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Identidade Agudá espelhada no tempo: fotografia como instrumento de pesquisa social - um relato de experiência

Agudá identity mirrored in time: photography as a tool for social research - an account of experience

Resumos

O texto apresenta um relato de experiência de pesquisa antropológica realizada nas Repúblicas do Benin e do Togo, em dois momentos (1996 e 2010), sobre a construção da identidade agudá. Enfatiza-se o papel da fotografia como plataforma privilegiada de observação e de registro de fenômenos sociais visualmente relevantes, que apoia a produção de conhecimento cientificamente controlado sobre as sociedades fotografadas. Analisa-se em perspectiva temporal três pares de imagens fotográficas produzidas nos dois tempos da pesquisa de campo, para se evidenciar os processos de atualização das tradições e dos marcadores identitários da comunidade agudá.

Identidade; Pesquisa antropológica; Imagem fotográfica; África


The text presents an account of experience of an anthropological research developed in the Republics of Benin and Togo, in two moments (1996 and 2010), about the building of the agudá social identity. It is emphasized the role played by the photograph as a privileged platform for observation and record of visually relevant social phenomena, that supports the production of scientifically controlled knowledge about the societies photographed. It is analysed in temporal perspective three pairs of photographic images produced in both times of the field research, in order to put in evidence the process of actualization of traditions and identity markers of the agudá community.

Identity; Anthropological research; Photographic image; Africa


MEMÓRIA

Identidade Agudá espelhada no tempo: fotografia como instrumento de pesquisa social - um relato de experiência

Agudá identity mirrored in time: photography as a tool for social research - an account of experience

Milton Guran

Universidade Federal Fluminense. Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência Milton Guran Rua Terezina, 29/301 Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 20240-310 ( miltonguran@gmail.com)

RESUMO

O texto apresenta um relato de experiência de pesquisa antropológica realizada nas Repúblicas do Benin e do Togo, em dois momentos (1996 e 2010), sobre a construção da identidade agudá. Enfatiza-se o papel da fotografia como plataforma privilegiada de observação e de registro de fenômenos sociais visualmente relevantes, que apoia a produção de conhecimento cientificamente controlado sobre as sociedades fotografadas. Analisa-se em perspectiva temporal três pares de imagens fotográficas produzidas nos dois tempos da pesquisa de campo, para se evidenciar os processos de atualização das tradições e dos marcadores identitários da comunidade agudá.

Palavras-chave: Identidade. Pesquisa antropológica. Imagem fotográfica. África

ABSTRACT

The text presents an account of experience of an anthropological research developed in the Republics of Benin and Togo, in two moments (1996 and 2010), about the building of the agudá social identity. It is emphasized the role played by the photograph as a privileged platform for observation and record of visually relevant social phenomena, that supports the production of scientifically controlled knowledge about the societies photographed. It is analysed in temporal perspective three pairs of photographic images produced in both times of the field research, in order to put in evidence the process of actualization of traditions and identity markers of the agudá community.

Keywords: Identity. Anthropological research. Photographic image. Africa

INTRODUÇÃO

Este texto apresenta um relato de experiência sobre a utilização da fotografia como instrumento no âmbito de uma pesquisa que desenvolvo nas Repúblicas do Benim e do Togo desde 1994, e que, até o presente, vem se desdobrando e se enriquecendo em vários aspectos. O objeto da pesquisa é o processo permanente de construção da identidade social dos agudás, como são conhecidos naquela região os descendentes dos antigos traficantes brasileiros lá estabelecidos durante os séculos XVIII e XIX principalmente, e os descendentes dos africanos escravizados no Brasil, que, uma vez libertos, retornaram para essa região. Esses 'retornados' associaram-se aos brasileiros lá estabelecidos, formando um único grupo social, que é conhecido desde então como agudás ou 'os brasileiros', entre aspas1 1 O processo de construção da identidade agudá foi o objeto da minha tese de doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, intitulada "Agudás - les 'Brésiliens' du Benin - Enquête antropologique et photografique", defendida em 1996. .

