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O Sambaqui do Recreio: geoarqueologia, ictioarqueologia e etnoarqueologia

The Recreio Shellmound: geoarchaeology, ictioarchaeology and etnoarchaeology

Resumo

O presente artigo apresenta o processo de ocupação sambaquieiro na barreira da Itapeva, contextualizando os sítios e os seus construtores na cronologia, bem como as escolhas para inserção em uma paisagem marcada pela dinâmica das transformações paleoambientais. A implantação do Sambaqui do Recreio sobre uma planície costeira em formação demonstra uma escolha cultural calcada em um modo de vida milenar que já se desenvolvia na costa sul/sudeste brasileira há quase dois mil anos. Se, por um lado, as escavações permitiram a identificação dos peixes e instrumentos de pesca na pré-história, por outro, caracterizaram a necessidade da compreensão das estratégias e dos conhecimentos tradicionais associados, alcançados apenas através de abordagem etnográfica. Os dados ictioarqueológicos sugerem uma etapa inicial de ocupação focada em espécies cuja disponibilidade possui maior previsibilidade, como tainhas (Mugil sp.) e papa-terras (Menticirrhus sp.). A partir da instalação definitiva dos sítios, as estratégias de pesca passam a um padrão mais generalista. O aproveitamento das lagoas e dos banhados fica evidente pela presença de espécies como tainhas (Mugil sp.), jundiás (Rhamdia sp.), bagres (Genidens sp.), carás (Cichlidae), corvinas (Micropogonias furnieri) e pescadas (Cynoscion sp.). Em linhas gerais, cada espécie parece indicar estratégias de pesca diferentes.

Palavras-chave
Sambaqui; Paleoambiente; Pesca; Povoamento

Abstract

This article addresses the shellmound occupation process on the Itapeva barrier, identifying the sites and their builders within the chronology, along with their choices for implementation in a landscape affected by the dynamics of paleoenvironmental transformations. The Recreio shellmound’s position on a shallow coastal plain demonstrates a cultural choice based on an ancient way of life that was already developing on the southern and southeastern coast of Brazil almost two thousand years ago. While the excavations identified fish and fishing implements that were present during prehistorical times, they also indicated the need for associated traditional strategies and knowledge which can only be obtained through ethnography. The ichthyoarcheological data suggest an initial stage of occupation focused on species with more predictable availability such as mullet (Mugil sp.) and kingcroakers (Menticirrhus sp.). After the sites were definitively established, fishing strategies became more generalist; use of lakes and flooded areas is seen in the presence of species such as mullet (Mugil sp.), freshwater catfish (Rhamdia sp.), sea catfish (Genidens sp.), cichlids (Cichlidae), whitemouth croaker (Micropogonias furnieri), and hake (Cynoscion sp.). In general, each species seems to indicate different fishing strategies.

Keywords
Shellmound; Paleoenvironment; Fishing; Settlement

INTRODUÇÃO

O presente artigo é o resultado das diferentes linhas de pesquisa desenvolvidas pelos autores no período em que compuseram a equipe do projeto “Arqueologia do litoral norte do Rio Grande do Sul”, no Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (CEPA/PUCRS). As pesquisas arqueológicas em sambaquis deram origem à necessidade de compreender os aspectos geoarqueológicos, ictioarqueológicos e etnoarqueológicos das sociedades pescadoras, que vêm ocupando a região desde o Holoceno superior até os dias atuais.

Nas páginas que seguem, apresentaremos o processo de ocupação sambaquieiro na barreira da Itapeva (Figura 1), contextualizando os sítios e seus construtores na cronologia, bem como as escolhas para inserção em uma paisagem marcada pela dinâmica das transformações paleoambientais. A implantação do Sambaqui do Recreio sobre uma planície costeira em formação demonstra uma escolha cultural calcada em um modo de vida milenar que já se desenvolvia na costa sul/sudeste brasileira há quase dois mil anos. Se, por um lado, as escavações permitiram a identificação das espécies pescadas e os instrumentos líticos na pré-história, por outro, caracterizaram a necessidade da compreensão das estratégias e dos conhecimentos tradicionais associados, alcançados apenas através de abordagem etnográfica.

Figura 1
Localização dos sambaquis datados por C14 na barreira da Itapeva, litoral norte do Rio Grande do Sul. Mapa elaborado pelos autores

O SAMBAQUI DO RECREIO: GEOARQUEOLOGIA E POVOAMENTO NA BARREIRA DA ITAPEVA

O processo de povoamento para os pescadores-coletores dos sambaquis no litoral norte do Rio Grande do Sul foi sugerido em Wagner (2009)Wagner, G. P. (2009). A evolução paleogeográfica e a ocupação dos sambaquis no litoral norte do Rio Grande do Sul, Brasil. In A. M. Ribeiro, S. G. Bauermann & C. S. Scherer (Orgs.), Quaternário do Rio Grande do Sul, integrando conhecimentos (pp. 243-254). Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Paleontologia., para o qual foram considerados os dados arqueológicos e paleoevolutivos da planície costeira. De forma sintética, os sambaquis da barreira da Itapeva estão intimamente relacionados a ocupações situadas sobre os alinhamentos dos cordões litorâneos regressivos, entremeados por áreas alagadiças, na forma de pequenas lagoas, canais ou banhados, caracterizando o contexto ambiental específico priorizado pelas populações pescadoras-coletoras que se estabeleceram no local há aproximadamente 4.000 anos.

