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Clevelândia, Oiapoque: cartografias e heterotopias na década de 1920

Clevelândia, Oyapock: cartographies and heterotopias in the 1920's decade

Resumos

Apesar da área de fronteira do rio Oiapoque, no Amapá, ter sido integrada à soberania brasileira no ano de 1900, a efetiva colonização brasileira daquela área limítrofe somente ocorreu na década de 1920. A estratégia do governo federal foi implantar uma colônia agrícola projetada: Clevelândia. Essa colônia agrícola transformou-se em uma colônia penal entre 1924 e 1927, o que fez com que seu experimento fracassasse. O povoamento dirigiu-se, então, à antiga vila vizinha de Martinica, uma comunidade de negros e ribeirinhos, chamada depois de Oiapoque. Este artigo apresenta as relações humanas e sociais estabelecidas nesses lugares em três tempos distintos: o da colônia agrícola, o da colônia penal e o da nova comunidade. As fontes documentais existentes foram usadas para refazer mapas datados desses lugares. A partir dessa 'cartografia', pretende-se compreender como se criaram relações entre os indivíduos que, por razões diversas, transitaram nesse espaço naquele período. Apesar de haver uma hierarquização oficial do espaço, a prática vivida pelos indivíduos o reinventou, criando relações sociais não pensadas pelos modos dominantes do poder, as 'heterotopias'.

Colônia agrícola; Colônia penal; Clevelândia; Oiapoque; Amapá


Despite the Oyapock River border had been attached to Brazilian territory in 1900, the official colonization occurred only in the 1920's. The Brazilian Federal Government strategy was to build an agro-colony called Clevelândia. Between 1924 and 1927, it was transformed into a penal colony, causing the failure of the agro-colony experience. The populating process moved to nearly Martinique village, an oldest black and riverine community, after renamed to Oyapock. This article presents human and social relations established at those places in three different moments: the agro-colony, the penal-colony and the new Martinique community. The historical sources were used to map these places. The objective is to understand, with the aid of 'cartography', which kind of relationship among this diverse population was established and how it was happened. Despite the governmental hierarchizing of space, the individual real life reinvented it creating social relations not planned by the power of State: the 'heterotopias'.

Agro colony; Penal colony; Clevelândia; Oyapock; Amapá


ARTIGOS

Clevelândia, Oiapoque: cartografias e heterotopias na década de 1920

Clevelândia, Oyapock: cartographies and heterotopias in the 1920's decade

Carlo Romani

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Carlo Romani Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Almirante Alexandrino, 2750 Santa Teresa. Rio de Janeiro, RJ, Brasil caromani@ig.com.br

RESUMO

Apesar da área de fronteira do rio Oiapoque, no Amapá, ter sido integrada à soberania brasileira no ano de 1900, a efetiva colonização brasileira daquela área limítrofe somente ocorreu na década de 1920. A estratégia do governo federal foi implantar uma colônia agrícola projetada: Clevelândia. Essa colônia agrícola transformou-se em uma colônia penal entre 1924 e 1927, o que fez com que seu experimento fracassasse. O povoamento dirigiu-se, então, à antiga vila vizinha de Martinica, uma comunidade de negros e ribeirinhos, chamada depois de Oiapoque. Este artigo apresenta as relações humanas e sociais estabelecidas nesses lugares em três tempos distintos: o da colônia agrícola, o da colônia penal e o da nova comunidade. As fontes documentais existentes foram usadas para refazer mapas datados desses lugares. A partir dessa 'cartografia', pretende-se compreender como se criaram relações entre os indivíduos que, por razões diversas, transitaram nesse espaço naquele período. Apesar de haver uma hierarquização oficial do espaço, a prática vivida pelos indivíduos o reinventou, criando relações sociais não pensadas pelos modos dominantes do poder, as 'heterotopias'.

Palavras-chave: Colônia agrícola. Colônia penal. Clevelândia. Oiapoque. Amapá.

ABSTRACT

Despite the Oyapock River border had been attached to Brazilian territory in 1900, the official colonization occurred only in the 1920's. The Brazilian Federal Government strategy was to build an agro-colony called Clevelândia. Between 1924 and 1927, it was transformed into a penal colony, causing the failure of the agro-colony experience. The populating process moved to nearly Martinique village, an oldest black and riverine community, after renamed to Oyapock. This article presents human and social relations established at those places in three different moments: the agro-colony, the penal-colony and the new Martinique community. The historical sources were used to map these places. The objective is to understand, with the aid of 'cartography', which kind of relationship among this diverse population was established and how it was happened. Despite the governmental hierarchizing of space, the individual real life reinvented it creating social relations not planned by the power of State: the 'heterotopias'.

Keywords: Agro colony. Penal colony. Clevelândia. Oyapock. Amapá.

INTRODUÇÃO

O título deste artigo não deve ser entendido como um estudo das cartas gráficas da região do Oiapoque, no atual estado do Amapá. Aqui, o termo é usado no sentido da produção de cartografias variadas, mapeamentos, inclusive espaciais, mas não exclusivamente, sobre a ocupação humana que lá se estabeleceu entre 1920 e 1927, período de funcionamento do Núcleo Colonial Cleveland, primeiro como uma colônia agrícola e, em seguida, como colônia penal (Figura 1). A utilização dos referenciais de espaço e tempo aqui propostos foge das dimensões tradicionalmente relacionadas a eles. Se numa perspectiva histórica das ciências humanas houve uma compreensão geográfica do espaço como sendo apenas o palco onde se desenrola uma construção sócio-histórica a partir de agentes humanos, o trabalho aqui proposto trata de dar ênfase à importância do espaço como elemento sócio-histórico fundamental.


Não é o caso também de se hiperdimensionar os elementos espaciais, em detrimento dos temporais, como sendo os principais determinantes das relações humanas estabelecidas na conformação da cultura local. Na entrevista concedida à revista "Hérodote", Michel Foucault enfatizou a importância das táticas e estratégias usadas no estabelecimento de relações de poder para a dominação de territórios. Via a Geografia e o papel do geógrafo como instituintes do poder de Estado (Foucault, 1996, p. 153-165). Na aula introdutória ao Curso no Collège de France, em 1976, Foucault discutiu a importância dos saberes locais, inclusive daqueles que se atêm ao conhecimento do espaço físico de vivência como estratégia de resistência e persistência das populações regionais (Foucault, 1999, p. 3-26). Foucault chamaria de 'heterotopias' as relações espaciais que se originam entre as pessoas e que, de algum modo, escapam às formas de sujeição estabelecidas pelo poder, recriando outras possibilidades de vivência que não as oferecidas ou desejadas pela hierarquia dominante (Foucault, 2001). Em outras palavras, ao caminhar pelo espaço físico de uma cidade, o interesse principal estaria mais na observação das aglomerações humanas do que na arquitetura do lugar. Numa visão heterotópica, o comércio ambulante no centro da cidade, suas relações cotidianas produzidas no e pelo espaço, e que efetivamente dão vida a ele, seriam mais ricos do que a planta e o traçado urbano, os edifícios e as formas de poder que estes ensejam.

A primeira recriação cartográfica proposta neste artigo é a do espaço estabelecido durante o período de conformação do núcleo colonial de Clevelândia enquanto uma promissora vila agrícola. Essa mesma vila será cartografada num segundo momento, aquele do declínio do experimento agrícola e do surgimento de um estabelecimento penal. Por meio desses dois mapas, pode-se observar como o discurso montado a partir da visão geográfica trazida pelo Estado foi vivido na prática. Na última recriação, será observada a construção de uma relação de espaço-tempo mais longa e de conformação mais lenta. A antiga vila de Martinica (atual Oiapoque) será cartografada com base nos relatos dispersos que foram encontrados e nas sucessivas modificações ocorridas até o momento em que o crescimento espontâneo do lugar não pôde mais ser ignorado pelo Estado, quando então se deu oficialmente sua renomeação para Espírito Santo do Oiapoque.

Não se ignora a fundamental importância das temporalidades na análise das fontes documentais. Assim, a recriação espacial proposta deve ser compreendida como uma fotografia, cujos elementos que a imprimem são essas fontes lidas como discursos no momento de sua produção. A construção, e a análise dessas cartografias, leva em conta o entendimento de que "os discursos geográficos - no sentido mais amplo do termo (discursos referidos ao espaço terrestre) - variam por lugar, variam por sociedade, mas principalmente pela época em que foram gerados" (Moraes, 2002, p. 27). O discurso histórico sobre o espaço vivido, ocupado, ou ainda, o pretendido, não é somente fruto de uma construção baseada em temporalidades. Nele também deve ser percebida a influência do meio, das criações humanas sujeitadas ao meio que lá permaneceram e que ultrapassaram a dimensão histórica. Nesse sentido, este estudo cartográfico do Oiapoque parte de uma problematização histórica do tema, mas que a pensa de modo transdisciplinar, dialogando, por exemplo, com estudos de caráter nitidamente mais geográficos, como o de Masteau (1998).

Dada a característica do Oiapoque como uma região de fronteira, de intenso trânsito, as fontes permitem entender as relações humanas naquele espaço como sendo relações de passagem, criações culturais que são o resultado de uma cultura muito mais nômade do que histórica (Romani, 2008). Entre os saberes constituídos, coube à História o papel de marcador temporal do poder (Pelbart, 2000, p. 92). Para Deleuze (1999), é no turbilhão, na antimemória e na multiplicidade que se apresenta o devir. Portanto, é no meio, no espaço, no lugar da passagem que podemos e devemos encontrar os elementos que desmarcam ou desmascaram a temporalidade do poder. Daí que a ideia de nomadismo expressa por Deleuze como substitutivo ao acontecimento histórico pode muito bem ser usada na fronteira do Oiapoque, até hoje um lugar de trânsito contínuo. Trânsitos culturais, étnicos, civilizadores, de Estado, de anti-Estado, enfim, trânsitos múltiplos de diversos interesses. Portanto, as recriações cartográficas daquele espaço são fotografias de passagem. Os mapas são fragmentos para visualizar as mudanças espaciais e relacionais que ocorreram nesse período, entre 1920 e 1927, época em que se deu o encontro entre o nomadismo da população cabocla, nativa e migrante, com os discursos sedentários trazidos ou gerados pela chegada do poder civilizador do Estado.

UMA CARTOGRAFIA DA COLÔNIA AGRÍCOLA

A experiência agrícola realizada em Clevelândia do Norte, embora tenha sido malograda, serviu para levar à fronteira distante uma nova forma de urbanidade planejada, até então inédita naquelas paragens (Figura 2). A arquitetura planificada, criada no núcleo colonial recém-implantado, dispôs a vila de um traçado urbano que somente se observava do lado francês. O atracadouro de madeira, onde as embarcações menores procedentes de Santo Antônio aportavam, espiava a praça em frente, recepcionando os viajantes recém-chegados, um campo largo de onde partiam, perpendicularmente, em forma de T, duas ruas bem definidas: uma via em direção às terras altas interiores; outra que, ladeando o rio Oiapoque, alcançava os limites urbanos da vila compreendidos entre os rios Pontanari e o Siparani. A partir dessa via marginal, distribuíam-se para ambos os lados os lotes de que cada família de colonos foi dotada. Ao fim da via, na extremidade que encontrava o igarapé Siparani, um outro caminho seguia esse curso, alcançando os últimos lotes agrícolas, aqueles mais distantes do eixo central de Clevelândia e que eram destinados às famílias menores ou de menor expressão junto à comunidade migrante. Embora se tratasse de uma vila com um arruamento ainda bastante restrito, a elaboração de um projeto urbano planejado, antes de serem erguidas as construções, era um fato absolutamente inédito para os habitantes da redondeza.