Esses africanos escravizados deram uma nova dimensão social ao primeiro grupo agudá, que era composto principalmente pelos negreiros, suas esposas, sua descendência e seus escravos2 2 É emblemático o caso dos escravos do poderoso Chachá, da cidade de Uidá, personagem incontornável desse processo, que vivia no que se tornou o Quartier Brésil, em frente à sua concessão. . Com a chegada dos 'retornados', o grupo ganhou uma expressividade demográfica maior e, sobretudo, se lançou em outras frentes da economia, como a construção civil e a produção de móveis, e em outros aspectos da cultura ocidental.

Vale lembrar que essa parte da África estava sob o domínio da república francesa, cujo processo de colonização foi se tornando cada vez mais agressivo no último quartel do século XIX, inclusive com intervenção militar3 3 A França enfrentou militarmente o Reino do Daomé em uma guerra que só terminou em 1896, com a capitulação do Rei Behanzin. . Isso favoreceu enormemente a ação social desses agudás, já que eles, tendo chegado ao Brasil ainda crianças e nesse país se desenvolvido, eram portadores da cultura ocidental, a qual estava se tornando dominante e efetivamente se implantou de modo progressivo na região a partir do último quartel do século XIX.

Um dos aspectos importantes desta pesquisa é a percepção de como esse processo de construção da identidade se reproduziu no tempo, considerando-se o fato de que, por praticamente cem anos, deixou de haver uma comunicação direta e regular entre o Brasil e aquela costa ocidental da África. No final do século XIX, ainda havia um intercâmbio comercial importante, primeiro em função do tráfico negreiro e, depois, de forma menos intensa, em razão do comércio de mercadorias. Essa relação, no entanto, se estancou e só veio a ser fortalecida, de fato, ao longo da segunda metade do século passado, ganhando mais expressão quando foi aberta, em 2006, uma embaixada brasileira no Benim, já no governo de Luís Inácio Lula da Silva.

No meu trabalho, a fotografia ocupa um lugar central por me permitir registrar aspectos da vida social que são visualmente relevantes para a produção de conhecimento sobre a sociedade fotografada. Em tese, refiro-me à fotografia que é produzida no âmbito da pesquisa e também àquelas que foram produzidas fora da pesquisa por diversos autores e motivos, e que podem ser a ela incorporadas. No entanto, é a fotografia produzida dentro da pesquisa, produzida pelo próprio pesquisador, que é o foco deste texto, como veremos adiante. A nossa busca é pela informação que só pode ser transmitida por meio visual ou que se torna mais explícita e completa por meio da imagem. No meu caso específico, o que me interessa são evidências ou indícios de aspectos da vida social e da postura dos indivíduos que sinalizem sobre a forma como se dá esse processo de construção e de reprodução da identidade social agudá.

Nesse sentido, minhas pesquisas dialogam tanto com uma tradição de investigação antropológica, que valoriza o registro visual no trabalho de campo, quanto com as práticas fotográficas documentais que se consolidaram, ao longo do século XX, como uma das principais formas de registro do mundo visível.

ALGUMAS NOTAS NECESSÁRIAS SOBRE A EXPERIÊNCIA FOTOGRÁFICA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

A fotografia nasceu mais ou menos na mesma época que as ciências sociais, como destacou Howard Becker em um artigo no qual aborda a divulgação do invento da fotografia, em 1839, colocada em paralelo à publicação, em 1840, do texto de Auguste Comte sobre o nascimento da sociologia (Becker, 1974, 1986). Tanto as ciências sociais quanto a fotografia surgiram em resposta a uma demanda da sociedade da época por um autoconhecimento e por meios de objetivação do mundo visível.

A fotografia, então, veio criar uma ponte entre a realidade do dia a dia das pessoas e a representação dessa realidade. Esta foi a principal demanda social, por assim dizer, que fotografia veio a responder. Por sua vez, as pessoas também não entendiam aquele seu dia a dia, e a sociologia veio responder a esta demanda de entendimento sobre como a sociedade se organizava. Desta feita, a fotografia e as ciências sociais compartilharam o mesmo momento histórico de nascimento. Mais adiante, ao longo do último quartel do século XIX, a Europa se lançou na política de ocupação colonial da África e da Ásia e, com isso, um novo ramo das ciências sociais surgiu, buscando uma forma de conhecer e entender o 'outro', aquele indivíduo que é completamente diferente do europeu. Essa necessidade de entender para dominar, é bom lembrar, mobilizou a intelectualidade da época, no sentido de desenvolver estudos específicos sobre populações completamente diferentes da matriz cultural europeia. Assim, nasceu a etnologia ou a antropologia social, na denominação de tradição anglo-saxônica.

