Acessibilidade / Reportar erro

Educação Wauja no contexto da reclusão pubertária

Education in the context of Wauja puberty seclusion

Resumo

Este artigo apresenta a produção da pessoa Wauja a partir do estudo específico das práticas da reclusão feminina (associada à primeira menstruação) e masculina da comunidade Wauja, do Alto Xingu. Os relatos e as descrições apresentados resultam da pesquisa etnográfica e da experiência de vida do autor junto à sua comunidade, na aldeia Ulupuwene, Território Indígena do Xingu (TIX), incluindo observação, participação e realização de entrevistas. Discute-se as etapas, as regras e os perigos da reclusão, os processos de aprendizado dos/as jovens durante este período e a produção do corpo, da beleza, da saúde e da alegria, a partir da história de vida das pessoas da comunidade Wauja. Apresentando os dados coletados, remete-se para estudos de caso sobre a prática da reclusão no Alto Xingu e na Amazônia. O autor coloca em evidência como e por que os Wauja entendem a reclusão pubertária como a base de educação e da formação social das pessoas, argumentando que é através dela que se produz, ao mesmo tempo, corpos adultos e mestres da cultura do seu povo.

Palavras-chave
Povo Wauja; Reclusão pubertária; Educação social; Produção do corpo beleza; saúde e alegria

Abstract

This article examines the production of adult personhood among the Wauja of the Upper Xingu by describing female and male seclusion practices (the former associated with first menstruation). The reports and descriptions presented are the result of ethnographic research conducted by the author among his community in the Ulupuwene village, Xingu Indigenous Territory, and include participant observation and interviews. The phases, rules, and dangers of seclusion are discussed, along with the learning processes among the young people during this period and the production of adult corporality, beauty, health, and happiness through the life histories of the Wauja community. The collected ethnographic data are then contrasted with other ethnographic texts and descriptions and the anthropological literature on seclusion practices in the Upper Xingu region and elsewhere in the Amazon. The author sheds light on how and why the Wauja understand the puberty seclusion process to be the foundation of social production of adult individuals, arguing that this process simultaneously produces adult bodies and masters of the traditional culture.

Keywords
Wauja people; Seclusion; Education; Production of adult bodies, beauty; health and happiness

INTRODUÇÃO

O povo Wauja é habitante do Território Indígena do Xingu (TIX)1 1 Esse território, conhecido como Terra Indígena do Xingu, tem 16 povos diferentes, divididos entre quatro regiões, que se chamam Alto, Médio, Baixo e Leste Xingu. Em cada umas dessas regiões, residem diversas etnias: no Alto Xingu, há onze etnias: Wauja, Mehinaku, Yawalapiti, falantes de línguas Aruak, Aweti, Kamaiurá, falantes da língua Tupi, Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nafukuá, Naruvotu, falantes de língua Karib, e Trumai, falantes da língua isolada ou língua Trumai. Também há o povo Ikpeng (Txicão), falante de família do tronco linguístico Karib e que se localiza no Médio Xingu. Além disso, há outros povos que ficam no Baixo Xingu, que são: Kawaiweté (Kaiabi), falantes de família do tronco linguístico Tupi-Guarani, e Yudjá (Juruna), falantes da família linguística Juruna ou Tupi. Kisedje (Suiá) e Tapayuna são falantes de língua Jê ou Macro-Jê e se situam no Leste Xingu. Esses povos indígenas fazem parte do Xingu, tendo suas respectivas culturas, cada um com seu modo de viver nas comunidades ou nas aldeias. , em Mato Grosso, falante de uma língua pertencente à família Aruwak. Sua base de alimentação é a pesca e a caça, além de beiju e mingau de polvilho de mandioca. No TIX, existem seis aldeias Wauja (Piyulaga, Ulupuwene, Tamitatoalo, Topepeweké, Tsekuru e Álamo), que se localizam na região do Alto Xingu, na margem do rio Batovi, nos municípios de Gaúcha do Norte e de Paranatinga. A aldeia Piyulewene está situada na margem do rio Karl von den Steinen, na região do Médio Xingu, no município de Feliz Natal. Todas as aldeias têm formato circular e, no centro, há a kuwakuho (casa dos homens). Além disso, algumas delas têm escolas, Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI) e casa das associações locais. Nessas localidades, os Wauja residem e mantêm suas práticas culturais tradicionais e vivem as suas vidas.

Assim, o objetivo deste artigo é apresentar a prática do processo da reclusão pubertária da sociedade Wauja, especialmente a reclusão feminina, e também os aprendizados que os jovens adquirem por meio dessa prática.

A reclusão pubertária é uma prática cultural do povo Wauja da qual participa todo/a jovem que tenha por volta de doze a quinze anos de idade. Nessa altura, as famílias colocam os seus filhos na reclusão. Para as meninas, a reclusão se inicia após a primeira menstruação.

Nesta prática, os/as jovens envolvem os seus corpos para se tornarem homens e mulheres fisicamente, por meio de escarificação do corpo e da ingestão de remédios, como chá de raízes de plantas e alimentos, tal como beiju, mingau, peixe, entre outros. Assim eles/as amarram em si adereços de braçadeiras de fio de algodão, joelheiras e tornozeleiras, para os braços e as panturrilhas crescerem e ficarem belos. Portanto, a reclusão para o povo Wauja é uma prática educativa dos jovens Wauja e dos povos do Alto Xingu. É nesta prática que os jovens se preparam para apropriar-se das funções sociais dentro de sua própria comunidade, ganhando, assim, muito aprendizado para a vida adulta. Mais adiante, a própria sociedade Wauja define que a prática é indispensável na vida dos jovens para que tenham bom desenvolvimento de formação social e aprendizagem para entrarem na fase da vida adulta.

As informações sobre a reclusão pubertária dos Wauja foram obtidas por meio do diálogo com as pessoas da comunidade e também de observação, participação, entrevista e consulta a artigos e livros que tratam sobre este tema. No início deste trabalho, reuni as pessoas no pátio da aldeia Ulupuwene, onde realizei minha pesquisa e apresentei o projeto. Discutimos juntos o assunto, as pessoas aprovaram a ideia e, em seguida, houve o começo da coleta das informações para a pesquisa. Durante o estudo, entrevistei doze mulheres, com idade entre quinze e sessenta anos, e seis homens, entre quarenta e sessenta e cinco anos. Dez mulheres e cinco homens são da aldeia Ulupuwene; uma mulher e um homem são da aldeia Piyulewene; e uma mulher é da aldeia Piyulaga. Devido à pandemia de coronavírus (COVID-19), que acometeu o Xingu em 2020, não consegui chegar às aldeias Piyulewene e Piyulaga, apenas ouvi os relatos de áudio dessas pessoas, que foram gravados pela família, quando meu irmão e minha sobrinha foram a essas aldeias visitar suas famílias. A coleta de informação aconteceu por meio de visitas às famílias, feitas de casa em casa, entrevista livre e acompanhamento do processo de reclusão das meninas. Porém, antes de fazer essas atividades, pedi autorização das pessoas entrevistadas e das famílias das meninas reclusas para gravar áudios e tirar fotografias. Desta forma, consegui coletar os dados e me deparei abertamente com a questão de que, na prática da reclusão, há mudança de regras entre os Wauja.

PAYÃKUWAKÍ2 2 Payãkuwakí é a palavra em Wauja que mais se aproxima da expressão ‘reclusão pubertária’. Na língua Wauja, sabe-se que esta expressão não cobre totalmente esse significado. A expressão que utilizo – payãkuwakí – tem como tradução literal ‘ficar em casa’ (payãku ‘dentro de casa’ e kuwakí ‘fazer reclusão’). O povo Wauja entende que, na tradição, somente o adolescente precisa ficar em casa durante a transição para a vida adulta. Por isso, compreendi que a palavra payãkuwakí seria a mais adequada para traduzir a expressão ‘reclusão pubertária’, que encontrei em vários autores que tratam sobre esse tema no Xingu, como Viveiros de Castro (1979), Tavares (1994) e Novo (2018), que abordaram a reclusão pubertária dos povos Kamaiurá e Kalapalo, respectivamente. : A RECLUSÃO PUBERTÁRIA WAUJA

O rito de passagem de reclusão pubertária é realizado desde a ancestralidade entre os Wauja e os povos alto-xinguanos. É nesse processo que as novas gerações Wauja recebem profundos ensinamentos das suas famílias, sendo, além disso, um lugar de formação social e de construção da pessoa Wauja (Figura 1). Esta prática de reclusão pubertária é considerada uma fase intermediária da vida e da educação Wauja através da qual as pessoas terão corpos bonitos e saudáveis. Além disso, aperfeiçoam o conhecimento pessoal e coletivo, ou seja, são socializadas entre a comunidade para se tornarem membros educados e mestres da cultura Wauja.

Figura 1
As moças reclusas estão se preparando para se apresentar no final do ritual Kaumãie, quando levam as castanhas de pequi para cada cacique convidado que participou do Kaumãi da aldeia Piyulaga, Waurá.

A reclusão é realizada não apenas para que os/as jovens em puberdade (ekewẽitsa, em português, trocar o corpo, e asixata pamonapitsi, mudar o corpo) aprendam a cultivar o bem-estar, a alegria e a beleza do corpo, mas, sobretudo, para que recebam formação de vida e que se tornem conhecedores da tradição Wauja. Nesta prática, os Wauja aprofundam suas aprendizagens. No caso das mulheres, elas adquirem conhecimentos sobre as atividades que costumam realizar na vida da comunidade, como a tecelagem de esteiras e da rede para dormir, bem como a fiação do algodão e do fio de buriti. O mesmo acontece com o homem, quando, em reclusão, aprende todas as atividades e os conhecimentos exclusivos ao gênero masculino. Ainda que o povo Wauja ensine seus filhos e suas filhas desde criança, é importantíssimo realizar a reclusão no período da puberdade para preparar os jovens para as práticas quotidianas de subsistência e para os rituais. Após a reclusão, os jovens estão preparados para formar sua família e repassar seus conhecimentos.

