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Dossiê “Patrimônio indígena e coleções etnográficas”

Este dossiê temático apresenta uma parcela dos resultados de uma oficina realizada no Instituto Holandês de Estudos Avançados, parte da Academia Real de Ciências da Holanda (NIAS-KNAW), em outubro de 2013. Nesta oficina, representantes dos povos indígenas Ka’apor e Kayapó, ao lado de curadores e especialistas de universidades e de museus europeus e brasileiros, reuniram-se para refletir sobre o encontro entre um tema de pesquisa – a presença de patrimônio material indígena das terras baixas da América do Sul em coleções de museus no Brasil e na Europa – e uma práxis centrada na colaboração direta e autoral com representantes dos povos indígenas, cujas coleções fazem parte dos acervos museais. Por vezes chamada de museologia colaborativa ou de curadoria compartilhada, esta prática museológica vem crescendo em escala global, na qual o estudo de coleções, as práticas de restauro e a conservação de objetos, bem como os projetos expositivos de museus etnográficos e arqueológicos são elaborados a partir da colaboração entre representantes de diversas comunidades, curadores e demais especialistas. O resultado mais visível da oficina, na Holanda, foi a constatação da diversidade de intenções, expectativas, caminhos e resultados percebidos nos diversos projetos de museologia colaborativa apresentados pelos participantes.

As origens do movimento mais amplo de renovação do cenário político-cultural dos museus estão enraizadas nas décadas de 1960 e 1970, com as demandas políticas dos movimentos black power e red power, nos Estados Unidos, que, entre outras conquistas, reconfiguraram as relações político-culturais dentro daquele país. Desde então, tanto nos Estados Unidos como no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia, diversas comunidades indígenas passaram a exigir não só maior reconhecimento político para suas causas, mas também a possibilidade de participação efetiva (ou mesmo exclusiva) nas instituições nacionais de cultura, que até então detinham a autoridade para falar das sociedades, de seus modos de vida e das cosmologias indígenas. Em uma perspectiva global, pode-se dizer que a crítica pós-colonial gerou uma necessidade crescente de descolonização dos museus por todo o mundo. Do mesmo modo, no Brasil, desde a década de 1980 e notadamente após a promulgação da constituição de 1988, houve um crescimento significativo das demandas e das conquistas – atualmente ameaçadas – dos povos indígenas, incluindo-se aí a formação de plataformas culturais diversas que possibilitam as práticas de autodeterminação e a luta por território e reconhecimento. O Museu Magüta, que promove e preserva a cultura dos povos Ticuna, foi pioneiro neste processo. Desde então, um número considerável de museus e de pontos de cultura indígenas vem sendo criado por todo o país. Ao mesmo tempo, diversos museus etnográficos do Brasil – o Museu Paraense Emílio Goeldi, o Museu do Estado de Pernambuco, o Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, o Museu Nacional do Rio de Janeiro, o Museu do Índio da Fundação Nacional do Índio, o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, o Museu de Etnologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná, o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal de Santa Catarina, entre outros – têm se envolvido de forma cada vez mais frequente em trabalhos de museologia colaborativa com povos indígenas.

A reflexão acadêmica sobre este fenômeno, tanto em escala nacional como internacional, vem se expandindo na mesma proporção. Tendo como um dos seus principais marcos fundadores o conceito de ‘museus como zona de contato’, conforme definido por James Clifford, a partir da década de 2000 houve um crescimento intenso desta bibliografia especializada – como reflexo, de fato, da expansão geográfica deste tipo de trabalho, que passou a ser adotado também por museus em diversos países da Europa. Os principais temas apontados por esta bibliografia derivam diretamente dos desafios, dos limites e das revelações vindos de experiências práticas de museologia colaborativa. Desta forma, temas como a representatividade e o impacto político dos projetos, o direito ao acesso e à repatriação do patrimônio indígena, bem como a definição de termos como comunidade, agência, descolonização, indigeneity, inclusivity e participação forma o eixo central da discussão atual.

Neste contexto, o presente dossiê busca apresentar uma série de reflexões teóricas e políticas sobre o atual campo da museologia colaborativa. Mais especificamente, parte de exemplos concretos de projetos de museologia compartilhada com povos indígenas das terras baixas da América do Sul, empreendidos por museus etnográficos do Brasil e da Europa. Os artigos deste dossiê mostram como estas experiências atribuem novos significados a coleções etnográficas históricas e novos sentidos de trabalho em instituições centenárias.