A fotografia foi incorporada a estes estudos desde o seu começo, até porque era a forma mais eficaz e evidente de dar a conhecer a feição do 'outro'. Como é que se poderia explicar, por exemplo, para um europeu do século XIX, como é um zulu? Como é um botocudo, um aborígene?

A fotografia facilitava não só a descrição física de pessoas, objetos, artefatos e residências, como também era de grande valia para a descrição dos rituais. Dessa forma, a fotografia teve uma função relevante desde os primórdios, ainda no tempo em que a etnologia e a etnografia eram praticadas em gabinetes e baseavam-se em relatórios administrativos e militares do poder colonial, além de digressões de viajantes e aventureiros.

Umas das primeiras expedições organizadas com o intuito deliberado de prospectar informações sobre esta alteridade foram as de Alfred Cort Haddon ao Estreito de Torres, em 18984 4 Organizada pela Universidade de Cambridge, esta expedição é um marco fundador da antropologia britânica. Nela, Haddon contou com a participação de alguns dos grandes nomes da antropologia, tais como W. H. R. Rivers e C. G. Seligman. . Quando ele foi ao Estreito de Torres, no mais ambicioso projeto de pesquisa de campo até então empreendido pela academia europeia, levou consigo aparelhos fotográficos e um cinematógrafo, que tinha acabado de ser inventado.

Outro marco na utilização da imagem é o trabalho do casal Gregory Bateson e Margaret Mead, autores de "Balinese character: a photographic analysis", obra seminal da dita antropologia visual, publicada em 1942. Nas décadas seguintes, a aplicação da fotografia, sobretudo nos Estados Unidos, desenvolveu-se bastante e motivou uma obra, hoje clássica, que é "Visual Anthropology: photography as a research method", de John Colier Jr. (1967).

A PROPÓSITO DA FOTOGRAFIA EFICIENTE

Ao contrário do que sugere o título do livro de Colier Jr., a fotografia não se constitui em um método, e sim em um instrumento da metodologia antropológica. É nesse sentido que a incorporo às minhas pesquisas. Grosso modo, temos duas maneiras de utilizar a fotografia na pesquisa antropológica, que correspondem a duas etapas distintas da pesquisa: um primeiro momento, em que ela aparece como um instrumento para prospectar informações; e um segundo, no qual traz a sua contribuição na descrição do fenômeno estudado e no enunciado das conclusões, das reflexões sobre esse fenômeno5 5 A propósito do uso na pesquisa antropológica, ver Guran (1987, 1990, 1994, 1996, 2000a, 2012). .

Isso posto, a questão que se coloca é se qualquer fotografia serve para esse fim. Não, não é qualquer fotografia que vai responder a essa demanda específica das ciências sociais, em que pese o fato de que todo e qualquer documento fotográfico é, em si, fonte de informação, dependendo de como for interrogado. O que queremos enfatizar é que nem toda fotografia funciona bem em uma pesquisa. Aliás, da mesma forma que não é qualquer fotografia que atende aos requisitos da identificação policial ou da informação jornalística, e assim por diante. Para melhor identificar e compreender que tipo de fotografia nos interessa de fato, desenvolvi o conceito de 'fotografia eficiente', ou seja, aquela que não é boa, nem espetacular, nem parece uma pintura, mas que é eficiente na sua função de transmitir uma informação para uma determinada finalidade (Guran, 2002).