Na tradição do povo Wauja, os pais e as mães decidem colocar os seus filhos em reclusão assim que chegam à idade da puberdade e, no caso das meninas, quando acontece a primeira menstruação, por volta dos onze ou doze anos de idade.

Como tive oportunidade de abordar num artigo recente (A. Waurá, 2020Waurá, A. (2020). Revisitando a arte de fiação Wauja: algodão, beleza e saúde. Emblemas, 17(1), 60-72. https://periodicos.ufcat.edu.br/emblemas/article/view/63148
https://periodicos.ufcat.edu.br/emblemas...
), a reclusão é um período de passagem e uma prática de construção do corpo dos/as jovens. Esta construção se dá por meio do consumo de chás eméticos e restrições alimentares.

Novo (2018)Novo, M. P. (2018). “Esse é o meu patikula”: uma etnografia do dinheiro e outras coisas entre os Kalapalo de Aiha [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9812
https://repositorio.ufscar.br/handle/ufs...
apresenta o caso dos Kalapalo, povo falante de língua Karib, que integra, junto com os Wauja e outros povos, o sistema cultural alto-xinguano:

Durante a reclusão, além do uso de remédios e eméticos, os jovens passam por sessões de escarificação, os meninos amarram os antebraços e as meninas amarram abaixo dos joelhos e acima dos tornozelos, com a intenção de que seus corpos (e, mais especificamente, estas partes dos corpos) cresçam, ‘engordem’. Novamente são impostas restrições alimentares, agora, especialmente ao próprio recluso, que deve abster-se de certos alimentos que desagradam aos itseke donos dos remédios utilizados por eles. O descumprimento dessas restrições pode provocar seu adoecimento e, em alguns casos, até mesmo sua morte

(Novo, 2018Novo, M. P. (2018). “Esse é o meu patikula”: uma etnografia do dinheiro e outras coisas entre os Kalapalo de Aiha [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9812
https://repositorio.ufscar.br/handle/ufs...
, pp. 98-99).

As práticas de reclusão Kalapalo têm semelhanças com as dos Wauja, como a saída da reclusão, o tempo de duração e a amarração de fio de algodão nos corpos. Porém, há diferenças nas regras e nos remédios que se tomam.

Viveiros de Castro (1979)Viveiros de Castro, E. (1979). A fabricação do corpo na sociedade xinguana. Boletim do Museu Nacional, Série Antropologia, (32), 40-49. também contribui para a explicação sobre o que é a reclusão para os povos do Xingu, a partir de sua experiência com os Yawalapiti:

. . . Toda reclusão é sempre concebida, para os Yawalapiti, como uma mudança substantiva do corpo. Fica-se recluso, dizem, para ‘trocar o corpo’, ‘mudar o corpo’. Não apenas para isso, é certo: para formar, também, ou reformar, a personalidade ideal-adulta, sobretudo no caso da reclusão pubertária, a mais importante.

O complexo da reclusão é, na verdade, um aparelho de construção da pessoa xinguana: é através dele que os papéis sociais são assumidos. Portanto, que o idioma da reclusão seja sobretudo um idioma da corporalidade, isso nos indica o papel central que a imagem do corpo desempenha na elaboração da persona xinguana

(Viveiros de Castro, 1979Viveiros de Castro, E. (1979). A fabricação do corpo na sociedade xinguana. Boletim do Museu Nacional, Série Antropologia, (32), 40-49., p. 44).

As práticas associadas à reclusão ajudam os adolescentes reclusos a engordar e crescer corporalmente. O trabalho/manejo do corpo funciona como uma produção da pessoa Wauja. Nesse sentido, vale a pena mencionar o caso dos Krahô, estudado por Lima (2013)Lima, A. G. M. (2013). Uma biografia do Kàjre, a machadinha Krahô. In J. R. S. Gonçalves, R. S. Guimarães & N. P. Bitar (Orgs.), A alma das coisas. Patrimônios, materialidade e ressonância (pp. 185-210). Ed. Mauad/FAPERJ., que aponta a identificação entre objeto e pessoa:

[A] ação ritual é orientada fundamentalmente para a fabricação dos corpos de pessoas humanas, a noção de artefato se estende à construção das pessoas, assim como esta informa a concepção de objetos. Pessoas e objetos são, sobretudo, a materialização de um conhecimento incorporado, sendo o corpo um modelo da relação com outro

(Lima, 2013Lima, A. G. M. (2013). Uma biografia do Kàjre, a machadinha Krahô. In J. R. S. Gonçalves, R. S. Guimarães & N. P. Bitar (Orgs.), A alma das coisas. Patrimônios, materialidade e ressonância (pp. 185-210). Ed. Mauad/FAPERJ., p. 192).

De um modo geral, a duração da reclusão pubertária entre os Wauja depende da vontade da família, que pode durar entre um, dois ou mais anos, tanto para o homem quanto para a mulher. Mas existem diferenças entre gêneros, como explica a senhora Kalupuku Waurá (comunicação pessoal, 2020):

O homem sempre passa muitas vezes na reclusão e a mulher passa só uma vez na reclusão. É por isso que algumas mulheres decidem que as suas filhas precisam de mais tempo na reclusão; outras mulheres decidem que as filhas precisam de menos tempo na reclusão e deixam as filhas sair cedo da reclusão. Depois, elas nunca vão voltar novamente para a reclusão; só os homens é que voltam muitas vezes para reclusão; as mulheres não!

A reclusão para os Wauja está associada ao processo de ekewẽitsa/asixata pamonapitsi pelo qual passam os adolescentes para ficarem bonitos. Caso o rapaz ainda não tenha alcançado a transformação corporal que as famílias desejam, ele pode voltar à reclusão. Quando o rapaz consegue ekewẽitsa/asixata pamonapitsi na primeira reclusão, não precisa voltar, uma vez que ele atingiu o objetivo da reclusão.

O período de reclusão se encerra quando os jovens cumpriram o tempo definido pela família. Porém, os/as jovens reclusos/as não saem de qualquer jeito. Sempre saem nas cerimônias, principalmente no Kaumãi3 3 O Kaumãi é uma cerimônia que reúne os povos alto-xinguanos, como Aweti, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nafukuwa,Yawalapiti e Wauja. Trata-se de um ritual em memória dos finados, sendo conhecido na liguagem do povo Kamaiurá Kwarup e, na língua Wauja, é chamado Kaumãi. , na festa das mulheres Yamurikumã, dentre outras realizadas pela comunidade Wauja. Durante estas festas, os/as jovens reclusos/as se apresentam dançando, cantando ou lutando kapí (luta corporal ‘Huka-Huka’), durante ou no encerramento do Kaumãi. Depois desse evento, os/as jovens saem da reclusão e voltam à vida normal.

Como destaca Sérgio Corrêa Tavares:

. . . geralmente as meninas casam-se logo em seguida [da saída da reclusão], isto quando existem homens disponíveis [ou quando têm noivo] para o casamento na Aldeia, caso contrário continuam [solteiras] vivendo na casa de seus pais. Já os meninos, ao final da reclusão, assumem as atividades sociais da Aldeia, no sentido de engajar-se nos papéis cerimoniais que terão que desempenhar na vida social

(Tavares, 1994Tavares, S. C. (1994). A reclusão pubertária nos Kamayurá de Ipavu - um enfoque biocultural [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas]. https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994.79860
https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994....
, pp. 7-8).

O mesmo ocorre com os rapazes, que, quando saem da reclusão, estão prontos para se casar.

EDUCAÇÃO TRADICIONAL WAUJA: RELATO NA PRIMEIRA PESSOA

Apresento, aqui, uma breve descrição da minha experiência pessoal de aprendizagem seguindo os métodos da educação tradicional Wauja, como participante e observador do processo de reclusão pubertária.

As crianças Wauja começam a aprender os costumes bem cedo, junto com as suas famílias e comunidades. Passei por este processo de aprendizagem entre a minha família na aldeia, nos passeios, nas pescarias, nos trabalhos e na vivência na comunidade Wauja. Cresci com a família e fui, cada vez mais, acompanhando as atividades, praticando-as e gostando de participar da tradição do povo Wauja. Quase pratiquei todos os conhecimentos, mas algumas práticas e saberes tradicionais não aprendi. Por exemplo, não experimentei tocar kawoká (flauta sagrada), kawokátãi (flautinha), nem aprendi a cantar as músicas do Kaumãi e de outros rituais.

A minha reclusão aconteceu em 1999, quando tinha 16 anos de idade. Meus pais falaram comigo, me consultando sobre a realização da reclusão. Como estávamos todos de acordo, meu pai me explicou o nome da planta, me indicou o local para buscá-la e como tirar as suas raízes para preparar o chá emético, iniciando a minha passagem pela reclusão. No dia seguinte, às dez horas da manhã, fui buscar munipitsapá (cipó do mato). Peguei a enxada e o facão, fui até o local onde estava o cipó, busquei as raízes, cortei em pedaços, as amarrei e voltei para a casa. A minha mãe pediu para guardá-las em lugar seguro, para que os meus irmãos mais novos não mexessem. No final da tarde, na hora do banho, minha mãe aproveitou e trouxe água na panela, para preparar o chá emético. Deixou a panela separada das outras e avisou aos meus irmãos para que não mexessem na água.

