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Dinâmicas das agriculturas amazônicas

As agriculturas da Amazônia e seus componentes foram desde sempre modelados por jogos de forças, quer se trate de suas dinâmicas internas feitas também de inovações, quer se trate de pressões externas. Um sistema agrícola pode se reproduzir apenas se for aberto, integrando e produzindo inovações. É o que atesta esse conjunto de oito artigos que constituem o segundo dossiê sobre agriculturas amazônicas produzido pelo Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. O primeiro dossiê Agriculturas amazônicas: cultivando plantas, saberes, paisagens e ideias publicado em 2012 e coordenado por Pascale de Robert e Claudia López, registrava a eficiência dos sistemas agrícolas tradicionais em termos de autonomia alimentar das populações, de conservação e produção de uma alta diversidade de plantas cultivadas, e da continuidade de um patrimônio cultural onde mitos, narrativas, saberes, práticas, redes sociais, cultura material, alimentação, formas de transmissão e outros elementos se entremeam.

Nesse segundo dossiê, abordamos sob vários ângulos as dinâmicas de sistemas agrícolas, muitas vezes agrupados sob a denominação genérica de agricultura familiar, sejam essas agriculturas de tipo campesina, tradicional ou indígena. Os temas debatidos mobilizam disciplinas, com seus instrumentos e conceitos, em um leque que vai da genética às ciências humanas e sociais, e promovem um diálogo interdisciplinar. Associam também referências temporais múltiplas ancoradas na memória - ou no porvir - dos indivíduos, dos coletivos ou cuja marca está integrada no genoma das plantas domesticadas. Os instrumentos metodológicos mobilizados nos artigos são vários: etnografias, biografias, trajetórias coletivas, familiares ou individuais, fontes históricas, levantamentos da agrobiodiversidade, análises genéticas, mas todos têm em comum a característica de entremear leituras do passado e do presente.

O objetivo do dossiê é propor uma leitura sob vários ângulos das dinâmicas de sistemas agrícolas em um contexto marcado por mudanças socioculturais, econômicas, ambientais e de políticas públicas que impactam os sistemas locais e ainda pouco abrem caminhos para propostas diferenciadas. Com o reconhecimento da importância dos conhecimentos indígenas e das sociedades locais para a conservação da biodiversidade e da diversidade cultural, e a relevância socioambiental da região a escala planetária, o interesse na realização de pesquisas sobre esse tema é mobilizado também pela urgência de suprir com evidências os formuladores e responsáveis pela implantação, acompanhamento e avaliação de políticas que repercutem no presente e futuro desses sistemas. Os artigos apresentados a seguir poderiam ser categorizados em dois grandes blocos, um ancorado no tema agriculturas e mundialização e outro no rema agriculturas tradicionais e agrobiodiversidade, mas tal organização não daria conta da complexidade das situações analisadas pelos autores. Optamos aqui por uma breve análise dos artigos sob a ótica das novas conexões desenhadas por suas próprias dinâmicas.

Mobilidade social e mobilidade geográfica, tal é o tema do artigo de Xavier Arnauld de Sartre, Joel Bevilaqua Marin, William Santos, Raquel da Silva Lopes e Iran Veiga. Os autores colocam em perspectiva os itinerários de vida dos agricultores de três assentamentos e os de seus filhos, sejam esses realizados, esboçados ou projetados, dependendo da faixa etária. Menos da metade desses, homens ou mulheres, continuam na agricultura, os outros estão na cidade. A conexão com a cidade se dá principalmente pela busca ou continuidade da escolarização e depois, pela procura de um espaço num mercado de trabalho principalmente urbano. As estratégias de mobilidade geográfica e social dos pais se reproduzem com os filhos, porém, com novos objetivos que não têm mais como prioridade o acesso à terra. São processos complexos de reprodução social que são analisados e que se desenham em um horizonte de tempo curto.

