimentação pessoal para com a vida. Já na maturidade, as novas experiências sociais recebem, em geral, elucidação racional e reflexiva, sendo julgadas e analisadas pelo indivíduo a partir de padrões de conhecimento já sedimentados. A resistência dos indivíduos maduros à mudança social é, portanto, muito maior que a dos jovens, pois os adultos já têm seu quadro de referência formado.
  • 13
    Para aprofundamento da temática, ver a obra clássica que trata da memória dos velhos (Bosi, 1994).
  • 14
    Cesto cilíndrico de palha no qual se põe a massa de mandioca para ser espremida.
  • 15
    'Puxirum', chamado de troca de dias, é uma forma de usar as relações de amizade e parentais para a troca de jornada de trabalho entre os diferentes grupos familiares nas atividades mais desgastantes nas roças, tais como: roçar a mata, derrubar e plantar. É uma espécie de mutirão.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Aceito
      15 Fev 2011
    • Recebido
      16 Out 2010
    MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
    E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br