Com esse ar de pequeno plano piloto, o núcleo colonial foi oficialmente inaugurado com o nome de Centro Agrícola Cleveland, em 5 de maio de 1922. A explícita homenagem ao presidente americano Groover Cleveland não parece fazer muito sentido, dado que ele não participou da querela diplomática que deu ganho de causa ao Brasil, na questão da disputa dos limites com a França. Oferecer o nome do presidente da potência americana em um vilarejo limítrofe com o território colonial de uma potência europeia, como a França, não deixa de trazer suspeitas. Analisando este fato, Alexandre Samis atribui essa homenagem, embora não o faça de forma conclusiva, à estratégia adotada pelo Barão do Rio Branco em sua política externa, na qual se alinhava à Doutrina Monroe pela defesa dos interesses nacionais no continente. Para o Barão, o inimigo exterior com pretensões coloniais na América, principalmente no extremo norte do continente sul-americano, seriam as potências europeias (Samis, 2002, p. 158-160).

Além do presidente americano, o Barão do Rio Branco foi o grande homenageado em Clevelândia. A praça e a rua principal, chamada de boulevard, receberam seu nome. O barco, que naquele 5 de maio trouxe os visitantes do porto de Santo Antônio até a cerimônia de inauguração, também levava seu nome. Somente faltou o próprio diplomata, se ele ainda estivesse vivo naquela ocasião, para completar a festa, que foi assim descrita pelo Padre Alicino com base na ata de fundação do município de Oiapoque:

A espaçosa praça, que tomou o nome do 'Conquistador do Amapá', Barão do Rio Branco, toda enfeitada de cordas de bandeiras de muitas nacionalidades pendurando-se das palmeiras, apresentava um aspecto festivo e encantador. A vivacidade das cores em contraste com o verde escuro da cerca recuada da floresta virgem fazia daquele sítio um oásis civilizado, um abrigo de promissoras esperanças.

Em frente ao ponto de desembarque e em direção à avenida que ia ter ao hospital, destacava-se um artístico arco triunfal enfeitado de crepons e de filamentos de palmeiras, de modo a combinar as cores da bandeira brasileira (Alicino, 1971, p. 89).

Com a colônia toda embandeirada e enfeitada e os colonos todos bem calçados, inclusive as crianças, o foguetório se fazia ouvir a cada chegada dos barcos que traziam os visitantes de fora, especialmente chamados para a festa de inauguração. Os convidados foram recebidos pelo anfitrião, o chefe da colônia, engenheiro Gentil Norberto, que organizou a recepção na única casa de alvenaria construída até aquele momento, a sede da Administração. Na ata de registro de fundação da colônia, encontramos a lista dos ilustres convidados1 1 Os convidados principais eram: Coronel Julio Benito Pontes, intendente municipal de Montenegro; José Ferreira Noronha, representante da Amazon River; Augusto de Moura Palha Jr., representante de "A Província do Pará" e que também era funcionário da colônia; Feliciano Mendonça, de "O Estado do Pará" e chefe da Comissão de Profilaxia Rural do Pará; Deocleciano Coelho de Souza, Delegado Fiscal da Fazenda do Pará; Federico Schmidt, do Clube de Engenharia do Pará; João de Palma Muniz, chefe da 3ª. Seção das Obras Públicas; Antonio Mazzini, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. . O vigário recém-chegado a Saint Georges, Olivier Gros, em substituição ao anterior, Ettiene Salvetat, encontrava-se presente para abençoar a todos. Naquela época, o distrito brasileiro de Oiapoque ainda não era uma paróquia e todas as celebrações religiosas tinham que bater na porta do pároco francês2 2 Informações obtidas no livro de batismo de brasileiros, no Arquivo da Paróquia de Oiapoque (doravante, APO). .

A festa seguiu os moldes das antigas festas coloniais, mantendo-se a separação entre 'casa grande' e 'senzala'. Banquete na sede da Administração para os convidados especiais, com discursos das autoridades, e, após as honras de praxe e já de barriga cheia, a casa grande curvou-se à senzala para assistir ao baile, com a apresentação das danças folclóricas locais feitas pelos colonos: desde o carimbó até o casse-corps créole. Na cozinha da festa, ao populacho foi garantido um boi inteiro para alimentar a farra. Festa que acabou se estendendo durante toda a tarde e animou-se ainda mais com o 'arrasta-pé' embalado pelos sanfoneiros.

Às mulheres das famílias de colonos restou o lugar da apresentação ensaiada e um leve aperitivo do baile popular, enquanto os homens de casa ainda estavam presentes. Para as jovens solteiras, era aquele o momento existente para verem e serem vistas. Uma rápida troca de olhares ou a sorte, para as mais atrevidas, de uma dança com o par desejado, e a festa seria comentada pelas semanas seguintes, até o próximo baile a ser organizado. Dona Cezarlina Pennafort tocava viola com um grupo de mulheres nas festas de São João, tradicional festa do Nordeste brasileiro, o que nos dá indícios da predominância de famílias de origem nordestina entre os colonos. Segundo ela, os momentos de diversão eram raros. Raras eram também as oportunidades para se conhecer um namorado e, portanto, tinham de ser muito bem aproveitadas3 3 Cezarlina Pennafort, depoimento pessoal. Macapá, 26/05/2001. .

O encanto que essa modernidade trazida até a selva provocava nos novos colonos foi um dos motivos do impulso inicial da vila agrícola. Mesmo após sua inauguração oficial, ainda havia muito a ser feito para completar o projeto traçado. Mesmo assim, logo a vila piloto transformou-se no centro regional do Oiapoque brasileiro. O discurso otimista e ufanista dos jovens colonos fazia coro e seguia o discurso trazido pelo Estado, que se vangloriava de ter levado o que havia de melhor na civilização para o confim amazônico. Os primeiros colonos vieram em diferentes turmas. Dois grandes grupos distintos se formaram, segundo a narrativa de Rocque Pennafort. Um deles veio com o patriarca de sua família, o coronel Chico Pennafort, e outro, de famílias cearenses retirantes da seca, acampadas em Belém, trazidas pelo Governo. Ainda segundo a narrativa épica dos Pennafort, lembrada por Rocque:

(...) minha família praticamente ocupou toda a linha do Siparany, cabendo aos meus pais o lote número dois, da referida linha. E toca a botar roça, e a plantar de tudo. De café a mandioca, na certeza de termos encontrado o Eldorado, tal era a confiança no mito, naquela época existente, de que as terras do Oiapoque eram fertilíssimas.

Meu pai, enquanto nós trabalhávamos na roça, ia trabalhando nas construções em Clevelândia, para, com o salário extra, ajudar a subvenção que a Comissão dava para a manutenção da família, já que ele era carpinteiro, pedreiro, pintor e às vezes ainda arrancava dentes4 4 Arquivo Particular de Rocque Pennafort (doravante, ARP). "Memórias", capítulo 11, "Mais de meio século de dependência". O ARP é um conjunto de cartas, folhas datilografadas, mimeografadas e de material escrito a tinta e a lápis sob guarda da própria família, por isso particular, ao qual tive acesso para este trabalho específico. Procurei compilar e sistematizar esse acervo para este uso, porém sempre mantendo as referências originais das páginas datilografadas divididas em capítulos e sem numeração. .

Percebe-se o mito recorrente do Eldorado, a terra prometida para a família. Tanto nas frentes de colonização induzidas por companhias particulares na área da Amazônia legal, como nesse núcleo colonial montado pelo governo, a lenda do ouro verde repete-se. Como muito bem assinalou Regina Guimarães Neto (2002), na maioria das vezes, a procura do Eldorado não se materializa, empurrando os colonos migrantes para o desbravamento de novas fronteiras agrícolas e de civilização. Aqui, porém, onde se encontram os limites do Estado, ao errante resta o retorno, sempre inglório, ou a reinvenção do espaço. Coube às famílias migrantes reinventar o antigo espaço da fronteira e a eles somaram-se alguns habitantes ribeirinhos que lá se encontravam, trabalhando na construção do núcleo e que, ao permanecerem na vila, passaram também a receber os benefícios oficiais.

Enquanto o mito manteve-se de pé, Clevelândia cresceu, mostrando sua 'nítida superioridade' em relação à vizinha Martinica, a velha vila existente poucos quilômetros rio abaixo, fundada por imigrantes antilhanos durante a febre do ouro no início do século XX (Romani, 2010). Quando os colonos não conseguiram mais sobreviver da agricultura em Clevelândia, transferiram-se para a vila ao lado, submetendo-se ao trabalho assalariado na extração vegetal e mineral. Começava a se delinear a separação entre uma elite migrante e um grupo de assalariados que permaneceria vivendo de modo nômade. Crescido em uma família da nova elite, Rocque (posteriormente se tornaria prefeito de Oiapoque) relata com naturalidade essa divisão que ia se delineando:

Os habitantes da Martinica, além de se ocuparem da pequena agricultura e da pesca, tinham a sua maior fonte de renda e ocupação nas usinas de extração de essência de pau-rosa instaladas ao longo do rio Oiapoque: uma em Demonty (...); uma em Taparabou, uma em Tampac (francesa) onde havia também uma outra não de produção de essência, porém de "Tafiá" (aguardente); uma em Clevelândia e algumas no alto Oiapoque5 5 ARP. "Memórias", capítulo 12, "O peixe do Oiapoque". .

Com o passar dos anos, ao declínio continuado de Clevelândia contrapõe-se o gradual desenvolvimento populacional de Martinica, que se tornou o receptáculo dos braços desiludidos da vila agrícola e, na década seguinte, também o dos braços vencedores. A instalação das usinas destiladoras de pau-rosa trouxe, além da farta mão de obra barata, empreendedores e pequenos comerciantes.