Um bom exemplo é a já citada fotografia de identificação policial, na qual a face do retratado deve ser uniformemente iluminada dos dois lados, a 45 graus; a lente objetiva tem que estar alinhada com a altura dos olhos; o cabelo do indivíduo precisa estar por trás da orelha; e o fundo necessita ser contrastante com a figura, que necessariamente deve olhar para a objetiva. Com isso, os departamentos policiais do mundo inteiro querem saber se há cicatrizes, estrabismo, tatuagem, se falta orelha, e também ver com clareza o perímetro da cabeça. Uma fotografia feita nessas condições, padrão 3 x 4 ou com formato para passaporte, é extremamente eficaz para a polícia. No entanto, se for publicada em um jornal, independente do assunto que a levou à publicação - por exemplo, uma premiação ou uma grande conquista no campo da ciência -, induzirá, em um primeiro momento, a uma leitura completamente oposta, porque quem vê uma fotografia dessas no jornal tende a interpretá-la como parte de um obituário, já que jamais um personagem de notícia é apresentado dessa maneira. Como enfatizamos, uma foto eficiente para uma finalidade não o é necessariamente para outra.

No que toca à pesquisa em ciências sociais, seja na antropologia, na sociologia ou mesmo na história, sobretudo na história oral, cuja prática de campo é cada vez mais compartilhada com a antropologia, a fotografia, que, para nós, aparece como eficiente, é aquela que expõe com clareza um aspecto de uma cena, permitindo-nos ter acesso a uma informação útil para os objetivos do estudo.

OS AGUDÁS DO BENIM E DO TOGO

Como disse, o meu objeto de estudo são os agudás da África ocidental, grupo social composto principalmente por descendentes de africanos escravizados no Brasil que voltaram àquela região (Guran, 2000b). Vieram para o Brasil os cativos de guerra feitos pelo exército de Abomé6 6 Abomé, na atual República do Benim, foi a capital do Reino de Daomé, que, ao conquistar a cidade litorânea de Uidá, no século XVIII, tornou-se o principal exportador de escravos da chamada 'costa dos escravos'. , que entrava nas aldeias, matava os que resistiam e prendia o resto da população. Esses cativos eram camponeses que viviam basicamente de agricultura de subsistência. Mas não apenas camponeses eram vendidos, pois o sacerdote - aquele que detinha o saber sobre as técnicas de cura e o conhecimento da cosmogonia da aldeia, daquele povo - também era feito escravo da hierarquia política do lugar.

Além desses cativos, foram também trazidos para o Brasil os criminosos de toda espécie, que, ao invés de serem executados, foram trocados por mercadorias, como pólvora, armas, fumo de rolo, cachaça etc. Vieram também aqueles que sofreram um revés político qualquer, caíram em desgraça ou cometeram algum ato considerado indigno ou ilegal pelo soberano. Por fim - e isso não deixa de ser surpreendente e desconcertante -, as vítimas de desavenças familiares e de problemas sucessórios.

E quem voltou? Em primeiro lugar, voltaram os que foram trabalhar na cidade como escravos domésticos ou escravos de ganho. Essa condição de escravo doméstico lhes permitiu uma ascensão social dentro do quadro da escravatura. Quer dizer, eles poderiam ser empreendedores, quitandeiros, feitores de fazenda, gestores de contabilidade, balconistas de loja, pedreiros, marceneiros, mestres de obra. Tinham uma 'carreira' pela frente. Aquele que foi para as minas ou para as plantações mais afastadas dificilmente teve um tempo de vida e condições de saúde que lhe permitissem assimilar completamente os códigos da cultura ocidental e ainda transformá-los em ganhos financeiros capazes de lhe possibilitar a compra de sua liberdade.

Para sobreviver às condições de escravidão e adquirir a liberdade, era preciso que a pessoa dominasse esses códigos de sorte; os que tiveram condições de voltar para a África foram os mais articulados e fisicamente mais sadios. Ou seja, voltou para a África quem fazia parte da elite dos africanos no Brasil. No entanto, uma vez de volta à região de onde haviam partido, esses 'retornados' eram recebidos como escravos, conforme tinham sido no Brasil, e não como homens que haviam se tornado livres, porque o estigma da escravatura é indelével na sociedade que o produziu (Meillassoux, 1986).

É nesse contexto que os 'retornados', invocando a memória do tempo vivido no Brasil, constroem uma ponte para a identidade social dos traficantes brasileiros, que já estavam estabelecidos lá e incorporados à sociedade, conhecidos pelo nome de agudás. Baseados nos três pilares a partir dos quais se constroem, geralmente, as identidades sociais - a origem (alegam que 'nasceram de novo' no Brasil), a língua (falavam português) e a compreensão do mundo (declaravam-se como católicos na imensa maioria, mas também mulçumanos, ou seja, dentro de uma compreensão monoteísta do mundo) -, eles se pretendem 'brasileiros'.