A planície costeira do Rio Grande do Sul foi formada por uma sequência de eventos transgressivos e regressivos, que marcam elevações e quedas dos níveis marinhos, forçadas por variações glácio-eustáticas (Villwock & Tomazelli, 1995Villwock, J. A., & Tomazelli, L. J. (1995). Geologia costeira do Rio Grande do sul. Notas Técnicas, 8, 1-45.; Angulo et al., 2006Angulo, R. J., Lessa, G. C., & Souza, M. C. (2006). Critical review of mid- to late-holocene sealevel fluctuations on the eastern Brazilian coastline. Quaternary Science Reviews, 25(5-6), 486-506. doi: https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2005.03.008
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). Cada sequência daqueles eventos condicionou a implantação de um sistema deposicional do tipo laguna-barreira, que se dispõe paralelamente à linha de costa atual. A região norte da planície costeira gaúcha é marcada por um rosário de lagoas relictuais do sistema laguna-barreira IV (de idade holocênica), cuja formação se deu entre 6.000 AP e 5.000 AP, quando os níveis marinhos atingiram aproximadamente 3 m acima dos atuais (Dillenburg et al., 2000Dillenburg, S. R., Roy, P. S., Cowell, P. J., & Tomazelli, L. J. (2000). Influence of antecedent topography on coastal evolution as tested by the shoreface translation-barrier model (STM). Journal of Coastal Research, 16(1), 71-81.; Tomazelli & Villwock, 2005Tomazelli, L. J., & Villwock, J. A. (2005). Mapeamento geológico de planícies costeiras: o exemplo da costa do Rio Grande do Sul. Gravel, 3(1), 110-115.; Angulo et al., 2006Angulo, R. J., Lessa, G. C., & Souza, M. C. (2006). Critical review of mid- to late-holocene sealevel fluctuations on the eastern Brazilian coastline. Quaternary Science Reviews, 25(5-6), 486-506. doi: https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2005.03.008
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).

Imediatamente após o pico transgressivo, a imensa laguna que ocupava toda a planície arenosa, situada entre a barreira holocênica e o contraforte da serra geral, iniciou um processo de sedimentação, que culminou em sua gradual segmentação. Aos poucos, as áreas rasas foram dando espaço a banhados ou paludiais, e a planície arenosa passou a ser ornamentada por uma sequência de lagoas constantemente conectadas por canais, formando uma paisagem a que os pescadores locais batizaram de ‘rosário de lagoas do litoral norte’. De norte para sul, o rosário é composto pelas lagoas de Itapeva, Quadros, Pinguela e Laguna de Tramandaí, onde a conexão com o mar permite o acesso dos peixes e crustáceos, constituindo um ambiente piscoso extremamente produtivo, que se estende por cerca de 100 km por toda a retroarea de ocupação dos sambaquis (situados entre as lagoas e o mar).

Quando observamos o conjunto das datações realizadas para os sambaquis da barreira da Itapeva, percebemos a contemporaneidade do povoamento regional ao período áureo do povoamento sambaquieiro nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. De Blasis et al. (1998)De Blasis, P., Fish, S. K., Gaspar, M. D., & Fish, P. R. (1998). Some references for the discussion of complexity among the sambaqui moundbuilders from the southern shores of Brazil. Revista de Arqueologia Americana, 15, 75-105., Lima (1999-2000)Lima, T. A. (1999-2000). Em busca dos frutos do mar: os pescadores-coletores do litoral centro-sul do Brasil. Revista USP, 2(44), 270-327. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i44p270-327
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, Fish et al. (2000)Fish, S. K., De Blasis, P., Gaspar, M. D., & Fish, P. R. (2000). Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do estado de Santa Catarina. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (10), 69-87. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2000.109378
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e Tenório (2003)Tenório, M. C. (2003). O lugar dos aventureiros: identidade, dinâmica de ocupação e sistema de trocas no litoral do Rio de Janeiro há 3.500 anos antes do presente (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. debruçaram-se sobre os quadros cronológicos regionais e demonstraram que o quarto e o terceiro milênios antes do presente correspondem à maior concentração de sítios ativos em toda a região de dispersão da cultura arqueológica dos sambaquis.

O único sambaqui do Rio Grande do Sul que dispõe de cronologias absolutas para as camadas de topo e base, situando os eventos de implantação e abandono do sítio no espectro de datações, é o Sambaqui do Recreio. Desta forma, partiremos dele para efetuar a análise do contexto de dispersão das populações pescadoras-coletoras dos sambaquis na região. A Tabela 1 foi extraída de Wagner (2012)Wagner, G. P. (2012). Escavações no sítio LII-29, Sambaqui de Sereia do Mar. Revista de Arqueologia, 25(2), 104-119. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v25i2.357
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e apresenta as cronologias para os sítios individualmente.

A cronologia construída para os sambaquis do litoral norte do estado aponta para um processo de ocupação iniciado em 4.140 cal AP no Sambaqui da Figueira. Embora não saibamos por quanto tempo este sítio foi ocupado, são apenas 160 anos que separam o início de sua ocupação em relação ao início da implantação dos pescadores-coletores dos sambaquis neste espaço, há 3.972 cal AP1 1 As datações foram calibradas através do aplicativo online Oxford Radiocarbon Accelerator Unit (University of Oxford, n.d.). Para a aferição das datações, foi aplicada a curva de calibração intcal13.