Com base nas fotografias existentes e nos relatos e narrativas, pode-se, pelo menos parcialmente, reconstruir a distribuição geográfica das famílias agrícolas e mapear a arquitetura planejada do centro administrativo e comercial do núcleo colonial, desde sua inauguração, em 1922, até a chegada dos prisioneiros, em dezembro de 19246 6 Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (doravante, PCBDL), Belém. Boletim nº. 65. Instituto Geológico e Mineralógico do Brasil. Ministério da Agricultura. Relatório do Engenheiro-geólogo Pedro Moura. . Analisando o texto com a indicação dos colonos sediados e a planta do núcleo colonial, é possível identificar quatro eixos distintos de colonização (Figura 3)7 7 ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias". :


a) O primeiro eixo é aquele que se encontra dentro do que seria o centro da vila de Clevelândia, ou seja, o trecho ao longo da linha do rio Oiapoque, entre a elevação Sibéria e a foz do igarapé Siparani. Nessa linha, que acompanha o boulevard Rio Branco, por um lado se alcança a cachoeira Grand Roche, e pelo outro, a entrada do igarapé que, uma vez transposto, vai levar à foz do Pontanari. Esta linha será denominada de eixo C (Clevelândia);

b) O segundo eixo é o que segue a linha do Siparani, subindo o curso desse rio. É onde está localizada a maioria dos lotes e é também a linha que avança mais em direção ao interior. Essa linha será denominada de eixo S (Siparani);

c) O terceiro eixo é o que está localizado após a pedra da Sibéria e que segue a linha do Pontanari em direção ao sertão. Essa linha será denominada de eixo P (Pontanari);

d) Por último, a linha de lotes que acompanha o resto do curso do Oiapoque, além da foz do Siparani, sendo necessário atravessar esse igarapé de canoa. É a linha mais distante, com loteamentos até acima da cachoeira Grand Roche. É o lugar de passagem para a travessia dos navegadores que sobem o rio e também para os trabalhadores da usina Alice. A linha será denominada de eixo O (Oiapoque).

No primeiro eixo de ocupação, contíguo ao núcleo central de Clevelândia, na área demarcada com L que acompanha a saída a montante da vila, há dois nomes que podem pertencer às lideranças dos agricultores vindos de Belém. O colono Abdon Joaquim de Lima seria, futuramente, entrevistado pelo "Estado do Pará", apoiando a gestão do chefe da colônia durante o período em que esta se transformou em presídio. Seu relato sugere um estreito comprometimento com os funcionários federais. Na mesma localização, há os lotes de Luiz Nobre, que aparece em uma fotografia oficial do ministério da Agricultura para comprovar a fertilidade das terras. Segura nas mãos uma mandioca gigante, veículo de propaganda usado pelo governo para a vinda de mais migrantes. As roupas e o porte de Luiz Nobre contrastam com a vestimenta e os pés descalços do retrato do colono negro segurando uma cana-de-açúcar gigante. Essas fotografias são indícios das relações sociais que iam se formando ou que já chegaram formadas por meio da colonização oficial8 8 Fotogramas 112 e 113, ano 1925. Fundo Arquivo Arthur Bernardes (doravante, AAB) (Série Presidência da República, subsérie Revolta). Arquivo Público Mineiro (doravante, APM), Belo Horizonte. . Nobre e Abdon viviam próximos aos funcionários do núcleo, saíam em fotografias oficiais e davam entrevistas para o jornal da capital. Parecem formar um grupo de livre trânsito junto à chefia da missão colonizadora.

Seguindo a estrada, na confluência do Siparani com o rio Oiapoque, há a presença de Teodoro, posseiro sediado nessa beira de rio desde antes da chegada dos Pennafort e que auxiliou na construção do núcleo, sendo, portanto, beneficiado com a chegada dos novos agricultores. Dobrando à esquerda, seguindo o eixo que vai acompanhando o sinuoso igarapé Siparani, instalou-se a maior parte do grupo trazido pelo coronel Pennafort. O velho Chico aparece no lote nº. 5, bem no centro do eixo Siparani, como que a tomar conta de modo equidistante de todo o seu grupo. Na linha de entrada encontra-se o lote nº. 2, da família de Raimundo, o pai de Rocque, e outro lote, de um parente direto. Passando o local do chefe, subindo o rio, temos outros quatro lotes de famílias vindas com o grupo Pennafort. Talvez sejam ajudantes da frota pesqueira e que agora tentavam a vida como trabalhadores agrícolas.

Restam dois eixos de ocupação mais distante. No eixo que segue subindo o rio Oiapoque, em áreas onde era impossível o alcance dos barcos, os últimos lotes estavam localizados somente após os intransponíveis saltos da cachoeira. Segundo a narrativa de Rocque9 9 ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias". , nessa linha ficaram misturadas famílias pertencentes ao grupo Pennafort e outros migrantes cujas famílias vieram de Belém. Na ilha Robinson, em frente à cachoeira, já se encontrava estabelecido o francês Jacques.

Enfim, o eixo Pontanari, no limite a jusante do núcleo colonial, local onde permaneceram as famílias dos posseiros anteriores à colonização oficial. Lá se encontrava a família de Paulo de Resende, na beira do Pontanari, e também a do caribenho Teodore Nicolau, pescador que ocupava com a família a praia da Sibéria10 10 APO. Relação de batismos de nascidos em território brasileiro em 1921-1922. . Havia, ainda, os antigos moradores João Paulino, Manoel Teodoro Alves e Cipriano Alves, citados no primeiro relatório da missão colonizadora, em 1920. Os três últimos permaneceram como colonos, ocupando, junto a outras famílias vindas na frota de Chico Pennafort, os últimos lotes na linha de saída do Pontanari.

Esta é, em linhas gerais, a distribuição cartográfica das famílias de colonos que se radicaram em Clevelândia em meados de 1922. São aproximadamente vinte núcleos familiares, totalizando pouco mais de uma centena e meia de habitantes tentando a sorte na nova fronteira agrícola11 11 Além do relato de Rocque Pennafort, como indicação da população no local, há o batismo coletivo feito em 31 de maio de 1922 pelo padre Gros, na vila de Clevelândia. Além das crianças batizadas, 23 no total, surgem o nome de diversos pais e padrinhos, colonos e funcionários, que não constam dos relatos anteriores. Fonte: Archives de la Église de Saint Georges (doravante, AESG). Livro de Registro de Batismo (1915-1926). . Talvez esse grupo inicial tenha dobrado durante o ano seguinte, fruto da propaganda elaborada, mas recuou novamente quatro anos depois. Em 31 de dezembro de 1926, conforme o relatório elaborado pelo Major Boanerges de Souza, a população de Clevelândia era de 204 pessoas, sendo 133 homens e 81 mulheres. Desses, 127 eram colonos e 77 funcionários e comerciantes12 12 PCBDL. Inspecção de Fronteiras. Anexo nº. 3, 1927. Relatório do Major Boanerges Lopes de Souza, p. 18-20. . O relatório não fez a contagem dos prisioneiros já detidos no campo nem dos soldados federais responsáveis pela sua guarda.

Esse grupo de trabalhadores agrícolas era assistido por outro grupo de pequenos comerciantes e funcionários, técnicos e burocratas, empregados pelo governo para fazer funcionar o novo empreendimento. Portanto, temos uma vila em que moram, além de mais de uma centena de colonos, também uns 70 funcionários do Estado. Clevelândia, por estas contas, tinha uma população de aproximadamente 200 pessoas na data de sua inauguração oficial. Os empregados do governo habitavam em casas no centro urbano, em torno da Praça Epitácio Pessoa. O plano viário compreendia basicamente um grande quadrado em frente ao atracadouro, com um perímetro de 400 a 500 metros. Cruzando esse quadrado, havia duas vias principais. O boulevard Rio Branco, que seguia por uns 200 metros paralelamente à margem do rio Oiapoque, levava, por um lado, para a saída da estrada ao longo do Siparani, e, por outro, em direção à Sibéria e ao Pontanari. Quem chegava ao trapiche vindo de barco, à direita, seguindo o rio Oiapoque, via a grande cachoeira e, à esquerda, a elevação da Sibéria. Em frente, a praça, e atravessando-a, seguindo perpendicularmente o eixo do rio, outra estrada levava para o interior, até as instalações do Hospital Simões Lopes.

Logo ao desembarcar no atracadouro, beirando o rio na direção da cachoeira, o visitante encontrava alguns galpões, a serraria e uma área de trabalho para construção. Ainda, sempre do ponto de vista de quem chegava pelo trapiche, do lado esquerdo, na esquina da praça com o boulevard, encontrava-se a casa-sede da Administração, dois andares em alvenaria cobertos com telhas de barro. Passando a casa da Administração, onde habitavam os profissionais bacharéis, havia ainda a casa da guarda e a escola. No caminho do hospital, foram construídas umas oito casas, enquanto no boulevard, em direção à Sibéria, havia outras 12 casas, todas de madeira e sapé. Essas casas deviam servir para a moradia de funcionários sem qualificação.

Após as últimas casas no caminho do boulevard Rio Branco, chegava-se à igreja do lugar, uma pequena capela em madeira, onde eram feitas as celebrações, sempre com a presença do padre francês. Periodicamente, primeiro o padre Salvetat e depois o padre Gros cruzavam o rio para realizar o trabalho de fé cristã no lado brasileiro da selva. Durante todo esse tempo, alguns bebês brasileiros batizados em Clevelândia continuaram sendo registrados com nomes franceses. A presença da Igreja francesa em solo verde-amarelo durou pelo menos até outubro de 1926, ano em que chegou o padre Luis Bechold para ocupar a sede da paróquia de Espírito Santo do Oiapoque.

Continuando a mapear o terreno urbano do núcleo colonial, temos na área da Sibéria o galpão da usina Fonseca, onde se fazia a destilação da essência de pau-rosa. Além desses edifícios, havia duas casas comerciais próximas à praça principal. Por último, seguindo o caminho atrás da igreja e afastada do centro do núcleo, foi reservada uma área no confim da mata para o cemitério São Carlos, existente ainda hoje. Resumia-se a isso o núcleo urbano de Clevelândia.

A NOVA CARTOGRAFIA DA COLÔNIA PENAL

Clevelândia fora uma colônia fundada por umas vinte famílias cearenses e maranhenses. Lugar açoitado pelo impaludismo, naturalmente, os colonos dentro em pouco desertaram. Ficaram os lotes, e umas seis famílias, das mais resistentes. Os primeiros prisioneiros não encontraram outros habitantes, além, também, do administrador, que acumulava as funções de médico e farmacêutico, de um encarregado da estação telegráfica e da patrulha da guarda, tirada da guarnição de Belém do Pará (Inferno de..., 1927).

Talvez este relato seja um tanto exagerado - sabemos da permanência de mais do que seis famílias -, mas esta primeira impressão, registrada pelo soldado que chegou com os prisioneiros embarcados no Amazonas em 6 de janeiro de 1925, traz um sinal de desolação que em nada corresponde à otimista visão dos testemunhos anteriores. A impressão que deixa é a de que a colônia já não prosperava mais, respirava-se um clima de abandono, o impaludismo atacava impiedosamente, enfim, todo o discurso da salubridade e civilização na selva montado pelo governo e repetido por alguns colonos, desmancha-se nas primeiras versões dos deportados que ali chegavam.

A festa de Natal do ano de 1924 ficaria marcada para as famílias dos agricultores pelo inesperado presente que chegou. No dia 26 de dezembro, após exaustiva viagem procedente do Rio de Janeiro, o paquete Commandante Vasconcellos fundeou ao largo da barra do rio Oiapoque com algumas centenas de homens. O calado impedia a navegação rio acima e, a partir daquele ponto, era necessário o translado por meio do barco gaiola da Amazon River até o porto de Santo Antônio. Desde esse porto, outro translado em barcos menores ou, às vezes, a pé pela trilha da linha do telégrafo, até o depósito dos presos, em Clevelândia.