Minha mãe fez o preparo do chá: acendeu a fogueira, pegou a panela de 40 litros, colocou a água dentro dela e depois as raízes, deixando cozer o ataga (chá de raíz e folha) por aproximadamente 15 a 20 minutos. Depois de pronto, o chá ficou esfriando em lugar seguro durante a noite. Ao amanhecer, às 5 horas da manhã, minha mãe foi acender a fogueira para esquentar um pouco o chá emético, para eu poder tomar em seguida. Depois de quente, minha mãe e meu pai me chamaram para tomar o chá de raízes. Levantei-me da minha rede de dormir, sentei-me em cima do banco de madeira, peguei a cuia, comecei a tomar o ataga repetidamente, até tomar tudo. Fiquei descansando enquanto o meu pai preparava mais chá, para que eu tomasse mais tarde.

Quando ficou pronto, meu pai e minha mãe carregaram a panela da fogueira, esfriaram o chá e logo me chamaram para tomá-lo. Tomei todo o chá. Consegui terminar lá pelas cinco horas da tarde e fui me deitar na rede de dormir porque fiquei muito cansado, tonto, com dor de cabeça e com muita fome, mas cumpri a regra e não tomei nenhum mingau de polvilho, nem comi beiju. Dormi sem comer nada. Enquanto estava tomando o chá emético, meus pais me orientavam para seguir a regra, explicando como funciona o efeito das raízes no corpo da pessoa. Na manhã do dia seguinte, me liberaram para comer beiju, mingau, peixe e outros alimentos. Podia comer apenas os alimentos específicos da dieta do rito de passagem de reclusão pubertária que eram oferecidos pelo meu pai e pela minha mãe.

Os meus pais fizeram uma área de resguardo, que se chama sepú4 4 Sepú é o nome do quarto onde o rapaz ou a moça realizam a reclusão, se preparando para serem grandes conhecedores da cultura tradicional. O sepú é feito de madeira, galho de buriti (pulu) ou pedaço de palha de buriti. Hoje em dia, o pessoal está utilizando muitos lençóis kajao pa para o sepú. A palavra sepú significa na língua Wauja, além de quarto, também proteção e esconderijo do rapaz ou da moça recluso/a. , para que eu ficasse em reclusão. Lá, eu ficava sentado, fazendo os trabalhos que os jovens reclusos fazem, como o cesto de carregar mandioca, entre outros serviços. Sempre pediam para não sair e cumprir as orientações que me estavam dando. Eu ficava no quarto e somente saía para fazer as necessidades, ao final da tarde, no escuro, para que o pessoal de casa e a comunidade não me vissem. Apenas meus pais e meus irmãos pequenos me viam e me acompanhavam quando saía ao final do dia para fazer as necessidades. Este era o dia a dia da reclusão. Fiquei oito meses nesta etapa, até ao mês de agosto, durante o Kaumãi na aldeia Kuikuro. Lá, me apresentei lutando kapí junto com o pessoal Wauja e, na volta, saí da reclusão. Fiquei apenas oito meses na reclusão porque adoeci por ter comido a comida contaminada pelo sangue da mulher menstruada. Durante minha reclusão, cumpri a regra e pratiquei as atividades masculinas, recebi os conselhos de meu pai, de minha mãe e de meus avós. Tomei erva emética o dia inteiro, seguindo as decisões de meus pais. Cada família decide a duração da reclusão de seus filhos homens e mulheres e, também, quando tomar os eméticos. Eu aprendi muitas coisas durante a minha reclusão pubertária e me dediquei bastante para cumprir o processo de reclusão. Meu pai me escarificava semanalmente e passava remédio de raiz de planta para eu ficar forte fisicamente. Também tomava mingau o dia inteiro, comia peixe cozido, pirão de peixe sem sal de aguapé e pimenta e, além disso, tomava puyalu (raiz doce).

Quando o rapaz e a moça passam pela reclusão, devem ter grande responsabilidade, dedicação e coragem para suportar a regra e, principalmente, a escarificação do corpo e a dieta alimentar.

KITSÍMÃI MAYUMEKẼTO YUMEKÉNO: A PRIMEIRA MENSTRUAÇÃO DA MENINA

Para os Wauja, a primeira menstruação da menina inicia a reclusão, processo em que ela se transforma em mulher adulta, bonita, e se prepara para ser uma mulher Wauja fisicamente capaz de exercer o trabalho e de abraçar a responsabilidade da família atual e da futura. É na reclusão pubertária que ela adquire muitos aprendizados. Na noção Wauja, quando a menina tem a sua primeira menstruação, não é mais yamukutai (menina), pois ela entra na fase adulta, tornando-se yamukutopalu (moça) através da reclusão. Nesse sentido, o povo Wauja considera a menina reclusa como yamukutopalu. O mesmo acontece com o menino que está passando pela reclusão e não vai ser considerado yamukutai (menino); após a reclusão, é considerado yamukutopá ou ataga owekeho (rapaz ou rapaz recluso).

Apresento, agora, dois relatos das anciãs Kuweniru Waurá e Kalupuku Waurá sobre a primeira menstruação e a reclusão da menina Wauja:

Assim que a menina menstrua, é [carregada no colo] banhada, levada para a sua rede de dormir e dão o kuwapixato 5 5 Kuwapixato é um artefato de fuso para fiar algodão que também é usado na primeira menstruação da menina Wauja. Esse material é feito de madeira kanala (madeira buritirana), yalapanã (madeira de árvore), pulata (madeira de árvore), casca de jabuti e tracajá. na mão dela, para usar, esfregando o seu corpo com o kuwapixato [quando precisar]. No dia seguinte, ela toma erva medicinal, [também] a mãe dá banho nela, lava o corpo e os cabelos dela com o yamaká [raíz de uma planta], pronto! Depois, ela jejua e se senta no seu quarto em casa, seguindo a regra de reclusão. Enquanto ela continua menstruada, não vai comer o peixe até que acabe de fluir o sangue, depois o pessoal a libera para comer peixe. [Nessa cerimônia de liberação para comer peixe] Ela recebe um novo nome, trocando o nome da infância dela, porque ela entra na fase da mulher adulta e assim ela recebe o novo nome da fase de adulta dela. Assim é a regra para a primeira menstruação da menina

(Kuweniru Waurá, comunicação pessoal, 2020).

[Quando] a menina [deu primeiro sangue menstrual na vida, ela segue regra] tomar ataga, para iyũku [engordar, crescer o corpo] durante a sua reclusão, ela amarra as suas joelheiras, para ela trocar o seu corpo, para não continuar do jeito que estava antes, na sua infância e adolescência. Para ela se preparar como mulher antes de sair e ensaiar quando tiver a festa cultural, para se apresentar e dançar com o pessoal... É por isso que o pessoal coloca a sua filha na reclusão; todo mundo faz isso, isso é nossa tradição!

(Kalupuku Waurá, comunicação pessoal, 2020).

De acordo com os relatos das anciãs, quando a menina atinge os 11 a 12 anos de idade, e as famílias sabem que se aproxima o momento de ela ter a primeira menstruação, a aconselham e explicam sobre a regra deste evento na tradição Wauja, para que a menina fique atenta com o que vai acontecer com ela durante alguns dias, para também seguir a orientação da mãe, da avó e da tia. As famílias também ficam atentas, aguardando este evento, sabendo que pode acontecer dali a alguns dias em qualquer lugar, no pátio da aldeia, nos trabalhos, nos passeios, nas brincadeiras ou em casa.

Quando a menina tem sua primeira menstruação, imediatamente avisa as suas famílias, principalmente a sua mãe, ou alguém que está perto dela. Ao mesmo tempo, a menina deve ficar quieta, parada, sentada no local, esperando a família vir buscá-la e carregá-la no colo. Enquanto isso, alguém está gritando e avisando a comunidade inteira sobre o acontecimento, chamando as mulheres para irem até a casa da menina para pegar alguns objetos que a família e a mãe da menina estão oferecendo no momento da primeira menstruação. Então, a menina é carregada até casa e deixada em cima do banco de madeira no centro de casa, enquanto as mulheres da aldeia vão chegando.

Logo a mãe, as tias e avós dão alguns colares de miçangas, cerâmicas e outros objetos que desejam oferecer de presente pela menstruação da filha6 6 Esse oferecimento dos objetos na primeira menstruação da menina Wauja significa que as famílias estão comemorando e demonstrando felicidade nesse momento em que a filha vai se tornar uma mulher adulta. Lembrando que ela vai passar pela reclusão, transformando-se corporalmente em uma mulher bonita. É nesse sentido que a mãe e o pai, ou a família, oferecem presentes para as pessoas que se juntaram com a família para a comemoração da primeira menstruação. . Ao terminarem de presentear, as mulheres dão banho na menina na presença das pessoas que estão em casa e, depois disso, a carregam e a colocam na sua rede de dormir para descansar e fazer jejum. Ao mesmo tempo, as famílias e os parentes estão aconselhando a menina a seguir a regra de menstruação e a respeitar o costume Wauja. Logo, a mãe e a avó pegam o kuwapixato e o colocam na mão direita da menina, para que ela use quando precisar esfregar o seu corpo, assim que tiver coceira. A menina jejua o dia inteiro e a noite, deitada na rede de dormir, só se levanta quando tem necessidade, fazendo-o bem devagar e andando lentamente para sair da casa.

Posteriormente, as famílias improvisam um quarto para a menina ficar durante a reclusão e fazem em casa um banheiro para ela, com pedaço de yanato (bambu) e outras plantas, para que ela possa urinar. Quando ela precisa defecar, é necessário ir longe da casa, no mato. No dia seguinte, de manhã cedo, a mulher que deu banho na menina no momento da primeira menstruação chama as mulheres da aldeia para irem à casa dela levando a ataga para ela tomar. A menina toma a erva medicinal e vomita várias vezes, tirando a sujeira pãitsixutsa (dentro de si ou limpando o seu estômago).