A pluralidade das estratégias desenvolvidas por associações caracteriza o mercado emergente do guaraná, produto emblemático da região de Maués no médio Amazonas. Solène Tricaud, Florence Pinton e Henrique Pereira dos Santos desenvolvem uma abordagem comparativa das estratégias de dois grupos de produtores, ‘guaranacultores’ relativamente recentes ou tradicionais. Um dos temas debatidos pelos autores é o dos modos de intervenções das instituições de fomento à agricultura, e das formas de apropriação das inovações propostas. O uso de um material vegetal selecionado ou nativo é um ponto chave das estratégias implementadas, em termos não só de itinerários técnicos como também de direitos de propriedade. O embate se situa entre dois modelos de desenvolvimento rural que apostam na comercialização de um produto ancorado em um território: um valoriza essa tipicidade, outro aposta na produtividade.

Porém, o guaraná não é apenas um produto comercializado como o indica Alba L. G. Figueroa, o guaraná é passado, presente e futuro do povo Sateré-Mawé. Sua trajetória é documentada desde sua origem mítica até os atuais desdobramentos do seu comércio justo. Planta da palavra, ela consubstancia, entre os Sateré-Mawé, um contrato social portador de um bem-viver. Seu comércio é atestado desde o século XVIII; seus princípios ativos são identificados no século XIX; o século XX é o da expansão de seu cultivo e da entrada de novos atores. Uma das perguntas colocadas pelo artigo é como, e até que ponto dialogam e são negociadas as dimensões identitária e comercial desse guaraná produzido pelos Sateré-Mawé, hoje conectado a uma ampla rede nacional e internacional de instituições que promovem tanto sua produção e comércio quanto outras iniciativas socioambientais. A força de coesão social, veiculada por essa planta fundada numa rede de significados, de atores e propósitos encenados no seu mito de origem, se projeta também para os complexos e desafiadores cenários das relações comerciais e políticas da contemporaneidade e as incertezas do futuro.

Outra planta reveladora de socialidade é o pequi cultivado pelos Kuikuro no Alto Xingu. Em um contexto global de mudanças sociais, econômicas e ambientais, Maira Smith e Carlos Fausto, propõem uma leitura dos processos socioculturais na origem da diversidade dos pequis. Os autores abordam essa planta lenhosa, de transmissão intergeneracional, como “objeto constituído por relações sociais”, uma característica extensiva ao agroecossistema ao qual pertence. As relações se revelam na constituição do pomar de pequis a partir de sementes oriundas dos diversos locais que marcaram a história de vida dos grupos familiares, na origem mítica que mobiliza humanos e não-humanos, nos cuidados que se deve ter com os donos do pequi e nos tratos culturais e simbólicos das árvores. Em conclusão, os autores colocam a necessidade de implementação de estratégias de conservação da agrobiodiversidade. Essa contribuição, bem como aquelas sobre o guaraná, (ou outras da literatura científica) evidencia o quanto a existência das plantas cultivadas está ligada às relações sociais mobilizadas em torno delas e o quanto essas plantas são a própria expressão ou materialização de conhecimentos tradicionais nelas embutidos. O conhecimento é assim intrínseco a elas.

O artigo de Joana Cabral de Oliveira explora as relações entre roça e floresta, desconstruindo, na perspectiva dos Wajãpi, a clássica oposição entre esses dois espaços. Ambos se configuram como espaços plantados, os primeiros como roças dos humanos “plenos”, os segundos como cultivos de diversos donos ou seres da floresta (não-humanos mas que se percebem eles mesmos como humanos) em uma lógica multinaturalista. Ter plantações, plantar, é um atributo de todos os seres e plantas, a floresta é constituída de plantações de outrem. A roça é o fundamento da vida social como espaço construído na consanguinidade, que supre os alimentos da família e que permite a realização de festas. A autora propõe caracterizar as relações floresta e roça, como de um dos suportes da ação, o que torna os dois elementos indissociáveis, porém seus contornos permanecem flexíveis e são redefinidos em função da posição do sujeito.