Foram necessários mais 130 anos para que o Sambaqui do Recreio fosse acompanhado pela ocupação do Sambaqui do Camping, em 3.832 cal AP, e seguiram-se mais 200 anos até que um terceiro sítio fosse implantado, há 3.637 cal AP, o Sambaqui de Arroio Seco. Os três sítios permaneceram habitados por cerca de 120 anos. O intervalo das datas indica uma ocupação para o Sambaqui do Camping até 3.510 cal AP, mas destacamos aqui a procedência estratigráfica da amostra datada nas camadas de base do sítio indicando que ele continuou habitado, embora não saibamos ainda por quanto tempo.

Mais de um século separa a datação mais recente das ocupações já referidas em relação ao início da construção do Sambaqui de Marambaia, há 3.367 cal AP, imediatamente acompanhado pela implantação em Itapeva, há 3.347 cal AP. Ambos conviveram por mais de 200 anos, tendo em vista as amostras datadas procederem das camadas basais dos dois sítios.

Aproximadamente 450 anos passariam até que o Sambaqui de Sereia do Mar fosse habitado, e mais 1.000 anos separam Sereia do Mar da ocupação no Sambaqui da Dorva, na margem oeste da lagoa da Itapeva, fora da planície de cordões arenosos que caracterizam a barreira da Itapeva. De fato, o sítio que denominamos de Sambaqui da Dorva necessita de novas pesquisas para detalhamento de seu contexto cultural e das estratégias adaptativas, a fim de que seja definitivamente incluído na cultura arqueológica dos sambaquis da costa sul e sudeste brasileira.

Tabela 1
Cronologia conhecida para os sambaquis do Rio Grande do Sul. Fonte: Wagner (2012, p. 109)Wagner, G. P. (2012). Escavações no sítio LII-29, Sambaqui de Sereia do Mar. Revista de Arqueologia, 25(2), 104-119. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v25i2.357
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ICTIOARQUEOLOGIA DO SAMBAQUI DO RECREIO

A coleta do material foi realizada quando da escavação de poços-teste de 50/50 cm, tendo sido recolhida a totalidade do sedimento em níveis de 5 cm. Todo o sedimento retirado foi peneirado em malha de 2 mm, com água; após a secagem, ele foi processado no Laboratório de Arqueologia CEPA/PUCRS. De acordo com Hilbert (2011, p. 34)Hilbert, L. M. (2011). Análise ictioarqueológica dos sítios: Sambaqui do Recreio, Itapeva e Dorva, municípios de Torres e Três Cachoeiras, Rio Grande do Sul, Brasil (Dissertação de mestrado). Potifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil., as identificações dos vestígios de peixes foram feitas com apoio em Nolf (1976)Nolf, P. D. (1976). Les otolithes des Téléostéens néogénes de Trinidad. Eclogae Geologicae Helvetiae, 69(3), 703-742., Olsen (1971)Olsen, S. J. (1971). Zooarchaeology: animal bones in archaeology and their interpretation (2 ed.). Boston: Addison-Wesley Pub., Andreata (1979Andreata, J. (1979). Osteologia da nadadeira caudal de Diapterus Ranzani e Eucinostomus Baird & Girard (Perciformes, Percoidei, Gerridae). Revista Brasileira de Biologia, 39(1), 237-258., 1988)Andreata, J. (1988). Considerações sobre a osteologia cefálica do gênero Diapterus Ranzani, 1840 (Pisces, Perciformes, Gerreidae). Acta Biológica Leopoldensia, 10(2), 183-222., Gregory (1959)Gregory, W. K. (1959). Fish skulls: a study of the evolution of natural mechanisms (American Philosophical, Trans.). Laurel, Florida: Eric Lundberg., Jardim (1980)Jardim, L. (1980). Osteologia dos sincrâneo das espécies de Menticirrhus Gill, 1861 da costa sul do Brasil (Perciformes, Sciaenidae) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil., Chao (1978)Chao, L. N. (1978). A basis for classifying western Atlantic Sciaenidae (Teleostei; Perciformes) (NOAA Technical Report, No. 415). USA: U. S. Department of Commerce., Lucena (1988)Lucena, Z. (1988). Discussão dos caracteres morfológicos dos gêneros Umbrina Cuvier, 1816 e Ctenosciaena Fowler & Bean, 1923. (Pisces; Perciformes; Sciaenidae). Comunicações do Museu de Ciências e Tecnologia da Potifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Série Zoologia, 1(4), 49-122., Corrêa e Vianna (1992)Corrêa, M. F. M., & Vianna, M. S. (1992). Catálogo de otólitos de Sciaenidae (Osteichthyes-Perciformes) do litoral do estado do Paraná, Brasil. Nerítica, 7(1/2), 13-41. e Rojo (1976)Rojo, A. (1976). Osteología de La Merluza Argentina (Merluccius hubbsi, Marini 1933) (Boletin del Instituto Español de oceanografia, No. 219). Madrid: Subsecretaría de la Marina Mercante., bem como por comparação direta com a coleção de referência óssea do setor de Paleontologia (MCT-PUCRS), na qual constam espécies da região norte litorânea do Rio Grande do Sul. Para a estimativa de abundância taxonômica, foi empregado o número de espécimes ósseos identificados por táxon (NISP) e o número mínimo de indivíduos (MIN). Estes parâmetros são largamente utilizados e debatidos em trabalhos de Zooarqueologia (Grayson, 1984Grayson, D. K. (1984). Quantitative zooarchaeology: topics in the analysis of archaelogical faunas (1 ed.). Orlando, Florida: Academic Press.; Klein & Cruz-Uribe, 1984Klein, R. G., & Cruz-Uribe, K. (1984). The analysis of animal bones from archeological sites (1 ed.). Chicago: University of Chicago Press.; Davis, 1987Davis, S. J. M. (1987). The archaeology of animals. New Haven: Yale University Press.; Lyman, 1994Lyman, R. L. (1994). Quantitative units and terminology in zooarchaeology. American Antiquity, 59(1), 36-71. doi: http://doi.org/10.2307/3085500
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; Reitz & Wing, 1999Reitz, E. J., & Wing, E. S. (1999). Zooarchaeology (1 ed.). Cambridge, England: Cambridge University Press.; O’Connor, 2000O’Connor, T. (2000). The archeology of animal bones. Texas: Texas A&M University Press.). Dado que ambas análises apresentaram resultados muito similares e, para fins de consistência deste artigo, optamos por apresentar os dados resultantes das análises de NISP2 2 Estudos modernos de referência para a fauna local podem ser encontrados complementarmente em Rossi-Wongtschowski et al. (2014), Siliprandi et al. (2016) e Brenha-Nunes et al. (2016). .