Depois de tomar a ataga, a menina volta para a rede de dormir para se deitar novamente, até cumprir a regra da menstruação. No mesmo dia, à tarde, a mãe da menina prepara o topukaga7 7 Topukaga é um tipo de mingau feito de massa de polvilho de mandioca com água fervida, meio gelatinoso, sendo depois esfriado, quando está pronto para tomar. Topukaga é um mingau específico para jovens em reclusão ou para os primeiros dias de alimentação de pessoa doente, logo após o jejum. . É o primeiro mingau oferecido para a menina depois que menstruou. A partir deste momento, ela pode comer a comida tradicional, como beiju e mingau de polvilho, mas, se ainda estiver menstruada, não pode comer peixe, apenas carne de caça, beiju, mingau de polvilho e outras comidas. Ao final de uma semana, a menina awojotaiheniu8 8 Awojotaiheniu quer dizer que a mulher ou menina menstruada já terminou de menstruar ou melhorou em relação ao sangramento. A partir deste momento, ela pode comer peixe e poderá também preparar os alimentos para as suas famílias, pois já voltou ao estado normal. avisa a mãe e o pai para que eles fiquem cientes.

No dia seguinte, o pai e o tio saem em pescaria para pegar muitos peixes para ãixatakona, ãixapé da menina9 9 Ãixatakona, ãixapé se traduz como ‘cerimônia de libertação’ da menina reclusa para comer peixe. Nessa cerimônia, a menina não só vai ser liberada para comer peixe, mas também receberá novos nomes. Então, ela vai receber o nome dos avós maternos e paternos. É dessa forma que o Wauja troca de nome, tanto o homem quanto a mulher. O mesmo acontece na libertação do casal do resguardo feito quando do nascimento do primeiro filho. Tanto a mãe como o pai têm de passar pela reclusão, por três meses, dependendo do desenvolvimento da criança. . À tarde, os pescadores chegam à casa e moqueiam os peixes; no mesmo dia, a mãe e o pai vão para a casa do ancião e da anciã para combinar com eles a realização de uma pequena cerimônia, antes de a menina comer o peixe. De madrugada, as famílias preparam a comida, fazem o beiju, o mingau de polvilho, o pirão de peixe e o peixe moqueado para os convidados. Depois, todos vão ao rio para tomar banho. Assim que chegam do banho, os anciões envolvidos e escolhidos saem de casa, por volta das 6 horas da manhã, gritando e chamando todo mundo para a casa da menina que menstruou, para a liberarem para comer peixe.

O pessoal vai à casa da menina para participar da pequena cerimônia de emancipação. Para a cerimônia, a família adorna a menina, amarra a cinta de fio de buriti e coloca os colares de caramujo e de miçanga. Não pintam o seu corpo, apenas colocam enfeites, preparam as coisas necessárias para esse evento, como o arco preto, e deixam o banco de madeira, ou pulutapa10 10 Pulutapa é um banco específico para esse rito de libertação da menina na sua primeira menstruação e para o encerramento da sua reclusão no final do Kaumãi, quando as meninas estão fazendo a apresentação de entrega de castanha de pequi para os caciques convidados, descansando e se sentando nesse banco. O pulutapa é feito de galhos de buriti, cortados, com aproximadamente 60 centímetros, e costurados pelo fio de buriti, tendo uma largura de quase 90 centímetros. Ele é feito assim para não pesar, para que a mãe da menina o carregue durante a apresentação de sua filha no Kaumãi. , no centro da casa para a menina sentar-se. Também o peixe moqueado com o beiju é deixado perto da menina. Depois que todo mundo chega na casa, a família logo leva a menina de mãos dadas até ao centro desse espaço, para ela se sentar no pulutapa.

Em seguida, os anciões nomeadores e sábios pegam a folha do pequizeiro com as mãos, segurando-a dos dois lados, pondo primeiro por cima das bochechas da menina, fazendo uma pequena oração do rito de libertação do sangue menstrual para que ela possa comer o peixe. Depois, colocam a folha em cima das articulações das pernas e da lombar e, posteriormente, nos joelhos. Logo após esse primeiro processo, o ancião pega um pedacinho de carne de peixe moqueado e dá para a moça recém-menstruada, que aceita a carne e a joga para trás11 11 Essa ação de ‘jogar a carne de peixe para trás’, a mesma carne dada pelo ancião nomeador, tem alguns significados que fazem alusão a ‘jogar fora’ os possíveis problemas futuros relacionados com a estética da beleza, como o envelhecimento precoce, o excesso da gordura no corpo e no rosto. Porém, a menina vai poder comer depois do rito de liberação da primeira menstruação, ou seja, quando acabar seu primeiro período menstrual. . Na sequência, a anciã, esposa do nomeador, como madrinha de nominação, pega a menina e, de mãos dadas com ela, levanta-a do banco de madeira para que ela fique em pé. O ancião nomeador pega o arco preto, vai às costas da menina e pergunta à mãe e ao pai qual o novo nome que irá substituir o que estava com ela até aquele momento, ao longo da infância. Os pais falam o nome da menina e o ancião nomeador começa a gritar ritualmente, transmitindo-o. Ao terminar a nominação da menina, a família oferece comida para os anciões e para os presentes. Os anciões responsáveis distribuem os peixes para cada pessoa. Então, todos comem peixe e tomam mingau antes de voltar para as suas casas. Depois disso, a menina já tem novo nome e está liberada para comer peixe. Desse momento em diante, a comunidade já está sabendo que a menina já está menstruada e que está passando pela reclusão.

Tanto os homens quanto as mulheres trocam os seus nomes. Esse evento de troca de nome acontece no wenekutaku (pátio da aldeia) depois de grandes festas culturais, como Mapulawá, Kukuho 12 12 Mapulawa é o nome da ‘festa do pequi’. Esta festa sempre se realiza no período de maturação do pequi, entre os meses de outubro e novembro. É uma festa promovida para comemorar ou encerrar a colheita de pequi e para alegrar o apapaatai (‘espírito dono’) do pequi, garantindo a colheita nos próximos anos. Kukuho é o nome da ‘festa da mandioca’ do povo Wauja. Ela não é realizada em certa data ou mês, sendo que a sua promoção depende da comunidade. Kukuho é o nome da larva ou lagarta que é o owekeho (‘dono’) da plantação da mandioca. A festa da mandioca é a comemoração da colheita ou da plantação da mandioca. , entre outras. Nessa tradição de nomeação, sempre há os nomeadores, que são a madrinha e o padrinho da menina. Eles têm papéis muito importantes e recebem um objeto como pagamento, como cerâmica, sabão, colar de caramujo ou anzol. Além disso, quem carrega a menina no colo no momento do primeiro sangue menstrual, quem lhe dá o banho e quem prepara a erva medicinal para ela tomar também recebe o pagamento. A menina fica na reclusão durante um a dois anos, dependendo da vontade da família, permanecendo em casa com a família, onde pode ficar somente no seu quarto, sendo possível sair de casa somente à noite para fazer suas necessidades, acompanhada da família, principalmente da mãe, da avó, da irmã ou do irmão pequeno. No tempo da reclusão, a mãe, a avó e a irmã cuidam dela, preparando comida, buscando água do rio para ela tomar banho em casa, seguindo a regra do seu povo. A menina também continua fazendo as suas tarefas de casa, sentando-se na porta da pequena janela improvisada para ela no seu quarto, para que a luz do sol entre e para que ela possa fazer o seu trabalho de fiação do algodão, fiação de fibra de buriti, esteiras etc. Ela tece a rede de dormir para a família, para aprender e adquirir o conhecimento das práticas das mulheres Wauja.

Desse modo, a reclusão é indispensável na vida das jovens Wauja e é através dela que as meninas se transformam em mulheres adultas, iniciando-se e aperfeiçoando as práticas de sua cultura. Nesta fase, ganham o respeito e o reconhecimento de sua comunidade, lembrando que cumpriram o tempo da reclusão.

A PRIMEIRA MENSTRUAÇÃO DA ISIYÃ KAMAIYEI WAURÁ

Nesta seção, descrevo a primeira menstruação da menina Isiyã Kamaiyei, que aconteceu durante a minha pesquisa de campo realizada na aldeia Ulupuwene. No dia 12 de agosto de 2019, às oito horas da manhã, nós notamos a correria das pessoas da aldeia, escutamos o pessoal gritando na direção da escola, avisando o povo que aconteceu a primeira menstruação da menina Isiyã Kamaiyei. Estavam chamando as famílias para que fossem buscar e carregar a menina Isiyã Kamaiyei no colo e levá-la para sua casa. Segundo a mãe Kalumá, Isiyã Kamaiyei não percebeu que teve fluido (o sangue) durante a noite, por isso não avisou a sua mãe do ocorrido. Na manhã do dia seguinte, às sete e meia, ela foi tomar banho e, em seguida, foi à escola. Na ausência dela, a irmã mais velha, Alairu Topanaku Waurá, viu a sua bermuda, que pendurou no varal dentro de casa, quando percebeu o sangue e logo avisou a sua mãe Kalumá. Kalumá rapidamente chamou Isiyã Kamaiyei e mostrou a bermuda que tinha o sangue: “Você não me avisou que você já menstruou. Verdade que você já menstruou?” (comunicação pessoal, 2019). Então, Isiyã Kamaiyei disse que não sabia que estava menstruada. Em seguida, a mãe Kalumá carregou a sua filha Isiyã Kamaiyei, deixando ela sentada em cima do banco de madeira. Enquanto isso, o pessoal ficou gritando, noticiando o fato para os membros da aldeia, e todo mundo foi ver a menina. Após isso, a mãe pediu para a tia de Isiyã Kamaiyei, Uhekú, dar um banho nela no centro da casa enquanto as mulheres estavam chegando para pegar as coisas que a mãe Kamulá estava dando como presentes pela primeira menstruação da filha.