Os navios chegados em 26 de dezembro e em 6 de janeiro traziam o primeiro carregamento de prisioneiros para o confinamento na selva. Naquele fim de 1924, o governo do presidente Arthur Bernardes decidira mudar a atividade do recém-inaugurado núcleo agrícola e o fez brindando os colonos com um enorme pacote de presentes de Natal e de Reis Magos. Dois anos após terem ocorrido esses fatos, o jornal "O Paiz", quase um porta-voz do governo, pressionado pela oposição que iniciava as denúncias sobre o caso do 'Inferno de Clevelândia', publicava um editorial em que defendeu a necessidade do degredo para os lugares mais remotos do país:

O governo tinha sido forçado a prender militares e civis que, ou estavam conspirando contra a sua autoridade, ou tinham vindo das linhas de frente, de São Paulo, ou do extremo sul, onde, de armas na mão, trabalhavam por subverter a ordem política nacional naquele momento. (...)

Poderia um governo, em tais circunstâncias, deixar esses homens em plena liberdade, para conspirarem de novo contra as instituições e voltarem a pegar em armas na primeira oportunidade? Não seria isso entregar-se de mãos atadas à mashorca efervescente? Que respondam os que se extremam dos raciocínios apaixonados. O governo necessitava de um presídio, para civis e militares, que oferecesse condições de segurança quanto à possibilidade de evasão dos prisioneiros. Esse presídio não poderia estar situado na Avenida Rio Branco. O que havia no momento era o centro agrícola da Clevelândia, onde o governo poderia situar, sem receio de surpresas de evasão, os que se haviam tornado perigosos para a vida da República (A Indústria..., 1927).

Esse foi o principal argumento de defesa engendrado pelo governo para a escolha da zona setentrional de fronteira como região de confinamento. Em janeiro de 1928, o senador Miguel Calmon, que havia sido ministro da Agricultura durante o estado de sítio, foi à tribuna do Senado discursar em sua defesa e do governo de Arthur Bernardes. O senador baiano reforçou a tese governista afirmando que a deportação para Clevelândia foi forçada devido aos inúmeros pedidos de habeas corpus que chegavam ao Supremo Tribunal Federal (Verdades..., 1928).

Como fez o governo para burlar o instrumento legal do habeas corpus, expediente defendido no discurso do senador? Por meio de processos sumários e com base nas leis de deportação publicadas em regime de exceção, confinava os prisioneiros ao desterro em ilhas e navios-prisão próximos à baía de Guanabara. A estratégia governista muitas vezes não se mostrou eficiente devido à proximidade dos locais de desterro em relação à capital federal. A distância pequena permitia uma rápida troca de informações e, consequentemente, a pressão da oposição sobre o Judiciário. Foi nesse contexto que ocorreu à Presidência da República a ideia da deportação para os lugares mais ermos possíveis. Com essa estratégia, estaria desarticulado qualquer recurso de defesa legal que, por ventura, fosse feito pela minúscula oposição ainda existente e disposta a se mostrar. Clevelândia foi o lugar escolhido. Era a colônia agrícola mais extrema que o Brasil possuía, na fronteira com o território da Guiana Francesa, lugar onde a prática de extradição era fato comum desde a metade do século anterior (Cunique, 2004).

O desembarque dos primeiros deportados provocou um alvoroço na pacata Clevelândia, uma vez que, segundo Rocque Pennafort13 13 ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias". , a data precisa de sua chegada não era do conhecimento nem mesmo do diretor da colônia. No artigo que escreveu em sua defesa pessoal e também da sua gestão à frente do Núcleo Cleveland, Gentil Norberto afirmou que os novos hóspedes foram alojados em casas particulares alugadas especialmente para esse fim (Os deportados..., 1927). Essa afirmação é confirmada, em parte, pelo testemunho de memória de Rocque, que se recorda dos alojamentos nas casas dos colonos, mas não menciona nenhuma espécie de pagamento em troca. Segundo ele, naquela ocasião,

Todos os funcionários e população em geral foram obrigados a se aglutinarem nas dependências da Administração e em casas particulares para dar lugar aos presos. A escola, o hospital, uma hospedaria que foi construída imediatamente etc., passaram a servir de alojamentos. E depois, até pela colônia foram distribuídos elementos. Nós mesmos, em nossa casa no Siparany, alojamos dois elementos dos chegados na terceira turma. (...)

O que mais complicou mesmo foi a chegada dos marginais: assassinos, ladrões, salteadores, enfim, criminosos de todas as espécies. Não deixou mais ninguém tranquilo. Estes foram alojados em dependências isoladas e viviam sob constante vigilância, o que pouco adiantava14 14 ARP. "Memórias", capítulo 4, "O começo do fim". .

A maior parte dos depoimentos e testemunhos escritos que temos dos colonos lá radicados e dos moradores e comerciantes da região é favorável aos argumentos de defesa elaborados pelo governo e pela administração do núcleo colonial no que tange ao tratamento 'humano' dado aos presos. O comerciante estabelecido em Martinica desde 1921, e também suplente de juiz federal, como se apresentou o senhor Moysés Baptista em entrevista concedida ao "Estado do Pará", fez elogios a Gentil Norberto e à difícil situação em que o engenheiro se encontrou ao ter que conviver com a transformação de sua colônia em um presídio:

Havia, é certo, na ocasião, falta de alojamento para toda aquela gente, 600 homens pouco mais ou menos, chegados de improviso a uma colônia agrícola e não destinada a correcionais, mas essa falta foi sanada, prontamente, pelo Dr. Gentil Norberto, mandando alojar toda aquela gente na escola e nos barracões destinados aos colonos. O próprio hospital serviu de alojamento a muitos recém-chegados. Entretanto, eram levantados barracões destinados, exclusivamente, aos prisioneiros (Baptista, 1926).

Vários problemas tiveram de ser enfrentados com a transformação de um campo de colonos no meio da selva em um presídio em área de fronteira nacional. Uma mudança repentina, decidida em questão de semanas, sem permitir aos principais interessados, os colonos, nenhuma opinião a esse respeito. É isso o que transparece dos diversos discursos deixados. Moysés Baptista falou da chegada de aproximadamente 600 confinados nas primeiras levas, entre dezembro de 1924 e fevereiro de 1925. Havia, naquele tempo, apenas 26 praças aquartelados na guarda da colônia. Meses depois, devido às constantes fugas de prisioneiros, a maior parte delas ocorrendo em direção à Guiana Francesa, o efetivo foi reforçado com a vinda de 120 soldados federais do batalhão de Belém.

O outro problema lembrado por todos os testemunhos relacionava-se à precariedade com que tiveram de ser alojados os deportados. Se em Clevelândia não habitavam mais do que 300 pessoas, o envio brusco de um número duas vezes superior ao já existente somente poderia inflacionar todos os serviços lá implantados. A moradia, a alimentação, os serviços médicos, o transporte, enfim, todo o aparato projetado para um número reduzido de famílias voluntárias agora se via solicitado por um grande número de homens forçados. A questão que se coloca não é somente a de ser um problema que concernia aos deportados. Como lembra Rocque, no início, toda a população foi obrigada a se habituar à nova situação. Não houve, ao que parece, qualquer alternativa de escolha oferecida aos colonos. Todos foram obrigados a conviver forçosamente com os prisioneiros.

Duas hipóteses podem ser levantadas em relação a esta situação. A primeira seria a de que a experiência agrícola em Clevelândia já se encontrava moribunda no fim do ano de 1924, portanto, montar um campo de prisioneiros e desalojar as famílias para lá enviadas atrás do tão almejado Éden, para o governo, seria algo absolutamente aceitável. Ou então, realmente tudo foi feito ao acaso. Clevelândia foi escolhida simplesmente por ser o lugar mais distante, o chefe da colônia foi pego de surpresa, sem ser previamente consultado, como ele alegou, e as famílias de colonos em busca de seu sonho, coitadas, nada valiam. E assim, pressionadas pela nova situação, na maioria, essas famílias abandonaram o campo e migraram para o trabalho assalariado em Martinica ou continuaram o seu trânsito anterior, perambulando pelos sertões do país.

Procura-se, aqui, perceber e tentar compreender por que alguns colonos mantiveram firme sua posição de apoio à política do governo e exerceram profundas críticas aos prisioneiros para lá enviados em regime forçado. Mais absurdo do que a defesa da deportação por parte do ex-ministro da Agricultura parece ser o fato de que muitos colonos e seus descendentes, que tiveram seu sonho de vida transfigurado, ainda reiteram e reproduzem até os dias de hoje aquele argumento oficial.

Rocque, por exemplo, admitiu que "a região era conhecida como um paraíso. Era o Eldorado. Depois que foi transformada em depósito de presos, tudo mudou". Mas não bastou o fato de terem arrancado o seu sonho inicial para fazer uma crítica ao envio dos presos para lá. Nem no dele nem em outros depoimentos percebe-se qualquer ressentimento em relação ao governo. Pelo contrário, o problema era que "os jornais da oposição faziam alarde. As manchetes eram as mais estapafúrdias possíveis"15 15 ARP. "Memórias". .

Para uma parte dos moradores locais, a culpa pela transformação do Paraíso no Inferno não foi daqueles que enviaram o mal para a terra, mas sim do próprio mal em si. Uma explicação naturalista da existência rege as considerações dessa população sobre o fato mais contundente da história do Oiapoque e o argumento principal para justificar a decadência da fracassada experiência agrícola tornou-se o de que "os presos foram um empecilho à vida na colônia" (Alicino, 1971, p. 95). O mal era um empecilho para a continuação do bem. E o culpado do envio desse mal ao Paraíso teria sido o diabo em forma de habeas corpus. Se não fossem os juízes atendendo habeas corpus, Eva não teria sido tentada pela serpente.

Durante muitos anos, Clevelândia foi ignorada e os fatos relativos à existência de um campo de prisioneiros na selva foram esquecidos pela história. O primeiro trabalho extenso sobre o episódio foi um capítulo no livro de Paulo Sérgio Pinheiro (1991). Sempre que lembrados por algum pesquisador ou jornalista, trazendo à tona na grande imprensa a tese central de um campo de extermínio a céu aberto, os sustentadores regionais da versão oficial combateram intransigentemente a macabra história. Vejamos, por exemplo, a dura resposta dada pelo jornalista aposentado Ruy Guarany Neves a uma matéria publicada pelo jornal "O Globo", em 1995:

Essa 'estória' de campo de extermínio em Clevelândia, divulgada pelo jornal O Globo, que mexeu com a opinião pública ao ponto de fazer com que muita gente esquecesse por alguns momentos o escândalo do Sivam, a bombástica pasta cor de rosa do Banco Central e a roubalheira do governo passado, no Amapá, me chamou a atenção, não que eu acreditasse nessa balela, mas tão somente pelo poder disentérico do cérebro que engendrou essa estória. (...)