Considerando tanto a quantidade quanto a variabilidade dos vestígios ictiológicos recuperados nas diferentes camadas do Sambaqui do Recreio, dois contextos são observáveis (Figura 2). O primeiro, que corresponde ao período mais antigo da ocupação do sítio, composto pelas camadas IV a II, onde as ocupações são marcadas por episódios mais curtos, separados por camadas de areia estéreis. Este contexto é marcado por uma diversidade menor de espécies e apresenta preferência pelo consumo de tainhas (Mugil sp.) e papa-terras (Menticirrhus sp.).

Figura 2
Frequências relativas de vestígios ictiológicos recuperados no Sambaqui do Recreio. A barras representam porcentagens. Barras de cor verde destacam as três espécies mais abundantes nas amostras analisadas. Linhas horizontais separam as camadas identificadas no sítio.

O período mais recente, caracterizado pela camada I, apresenta um contexto diferente de ocupação no Sambaqui do Recreio. Os vestígios ictiofaunísticos são marcados pela maior variabilidade de espécies, incluindo as preferências por jundiás (Rhamdia sp.), bagres (Genidens sp.), carás (Cichlidae), corvinas (Micropogonias furnieri) e pescadas (Cynoscion sp.), sem que as tainhas e papa-terras tenham sido preteridas (Figura 3).

Figura 3
Vestígios identificados no Sambaqui do Recreio: A) otólito de Pogonias cromis (miraguaia); B) otólito de Micropogonias furnieri (corvina); C) otólito de Menticirrhus sp. (papa-terra); D) otólito de Mugil sp. (tainha); E) otólito de Cynoscion sp. (pescada); F) otólito de Genidens sp. (bagre); G) neurocrânio de Rhamdia sp. (jundiá); H) dentário de Hoplias sp. (traíra); I) pré-maxilar de Cichlidae (cará). Escala = 1 cm.

PESCADORES NA PAISAGEM

A partir dos dados etnoarqueológicos3 3 Pesquisa conduzida desde o ano de 2010 na mesma comunidade. obtidos com pescadores do litoral norte do Rio Grande do Sul, buscamos complementar os dados anteriormente mencionados, apresentando uma interpretação da pesca e do uso da paisagem onde se insere o Sambaqui do Recreio (cf. Silva, 2015Silva, L. A. (2015). Com vento a lagoa vira mar: uma etnoarqueologia da pesca no litoral norte do RS. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 10(2), 537-547. doi: https://doi.org/10.1590/1981-81222015000200016
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). O contexto etnográfico, no qual se obtiveram os dados, é o de pescadores artesanais, que desenvolvem uma pesca de pequena produção mercantil (Diegues, 2004Diegues, A. C. S. A. (2004). A pesca construindo sociedades: leituras em antropologia marítima e pesqueira (1 ed.). São Paulo: NUPAUB-USP.), ou seja, a produção do pescado é realizada dentro dos núcleos familiares e a comercialização é feita nas próprias residências ou em estruturas anexas a elas. Nas águas salobras dos espelhos d’água e nos rios que compõem o rosário de lagoas do litoral norte, as embarcações pequenas, não maiores do que seis metros, seja com motorização ou varejões4 4 Remos de taquara, ver Silva (2017). , marcam a paisagem local. Nestes ambientes de sociabilidade, os pescadores se apropriam dos espaços, constroem seu território e concretizam seus conhecimentos nas vivências com objetos, seres e lugares.

Parte desse conhecimento se estabelece na relação entre o peixe, o material de pesca e a paisagem. A partir de seu engajamento prático, o pescador conhece boa parte das dinâmicas que envolvem os fenômenos climáticos, a água, os peixes e seus hábitos e, a partir deles, confeccionam materiais adequados para suas capturas. O movimento proposto aqui é semelhante, nos permitindo inferências sobre a pesca no contexto do Sambaqui do Recreio, por meio da experiência junto aos pescadores do presente5 5 Considerando-se o contexto etnográfico destacado, o modelo desenvolvido está limitado a análise e interpretação dos dados relativos aos peixes em contextos de águas salobras. Portanto, tainhas e bagres serão abordados dentro dos ambientes estuarinos e doces. Já no caso da espécie papa-terra, não há informações etnoarqueológicas para a trabalhar. .