O pai Kasu Ulaki estava ajudando a sua esposa Kalumá, orientando as mulheres a não pegarem muitas coisas ofertadas por Kalumá como presentes de menstruação, para que todas pudessem ganhar presentes, que eram objetos como colar de miçanga, vestidos, entre outros. Também a avó e o avô de Isiyã Kamaiyei, senhora Kápi e senhor Elewoká, estavam presentes, aconselhando a neta para seguir e respeitar a regra da sua primeira menstruação e, como destaquei anteriormente, “não tocar o seu corpo, não coçar ou esfregar o seu corpo para não ter manchas no corpo” (comunicação pessoal, 2019). Depois do banho, Uhekú carregou Isiyã Kamaiyei no colo, levando-a para repousar na sua rede de dormir (Figuras 2 e 3).

Figura 2
Uhekú carregando Isiyã Kamaiyei após o banho e a levando para repousar na sua rede de dormir.
Figura 3
A menina Isiyã Kamaiyei fazendo repouso depois da sua primeira menstruação, deitada na sua rede de dormir. A avó Kápi estava ensinando e aconselhando a sua neta Isiyã Kamaiyei a usar kuwapixato para coçar e esfregar o seu corpo assim que tivesse coceira.

Em seguida, a avó Kápi colocou o kuwapixato na mão da sua neta Isiyã Kamaiyei, que permaneceu em sua rede de dormir, em casa.

Na manhã do dia seguinte, no dia 13 de agosto de 2019, às seis horas, Uhekú preparou ataga de raiz de planta de algodão em sua casa e saiu carregando a panela de dez litros de ataga em direção à casa da menina Isiyã Kamaiyei. Atravessou o centro da aldeia. Ela foi chamando as mulheres para irem assistir a menina tomando ataga de raiz da planta do algodão. As mulheres da aldeia foram juntas e Uhekú deu a cuia de cabaça cheia de ataga para a menina Isiyã Kamaiyei (Figura 4). Ela tomou o chá e regurgitou cinco vezes, depois deitou-se novamente na rede de dormir.

Figura 4
A menina Isiyã Kamaiyei tomando o emético de raiz da planta algodoeira.

Assim se iniciou a reclusão de Isiyã Kamaiyei. Ela manteve a dieta durante a menstruação, não comendo peixe, somente carne da caça. Assim que o sangue parou de fluir, ela pôde comer peixe. Isiyã Kamaiyei levou uma semana para que o sangue terminasse de fluir e, no dia seguinte, o pai Kasu Ulaki foi pescar no rio. No final da tarde, ele trouxe muitos peixes, como piau, peixe-cachorro e pintado (cachara), entre outros. Eles moquearam os peixes para a cerimônia de libertação de Isiyã Kamaiyei. Quando estava anoitecendo, por volta das seis horas, a mãe Kalumá foi falar com o tio de Isiyã Kamaiyei, Awinahũ, para que ele fosse o padrinho de libertação dela que, ao mesmo tempo, seria o seu nomeador, junto com a sua esposa Katsiparu. No dia 19 de agosto de 2019, às seis horas da manhã, depois do banho, os dois saíram de casa. Awinahũ e Katsiparu seguiram na direção da casa da Isiyã Kamaiyei. Awinahũ gritou, chamou todo mundo para ir à casa de Isiyã Kamaiyei, para começar a ãixatakonehenei, ãixapé, a pequena cerimônia da libertação de Isiyã Kamaiyei para comer peixe, que quer dizer ‘a Isiyã Kamaiyei vai comer peixe’.

Na casa da menina, Awinahũ e Katsiparu fizeram a cerimônia de nominação e libertação de Isiyã Kamaiyei em frente ao pessoal da aldeia (Figuras 5 e 6). Depois, ao terminar a cerimônia, Kalumá (a mãe de Isiyã Kamaiyei) e o seu esposo Kasu Ulaki ofereceram pirão de peixe para Awinahũ e Katsiparu, bem como colar de miçanga, como pagamento pela libertação de Isiyã Kamaiyei. Depressa, Awinahũ e Katsiparu pediram para o pessoal sair da casa. Todo mundo saiu da casa para esperar e, em seguida, Awinahũ e Katsiparu carregaram pirão de peixe, beiju e mingau de polvilho, e distribuíram essa comida para os participantes da cerimônia de nominação e libertação da menina Isiyã Kamaiyei (Figura 7). No final, todos foram para suas casas e levaram comida para as suas famílias.

Figura 5
Ancião Awinahũ fazendo a cerimônia de nominação da menina Isiyã Kamaiyei para a troca de seu nome de infância por um novo nome da fase da primeira menstruação.
Figura 6
Esposa do senhor Awinahũ, a senhora Katsiparu, segurando no braço da menina Isiyã Kamaiyei. Ela é a sua madrinha.
Figura 7
Awinahũ e Katsiparu distribuem wakula e peixe assado para os participantes da cerimônia.

A reclusão de Isiyã Kamaiyei estava iniciando, a menina permaneceu em casa, realizando e praticando o processo de passagem de criança para moça. Ela continuou tomando ataga para iyũku e ekewẽitsa/asixata pamonapitsi. Sua mãe Kalumá e a avó Kápi escarificaram Isiyã Kamaiyei, cuidando da sua neta e da sua filha, amarrando o fio de algodão nos seus joelhos e nos seus tornozelos, para fazer crescer a panturrilha das pernas, para que ela cresça como uma mulher bela.

Durante o período de reclusão, ninguém pode visitar Isiyã Kamaiyei em sua casa, até chegar o momento de festa de Yaupe13 13 Yaupe é o nome da festa tradicional do povo Wauja. A dança é a mesma da festa do pequi, Mapulawái, que é promovida na época do pequi, comemorando a fartura de frutas de pequizeiro e alegrando o espírito do dono desta planta, para que no próximo ano dê mais frutas. Ambas as festas culturais do povo Wauja são para o apapaatai do grande beija-flor que se chama Kumesixumã. Porém, Yaupe não tem período certo para ser realizada, sendo promovida quando o pessoal quer dançar na aldeia, alegrar a comunidade e, ao mesmo tempo, alegrar o ‘dono’ Kumesixumã. , na qual a mãe adorna Isiyã Kamaiyei, já moça, para ela se apresentar na dança (Figura 8). Ela tem de dançar no centro da aldeia, juntamente com os participantes da festa de Yaupe, realizando a cerimônia de encerramento da sua reclusão pubertária (Figura 9).

Figura 8
A menina reclusa se enfeitando antes de dançar na festa de flauta Tãkuwara.
Figura 9
Isiyã Kamaiyei dança na festa Yaupe, encerrando a sua reclusão pubertária.

Para o encerramento da reclusão, primeiramente a família se juntou, e a mãe Kalumá, o pai Kasu Ulaki, a avó Kápi e o avô Elewoká decidiram, em conjunto, o momento. Antes de a festa começar, a mãe Kalumá cortou a franja da menina reclusa, pintou as suas pernas com a epitsitsi14 14 Epitsitsi é a tinta de urucum amarelo. Não é usada pelo homem para pintar o corpo, apenas as mulheres a utilizam para pintar as suas pernas ou o corpo antes de dançar e antes de trabalhar na roça, no sol quente. Para o povo Wauja, epitsitsi é como um protetor para o corpo, tanto para mosquitos quanto para sol quente, para não queimar a pele. e pintou os pés com o yuuku15 15 Yuuku é a tinta de urucum vermelho utilizada por homem e mulher. É sempre utilizada quando tem dança cultural na comunidade, na pescaria e nos trabalhos em sol quente. Assim como epitsitsi, funciona como protetor solar ou roupa para o povo Wauja. , assim como a testa. Pintou o rosto com ulutaki16 16 Ulutaki é uma resina de uma árvore grande, nativa da mata. É usada pela comunidade Wauja para pintura do rosto antes da dança na festa cultural. Esta resina é preparada com carvão preto. Depois de pintado, o rosto fica cheiroso, e a resina serve também como remédio. . Quando os homens começaram a dançar de Yaupe, a menina reclusa se apresentou na dança oficialmente para toda a aldeia ver que ela estava saindo da reclusão. Ela dançou a dança Yaupe até ao final da tarde.

Depois da cerimônia, Isiyã Kamaiyei pôde sair de casa para tomar banho no rio, ajudar a sua mãe nos trabalhos da roça e participar de todas as festas culturais, como trocas, danças. Enfim, ela pôde levar a vida normal.

Assim foi o rito de passagem da reclusão pubertária da menina Isiyã Kamaiyei que observei durante a minha pesquisa e que exemplifica a prática de reclusão das outras meninas.

DOS PERIGOS DO SANGUE MENSTRUAL PARA A RECLUSÃO WAUJA

Os Wauja não realizam a reclusão pubertária de qualquer jeito. Devem seguir as regras passo a passo para que os/as jovens reclusos/as se desenvolvam bem e não adoeçam no momento da realização, os/as quais devem receber cuidados especiais das famílias e ser bem alimentados/as, não podendo comer alimentos compartilhados com outros parentes, apenas os que são preparados pela própria família. Os familiares devem ficar atentos, evitando que eles/as se alimentem de comidas que vêm de outra casa durante a reclusão. Eles devem lembrar sempre aos/às jovens reclusos/as que não podem comer comida contaminada de sangue menstrual ou de cheiro sexual, se não correm o risco de adoecer e morrer. Como diz Costa (2020, p. 154)Costa, C. E. (2020). Política da reclusão: chefia e fabricação de corpos no Alto Xingu. Revista de Antropologia da UFSCAR, 12(1), 145-172. https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.335
https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.335...
:

Os motivos apontados para a paralização iam desde a ingestão de ervas, hipótese de envenenamento que a autora rebate categoricamente, até relações com o sobrenatural, quando os espíritos donos das ervas não estariam satisfeitos com os desempenhos dos jovens reclusos e os paralisariam por conta de alguma quebra nos procedimentos exigidos.