Desse modo, com base na bricolagem da memória do tempo vivido no Brasil, esses 'retornados' articulam-se com os antigos negreiros, que os recebem de braços abertos porque, juntos, vão 'dar as cartas' na economia da região. Esse é um caso único de desenvolvimento de uma cultura de matriz brasileira longe das fronteiras nacionais, e um exemplo extremamente especial de articulação entre vendedores e vendidos para se sobreporem ao estigma da venda, o que é raro na história da escravidão moderna.

Nesse processo de construção de identidade, compreende-se que o modelo de 'representação de si' que esse grupo social apresenta só poderia ser o de 'senhor de escravo'. Se esse africano 'retornado' queria se colocar como um brasileiro, o modelo de representação dele era característico da sociedade ocidental, personificada pela população de origem europeia do Brasil, e não pela população de origem indígena ou africana. Esse processo de 'representação de si' nada mais é do que um processo de representação das ditas 'maneiras de branco', ou seja, a forma como o branco se comporta.

A 'representação de si' feita à maneira dos brancos e a utilização de indicadores de identidade a partir deste parâmetro são uns dos aspectos mais evidentes dessa construção da identidade. Outros aspectos relevantes são a arquitetura, a culinária, a língua, a maneira de se comportar socialmente, entre outros. Para melhor examinarmos essa questão e apresentarmos, ao mesmo tempo, o uso da fotografia, vamos, a seguir, trabalhar com três pares de fotografias. Cada par possui cerca de 15 anos de diferença entre uma foto e outra.

No primeiro par (Figura 1), vemos membros da comunidade agudá diante do estandarte da Irmandade Brasileira do Bom Jesus do Bonfim de Porto Novo, verde e amarelo, apresentado nas festividades de Bom Jesus do Bonfim no mês de janeiro, como na Bahia.


A Figura 1A, feita em Porto Novo, capital do Benim7 7 Porto Novo era a sede do antigo reino Adja de Arde, e chamava-se Hogbonou, ou ainda Adjacê, nome dado pelos iorubás, muito numerosos na cidade. Foi Echaristes Campo, português estabelecido no Brasil, que, em 1745, 'descobriu' essa cidade, a qual oferecia novas possibilidades para o comércio de escravos, chamando-a simplesmente de 'porto novo', nome adotado pelos moradores do local. , em 1996, mostra duas crianças agudás na frente do estandarte. Este, embora não seja claramente percebido na foto em preto-e-branco, era de veludo verde-escuro, bordado em ouro. Uma menina e um menino personificam as citadas 'maneiras de branco'. Ela está usando um vestidinho branco, com um cordão de ouro no pescoço, o cabelo curto não é alisado, não porta um pano na cabeça, adereço quase obrigatório das beninenses. Já o menino está de camisa social, com uma gravatinha borboleta. Poderia ser um casalzinho de crianças do Rio de Janeiro, da Bahia, de Minas, nos anos 1940-1950. Ou seja, eles estão com as 'maneiras de branco', diante de um estandarte católico, onde se lê em português: "Irmandade Brasileira do Bom Jesus do Bonfim do Porto Novo".

A foto que faz par e passo com essa (Figura 1B) foi tomada em 2010, portanto 14 anos depois8 8 As imagens de 2010 foram produzidas no âmbito do projeto de pesquisa intitulado "Falares luso-brasileiros no Benim e no Togo", desenvolvido no Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI), da Universidade Federal Fluminense (UFF), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), entre os anos de 2010-2012. . Vemos o estandarte da Irmandade Brasileira de Bom Jesus do Bonfim, já meio estilizado, feito com tecido mais barato. O estandarte original desapareceu, é possível que tenha sido vendido ou se desgastado, enfim. À frente desse novo estandarte, figuram dois jovens que portam, atravessada no peito, uma faixa verde com uma cruz amarela. O conjunto é formado ainda por um coroinha, um menino vestido com as roupas de auxiliar oficiante do culto católico e com uma cruz no pescoço. Ao fundo, vemos uma parte da bandeira do Brasil, ou seja, um reforço da identidade brasileira. O que marca a maior diferença entre as duas imagens é, sem dúvida, que os dois rapazes não estão mais vestidos à maneira brasileira, e sim portando roupa tradicional africana, o que testemunha a necessidade de maior integração dessa comunidade agudá com a sociedade local. Porém, na medida em que eles se confundem mais com a sociedade local, cresce a necessidade de explicitar de outra forma o pertencimento a uma raiz diferente, capaz de delimitar a sua identidade social, que é, então, simbolizada pelo pavilhão nacional brasileiro.