O dossiê é composto por cinco textos. O primeiro deles, de autoria de Claudia López, Mariana Françozo, Laura Van Broekhoven e Valdemar Ka’apor, documenta e reflete sobre o projeto colaborativo “Compartilhando coleções e conectando histórias”, enfocando o processo de construção colaborativa da exposição “A festa do Cauim”, realizada no Museu Goeldi entre 2013 e 2014. O artigo analisa a metodologia de trabalho cocriativo como propulsora de um encontro de variadas perspectivas cognitivas e posicionamentos políticos – especialmente no caso deste projeto, em que o diálogo sobre os objetos etnográficos ocorria concomitantemente a um contexto social de conflito e violência no território Ka’apor. Deste modo, o artigo repensa a curadoria colaborativa tanto como geradora de conhecimentos quanto como um ato político.

Lucia van Velthem, Katia Kukawka e Lydie Joanny tratam, em seu artigo, do programa Museus da Amazônia em Rede (MAR), que conecta quatro museus na Amazônia oriental (situados no Brasil, na Guiana Francesa e no Suriname) e busca criar soluções digitais para a questão do acesso aos acervos destes museus. Iniciado por uma discussão sobre o conceito de patrimônio cultural indígena, o artigo ressalta a importância do acesso aos acervos museais para os povos indígenas da Amazônia, bem como os limites impostos pelas formas institucionais em que tal acesso pode ser criado. Ao discorrer sobre o programa MAR, o artigo ressalta o potencial das tecnologias digitais para ultrapassar tais limites e viabilizar cooperações transfronteiriças.

Já o artigo de Claudia Augustat e Wolfgang Kapfhammer traz um balanço dos projetos de curadoria compartilhada com povos ameríndios no Museu de Etnologia de Vienna, Áustria (recentemente renomeado como Weltmuseum, isto é, museu do mundo). A partir da descrição narrativa de diferentes tipos de colaboração com os povos e indivíduos Warí, Kanoé, Makushí, Shipibo e Sataré-Mawé, os autores embarcam em uma discussão teórica e propõem uma reconfiguração do conceito de ‘museus como zona de contato’, de James Clifford, ampliando-o para dar conta da diferença entre a zona de contato no museu (europeu) e a zona de contato no campo (sul-americano).

A comparação de experiências de museologia colaborativa – ou, nos termos dos autores, etnomuseologia – também é o foco central do artigo de Glenn Shepard Jr., Claudia López, Pascale de Robert e Carlos Eduardo Chaves. Seu texto compara a experiência de pesquisa no acervo etnográfico do Museu Goeldi com interlocutores Mebêngôkre-Kayapó e Baniwa, demostrando diferenças não só entre visões indígenas e ocidentais do patrimônio museológico, mas também entre as atitudes de diferentes povos indígenas na presença de coleções etnográficas históricas. O artigo ressalta a diversidade de caminhos e de resultados possíveis no trabalho de etnomuseologia, provocando, assim, novas reflexões sobre as iniciativas de revalorização cultural.

Finalmente, o dossiê se completa com uma entrevista concedida pelo etnógrafo suíço René Fuerst a Mariana Françozo. Fuerst trabalhou com diversos povos indígenas no Brasil por quase duas décadas, durante as quais, ao lado da pesquisa antropológica, também montou coleções etnográficas para museus europeus, notadamente o Museu de Etnografia de Genebra. Nesta entrevista, ele reconta como conduzia seu trabalho de campo no Brasil, como obtinha permissão para compra e exportação das peças, e como o período da ditadura militar no país transformou as condições da sua prática etnográfica. A entrevista ilustra o caminho percorrido por várias das peças atualmente analisadas em projetos colaborativos, das aldeias às reservas técnicas e às galerias dos museus europeus.

Em seu conjunto, os artigos deste dossiê reiteram os limites, as dificuldades e, principalmente, os avanços e possibilidades que fazem parte dos trabalhos de museologia colaborativa. Com efeito, observamos, no Brasil, uma crescente reflexão sobre os temas do patrimônio cultural em museus e coleções – sejam eles etnográficos, arqueológicos, de história (cultural), de arte etc. –, questionando, com cada vez mais densidade, os problemas do acesso ao patrimônio e à memória cultural e da democratização dos museus. Estas reflexões aparecem em livros, artigos, dossiês e revistas especializadas, nos programas de graduação e pós-graduação por todo país, em dissertações e teses defendidas, como também no debate público e na mídia social e, como não poderia deixar de ser, sob a forma de exposições autorreflexivas em museus e centros culturais. Esperamos que o presente dossiê venha a se somar a este rico quadro em desenvolvimento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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