Quanto a essa 'estória' de campo de extermínio em Clevelândia, fica mesmo por conta da malária e da 'caganeira de repuxo', como bem frisou o jornalista Hélio Pennafort (A verdade..., 1995).

Ruy Guarany tem todo o interesse em preservar a melhor memória possível para o seu lugar de origem, ofendendo-se fortemente quando a vê maculada por algum estranho. E são pessoas de Belém ou do centro-sul do país que a cada tanto chafurdam nessa lama. Filho do casamento do sargento deportado, Manoel Cavalcante Neves, e de dona Cezarina Guarany, a filha do farmacêutico da colônia, nasceu em Clevelândia em 1930, três anos após o término da experiência penal. Entrevistado em sua casa, em Macapá, reagiu energicamente aos que querem contar a história do mal e esquecem em narrar essa epopeia da colonização de um sítio desabitado, trazendo a civilização até ele16 16 Ruy Guarany Neves, depoimento pessoal. Macapá, 26/05/2001. . Hélio, filho de Rocque, também fez coro aos que defendem os discursos oficiais. Os pouco mais de dois anos em que a vila transformou-se num presídio serviram, segundo os jornalistas Hélio Pennafort e Cleber Barbosa, para "sujar o nome de Clevelândia, um dos lugares mais agradáveis dos nossos interiores" (Dois anos..., 2000).

Esta posição talvez somente possa ser explicada por meio do sentimento de profanação a que foi continuamente submetida uma memória local, a qual procurou apagar de suas lembranças as frustrações e imagens fortes que chocaram a alma. E o fazem com toda justiça, em seu legítimo interesse de reconciliação com o sucesso alcançado na vida. De certa forma, esbarramos aqui nos confrontos com a memória local da elite regional vencedora e sua perpetuação em forma de história, como uma espécie de ucronia inversa. Não o conceito de ucronia sustentado por Alessandro Portelli, para quem, nas entrevistas de história que lidam com a memória pessoal, projetam-se os sonhos possíveis e não realizados, gostosas invenções sobre aquilo que gostaríamos de ter vivido (Portelli, 1993). No caso da memória sobre Clevelândia, pelo menos para este grupo de pessoas, a ucronia não surge enquanto uma invenção do possível não ocorrido, mas como uma negação e um apagamento das más lembranças vividas no passado.

Para um censo sobre a nova população de Clevelândia após as deportações, as contagens existentes sobre a quantidade total de presos lá confinados incluem desde o número oficial de 948 prisioneiros encontrado no relatório de Oldemar Murtinho17 17 "Viagem ao Núcleo Colonial Cleveland". Relatório apresentado ao Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio pelo Diretor da Secção da Secretaria de Estado, Oldemar Murtinho, 1926. Fundo AAB, APM. até a estimativa feita por Manoelzinho dos Santos, de 1.630 homens (Alicino, 1971, p. 94). Os números variam entre esses totais. Rocque Pennafort, em suas memórias, estima-os entre 1.100 e 1.150 homens18 18 ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias". .

Os deportados vieram em três grandes levas. Além desses contingentes principais, também foram chegando continuadamente, em viagens menores, nos barcos mensais da linha Oiapoque-Belém, grupos capturados na cidade do Rio de Janeiro e outros presos isolados já detidos nessa capital. Em 26 e 27 de dezembro, chegaram os primeiros 250 militares provenientes da capital federal a bordo do Commandante Vasconcellos. Eram, na maioria, soldados rebeldes a serviço da Marinha de Guerra e que foram presos nos barcos sublevados logo após a deflagração do conflito19 19 Esses marinheiros estavam a serviço dos encouraçados São Paulo e Minas Gerais, dos submarinos Submersível F-5 e Pota-Ceará. Outros eram da Escola Militar do Rio de Janeiro. . Nesse primeiro grupo, encontravam-se também outros 150 presos detidos no Rio e em São Paulo durante o período que vai desde o levante de 5 de julho de 1924 até o início de dezembro. Trata-se de ativistas de oposição, operários e sindicalistas, principalmente anarquistas, além da pequena malandragem das ruas cariocas que o governo aproveitou para despachar para o extremo Norte. Em 6 de janeiro, chegou uma segunda leva, esta mais homogênea, de 120 soldados revoltosos capturados no estado do Amazonas, após a sua rendição. Por último, entre os dias 8 e 12 de junho de 1925, chegou com o navio Cuyabá o maior contingente de soldados, aproximadamente 400, rendidos na batalha de Catanduvas, no Paraná. A esses últimos, somaram-se 23 conspiradores cariocas e 130 ladrões encarcerados nas celas da 4ª. Delegacia Auxiliar da capital federal.

A partir desse último lote de prisioneiros, as condições de sobrevivência foram diminuindo gradativamente. Os números fornecidos não podem ser precisados. Apesar da existência de listas oficiais de indesejáveis destinados ao navio Campos, em espera da deportação, como é o caso das "Relações de indesejáveis" assinadas pelo major Carlos Reis20 20 Encontram-se em microfilme no Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas (AEL, UNICAMP), pertencentes ao Fundo AAB, cinco listas da 4ª. Delegacia Auxiliar e a lista do Gabinete do Ministro da Marinha dos presos enviados no Commandante Vasconcelos. As listas enviadas por Carlos Reis contemplam 359 presos comuns, sem motivação política. A lista do Ministro da Marinha relaciona 98 militares. Os números são conflitantes. Muitos nomes aí relacionados não coincidem com os fornecidos pelo relatório do secretário Oldemar Murtinho. , sabe-se de muitos casos de degredados que não constam nas listas pelos mais variados motivos. Muitos para fugir aos pedidos de habeas corpus impetrados e, assim, serem considerados desaparecidos, outros por serem bandidos de alta periculosidade, sem família para reclamar o seu paradeiro.

Segundo Rocque, os primeiros marinheiros que chegaram foram alojados na casa recém-construída pelo fiscal de rendas João Tataia, logo na entrada da vila, em frente à avenida Rio Branco21 21 ARP. "Memórias", capítulo 4, "O começo do fim". . O responsável pelo fisco era um dos poucos funcionários que habitava uma casa própria e espaçosa: mera coincidência. Depois, os presos foram sendo paulatinamente distribuídos em casas de colonos enquanto não eram levantados novos barracões. As primeiras providências tomadas visavam ampliar as instalações existentes com a transformação de um dos galpões abertos ao lado do trapiche em hospedaria de imigrantes. O tenente Lauro Nicácio, um dos detidos de Catanduvas, fala da precariedade desse alojamento provisório, onde os presos dormiam diretamente no "chão úmido em contato com répteis, lacraias, mosquitos e ratos" (Dias, 1926, p. 251).

Primeiramente, houve a tomada pura e simples dos lotes dos colonos que mudaram para a vila vizinha e abandonaram o lugar. Durante o ano de 1925, com o agravamento das condições de vida em Clevelândia, foi aumentando o número de deserções entre as famílias, descaracterizando completamente a experiência inicial. Mas somente as casas abandonadas pelas famílias em fuga não foram suficientes para alojar todos os prisioneiros. Na medida em que os deportados iam chegando, e na falta de lugar para todos, as casas construídas pelos colonos iam sendo requisitadas de duas diferentes maneiras. Ou a família aceitava o convívio com alguns presos, geralmente militares mais graduados, cabos, sargentos e tenentes, ou, se não concordava, cedia a casa para os soldados e transferia-se provisoriamente para as instalações da sede da Administração, escola e outras construções próximas. O transtorno durava o tempo necessário aos presos "construírem suas próprias choupanas e barracões em lotes concedidos a eles e divididos segundo a sua familiaridade" (Dias, 1926, p. 251). Foram criados, inicialmente, grupos segregados de prisioneiros, conforme a origem e o local de proveniência. Isto diminuiu a possibilidade de convívio entre grupos diferentes e também a troca de informações e ideias entre os detidos. Em setembro de 1925, o anarquista carioca Domingos Braz conseguiu enviar uma carta, de forma clandestina, ao jornal operário português "A Batalha", confirmando a forma e as condições dos alojamentos provisórios cedidos pela direção do núcleo:

O Oyapock é um lugar sem recursos médicos; os próprios preceitos higiênicos e sanitários são desconhecidos. Os infelizes deportados dormem em grupo de cem ou mais indivíduos. Barracões imundos e asquerosos cobertos de tábuas ou palhas por cima e pelos lados, eis os alojamentos. A febre palustre, a disenteria, a gastrenterite encontram neles um vasto e amplo campo de propagação, fazendo impunemente vítimas diárias (A horrível..., 1927).

A mensagem passada por Domingos Brás alcançou um órgão informativo relacionado ao seu grupo de afinidade. Os tenentes rebeldes, quando conseguiam ser ouvidos, o eram também dentro do seu grupo de afinidade. Portanto, além de estarem abatidos em sua autoestima pelas péssimas condições de vida oferecidas, os diferentes grupos de prisioneiros raramente conseguiam ajudar-se mutuamente. A evasão, mesmo sob o risco da morte na floresta, tornou-se o objetivo imediato a ser alcançado para manter a sobrevivência. Isso aconteceu durante os primeiros meses, enquanto o reforço de tropas requisitadas em Belém não chegou. Quando do desembarque do tenente Lauro Nicácio, em junho de 1925, a situação dos prisioneiros já era outra:

Uma terça parte desses desterrados tinha fugido ou passado à fronteira que nos separa da Guyana franceza, em barcos de pescadores, pelo rio Oyapock de largura imensa, oceânica; outra terça parte já se achava enterrada; e a restante parte agonizava ajoujada ao trabalho e às febres malignas.

Devido a essas fugas, a vigilância era agora muito mais rigorosa. Além disso, uma simples desconfiança de fuga acarretava ao paciente castigo bárbaro, um espancamento cruel a vergalho. Vários pescadores foram presos e ficaram sem suas embarcações. Assim, todo meio de fuga tornava-se, ali, impossível doravante (Dias, 1926, p. 250).

A nova cartografia da colônia parece ter provocado uma hierarquização dos prisioneiros em quatro diferentes grupos de convívio e importância. Os prisioneiros privilegiados foram os soldados e oficiais que rapidamente fizeram seu mea culpa em relação à participação no levante. Admitindo seu erro e jurando lealdade ao governo da República, puderam ser aproveitados em funções burocráticas junto à Administração e ao Hospital, conseguindo, assim, estabelecer melhores relações também com os colonos mais próximos do núcleo e inserir-se na vida cotidiana dessa pequena elite local. Gozando dos mesmos privilégios, há um pequeno grupo absolutamente oposto. São bandidos protegidos pelas autoridades, que receberam carta branca, desde o percurso de chegada nos navios, para imporem brutalmente sua ordem contra os presos que fizessem qualquer tipo de reclamação. Esses malandros, sob vista grossa da Administração, tinham livre trânsito na vila e andavam sempre em companhia de soldados do Exército, oprimindo os presos mais fracos.