Os dados ictioarqueológicos evidenciam uma frequência dominante de pesca para tainha, bagre e papa-terra. Esses peixes indicam diferentes estratégias, tanto para o uso de artepescas6 6 Termo utilizado pelos pescadores para designar os materiais de pesca que ‘vão para a água’, isto é, aqueles que estão mediando a relação entre pescador e peixe na superfície fluida. Ver Silva (2019) e Silva e Gaspar (2019). , quanto para os tipos de locais de pesca (pesqueiros) frequentados por estes pescadores. Para este estudo, as artepescas se caracterizam basicamente por redes e anzol, considerando-se que, neste último, possam existir variações importantes, tais como a pesca de caniço com anzol ou os espinhéis, que são sequências de anzóis em uma mesma linha (Silva, 2017Silva, L. A. (2017). Nas cordas, anzóis, redes e gaiolas: seguindo os materiais na pesca artesanal. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, 5(1), 115-128. doi: http://dx.doi.org/10.15210/tes.v5i1.10692
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). Esses materiais, aliados aos diferentes tipos de pesqueiros, podem indicar, por um lado, certa seleção de espécies, ou seja, uma pesca especializada, e, por outro, práticas mais generalistas na busca ao pescado. Portanto, nessa relação entre artepesca, pesqueiro e peixes, podem-se estabelecer diferentes abordagens para a pesca em relação aos grupos de pescadores.

Comumente, tainhas são conhecidas como ‘peixes dotados de uma inteligência diferente dos outros’ (expressão utilizada na pesca local) (Silva, 2017Silva, L. A. (2017). Nas cordas, anzóis, redes e gaiolas: seguindo os materiais na pesca artesanal. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, 5(1), 115-128. doi: http://dx.doi.org/10.15210/tes.v5i1.10692
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). Os pescadores afirmam que, ao perceberem obstáculos ao longo de seus caminhos na água, elas costumam pular, demonstrando toda sua habilidade em fugir da artepesca. Pelo fato de nadarem encardumadas, sempre há aquelas que escapam das redes e outras que acabam presas. Ao longo das observações em campo, notou-se que, no caso da tainha, usam-se exclusivamente as redes para pescá-las. Contudo, ainda que se trate de apenas um tipo de artepesca, o pesqueiro pode indicar diferentes práticas para captura dessa espécie. Quando se trata da pesca em lagoas, a prática mais propícia é a de colocar as redes de acordo com a observação dos ventos e do movimento dos cardumes. Esta última é particularmente interessante, pois, como as tainhas costumam pular para fora d’água durante seu nado, os pescadores observam isso e planejam os pesqueiros com base neste comportamento da espécie. Nas grandes lagoas, isso fornece uma possibilidade importante, ainda mais quando se considera a imprevisibilidade que envolve a pesca (Maldonado, 1994Maldonado, S. C. (1994). Mestres & mares: espaço e indivisão na pesca marítima (2 ed.). São Paulo: Annablume., 2000Maldonado, S. C. (2000). A caminho das pedras: percepção e utilização do espaço na pesca simples. In A. C. Diegues (Org.), A imagem das águas (pp. 59-68). São Paulo: Hucitec.), isto é, todos os riscos de mudança de tempo (atmosférico), das águas e dos peixes.

Por outro lado, a pesca das tainhas também é realizada nos banhados. Esses locais costumam se formar em época de cheia, nas adjacências das lagoas e dos rios. As tainhas que não retornam para o mar, após seu período reprodutivo, permanecem nas águas mais calmas e quentes, sempre buscando o limo – alga – para se alimentar. Os banhados e as áreas mais calmas das lagoas costumam formar concentrações de limo e, por isso, esses locais são boas opções para a pesca da tainha. O pescador, ao ver essa indicação na paisagem, dispõe suas redes nas cercanias, na tentativa de capturar os peixes.

Nesse sentido, a pesca da tainha possui particularidades importantes. A artepesca utilizada é, por excelência, a rede. Os pescadores costumam afirmar que a tainha não é um peixe de fisga, ou seja, não é capturada com artepescas que utilizam anzol. Segundo eles, isso se dá, basicamente, pela impossibilidade de utilizar como isca o limo, principal alimento dessa espécie. Por isso, é necessário o uso das redes, pois elas são artepescas de captura por enrosco. As águas turvas impossibilitam que o peixe enxergue as malhas, acabando preso nelas. Outra particularidade são os pesqueiros utilizados para a captura dessa espécie. No período de vazante7 7 A caracterização desses períodos sazonais, bem como da distribuição dos pesqueiros e da utilização do território de pesca está descrita em Silva (2015). , os pescadores buscam as tainhas conforme o movimento dos cardumes, através da observação, tal como referido. Como o nível das águas está menor, não costumam se formar banhados, portanto, a pesca é exclusivamente feita nas lagoas. Nelas, os pescadores vão observar o movimento dos cardumes e dispor suas redes de acordo com a percepção que possuem das condições do lugar. Já no período das cheias, os pescadores procuram as tainhas nos banhados e nas margens das lagoas, locais que costumam ser menos afetados pelos ventos e tendem a formar concentrações de limo. Nesse sentido, na medida em que mudam as condições atmosféricas, mudam as paisagens, mudam os hábitos do peixe e, consequentemente, as estratégias. A pesca da tainha demanda a habilidade do pescador de conhecer todos esses fenômenos e, através de um único tipo de artepesca – a rede –, buscar o pesqueiro mais adequado, em conformidade com as condições observadas. Nesse caso, os dados indicam uma variação dos pesqueiros e a permanência de materiais e de práticas.