Baseada em pesquisas de caráter etnográfico entre o povo indígena Ka’apor, mas também considerando o enfoque da etnobotânica, Claudia Leonor López Garcés faz uma caracterização contemporânea da horticultura praticada por este povo, considerando-a como expressão cultural que abrange aspectos da cosmologia indígena, assim como expressões rituais, aspectos éticos, estéticos e organizativos, além do econômico e da diversidade agrícola, proporcionando uma visão ampla e diversa. Por outro lado, e ainda que de forma incipiente, o artigo busca refletir sobre as transformações na agrobiodiversidade, por comparação com estudos anteriores, e nas formas organizativas do trabalho hortícola influenciadas pelos conflitos socioambientais em torno da exploração ilegal de madeira e pelas políticas públicas.

Os estudos sobre a agrobiodiversidade selecionada e conservada pelas populações indígenas e tradicionais da Amazônia são bastante numerosos. No entanto, não permitem, pela heterogeneidade dos métodos mobilizados, traçar uma cartografia das dinâmicas da agrobiodiversidade na escala regional. Algumas publicações diacrônicas apontam para uma perda rápida de diversidade; políticas de modernização da agricultura estão sendo implementadas, mas seus impactos sobre saberes, práticas, relações sociais e diversidade biológica não estão ainda bem avaliados. A partir de uma pesquisa realizada na região de Cruzeiro do Sul (Acre) junto a pequenos agricultores, Laure Emperaire, Ludivine Eloy e Ana Carolina Sousa Seixas argumentam a favor da criação de dispositivos compartilhados entre populações locais e pesquisadores que dêem conta das dinâmicas de uma biodiversidade criada pela ação humana, mas paradoxalmente mal conhecida. A segunda parte do artigo examina, segundo uma análise qualitativa e quantitiva, a agrobiodiversidade manejada por 52 desses agricultores.

A última questão colocada nesse dossiê é a dos processos em andamento no tempo longo. O artigo de Charles Clement, Doriane Picanço Rodrigues, Alessandro Alves-Pereira, Gilda Santos Mühlen, Michelly de Cristo-Araújo, Priscila Ambrósio Moreira, Juliana Lins, Joana A. Maia Salomão e Vanessa Maciel Reis mostra a importância do alto Madeira, região de alta compexidade ecológica e sociocultural, como foco de uma domesticação, única ou múltipla, de plantas hoje difundidas a toda a Amazônia ou além desse bioma. Se os estudos analisados apresentam resultados consolidados para a mandioca, o amendoim, a pupunha e um espécie de pimentas (Capsicum baccatum), não permitem concluir de modo formal sobre o foco de origem do urucu, das taiobas e da outra espécie de pimenta, C. frutescens.

Em conclusão, essa série de estudos evidencia a diversidade das formas de tradição e de inovação social, agronômica e econômica que assegura a continuidade das pequenas agriculturas e sua inscrição em um mundo em rápida reconfiguração. Conservar recursos implica conservar a diversidade dos processos cognitivos, culturais e biológicos que estão na origem desses recursos. Nosso objetivo será atingido se esse dossiê contribuir a um melhor entendimento das múltiplas trajetórias de alguns dos sistemas agrícolas da Amazônia, a consolidar a interdisciplinaridade das pesquisas e a se abrir para pesquisas colaborativas com as populações locais. Agradecemos ao Editor científico do Boletim e a sua equipe que acolheram a proposta desse segundo dossiê, aos autores pelas riqueza de suas contribuições científicas e aos leitores pareceristas pela minúcia de seus comentários. Cabe-nos ainda indicar que deste dossiê deveria constar o artigo de Laura Santonieri e Patrícia Bustamante Conservação in situ, ex situ e on farm de recursos genéticos: desafios para promover sinergias e complementaridades, assim como o artigo de Marie Fleury Agriculture intinérante sur brûlis (aib) et plantes cultivées sur le Haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane Française, que, infelizmente, por imprevistos nos trâmites editoriais, não puderam ser publicados.

Por último, dedicamos esta obra a Juliana Santilli (in memoriam), colega, amiga e companheira em diversas empreitadas acadêmicas, em reconhecimento a suas grandes contribuições na reflexão sobre conhecimentos tradicionais, agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. Saudades.

  • A Juliana Santilli (1965-2015)
    In memoriam

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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