Esta prática de cuidado e acompanhamento que os Wauja dão aos/às jovens reclusos/as é muito importante para a saúde e o bom desenvolvimento corporal e para que permaneçam sadios durante a realização da sua reclusão pubertária. As pessoas da comunidade devem saber que os/as jovens reclusos/as estão ingerindo ataga e passando remédio de infusão de planta nos seus corpos, ao receberem escarificação. Desse modo, os/as jovens reclusos/as estão se relacionando com os apapaatai17 17 Apapaatai é uma palavra do povo Wauja que indica ‘animal, bicho ou espírito invisível e visível’. Barcelos Neto (2008, pp. 29-163) traduziu a palavra apapaatai para a língua portuguesa como “. . . não humano, bicho ou espírito invisível”. donos das plantas. É por isso que os seus corpos ficam sensíveis e não suportam o cheiro sexual e o sangue menstrual da mulher, podendo, inclusive, ficar doentes, pois o apapaatai dono da erva não gosta do desempenho dos/as jovens reclusos/as que desobedecem às regras.

Consequentemente, os/as jovens reclusos/as geralmente apresentam os seguintes sintomas motivados pelo contato com o sangue menstrual: dor de cabeça, enjoo, vômito e fraqueza no corpo. Assim, os/as jovens que estão em reclusão ficarão doentes por tomarem o mingau de polvilho e comerem o alimento contaminado de sangue menstrual, podendo mesmo se tornar makatsiru (paraplégico). De acordo com Verani (1990Verani, C. (1990). A ‘Doença da Reclusão’ no Alto Xingu: estudo de um caso de confronto intercultural [Dissertação de mestrado, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro]., p. 20 citado em Costa, 2020Costa, C. E. (2020). Política da reclusão: chefia e fabricação de corpos no Alto Xingu. Revista de Antropologia da UFSCAR, 12(1), 145-172. https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.335
https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.335...
, p. 154): “A ‘tal doença’ era descrita como uma paralisia dos membros inferiores (parestesia), acompanhada de dor, vômitos sanguinolentos e hipertensão. Incidia principalmente sobre adolescentes do sexo masculino, durante o período de reclusão pubertária”.

O cheiro do sangue deixa o apapaatai, dono da erva medicinal que os/as jovens reclusos/as estão tomando para ganhar corpo e engordar durante a reclusão, passando mal. O apapaatai não gosta do odor do sangue menstrual e fica frustrado. Ele cuida dos/as jovens reclusos/as, tornando-se seu companheiro, sentando-se diariamente no quarto deles. Por isso, os/as jovens reclusos/as sentem o mesmo que o dono da ataga sente.

Assim, quando a mulher está menstruada, ela avisa ao pessoal da casa e ao/à jovem recluso/a para eles tomarem conhecimento. Se menstruar em casa, de dia ou de noite, de imediato, deve avisar aos familiares, evitando que a família consuma os alimentos, os remédios e o tabaco que lá estão. A mulher não pode ter a sua liberdade neste momento, tendo que seguir a regra, por isso, deve pedir ajuda de alguém da casa para tomar mingau de polvilho, além de não poder comer beiju. Para não contaminar os alimentos, ela não pode chegar perto de comida e deve permanecer em casa sem cozinhar, fazendo apenas outros trabalhos, como a produção de objetos. Outras mulheres se responsabilizam por fazer as refeições. Os alimentos que estavam sendo preparados em casa no momento da menstruação são jogados fora e ninguém pode os consumir, pois dizem que o sangue contamina a comida. Mesmo o remédio de planta tradicional e o tabaco do xamã que foram preparados antes de acontecer a menstruação não devem ser consumidos. Ainda que toda a família esteja bem de saúde, estes alimentos não devem ser utilizados, pois, se não, corre-se o risco de ficar doente, pegar gripe facilmente, ter tosse ou ficar com a respiração muito forte. Na presença de algum doente em casa, a mulher deve sair e mudar-se para outro lugar da família até que termine sua menstruação. Só depois disso, ela poderá voltar para sua casa.

A pessoa comum não poderá ver o que está acontecendo na vida das mulheres, somente o xamã enxerga tudo em seu sonho. O apapaatai mostrará para o xamã que a mulher está menstruada, para que as pessoas doentes sejam avisadas. O corpo do xamã é sensível e capaz de sentir qualquer coisa estranha se aproximar, por isso ele descobre essa situação e a vê no seu sonho.

Nesse sentido, os Wauja compreendem que o sangue menstrual da mulher é considerado muito perigoso, sendo prejudicial para a saúde do ser humano, como diz Soares (2019, p. 421)Soares, A. M. P. S. (2019). Sangue menstrual na sociedade Karipuna do Amapá. Amazônica: Revista de Antropologia, 11(2), 413-433. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v11i2.7548
https://doi.org/10.18542/amazonica.v11i2...
: “O sangue menstrual . . . . como um elemento poluidor [causador], que, além de possuir um forte odor, impurifica o ambiente quando está fora do corpo”.

Geralmente, na concepção indígena, o sangue menstrual tem poder lesivo e pode trazer doenças contagiosas e perigosas para as pessoas saudáveis. Embora o sangue seja um líquido fisicamente visível pela própria mulher, quando está no momento de menstruação, ela não perceberá que pode ser culpada de levar doença para a família. Contudo, os Wauja têm essa tradição de contaminação do sangue menstrual e fragilização da imunidade e do bem-estar do corpo das pessoas. Então, eles se protegem e cuidam da sua própria saúde.

Assim, o sangue menstrual prejudica não apenas os/as jovens reclusos/as, mas todos os Wauja, principalmente o xamã, a pessoa doente e o rapaz reculso, que podem adoecer por causa do sangue menstrual.

O xamã pode ser curado rapidamente com raiz de planta, por meio de infusão emética, de banhos e de rezas, de sopro de fumaça de tabaco na cabeça e no corpo, para não ter complicações respiratórias e morrer. No caso do kaukitsupá (pessoa doente), o sangue menstrual irá agravar seu estado de saúde. Ele continuará passando mal, prorrogando a sua situação de pessoa doente, podendo até mesmo morrer, já que não foi curado rapidamente pela família ou pelo xamã por meio de sopro da fumaça de tabaco e das raízes das plantas.

EKEPELEITSUWAKÍ E SEKITSIPITSANAKÍ18 18 As palavras ekepeleitsuwakí e sekitsipitsanakí são usadas pelos Wauja para se referirem aos cuidados, tanto da saúde quanto da beleza do corpo. As duas expressões são sinônimas – ekepeleitsuwakí e sekitsipitsanakí. Sua tradução literal é ‘higienização, promoção da saúde e dieta alimentar’ (ekepeleitsuwa ‘se cuidar, se proteger’ e kí ‘ação de proteção’, sekitsi(u) ‘se respeitar’, ‘se cuidar’ e ‘dieta alimentar’ e pitsanakí ‘ação de proteção’). Estas palavras têm variações no singular e no plural, como pekepeleitsuwa (‘você se cuide’, ‘você se respeite’), pisekitsuwa (‘você se respeite’, ‘você jejue’, ‘você se cuide’). Estes termos e suas variações são encontrados ao longo texto quando me refiro à promoção da saúde do corpo. : BELEZA, SAÚDE, DIETA ALIMENTAR DA RECLUSÃO E COMPORTAMENTO WAUJA

No período de reclusão, a menina é instruída – para o processo de produção do corpo e a promoção da saúde, da beleza e da alegria19 19 “A beleza é o substrato essencial para a produção da alegria, estado imprescindível para a obtenção do sucesso” (Barcelos Neto, 2008, p. 274). A beleza do corpo, a beleza da pintura corporal, o capricho na confecção de objetos, a melodia das canções e dos ritmos de danças são produtores/as de alegria para o povo Wauja. – para se transformar em mulher de modo físico, deixando as famílias felizes por sua filha ter ganhado o corpo certo, belo e saudável. Portanto, é necessário que os Wauja aconselhem os/as jovens no momento da realização da reclusão para ajudarem o/a menino/a a atingir a beleza e o desenvolvimento do corpo na sua reclusão.

Segundo a senhora Kápi Waurá, xamã da aldeia, na primeira menstruação, o corpo e a pele da menina não têm resistência, ficam moles e frágeis, devido ao fluido de sangue, por isso a menina não pode tocar o seu corpo durante a ocorrência da primeira menstruação, nem se levantar da rede de dormir para andar ligeiramente, se não vai sentir ‘crepitação’ (o som nos ligamentos de coxas, de joelhos, de tornozelos, rangendo durante os movimentos). Ela pode apenas usar o artefato de kuwapixato para se esfregar, para não ter cicatriz no corpo, nos lábios e nas nádegas. Se ela não utilizar o kuwapixato ,terá cicatriz e pode ter duras marcas. Deste modo, para os Wauja, é muito importante não ter esse tipo de conduta de coçar o corpo com as mãos na ocasião da primeira menstruação, sabendo que o desrespeito à regra não agrada a família.

A beleza do corpo que se produz na reclusão provoca alegria na sociedade Wauja, assim como ter habilidades na confecção de objetos, ter os mais variados conhecimentos sobre danças, cantos das músicas tradicionais e demais outras habilidades pessoais.

Segundo Barcelos Neto (2008, p. 274)Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. EDUSP/FAPESP., a “ . . . espetacularização dos objetos rituais é o ponto de convergência de duas noções cruciais do pensamento Wauja: beleza (awojotopapai) e alegria (kotepemonapai)”. O autor destaca que a beleza (awojotopapai) produz alegria (kotepemonapai) para a sociedade Wauja. Mello (2005, p. 63)Mello, M. I. C. (2005). Iamurikuma: música, mito e ritual entre os Wauja do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/102877/211418.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha...
também menciona o sentido da alegria para os Wauja: “Segundo o discurso Wauja, fazer a festa é sinal de ‘alegria’, kotepemona (‘alegre’ + ‘corpo/peso’), este sentimento sendo resultado positivo para o bem-estar do grupo”.