Os bagres tradicionalmente são peixes abundantes e buscados na pesca artesanal do Rio Grande do Sul. A Laguna de Tramandaí é o ponto de entrada dessas espécies e, como aponta Roquette-Pinto (1962 [1906])Roquette-Pinto, E. (1962 [1906]). Relatório da excursão ao litoral e à região das lagoas do Rio Grande do Sul (Publicação da Cadeira de História do Brasil). Porto Alegre: Gráfica da Universidade do Rio Grande do Sul., o cerco dessas espécies assumia contornos de expressão regional. O relato do autor destaca esta importância dos bagres para a economia local, bem como a salga, as redes e as estratégias de cercamento do peixe para comercialização.

A época de reprodução dos bagres costuma ocorrer entre setembro e março, porém estes períodos podem variar segundo as condições atmosféricas e a temperatura da água. De acordo com os pescadores, uma cheia de menor escala8 8 Nos períodos sazonais de cheia e vazante, podem ocorrer algumas inversões. Considerando-se a instabilidade atmosférica, em algumas épocas de vazante, podem acontecer cheias de menor escala e, em épocas de cheia, podem ocorrer secas. Essa instabilidade é um dos aspectos que caracteriza a imprevisibilidade na pesca. pode auxiliar, estendendo o período reprodutivo, e, ao contrário, uma seca intensa pode prejudicar a reprodução dos peixes, tornando esse calendário instável. Para a pesca, podem ser utilizadas redes ou espinhéis em lagoas ou rios. Esta espécie é particularmente encontrada em níveis de maior profundidade, geralmente nos canais de rios ou nas partes mais profundas das lagoas. No caso dos rios, como é vedada a pesca com redes, os pescadores utilizam o espinhel, já nas lagoas são utilizadas as duas artepescas, redes e espinhéis. O dado importante fica por conta das iscas utilizadas para a pesca do bagre. Os lambaris são ‘coringas’ para a pesca, pois, quando utilizados, possibilitam a fisga de diversas espécies, entre elas os próprios bagres, os jundiás e as traíras. Com as tatuíras, entretanto, ocorre o contrário, pois, quando coletadas na beira da praia, são utilizadas especificamente para a pesca de bagres, ainda que sejam capturados jundiás. Quando buscam as tatuíras para isca, os pescadores têm por objetivo a captura dos bagres. Há uma conexão interessante entre as águas salobra e salgada, entre bagres e tatuíras, percebida pelos pescadores; nessa observação, quase sempre eles obtêm sucesso nesse tipo de pescaria.

No caso das redes, é comum que os pescadores procurem os lugares mais profundos das lagoas, colocando costumeiramente o varejão na água para medir a profundidade, que, quando lhes parece adequada, dispõe as redes seguindo a direção do vento. Eis outro dado importante, pois, como as lagoas ficam mais suscetíveis à força do vento, os pescadores precisam utilizá-lo a seu favor, sempre que possível. Por exemplo, caso o vento esteja no sentido sul-norte, o pescador irá colocar suas redes no mesmo sentido, de modo a aproveitar a força para esticar a artepesca. Para recolher a rede, o movimento deve ser ao contrário, pois é preciso manter o rumo da embarcação e conduzi-la, sem passar por cima da rede.

Tal como as tainhas, os bagres deixam ‘sinais’ de sua presença na paisagem e, por meio deles, os pescadores costumam se guiar para garantir a captura dos peixes. Um deles é o cheiro, pois, segundo relatos, o couro dos bagres possui uma ‘gosma’ que exala um odor característico, principalmente quando se trata de cardumes volumosos. Outro sinal comum é quando se observa a nadadeira dorsal dos peixes maiores, ao nadarem próximo à superfície. Apesar destes indicadores, é comum os pescadores estabelecerem pesqueiros de maior produtividade como destinos prioritários. A justificativa para a escolha de determinado lugar é feita de diversas maneiras: “meu pai sempre pescou ali e pegava muito peixe”; “ano passado, com esse mesmo vento, peguei muito bagre nesse lugar”. Há uma relação direta entre o conhecimento prático e um possível retorno a um pesqueiro.

Outra prática a envolver os bagres é a necessidade de cautela para manuseá-los, pois a presença das três esporas (nadadeiras peitorais e dorsais) demanda esse cuidado. Todos os pescadores já tiveram problemas com as esporas os cravando nos pés, nas mãos ou na barriga, seja no momento da limpeza do peixe ou do pescado. Costuma-se dizer que elas são perigosas não apenas pela ferida que provocam, mas pela ardência que geram no local, causada pela referida ‘gosma’. Por isso, a pesca dos bagres exige, além do manuseio adequado das artepescas e do conhecimento das condições de pesca, domínio corpóreo sobre o peixe, isto é, conhecimento sobre onde se deve pegar para dominá-lo adequadamente.