Numa segunda categoria, podemos incluir todo o outro grupo de soldados e oficiais revoltosos, principalmente os provenientes de Catanduvas, os mais convictos em relação aos ideais da revolução. Apesar de serem chamados de 'ladrões da pátria' pelo funcionário Silvino Coelho de Souza, mantinham certa reputação pela farda que ostentavam (Dias, 1926, p. 250). Eram tratados de modo melhor na distribuição das tarefas e os praças contavam com a proteção dos tenentes que conseguiam impor, de certa forma, respeito por meio de sua patente. Os soldados permaneciam alojados em barracões provisórios próximos ao centro, enquanto os oficiais ocupavam casas particulares cedidas pela Administração.

O terceiro escalão era o dos prisioneiros civis detidos por motivação política. O principal grupo era o de operários da construção civil e os operários gráficos. Bastante heterogêneo, comportava também pequenos comerciantes, menores e desempregados inadvertidos que foram presos nas ruas durante as patrulhas feitas em bairros populares do Rio de Janeiro à época do levante. Alguns deles eram estrangeiros e, boa parte, ativistas de sindicatos e redatores de jornais operários. Entre estes estão os anarquistas declarados, uma quinzena de ativistas, e outros tantos simpatizantes do anarquismo que ocuparam os lotes mais afastados, vivendo em barracões coletivos por eles construídos ou em choupanas menores, onde alguns se alojaram.

Por último, parece que o grupo mais desqualificado, tanto pelos funcionários da Administração como pelos outros deportados, era o de prisioneiros comuns. Classificados nas fichas de polícia como gatunos, malandros, 'cáftens', vadios, vigaristas e demais pechas, compunham o quadro mais débil da prisão. Eram os primeiros requisitados para os trabalhos forçados e os mais mal tratados. Foram confinados nos lotes mais distantes e muitos acabaram esquecidos por lá mesmo.

Com base nos relatos existentes e usando esta tentativa de classificação, é possível traçar um mapa para a antiga colônia agrícola, em sua fase de presídio (Figura 4). Segundo as informações disponíveis, no fim do ano de 1926, ainda permaneciam em Clevelândia 133 homens e 81 mulheres, entre funcionários, comerciantes e colonos. A estes se juntou um grupo de presos que deve ter alcançado um milhar no auge da deportação e foi diminuído bruscamente com as mortes que foram se sucedendo no campo. Novos lotes distantes foram ocupados nas linhas do Pontanari e do Siparani, onde foram confinados os presos do terceiro e quarto escalão.


A partir do lote 10, subindo a linha do rio Siparani, em direção ao interior da floresta tropical, estabeleceram-se os companheiros anarquistas e simpatizantes destes. Alguns deles, como o professor José Nascimento, mantiveram relações cordiais com os agricultores desse eixo de ocupação e que ainda permaneciam na região. Nascimento "logo que montou sua tenda, fundou uma escola. Ele se propôs a desanalfabetizar todos os filhos de agricultores situados nas margens do Ciparini [sic]". As famílias dos colonos Francisco Torquato, Manoel Nascimento, Izequiel Ferreira e Raimundo Pessoa eram os vizinhos mais próximos. Na mesma correspondência, Domingos Passos fala da comemoração do primeiro de maio, quando "Torquato, um dos colonos presentes à reunião, como que tocado pela poesia da natureza, tal qual Loredano de José de Alencar, disparou o rifle em direção à mata" (Passos, 1927).

Provavelmente por meio desse trabalho educativo, algumas famílias de colonos deixaram de temer os presos deportados, confundidos inicialmente com 'marginais da pior espécie', como afirmam alguns dos depoimentos dados ao Padre Alicino. Esses marginais de que o padre fala foram, em sua maioria, confinados em áreas distantes do núcleo e nos lotes abandonados pelos agricultores, principalmente no eixo que seguia subindo o rio Pontanari. A maior parte deles estava sujeita aos trabalhos forçados sem remuneração, fato que era uma crítica frequente à Administração do núcleo, mesmo entre outros presos deportados.

Na continuação da avenida Rio Branco, seguindo o eixo do rio Oiapoque, em casas de lotes abertos perpendicularmente a ela, permaneceram os soldados rebeldes da Força Pública que ainda atendiam às ordens de seus tenentes. Esses detidos recriaram o espaço de convivência segundo suas convicções políticas. Já os soldados que abdicaram de suas convicções, ou que já nem eram tão convictos assim durante a revolta, tiveram melhor sorte. Alguns deles criaram vínculos com as mulheres da vila e até se casaram. O sargento Manoel Cavalcante Neves, que ficou amigo do farmacêutico Fernando Guarany, casou-se com uma filha deste, e o suboficial Bertholino Pizzatto casou-se com a filha de João Januário. Outros lá permaneceram e engrossaram as famílias migrantes de Clevelândia. Manoelzinho dos Santos, entrevistado pelo padre Alicino, casou-se e constituiu família em Oiapoque. O sargento da Marinha, José Francisco da Silva, juntou-se com a cabocla Julia e foi viver num vilarejo próximo, Maripá. Rocque Pennafort os cita e fala do tratamento diferenciado que recebiam: "enfim, muitos conseguiram trabalhar e ganhar dinheiro. A Chefia da Comissão dava licença, necessitando, entretanto, saber onde estavam e o que estavam fazendo"22 22 ARP. "Memórias", capítulo 4, "O começo do fim". .

Alguns prisioneiros, técnicos em mecânica e elétrica, foram trabalhar na montagem da estação de rádio. Manoel Cavalcante deixou a farmácia para ser auxiliar de comércio na firma Affonso Fonseca. Pizzatto ocupou o cargo de maquinista, chefe da serraria, sendo auxiliado pelo sargento Manoel Francisco da Silva, e outros foram trabalhar como capatazes nas usinas. Assim, constituiu-se, dentro da colônia penal, também uma elite de presos usufruindo de maior liberdade.

ESPÍRITO SANTO DE MARTINICA

Os moradores de Martinica, e mui principalmente as crianças, postados a meio caminho, assistiam a passagem constante dos barcos a vela, da bonita e veloz lancha 'Rio Branco', movida a motor a gasolina, ou a lancha 'Pará', impulsionada à máquina a vapor, que mais parecia um naviozinho, descendo ou subindo o rio, transportando cargas, e, principalmente, nos dias de chegada dos simpáticos navios 'Oyapock' ou 'Cassiporé' da Amazon River, que mensalmente aportavam ao Oiapoque23 23 ARP, "Memórias", capítulo 12, "O peixe do Oiapoque 2". .

O antigo pouso dos antilhanos para o comércio de quinquilharias e o abastecimento dos garimpos de ouro no alto Oiapoque transformaram-se, no decorrer da década de 1920, em um núcleo urbano muito mais dinâmico. Com a vinda do desenvolvimento oficial protagonizado pelo poder do Estado para o vizinho núcleo colonial, a vila de Martinica também sofreu os ecos dessa ocupação. Um impacto marginal, na medida em que se instalaram no vilarejo pequenos abastecedores que não foram permitidos em Clevelândia. Na sede do núcleo oficial, o comércio local era monopolizado pela filial da firma de Affonso Fonseca, uma empresa comercial de Belém ligada politicamente à família Chermont. Alijados do filão seguro das verbas públicas, juntaram-se àquele pequeno grupo de mascates fluviais outros moradores, os ribeirinhos dispersos ao longo do Oiapoque, e que acabaram se aproximando do povoado em expansão.

Contudo, foi somente com a diminuição da atividade agrícola em Clevelândia e a transferência de muitos moradores para o trabalho nas usinas de extração de essências instaladas ao longo do rio que Martinica apresentou um significativo crescimento demográfico. As crianças a que se refere Rocque Pennafort no texto acima são os filhos dos ex-colonos frustrados que seguiram para o regime do trabalho assalariado. Outros antigos colonos empreenderam pequenas bibocas por conta própria, buscando favorecer-se desse novo comércio criado com o aumento do fluxo de pessoas na fronteira, após a chegada dos deportados.

Quando aquele grupo inicial de colonos retirantes começou a mudança para Martinica, encontrou uma vila levantada às expensas dos próprios moradores. Não existia um plano de traçado urbano, como fora feito em Clevelândia. Os casebres foram sendo levantados nas terras altas, a uns 50 ou 100 metros de distância da beira do rio, para fugir às marés enchentes, trazidas pelo vento de maresia que puxa do Atlântico para o interior. Algumas poucas cabanas, como a do velho pioneiro Émile, aproveitavam-se de pequenas enseadas formadas na margem e montaram pequenos trapiches de madeira. Eram os barracos usados para comércio ou habitados pelos tipos mais populares. O arruamento geométrico, marca da colônia agrícola, era um melhoramento desconhecido dos caboclos ali radicados, que transitavam entre pequenos caminhos desde o alto do barranco até a beira do rio.

Os depoimentos dados pelos antigos moradores, Joaquim Alves de Araújo e Manoel Figueiredo da Silva, ao padre Alicino falam da presença, por volta de 1917, de um grupo de velhos pioneiros antilhanos e seus companheiros brasileiros provindos dos garimpos do Cunani. Sabe-se também, pelos livros de registro de nascimentos, que outros moradores estavam radicados em Martinica desde o início da década de 1920, informação obtida também no livro de batizados coletivos realizados pelo padre José Lauth em visita à vila, em 192424 24 APO. Livro Batizados-Extra, 1919-1947. . Há registros da ida de moradores de Martinica à paróquia de Saint Georges para o batismo de seus filhos desde o ano de 1915. Havia, ainda, outros moradores localizados naquela que os franceses chamavam genericamente de rive gauche do Oiapoque, e remontam, pelo menos, a 190625 25 AESG. Livro de 1906-1915. .

Então, quando do aumento do fluxo de novas pessoas, ex-colonos e comerciantes recém-chegados a Martinica encontraram uma vila com raízes e histórias pessoais muito mais adaptadas do que as do núcleo oficial de colonização. Provavelmente, é da força dessa criação popular, resultante de uma cultura mais nômade e desterritorializada, construída na vida em contínuo trânsito, dos povos indígenas e dos ex-escravos fugitivos, que resulte a lenta e contínua expansão urbana e reterritorialização da vila. A moderna e planejada Clevelândia, o plano piloto fronteiriço dos anos 1920, viu rapidamente seu futuro promissor desaparecer e ser ofuscado pelo progresso da velha vizinha.

Do ponto de vista administrativo, durante a década de 1920, toda a região de fronteira ao longo do curso do médio e baixo Oiapoque era considerada um grande distrito cuja sede situava-se na vila de Demonti, na entrada da baía. O distrito chamado de Oiapoque era uma das duas subdivisões do município central, localizado na cidade de Amapá. Todo o distrito, que compreendia as vilas de Demonti, Martinica, Santo Antônio e Clevelândia, não tinha mais do que 1.150 habitantes26 26 Conforme Censo de 1920, publicado em IBGE (1951). . Na década de 1940, quando o Amapá foi desmembrado do estado do Pará e transformado em território federal, o antigo distrito de Oiapoque foi elevado à categoria de município. A nova divisão administrativa recebeu como sede o maior de seus agrupamentos urbanos, a antiga vila de Martinica, que, em 1945, foi elevada à categoria de cidade com o novo nome de Oiapoque. E a promissora Clevelândia? O destino do núcleo de colonização foi o de se tornar uma vila militar, como permanece até o presente.