Esta prática de uso do kuwapixato na primeira menstruação da menina estabelece a ideia de que a beleza e a alegria estão sempre ligadas à produção dos objetos, do corpo da pessoa, da melodia da canção e do ritmo de dança cultural do povo Wauja. Os adereços, os instrumentos musicais e até as plantações de mandioca, quando crescem bem, também produzem felicidade para o povo Wauja. Por isso, a beleza é um tema importante na sociedade Wauja. A criança e o jovem são ensinados a seguir e a obedecer o conselho da sua família, a pensar no seu futuro, para, quando crescerem e se tornarem jovens fortes e bonitos/as, seguirem as regras ancestrais do seu povo. Várias práticas culturais estão envolvidas na regra da menstruação, por exemplo: não se deitar na rede de dormir após tomar banho, não comer peixe quando se está menstruando, dentre outras. Desrespeitar estas regras prejudica a beleza do corpo e a saúde, e, como consequência, a pessoa vai ter infelicidade.

Os Wauja aprendem, desde cedo, a cultivar a saúde através da convivência social e da educação familiar até que se aproxime o momento da fase de reclusão. Da pessoa Wauja, espera-se que mantenha, ao longo da vida, a prática de ter a saúde física do corpo por meio da aplicação do conhecimento tradicional do povo sobre como ser Wauja, bonito e forte. É na convivência que os Wauja aprendem a examinar a aparência do corpo da pessoa.

T. Waurá et al. (2012, p. 53)Waurá, T., Waurá, A., & Waurá, H. (2012). Utapai ulekem onakapitsi onaunakirapitsi: conhecimento das regras de alimentação e da história Wauja. FALE/UFMG, Literaterras/Curso de Formação de Agentes Indígenas de Saúde/Projeto Xingu/EPM/UNIFESP.20 20 Tukupé Waurá é Agente Indígena de Saúde (AIS) da aldeia Piyulewene (Waurá), trabalhando na área da saúde indígena desta aldeia. Fez o curso de Formação de Agentes Indígenas de Saúde/Projeto Xingu/Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo no ano de 2012. comenta sobre o costume Wauja de saúde:

Quando você ganhar um filho ou uma filha pela primeira vez, para eles não ficarem doentes facilmente e nem você, você deve tomar mais ou menos 30 litros de água misturada com ervas. Você deve tomar várias vezes e ir vomitando, até acabar a água.

Você deve também arranhar o seu corpo de mês em mês. Sua esposa também deve fazer o mesmo, para evitar que você e ela tenham envelhecimento precoce.

Mesmo se você for uma pessoa que se case ainda jovem, só os remédios poderão ajudá-los a não envelhecer precocemente. Se você não tomar e não passar os remédios, se não tomar as ervas para os problemas de saúde que tiver na vida, você vai adoecer facilmente.

Se você fizer uma boa prevenção, usando os remédios do nosso povo, envelhecerá de uma maneira boa e saudável, você não terá envelhecimento precoce.

Também Hukai Waurá21 21 Hukai Waurá é professor na aldeia Ulupuwene (Waurá), trabalhando na Escola Indígena Municipal Ulupuwene, anexada à Escola Estadual Indígena de Educação Básica de Piyulaga. É licenciado na área da Ciências da Cultura, pelo curso de Educação Intercultural, do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em seu projeto extraescolar, Hukai Waurá pesquisou sobre “A arte da cerâmica do povo Waurá”. Ele concluiu o curso em 2018. e Kuweniru Waurá explicam sobre a saúde e a beleza no conhecimento Wauja, e os dois destacaram nas suas entrevistas:

Para a sociedade Wauja é importante tomar raiz, levantar-se bem cedo de madrugada, sentar-se em volta da fogueira em casa e depois tomar banho no rio, passando óleo de pequi com urucum no seu corpo. Até mesmo o rapaz lutador cuida da sua saúde para ficar forte. Ele arranha o seu corpo para passar o remédio de raiz de planta, massageando seu corpo com o osso da onça para ficar forte e ter saúde. Toda a tarde ele pratica a luta no centro da aldeia. É assim que ele está se cuidando para ficar forte fisicamente ou ter habilidade de lutar no kapí durante o Kaumãi e outras práticas culturais

(Hukai Waurá, comunicação pessoal, 2020).

Para você [ficar] bonito/a, tanto no corpo quanto na dança, você vai se pintar bem bonito, pentear cabelos e amarrar os seus enfeites bem certos [na dança cultural e fora dela]. . . . é fazendo isto que você está se cuidando, se chama ekelepeitsuwa e sekitsuwa

(Kuweniru Waurá, comunicação pessoal, 2020Waurá, A. (2020). Revisitando a arte de fiação Wauja: algodão, beleza e saúde. Emblemas, 17(1), 60-72. https://periodicos.ufcat.edu.br/emblemas/article/view/63148
https://periodicos.ufcat.edu.br/emblemas...
).

Os dois entrevistados esclarecem como os Wauja produzem a beleza do corpo, buscando a saúde para não adoecerem ao longo da vida, para sentirem o corpo saudável e alegre. Caso contrário, se algumas pessoas não ekepeleitsuwa, sekitsuwa, não vão ficar bem de saúde e bonitos/as, eles vão ficar adoecidos/as, desarrumados/as e, consequentemente, ninguém vai considerar a pessoa bela. Portanto, este saber-fazer Wauja da reclusão envolve as práticas e as noções de beleza, saúde, felicidade e, além disso, a aprendizagem do modo de vivência em comunidade.

A saúde é essencial na vida do povo Wauja, constituindo um sinal de alegria e um estado físico das pessoas de viverem junto com os seus familiares, realizando os seus rituais e os seus trabalhos na comunidade e na aldeia.

Para manter a saúde, a pessoa Wauja tem que ter autocontrole e disciplina, evitando desejos de comer certos alimentos, sabendo que alguns apapaatai estão de olho para prejudicar o bem-estar da pessoa e causar doença. Não são apenas os alimentos que colocam em risco a saúde da pessoa, mas também o desejo de namorar alguém faz com que tanto homens quanto mulheres fiquem doentes.

São inúmeras as situações exemplificadas pelos Wauja de quando ocorre o princípio ético da doença, estas situações de abertura à doença estando ligadas a desejos alimentares ou sexuais insatisfeitos. Não é que os Wauja achem que devam realizar todos os seus desejos, mas sim que devem desejar somente aquilo que possam obter ou realizar

(Mello, 2005Mello, M. I. C. (2005). Iamurikuma: música, mito e ritual entre os Wauja do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/102877/211418.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha...
, p. 69).

A comunidade Wauja tem palavras que são usadas quando as pessoas se referem a cuidados com a saúde: ekepeleitsuwa e sekitsuwa, as quais têm vários sentidos, como cuidado, proteção, higiene, e representam o conceito de saúde na vida social Wauja. Significam higiene corporal, alimentação saudável, autoapresentação/imagem apropriada, dança e canto. Não significam apenas tomar banho e lavar o corpo diariamente, mas sim realmente cuidar para o corpo ficar bem limpo, pentear e cortar os cabelos, e cuidar, em geral, de outros atributos visuais e físicos. Mas ekepeleitsuwakí também se refere ao comportamento social Wauja, como já destaquei. Não se deitar na rede de dormir depois do banho é uma regra importante, sabendo que a rede de dormir amolece a pele e amassa o corpo da pessoa enquanto está deitada. Por isso, os Wauja consideram que a rede de dormir pode levar ao envelhecimento precoce; até mesmo o enfeite de cinto de fio de algodão (watani) também pode causar o envelhecimento precoce, se os lutadores enxugarem o suor do seu corpo e de seu rosto durante kapí, sem passar a toalha no seu corpo para secar a água. Essa prática de secar o suor ou a água do corpo causa envelhecimento precoce dele, provocando rugas na pele.

Tais práticas de saúde contribuem também para a educação das pessoas, ensinando-as a respeitar os membros da família e todas as pessoas, a ter comportamento bom e honesto, a não ser egoísta e a compartilhar suas comidas com outras pessoas.

Para não envelhecer rápido e ter boa saúde, também não se pode comer peixe durante a reclusão e durante a menstruação. Estas regras devem ser cumpridas também durante o resguardo do primeiro/a filho/a para que a criança se desenvolva bem, saudável e fique bonita. Em conclusão, a beleza e a saúde estão interligadas à alimentação, ao trabalho, aos remédios, aos adereços, aos utensílios e a outros conhecimentos.

No conhecimento Wauja, o resguardo do casal, após o nascimento do bebê, é semelhante ao processo de reclusão da primeira menstruação da menina, seguindo a mesma regra de dieta, ingestão de ataga, escarificação do corpo e demais práticas. Assim como a criança recebe um novo nome no momento do rito de libertação de resguardo, também o casal vai receber novos nomes, mas em outro momento. No rito de libertação deles, o casal não troca de nome, apenas a criança é quem irá receber seu primeiro nome. A duração do resguardo do casal é menor, indo de um mês e meio a dois meses, dependendo do desenvolvimento da criança ou da interrupção do sangue do parto da mulher.

Segundo o conhecimento Wauja, durante o fluido de sangue da mulher, o casal não deve comer peixe, apenas carne de caça, como de macaco, jacutinga, jacu, pombo, mutum, papagaio, tucano, dentre outros. Esses esforços devem ser feitos para que mantenham os seus próprios corpos e a sua saúde.