Para a pesca de bagre, são adotadas estratégias materiais diversas, com redes ou espinhéis, porém, em pesqueiros mais específicos, são priorizados os lugares que possuem maior profundidade. A pesca com linhas de mão ou caniços são comuns na região, principalmente nas partes dos rios conhecidas como ‘poços’. Estes locais costumam ter grande profundidade e são procurados por concentrarem bagres de médio e grande porte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O povoamento sambaquieiro no litoral do Rio Grande do Sul está claramente relacionado a uma estratégia de exploração dos ambientes aquáticos. Os dados ictioarqueológicos conhecidos até o momento sugerem uma etapa inicial de ocupação focada em espécies determinadas, cuja disponibilidade possui maior previsibilidade, como tainhas (Mugil sp.) e papa-terras (Menticirrhus sp.). A partir da instalação definitiva dos sítios, as estratégias de pesca passam a um padrão mais generalista. Não se está descartando aqui o apoio contínuo no consumo de moluscos e de caça, cuja importância foi já demonstrada em Ricken et al. (2016)Ricken, C., Herberts, A. L., Wagner, G. P., & Malabarba, L. R. (2016). Coastal Hunter-Gatherers Fishing from the Site RS-AS-01, Arroio do Sal, Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisas, Antropologia, (72), 209-224.. Na realidade, está já bastante consolidada a caracterização das sociedades sambaquieiras enquanto eminentemente pescadoras (Figuti, 1993Figuti, L. (1993). O homem pré-histórico, o molusco e o sambaqui: considerações sobre a subsistência dos povos sambaquieiros. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, 3, 67-80. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.1993.109161
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, 1998Figuti, L. (1998). Estórias de arqueo-pescador: considerações sobre a pesca nos sítios de grupos pescadores coletores do litoral. Revista de Arqueologia, 11(1), 57-70.) e esta é a interpretação que estamos buscando reforçar aqui.

O aproveitamento dos recursos pesqueiros disponíveis no rosário de lagoas do litoral norte, bem como nos banhados e nas lagoas que pontilhavam a planície de cordões litorâneos regressivos em formação, fica evidenciado pela presença das espécies de tainha (Mugil sp.), jundiá (Rhamdia sp.), bagre (Genidens sp.), cará (Cichlidae), corvina (Micropogonias furnieri) e pescada (Cynoscion sp.), identificadas nas diferentes camadas de ocupação do Sambaqui do Recreio.

Estas espécies são exploradas até os dias atuais, e as artepescas utilizadas pelos pescadores artesanais das comunidades do interior das lagoas permitem-nos inferir o uso das redes de espera e de pescas de linha com pesos e anzóis como estratégia prioritária. Associado a estes materiais, é aplicada uma série de estratégias e de conhecimentos baseados no domínio dos hábitos das espécies, na meteorologia e na navegação, que consolidam a vivência destas paisagens construídas socialmente. A pesca é, sem dúvida, um elemento de coesão social, construindo identidades e pertença, desde a pré-história (cf. Wagner & Silva, 2014Wagner, G. P., & da Silva, L. A. (2014). Prehistoric maritime domain and Brazilian shellmounds. Archaeological Discovery, 2(1), 1-5. doi: http://dx.doi.org/10.4236/ad.2014.21001
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).

Em linhas gerais, cada espécie parece indicar estratégias de pesca diferentes. As tainhas estão relacionadas com a pesca de rede e em pesqueiros de diferentes tipos. Já a pesca dos bagres aponta para estratégias materiais mais generalistas, com uso de redes, espinhéis e linhas de mão, bem como de pesqueiros mais específicos, sempre considerando a profundidade destes locais. A pesca de cada uma dessas espécies dialoga com artepescas, pesqueiros e paisagem. Observa-se que as condições atmosféricas, aliadas aos comportamentos dos peixes, e os pesqueiros conduzem ao uso de diferentes práticas materiais para garantir o acesso ao pescado.

Esse conhecimento dos fenômenos que envolvem a pesca permite ao pescador o acesso a peixes e a paisagens mediado pela materialidade (Silva, 2019Silva, L. A. (2019). A fluidez das relações materiais: uma arqueologia com os pés na água. Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira, 32(1), 108-128. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v32i1.620
https://doi.org/10.24885/sab.v32i1.620...
; Silva & Gaspar, 2019Silva, L. A., & Gaspar, M. D. (2019). Anzóis, redes e pescadores: reflexões sobre a arqueologia da pesca. Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira, 32(2), 4-15. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v32i2.684
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). Nesse sentido, as artepescas, bem como os demais materiais cotidianos, possibilitam a construção das sociedades pescadoras através de viés associativo. Pescadores, materiais, peixes e paisagens encontram-se imbricados e misturados de forma indissolúvel, compondo o ethos do pescador. Portanto, para compreender a pesca enquanto um fenômeno que engendra relações sociais profundas, é preciso observar a relacionalidade de todos os fatores ora destacados.

Nossa proposta de desenvolver uma interpretação etnoarqueológica para os dados obtidos nas escavações do Sambaqui do Recreio surgiu da necessidade de compreensão sociológica em relação à figura do pescador nos sambaquis. Através da literatura socioantropológica e da arqueologia dos grupos pescadores-coletores dos sambaquis, entendemos que é necessário avançar nessa linha de estudo, enfatizando o papel crucial da materialidade na construção das sociedades pescadoras. Novas tentativas interpretativas precisam ser feitas para que possamos caracterizar melhor os processos identitários expressos materialmente, que deram origem às sociedades pescadoras-coletoras pré-históricas.