O desenvolvimento de Martinica, embora precário e ausente de verbas federais, foi contínuo e constante, crescendo com a vinda da população do núcleo vizinho. A atividade econômica que sustentou durante muitos anos a vida local foi o trabalho pesado nas usinas de extração de essências das madeiras da floresta. As destilarias de pau-rosa, linóleo e baunilha, montadas em vários pontos estratégicos ao longo das margens do rio Oiapoque, eram muito rudimentares. Basicamente, se alimentavam das madeiras derrubadas no meio da floresta e trazidas em balsas pelos igarapés afluentes do grande rio. Este serviço pesado cabia, principalmente, mas não exclusivamente, aos homens, entre eles muitos prisioneiros do campo de Clevelândia, que tinham autorização da guarda para trabalhar em troca de uma pequena remuneração. Quase todas as destilarias mantinham uma pequena serraria onde os troncos eram cortados. Parte dessa madeira era vendida no próprio Núcleo. Mas o principal objetivo da atividade extrativista era a manipulação da seiva dos caules das plantas. Aquecida em baldes, esta seiva oleosa era fervida, permitindo a destilação do líquido básico das essências. Nessas destilarias, trabalhava, às vezes, toda uma família, trazida e levada de volta para a vila onde habitava por 'montarias', as canoas que cruzavam o grande rio.

A atividade industrial extrativista, somada à agricultura de subsistência e ao produto da pesca artesanal, sustentava o comércio local, onde se fazia a compra dos produtos básicos vindos de fora e o escambo dos produtos locais excedentes. Para a compra de qualquer produto diferenciado ou mais luxuoso, alimentos diferentes do trivial, roupas mais finas ou bijuterias e perfumarias, os moradores cruzavam o rio Oiapoque em direção a Saint Georges, onde encontravam objetos vindos diretamente da França. Portanto, apesar de ser uma demanda muito pobre e baseada no escambo, na venda fiada e em relações de confiança, foi com a remuneração gerada por essa economia moral - para usar a expressão criada por E. P. Thompson, ao definir a economia interna de uma comunidade baseada em relações de confiança e paralela ao avanço da economia capitalista (Thompson, 1971) - que tanto alguns comerciantes créoles quanto os brasileiros mais antigos fincaram o pé na região.

Além desses, outros ambulantes ocasionais, vindos das ilhas do Amapá e de Macapá em barcos veleiros, faziam o resto do abastecimento dos povoados. Esse comércio fluvial manteve-se dependente da sobra das verbas do governo e da atividade extrativista até 1932. A partir dessa data, com a descoberta dos veios de ouro nos afluentes do lado brasileiro do Oiapoque, a montante da cachoeira Grand Roche, um novo boom econômico tomou conta da região, que durou mais ou menos até 1937, com o esgotamento da exploração aurífera. Se, por um lado, a descoberta do metal precioso incrementou a economia local, por outro, agravou os crônicos problemas sanitários. O morador Francisco Gomes da Conceição conta que chegou para trabalhar no garimpo pela primeira vez entre os anos de 1932 e 1934, quando tinha aproximadamente 17 anos de idade, mas permaneceu lá somente um ano, com medo do beribéri que 'matava aos montes'. Em seu retorno, anos depois, o irmão mais velho morreu no garimpo, adoecido com uma febre não identificada pelos médicos, e Francisco resolveu permanecer em Martinica trabalhando na extração do pau-rosa27 27 Francisco Gomes da Conceição, 86 anos, depoimento pessoal. Oiapoque, 30/05/2001. .

Assim, sustentando-se ora no extrativismo vegetal, ora no mineral, a economia da região foi seguindo e sendo mantida pelo trabalho braçal dos caboclos nativos, dos migrantes nacionais e dos imigrantes créoles. Este caldo étnico e cultural diferenciado permitiu o surgimento, em Martinica, de um pólo de diversão bastante apreciado pelos moradores da redondeza. Festas periodicamente realizadas nas casas de antigos moradores, como a de Émile, tornaram-se atrações conhecidas. Somaram-se a elas as celebrações religiosas oficiais trazidas pela Igreja e pelo Estado em seu afã de civilizar a região, mas, percebe-se nos depoimentos, que foram rapidamente profanizadas pelos rituais religiosos tradicionais dos moradores negros e crioulos:

Paralelamente ao crescimento populacional do povoado foi-se desenvolvendo o comércio e as festas tradicionais. Como acontece com todos os povoados do interior, festejavam-se os Santos preferidos. Numa capelinha feita de 'guleta', (denominação crioula dada a uma espécie de ripa tirada de uma madeira própria), junto à casa de dona Raimunda, celebravam-se ladainhas em honra ao Divino Espírito Santo e São Benedito. Enfim, qualquer dia santificado era motivo para uma ladainha, e qualquer ladainha justificava uma festa popular, o que dava ao lugar uma característica animada, e atraía também os moradores de Clevelândia28 28 ARP, "Memórias", capítulo 14, "O peixe do Oiapoque IV". .

Muitos dos moradores de Clevelândia, principalmente no período em que ela se transformou em um campo de prisioneiros, viam Martinica como um lugar para a realização de evasões. A compra de passaportes falsificados e a contratação de viagens encomendadas para o ingresso clandestino na Guiana Francesa eram tratadas furtivamente, principalmente nos pontos de grande afluxo de pessoas para a algazarra. Segundo o padre Alicino, preocupado com o desvio de conduta moral dos habitantes do lugar, pelo menos um bordel era conhecido na vila e pertencia a um deportado de Clevelândia. O clube, chamado de Recreio da Mocidade, presume-se ser um local de jogo, rinha de galo e prostituição consentida, já que, nas palavras do padre, era possível "angariar um dinheirinho, talvez não muito licitamente, sendo que 'as brincadeirinhas' nem sempre eram de bom gosto, desgarrando-se 'os brincalhões' dos sadios princípios morais" (Alicino, 1971, p. 116-117).

A vila de Martinica, e depois Oiapoque, firmou-se como pólo de atração regional para as atividades consideradas como ilícitas e clandestinas pelo poder constituído. Fazendo vista grossa a essas atividades, o Estado brasileiro, por meio das expedições integradoras empreendidas pelo Ministério da Guerra, mostrou-se muito mais preocupado em civilizar, segundo sua ótica, as populações caboclas e indígenas do lugar. Da missão de demarcação de limites, chefiada pelo general Cândido Rondon durante os anos de 1926 e 1927, alguns elementos integradores ressaltam o epílogo fundamental de seu relatório, empenhado em "efetivar o projeto do Governo sobre a nacionalização das fronteiras e proteção das respectivas populações no sentido de seu contínuo desenvolvimento"29 29 PCBDL. Ministério da Guerra - Inspeçcão de Fronteiras. Relatório do General Inspetor, 1927. .

A primeira medida de impacto solicitada foi criar uma colônia militar, aproveitando-se da infraestrutura existente no Núcleo Colonial Cleveland. Essa passagem somente se deu efetivamente no início de 1936, quando o antigo núcleo foi emancipado, pleonasmo jurídico para dizer extinto, e seus bens transferidos para o Ministério da Guerra30 30 Decreto 559 de 31/12/1935, publicado no "Diário Oficial da União", em 11/01/1936. . O Exército somente assumiria, de fato, sua jurisdição sobre a colônia militar em 1940, com a implantação de uma companhia de fuzileiros de selva. A transformação da ex-vila agrícola em colônia militar concluiu o ciclo de ocupação oficial da área de fronteira. Paralelamente a essa militarização da região, a integração dos transportes seria a medida fundamental para o exercício do controle sobre a fronteira, na visão do Marechal dos índios. Rondon propôs a construção de uma rodovia ligando Macapá a Clevelândia. Uma rodovia cuja abertura total ao tráfego somente foi alcançada em 1973, e que permanece pouco transitável na estação chuvosa.

Com a presença militar garantida e o acesso fácil ao transporte para assegurar a soberania nacional, na visão do 'pai dos índios', somente faltaria civilizar o elemento nativo. Daí a importância dada por Rondon às escolas indígenas, ensinando-se nelas a língua pátria brasileira e o respeito aos símbolos nacionais, como a bandeira. Para tanto, Rondon sabia da importância da presença da Igreja como instrumento fundamental para efetivar o processo civilizatório. Ao deixar a região após a finalização da missão, em meados de 1927, o general mudou o nome da vila estrangeira e pagã de Martinica para o nome católico de Espírito Santo do Oiapoque, mais tarde somente Oiapoque. A obra do Estado, a efetivação da soberania nacional e a missão civilizadora, agora estampada até no nome, na perspectiva do Governo Federal, já estavam completas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo compreender a dinâmica de ocupação espacial da vila de Clevelândia. A comparação entre os relatos dos antigos moradores encontrados nos documentos pesquisados e os documentos e as fotografias oficiais existentes sobre o Núcleo Cleveland permitiu reconstituir a distribuição espacial dos prédios públicos, das casas comerciais e de serviços, do traçado urbano, das áreas destinadas aos lotes agrícolas e dos equipamentos da coletividade. Essa visão de topo da configuração espacial do lugar em dois diferentes momentos auxiliou na interpretação das relações humanas lá estabelecidas.

A cartografia de Clevelândia e, num grau menor - considerando-se as fontes para o estudo também serem em menor quantidade -, a cartografia de Martinica são instrumentos de análise das relações cotidianas efetivamente criadas nesses espaços. Foram detectadas as relações hierárquicas obviamente impostas pela arquitetura e distribuição geográfica dos espaços ocupados por moradores e funcionários. Foi possível também perceber outras relações criadas fora dos espaços previamente delimitados. Aquilo que Foucault chamou de heterotopias. Os espaços de convivência efetivamente transitados. As relações que emergiram por meio das necessidades cotidianas e não das relações impostas pela hierarquia.

Se na vila de Martinica isso ocorreu de um modo mais natural, na medida em que não houve um agente externo organizador e construtor dos diversos espaços, no núcleo de Clevelândia, cuja arquitetura urbana foi gerada a partir de um plano pré-traçado, também se percebe o surgimento dessas relações autônomas. Relações que foram ocasionadas por um acontecimento fortuito e exterior ao planejado inicialmente. De fato, foi a partir da chegada dos prisioneiros da revolta dos tenentes que encontramos indícios e narrativas mostrando de que forma se estabeleceram convívios entre pessoas tão antagônicas.