Na Figura 2, vemos duas cenas do desfile dos agudás depois da missa de celebração de Nossa Senhora do Bonfim, também separadas por 14 anos. Conforme a tradição, ao término da Missa do Bonfim, domingo pela manhã, os agudás vão pelas ruas cantando canções alusivas à sua identidade social, em português aproximativo ou em línguas locais, tais como gum, iorubá, fon, o que é uma forma de afirmarem publicamente e socialmente o seu pertencimento étnico. Nas fotos (Figuras 2A e 2B), vemos duas senhoras que desfilam pela rua ao som da 'marcha'. Elas não estão vestidas com as roupas tradicionais africanas, mas com vestidos à ocidental, e ambas levam na mão aquela bolsa de mulher conhecida como 'carteira', originalmente um atributo da mulher ocidental, da mulher 'branca'.


O que diferencia as duas personagens centrais, com posturas quase idênticas, portando a mesma faixa da Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim, além da 'carteira', é que na Figura 2A, de 1996, a senhora em questão apresenta-se com o cabelo alisado, portando um vestido de feitio ocidental. Na Figura 2B, de 2010, porém, apesar de ostentar a mesma faixa - ou seja, o mesmo pertencimento social -, a senhora está vestindo um modelo mais próximo do que é costume hoje entre as mulheres africanas, e porta um turbante para cobrir os cabelos. É verdade que o turbante não segue a norma mais comum entre as beninenses, como a que aparece ao fundo, na Figura 2A, mas, de todo modo, sinaliza uma identificação maior com a 'representação de si' africana.

Na Figura 3, vemos o momento posterior à celebração do Bonfim, que inclui a missa, o desfile e um piquenique. É quando se dá a apresentação da 'burrinha'9 9 A 'burrinha' ou 'bourian', na pronúncia agudá, é um folguedo semelhante ao bumba-meu-boi, que foi muito popular no Brasil rural do século XIX. , que vem precedida por uma demonstração de dança brasileira, lá chamada de 'sambá', representada nas Figuras 3A e 3B.


Na Figura 3A, feita em 1995, vemos a orquestra da 'burrinha', com seus pandeiros, marcando a apresentação dos cantos. Em primeiro plano, uma senhora dança o 'sambá' com uma postura corporal correspondente ao samba brasileiro, tendo uma espécie de xale na mão. Ela dança com o xale até passá-lo para outra pessoa, que é obrigada a dançar também, e assim sucessivamente. Em frente da orquestra, estão os membros da destacada família Amaral e, entre eles, encontra-se uma moça chamada Antoniette Campos, considerada uma das melhores cantoras agudá, depositária da memória das canções.

Quinze anos depois, temos a mesma família Amaral à frente da orquestra, com Antoinette Campos logo na primeira fila (Figura 3B). É interessante notar que se na fotografia anterior Antoinette sumia, não se diferenciava do público africano em geral, na foto mais recente ela aparece com uma camiseta verde e amarela, com "Brasil" escrito em amarelo no peito, que foi distribuída pela embaixada brasileira. Vale ressaltar que, em 2010, a embaixada teve uma ação institucional e política efetiva, enquanto que, em 1995, esteve completamente ausente da festa. Na Figura 3B, em primeiríssimo plano, encontra-se uma senhora que também dança o 'sambá' segurando um lenço. No entanto, essa senhora, assim como sua congênere na Figura 2B, também está explicitamente mais próxima das maneiras de ser da sociedade tradicional africana, porque já não se apresenta vestida à ocidental, e sim com um modelo intermediário entre os vestidos ocidentais e a roupa tradicional africana. Nesta mesma linha, já não tem o cabelo alisado, mas usa, também a exemplo da senhora da Figura 2B, um turbante estilizado. No entanto, ela dança, como se pode ver, o mesmo 'sambá'.