  • 1
    As datações foram calibradas através do aplicativo online Oxford Radiocarbon Accelerator Unit (University of Oxford, n.d.University of Oxford. (n.d.). Oxford Radiocarbon Accelerator Unit. [Aplicativo]. Oxford, UK. Recuperado de https://c14.arch.ox.ac.uk/
    https://c14.arch.ox.ac.uk/...
    ). Para a aferição das datações, foi aplicada a curva de calibração intcal13.
  • 2
    Estudos modernos de referência para a fauna local podem ser encontrados complementarmente em Rossi-Wongtschowski et al. (2014)Rossi-Wongtschowski, C. L. D. B., Siliprandi, C. C., Brenha, M. R., Gonsales, S. A., Santificetur, C., & Vaz-dos-Santos, A. M. (2014). Atlas of marine bony fish otoliths (Sagittae) of Southeastern - Southern Brazil Part I: Gadiformes (Macrouridae, Moridae, Bregmacerotidae, Phycidae and Merlucciidae); Part II: Perciformes (Carangidae, Sciaenidae, Scombridae and Serranidae). Brazilian Journal of Oceanography, 62, 1-103. doi: https://doi.org/10.1590/S1679-875920140637062sp1
    https://doi.org/10.1590/S1679-8759201406...
    , Siliprandi et al. (2016)Siliprandi, C. C., Brenha-Nunes, M. R., Rossi-Wongtschowski, C. L. D. B., Santificetur, C., & Conversani, V. R. M. (2016). Atlas of marine bony fish otoliths (sagittae) of Southeastern-Southern Brazil Part III: Clupeiformes (Clupeidae, Engraulidae, Pristigasteridae). Brazilian Journal of Oceanography, 64, 1-22. doi: https://doi.org/10.1590/S1679-875920150988064(sp1)
    https://doi.org/10.1590/S1679-8759201509...
    e Brenha-Nunes et al. (2016)Brenha-Nunes, M. R., Santificetur, C., Conversani, V. R. M., Giaretta, M. B., Rossi-Wongtschowski, C. L. D. B., & Siliprandi, C. C. (2016). Atlas of marine bony fish otoliths (sagittae) of Southeastern-Southern Brazil Part IV: Perciformes (Centropomidae, Acropomatidae, Serranidae, Priacanthidae, Malacanthidae, Pomatomidae, Carangidae, Lutjanidae, Gerreidae and Haemulidae). Brazilian Journal of Oceanography, 64, 23-75. doi: https://doi.org/10.1590/S1679-875920161100064(sp1)
    https://doi.org/10.1590/S1679-8759201611...
    .
  • 3
    Pesquisa conduzida desde o ano de 2010 na mesma comunidade.
  • 4
    Remos de taquara, ver Silva (2017)Silva, L. A. (2017). Nas cordas, anzóis, redes e gaiolas: seguindo os materiais na pesca artesanal. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, 5(1), 115-128. doi: http://dx.doi.org/10.15210/tes.v5i1.10692
    https://doi.org/10.15210/tes.v5i1.10692...
    .
  • 5
    Considerando-se o contexto etnográfico destacado, o modelo desenvolvido está limitado a análise e interpretação dos dados relativos aos peixes em contextos de águas salobras. Portanto, tainhas e bagres serão abordados dentro dos ambientes estuarinos e doces. Já no caso da espécie papa-terra, não há informações etnoarqueológicas para a trabalhar.
  • 6
    Termo utilizado pelos pescadores para designar os materiais de pesca que ‘vão para a água’, isto é, aqueles que estão mediando a relação entre pescador e peixe na superfície fluida. Ver Silva (2019)Silva, L. A., & Gaspar, M. D. (2019). Anzóis, redes e pescadores: reflexões sobre a arqueologia da pesca. Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira, 32(2), 4-15. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v32i2.684
    https://doi.org/10.24885/sab.v32i2.684...
    e Silva e Gaspar (2019)Silva, L. A., & Gaspar, M. D. (2019). Anzóis, redes e pescadores: reflexões sobre a arqueologia da pesca. Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira, 32(2), 4-15. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v32i2.684
    https://doi.org/10.24885/sab.v32i2.684...
    .
  • 7
    A caracterização desses períodos sazonais, bem como da distribuição dos pesqueiros e da utilização do território de pesca está descrita em Silva (2015)Silva, L. A. (2015). Com vento a lagoa vira mar: uma etnoarqueologia da pesca no litoral norte do RS. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 10(2), 537-547. doi: https://doi.org/10.1590/1981-81222015000200016
    https://doi.org/10.1590/1981-81222015000...
    .
  • 8
    Nos períodos sazonais de cheia e vazante, podem ocorrer algumas inversões. Considerando-se a instabilidade atmosférica, em algumas épocas de vazante, podem acontecer cheias de menor escala e, em épocas de cheia, podem ocorrer secas. Essa instabilidade é um dos aspectos que caracteriza a imprevisibilidade na pesca.
  • Wagner, G. P., Silva, L. A., & Hilbert, L. M. (2020). O Sambaqui do Recreio: geoarqueologia, ictioarqueologia e etnoarqueologia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(2), e20190084. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0084

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2019
  • Aceito
    16 Mar 2020
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