Se a maior parte dos relatos de colonos é convergente ao afirmar o medo causado pela chegada das levas de detidos, também é fato que muitos dos militares rebeldes lá confinados foram aceitos e incorporados no seio das famílias já estabelecidas. Não foram poucos os casamentos ou as uniões sucedidas, algumas com os novos casais permanecendo lá mesmo no Oiapoque, e outros "que pretendiam constituir família, ainda ficaram bastante tempo até conseguirem recursos suficientes para saírem com dignidade, com recursos próprios ou com o auxílio da família"31 31 ARP, "Memórias", capítulo 4, "Clevelândia - o começo do fim". . Muitas dessas relações humanas entre colonos e detidos foram causadas pelo convívio forçado na mesma habitação, cedida ou alugada para o campo de prisão. Porém, outras tantas se estabeleceram espontaneamente pela própria circulação dentro da colônia, que era permitida aos confinados. E não foram somente com os militares de melhor graduação que os habitantes locais se relacionaram.

Em seu "Tratado de Nomadologia", Gilles Deleuze e Félix Guattari explicitam alguns conceitos em que opõem dois meios ou formas, mas não modelos de organização: o Estado sedentário e a máquina de guerra nômade (Deleuze e Guattari, 1999). Não os contrastam numa oposição antagônica, mas em uma oposição oblíqua, no sentido de que ambas as formas convivem conjuntamente, descompassadas uma da outra. Bem ao estilo dos autores, nunca há uma clara distinção entre as formas, nada é muito preto ou muito branco, como declamou Caetano Veloso em seu manifesto "Americanos":

Para os americanos branco é branco:

Preto é preto, (E mulata não é a tal)

Bicha é bicha, macho é macho,

Mulher é mulher e dinheiro é dinheiro.

E assim ganham-se, barganham-se, perdem-se,

concebem-se,

(conquistam-se) direitos.

Enquanto aqui embaixo a indefinição é o regime

E dançamos com uma graça cujo segredo nem eu

mesmo sei

Entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso

e o sublime32 32 Manifesto declamado por Caetano Veloso durante a apresentação de sua versão da música "Black and White ", de Michael Jackson, no show "Circuladô", em 1992. .

Ambas as distinções (Estado x nomadismo) primam pelo hibridismo, pela mistura, pela incorporação de uma pela outra, e vice-versa. Aqui, abaixo do Equador, a mulata é que é a tal. É possível usar os conceitos formulados pelos dois autores e analisá-los no nível dos relacionamentos ocorridos durante o processo de ocupação e povoamento do Oiapoque. Confrontaram-se, e talvez ainda se confrontem, nesta erma setentrional brasileira, duas ciências. Uma ciência régia protagonizada pelo Estado, pela instituição da soberania nacional, pelo discurso moralizante da civilização e pelo anseio de 'modernização' das relações. Uma ciência presente tanto na ocupação territorial francesa quanto naquela desenvolvida pelo Estado brasileiro e pelas forças colonizadoras por ele arregimentadas, e que assumiram plenamente o discurso da soberania. A outra, uma nomadologia protagonizada pelos povos indígenas errantes, pelos ribeirinhos, frutos de centenárias miscigenações, ou pelos créoles caribenhos e ex-escravos brasileiros, populações que desde sempre se reconheceram como vivendo em trânsito, cuja moradia é o caminho.

Essa ideia do nomadismo, e aqui não se considera a aplicação estrita e literal do conceito expresso por Deleuze e Guattari, pode ser um instrumento de compreensão das organizações espaciais e das relações humanas estabelecidas na população flutuante que habitou a vila de Martinica. Os caminhos fluviais, como redes de transporte, não serviram somente como sistemas de trânsito, do trabalho, do comércio ou do lazer para a casa. Na cultura ribeirinha, economicamente ligada ao extrativismo do ouro, da madeira e das essências, o lugar da casa e do trabalho move-se continuamente. A ideia de um espaço físico da moradia sedentária, do agricultor com sentimento de propriedade, foi um objetivo que o Estado procurou alcançar, ao promover a fixação de uma população migrante de origem camponesa. O migrante não é um nômade permanente, nem tem a cultura nômade como seu constituinte. O migrante, embora um ser desterritorializado, busca um território para ser seu. Daí o sonho do Eldorado, daí a lenda do Ouro Verde, e daí também a frustração e o sentimento de defesa com relação à chegada do Inferno.

O confinamento também, a seu modo, não deixou de ser uma tentativa de territorializar populações que, se não eram nômades, de algum modo, naquele momento, praticavam uma máquina de guerra contra o Estado. Os anarquistas, com seu pensamento anti-hierárquico, antissoberano e contrário às instituições, cumpriram esse papel de nomadismo da modernidade, porque suas ideias solapam a ideia fundadora do Estado. Transmitem, assim, o fluxo de ideias subversivas.

Esse choque entre ciências fez-se presente em vários espaços relacionais e temporais do processo de ocupação, ocorrido com maior intensidade a partir de 1920, com uma presença mais marcante do Estado. Em um primeiro momento, o poder soberano se apresentou com o discurso da modernidade e arrancou como um foguete em direção à civilização, deixando à mostra o seu rastro no espaço da selva. Essa é a trajetória da pujante Clevelândia. Menosprezou, quase ignorou, o trânsito caboclo-créole ao seu redor. Saber menor, este conhecimento popular, recriado nos trajetos itinerantes de sempre, tenderia, pela evolução das forças da civilização, a ser incorporado ao plano do trabalho sedentário. Não o foi. Pelo contrário, foi essa vida, baseada no estilo nômade, que se recriou e reproduziu. Ao dar-se conta disso, a civilização do Estado reforçou suas armas. Renomeou a vila de Martinica, empreendeu uma missão integradora, transferiu seu aparelho para o espaço do outro. Buscou sedentarizar o trânsito, elemento híbrido, nômade. Percebe-se, assim, uma oposição não antagônica, uma maleabilidade presente no equilíbrio de forças em luta, um jogo de capoeira ou uma dança de carimbó. Assim se constituiu a vida nesse universo da fronteira do Oiapoque.

Recebido em 24/01/2011

Aprovado em 18/11/2011

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  • Autor para correspondência:

    Carlo Romani
    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
    Departamento de História
    Rua Almirante Alexandrino, 2750
    Santa Teresa. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
  • 1
    Os convidados principais eram: Coronel Julio Benito Pontes, intendente municipal de Montenegro; José Ferreira Noronha, representante da Amazon River; Augusto de Moura Palha Jr., representante de "A Província do Pará" e que também era funcionário da colônia; Feliciano Mendonça, de "O Estado do Pará" e chefe da Comissão de Profilaxia Rural do Pará; Deocleciano Coelho de Souza, Delegado Fiscal da Fazenda do Pará; Federico Schmidt, do Clube de Engenharia do Pará; João de Palma Muniz, chefe da 3ª. Seção das Obras Públicas; Antonio Mazzini, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.
  • 2
    Informações obtidas no livro de batismo de brasileiros, no Arquivo da Paróquia de Oiapoque (doravante, APO).
  • 3
    Cezarlina Pennafort, depoimento pessoal. Macapá, 26/05/2001.
  • 4
    Arquivo Particular de Rocque Pennafort (doravante, ARP). "Memórias", capítulo 11, "Mais de meio século de dependência". O ARP é um conjunto de cartas, folhas datilografadas, mimeografadas e de material escrito a tinta e a lápis sob guarda da própria família, por isso particular, ao qual tive acesso para este trabalho específico. Procurei compilar e sistematizar esse acervo para este uso, porém sempre mantendo as referências originais das páginas datilografadas divididas em capítulos e sem numeração.
  • 5
    ARP. "Memórias", capítulo 12, "O peixe do Oiapoque".
  • 6
    Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (doravante, PCBDL), Belém. Boletim nº. 65. Instituto Geológico e Mineralógico do Brasil. Ministério da Agricultura. Relatório do Engenheiro-geólogo Pedro Moura.
  • 7
    ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias".
  • 8
    Fotogramas 112 e 113, ano 1925. Fundo Arquivo Arthur Bernardes (doravante, AAB) (Série Presidência da República, subsérie Revolta). Arquivo Público Mineiro (doravante, APM), Belo Horizonte.
  • 9
    ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias".
  • 10
    APO. Relação de batismos de nascidos em território brasileiro em 1921-1922.
  • 11
    Além do relato de Rocque Pennafort, como indicação da população no local, há o batismo coletivo feito em 31 de maio de 1922 pelo padre Gros, na vila de Clevelândia. Além das crianças batizadas, 23 no total, surgem o nome de diversos pais e padrinhos, colonos e funcionários, que não constam dos relatos anteriores. Fonte: Archives de la Église de Saint Georges (doravante, AESG). Livro de Registro de Batismo (1915-1926).
  • 12
    PCBDL. Inspecção de Fronteiras. Anexo nº. 3, 1927. Relatório do Major Boanerges Lopes de Souza, p. 18-20.
  • 13
    ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias".
  • 14
    ARP. "Memórias", capítulo 4, "O começo do fim".
  • 15
    ARP. "Memórias".
  • 16
    Ruy Guarany Neves, depoimento pessoal. Macapá, 26/05/2001.
  • 17
    "Viagem ao Núcleo Colonial Cleveland". Relatório apresentado ao Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio pelo Diretor da Secção da Secretaria de Estado, Oldemar Murtinho, 1926. Fundo AAB, APM.
  • 18
    ARP, conforme Rocque Pennafort em suas "Memórias".
  • 19
    Esses marinheiros estavam a serviço dos encouraçados São Paulo e Minas Gerais, dos submarinos Submersível F-5 e Pota-Ceará. Outros eram da Escola Militar do Rio de Janeiro.
  • 20
    Encontram-se em microfilme no Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas (AEL, UNICAMP), pertencentes ao Fundo AAB, cinco listas da 4ª. Delegacia Auxiliar e a lista do Gabinete do Ministro da Marinha dos presos enviados no Commandante Vasconcelos. As listas enviadas por Carlos Reis contemplam 359 presos comuns, sem motivação política. A lista do Ministro da Marinha relaciona 98 militares. Os números são conflitantes. Muitos nomes aí relacionados não coincidem com os fornecidos pelo relatório do secretário Oldemar Murtinho.
  • 21
    ARP. "Memórias", capítulo 4, "O começo do fim".
  • 22
    ARP. "Memórias", capítulo 4, "O começo do fim".
  • 23
    ARP, "Memórias", capítulo 12, "O peixe do Oiapoque 2".
  • 24
    APO. Livro Batizados-Extra, 1919-1947.
  • 25
    AESG. Livro de 1906-1915.
  • 26
    Conforme Censo de 1920, publicado em IBGE (1951).
  • 27
    Francisco Gomes da Conceição, 86 anos, depoimento pessoal. Oiapoque, 30/05/2001.
  • 28
    ARP, "Memórias", capítulo 14, "O peixe do Oiapoque IV".
  • 29
    PCBDL. Ministério da Guerra - Inspeçcão de Fronteiras. Relatório do General Inspetor, 1927.
  • 30
    Decreto 559 de 31/12/1935, publicado no "Diário Oficial da União", em 11/01/1936.
  • 31
    ARP, "Memórias", capítulo 4, "Clevelândia - o começo do fim".
  • 32
    Manifesto declamado por Caetano Veloso durante a apresentação de sua versão da música "Black and White
    ", de Michael Jackson, no show "Circuladô", em 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Aceito
      18 Nov 2011
    • Recebido
      24 Jan 2011
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