À GUISA DE CONCLUSÃO

A fotografia, por certo, além do seu papel inquiridor, produz evidências, descreve situações e posturas, complementa inventários. Assim fazendo, traz à frente do discurso antropológico fontes primárias, que são compartilhadas com o leitor ao mesmo tempo em que são interpretadas, permitindo, ao menos em tese, uma leitura mais rica dos propósitos enunciados.

No caso em tela, acrescenta-se a dimensão temporal, o testemunho da duração de um fato social, flagrado nas suas nuances de representação, que sinalizam os caminhos do burilar social no processo de atualização das tradições. As imagens se confirmam mutuamente duas a duas, constituindo o suporte de uma reflexão antropológica, completada, naturalmente, com dados recolhidos por outros meios. E, mais do que isso, por serem evidências produzidas rigorosamente dentro de uma proposta metodológica clara, constituem uma extensão documental da observação direta do pesquisador. Nas fotografias mais antigas, os indícios observados configuraram-se como dados ao longo do processo da pesquisa, fundamentando as conclusões que se reafirmaram nas imagens de 2010. Em outras palavras, essas imagens espelham no tempo exemplos claros da mecânica de reprodução do processo permanente de construção da identidade social dos agudás do Benim, que jamais seriam descritos de forma tão completa sem o seu concurso.

AGRADECIMENTOS

Este texto teve origem nas discussões de trabalho do LABHOI. Agradeço à Professora Ana Maria Mauad, pelo incentivo e pelas preciosas sugestões feitas à primeira versão desse relato.

Recebido em 03/06/2013

Aprovado em 05/08/2014

GURAN, Milton. Identidade Agudá espelhada no tempo: fotografia como instrumento de pesquisa social - um relato de experiência. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 2, p. 557-565, maio-ago. 2014

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  • Autor para correspondência
    Milton Guran
    Rua Terezina, 29/301
    Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 20240-310
    (
  • 1
    O processo de construção da identidade agudá foi o objeto da minha tese de doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, intitulada "Agudás - les 'Brésiliens' du Benin - Enquête antropologique et photografique", defendida em 1996.
  • 2
    É emblemático o caso dos escravos do poderoso Chachá, da cidade de Uidá, personagem incontornável desse processo, que vivia no que se tornou o Quartier Brésil, em frente à sua concessão.
  • 3
    A França enfrentou militarmente o Reino do Daomé em uma guerra que só terminou em 1896, com a capitulação do Rei Behanzin.
  • 4
    Organizada pela Universidade de Cambridge, esta expedição é um marco fundador da antropologia britânica. Nela, Haddon contou com a participação de alguns dos grandes nomes da antropologia, tais como W. H. R. Rivers e C. G. Seligman.
  • 5
    A propósito do uso na pesquisa antropológica, ver Guran (1987, 1990, 1994, 1996, 2000a, 2012).
  • 6
    Abomé, na atual República do Benim, foi a capital do Reino de Daomé, que, ao conquistar a cidade litorânea de Uidá, no século XVIII, tornou-se o principal exportador de escravos da chamada 'costa dos escravos'.
  • 7
    Porto Novo era a sede do antigo reino Adja de Arde, e chamava-se Hogbonou, ou ainda Adjacê, nome dado pelos iorubás, muito numerosos na cidade. Foi Echaristes Campo, português estabelecido no Brasil, que, em 1745, 'descobriu' essa cidade, a qual oferecia novas possibilidades para o comércio de escravos, chamando-a simplesmente de 'porto novo', nome adotado pelos moradores do local.
  • 8
    As imagens de 2010 foram produzidas no âmbito do projeto de pesquisa intitulado "Falares luso-brasileiros no Benim e no Togo", desenvolvido no Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI), da Universidade Federal Fluminense (UFF), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), entre os anos de 2010-2012.
  • 9
    A 'burrinha' ou 'bourian', na pronúncia agudá, é um folguedo semelhante ao bumba-meu-boi, que foi muito popular no Brasil rural do século XIX.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2014

    Histórico

    • Recebido
      03 Jun 2013
    • Aceito
      05 Ago 2014
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