Todas estas práticas aqui apresentadas são aprendidas desde criança até a maturidade, sendo aprofundadas, ampliadas e amadurecidas no período de reclusão pubertária e ao longo da vida. É por isso que é imprescindível que os/as jovens Wauja sejam informados/as e ensinados/as a seguirem estas práticas e saberes tradicionais, compreendendo o seu modo de vida, a adaptação ao seu ambiente e a forma espiritual de ser uma pessoa Wauja.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, constatei que o processo de reclusão pubertária ainda está presente na comunidade Wauja e até as novas gerações estão passando por essa tradição para adquirirem sua formação social e se tornem uma pessoa Wauja. Ademais, o objetivo desta prática continua sendo entendido como “trocar o corpo”, “mudar o corpo”, como diz Viveiros de Castro (1979, p. 44)Viveiros de Castro, E. (1979). A fabricação do corpo na sociedade xinguana. Boletim do Museu Nacional, Série Antropologia, (32), 40-49.; nesta prática, os jovens Wauja “. . . se tornam iyãumona (homem bonito ou homem verdadeiro) e tonejumona (mulher bonita ou mulher verdadeira)” (A. Waurá, 2021Waurá, A. (2021). Wauja O̱ náka, O̱ nakiyejetuwãpitsana: reclusão pubertária, saúde, beleza e o saber-fazer do algodão [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Goiás]., p. 163).

No decorrer da pesquisa, percebi ainda que os jovens Wauja não realizam a reclusão como antigamente. Eles não se preocupam mais com as suas próprias transformações corporais e não pensam mais em aprender profundamente os conhecimentos Wauja por meio de reclusão pubertária, aprendendo a cultura em outras ocasiões, por causa de decisões dos pais ou dos próprios adolescentes, ou, ainda, em decorrência de algumas influências que vêm de fora, da escola, por exemplo, além de outras interferências dos não indígenas. Apenas as meninas ainda passam pela reclusão logo após a sua primeira menstruação e, mesmo assim, não passam por um período longo, com duração de alguns meses ou alguns anos. As regras têm passado por alterações no que diz respeito às restrições alimentares e ao tempo de duração. É desta forma que as práticas de reclusão pubertária estão ocorrendo entre as novas gerações Wauja, que pude acompanhar no período de estudo realizado na aldeia Ulupuwene.

A análise que fiz durante a pesquisa na comunidade permitiu aprofundar meus conhecimentos e aprendizagens sobre o rito de passagem da reclusão pubertária Wauja. Isso aconteceu através do trabalho de pesquisa e, sobretudo, por meio da interação com os Wauja entrevistados. A leitura das bibliografias me permitiu entender esta prática de forma mais abrangente e considerar como ela acontece junto a outras comunidades indígenas.

Portanto, é muito importante registrar a prática da reclusão pubertária para garantir a técnica de sua realização na comunidade Wauja. Também é importante divulgar esses conhecimentos tanto aos povos indígenas quanto ao público brasileiro em geral, para que eles acessem e conheçam a cultura de aprendizagem relacionada com a reclusão Wauja. Inclusive, espero que este trabalho possa ser usado por estudantes indígenas e não indígenas como fonte de pesquisa.

  • 1
    Esse território, conhecido como Terra Indígena do Xingu, tem 16 povos diferentes, divididos entre quatro regiões, que se chamam Alto, Médio, Baixo e Leste Xingu. Em cada umas dessas regiões, residem diversas etnias: no Alto Xingu, há onze etnias: Wauja, Mehinaku, Yawalapiti, falantes de línguas Aruak, Aweti, Kamaiurá, falantes da língua Tupi, Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nafukuá, Naruvotu, falantes de língua Karib, e Trumai, falantes da língua isolada ou língua Trumai. Também há o povo Ikpeng (Txicão), falante de família do tronco linguístico Karib e que se localiza no Médio Xingu. Além disso, há outros povos que ficam no Baixo Xingu, que são: Kawaiweté (Kaiabi), falantes de família do tronco linguístico Tupi-Guarani, e Yudjá (Juruna), falantes da família linguística Juruna ou Tupi. Kisedje (Suiá) e Tapayuna são falantes de língua Jê ou Macro-Jê e se situam no Leste Xingu. Esses povos indígenas fazem parte do Xingu, tendo suas respectivas culturas, cada um com seu modo de viver nas comunidades ou nas aldeias.
  • 2
    Payãkuwakí é a palavra em Wauja que mais se aproxima da expressão ‘reclusão pubertária’. Na língua Wauja, sabe-se que esta expressão não cobre totalmente esse significado. A expressão que utilizo – payãkuwakí – tem como tradução literal ‘ficar em casa’ (payãku ‘dentro de casa’ e kuwakí ‘fazer reclusão’). O povo Wauja entende que, na tradição, somente o adolescente precisa ficar em casa durante a transição para a vida adulta. Por isso, compreendi que a palavra payãkuwakí seria a mais adequada para traduzir a expressão ‘reclusão pubertária’, que encontrei em vários autores que tratam sobre esse tema no Xingu, como Viveiros de Castro (1979)Viveiros de Castro, E. (1979). A fabricação do corpo na sociedade xinguana. Boletim do Museu Nacional, Série Antropologia, (32), 40-49., Tavares (1994)Tavares, S. C. (1994). A reclusão pubertária nos Kamayurá de Ipavu - um enfoque biocultural [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas]. https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994.79860
    https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994....
    e Novo (2018)Novo, M. P. (2018). “Esse é o meu patikula”: uma etnografia do dinheiro e outras coisas entre os Kalapalo de Aiha [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9812
    https://repositorio.ufscar.br/handle/ufs...
    , que abordaram a reclusão pubertária dos povos Kamaiurá e Kalapalo, respectivamente.
  • 3
    O Kaumãi é uma cerimônia que reúne os povos alto-xinguanos, como Aweti, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nafukuwa,Yawalapiti e Wauja. Trata-se de um ritual em memória dos finados, sendo conhecido na liguagem do povo Kamaiurá Kwarup e, na língua Wauja, é chamado Kaumãi.
  • 4
    Sepú é o nome do quarto onde o rapaz ou a moça realizam a reclusão, se preparando para serem grandes conhecedores da cultura tradicional. O sepú é feito de madeira, galho de buriti (pulu) ou pedaço de palha de buriti. Hoje em dia, o pessoal está utilizando muitos lençóis kajao pa para o sepú. A palavra sepú significa na língua Wauja, além de quarto, também proteção e esconderijo do rapaz ou da moça recluso/a.
  • 5
    Kuwapixato é um artefato de fuso para fiar algodão que também é usado na primeira menstruação da menina Wauja. Esse material é feito de madeira kanala (madeira buritirana), yalapanã (madeira de árvore), pulata (madeira de árvore), casca de jabuti e tracajá.
  • 6
    Esse oferecimento dos objetos na primeira menstruação da menina Wauja significa que as famílias estão comemorando e demonstrando felicidade nesse momento em que a filha vai se tornar uma mulher adulta. Lembrando que ela vai passar pela reclusão, transformando-se corporalmente em uma mulher bonita. É nesse sentido que a mãe e o pai, ou a família, oferecem presentes para as pessoas que se juntaram com a família para a comemoração da primeira menstruação.
  • 7
    Topukaga é um tipo de mingau feito de massa de polvilho de mandioca com água fervida, meio gelatinoso, sendo depois esfriado, quando está pronto para tomar. Topukaga é um mingau específico para jovens em reclusão ou para os primeiros dias de alimentação de pessoa doente, logo após o jejum.
  • 8
    Awojotaiheniu quer dizer que a mulher ou menina menstruada já terminou de menstruar ou melhorou em relação ao sangramento. A partir deste momento, ela pode comer peixe e poderá também preparar os alimentos para as suas famílias, pois já voltou ao estado normal.
  • 9
    Ãixatakona, ãixapé se traduz como ‘cerimônia de libertação’ da menina reclusa para comer peixe. Nessa cerimônia, a menina não só vai ser liberada para comer peixe, mas também receberá novos nomes. Então, ela vai receber o nome dos avós maternos e paternos. É dessa forma que o Wauja troca de nome, tanto o homem quanto a mulher. O mesmo acontece na libertação do casal do resguardo feito quando do nascimento do primeiro filho. Tanto a mãe como o pai têm de passar pela reclusão, por três meses, dependendo do desenvolvimento da criança.
  • 10
    Pulutapa é um banco específico para esse rito de libertação da menina na sua primeira menstruação e para o encerramento da sua reclusão no final do Kaumãi, quando as meninas estão fazendo a apresentação de entrega de castanha de pequi para os caciques convidados, descansando e se sentando nesse banco. O pulutapa é feito de galhos de buriti, cortados, com aproximadamente 60 centímetros, e costurados pelo fio de buriti, tendo uma largura de quase 90 centímetros. Ele é feito assim para não pesar, para que a mãe da menina o carregue durante a apresentação de sua filha no Kaumãi.
  • 11
    Essa ação de ‘jogar a carne de peixe para trás’, a mesma carne dada pelo ancião nomeador, tem alguns significados que fazem alusão a ‘jogar fora’ os possíveis problemas futuros relacionados com a estética da beleza, como o envelhecimento precoce, o excesso da gordura no corpo e no rosto. Porém, a menina vai poder comer depois do rito de liberação da primeira menstruação, ou seja, quando acabar seu primeiro período menstrual.
  • 12
    Mapulawa é o nome da ‘festa do pequi’. Esta festa sempre se realiza no período de maturação do pequi, entre os meses de outubro e novembro. É uma festa promovida para comemorar ou encerrar a colheita de pequi e para alegrar o apapaatai (‘espírito dono’) do pequi, garantindo a colheita nos próximos anos. Kukuho é o nome da ‘festa da mandioca’ do povo Wauja. Ela não é realizada em certa data ou mês, sendo que a sua promoção depende da comunidade. Kukuho é o nome da larva ou lagarta que é o owekeho (‘dono’) da plantação da mandioca. A festa da mandioca é a comemoração da colheita ou da plantação da mandioca.
  • 13
    Yaupe é o nome da festa tradicional do povo Wauja. A dança é a mesma da festa do pequi, Mapulawái, que é promovida na época do pequi, comemorando a fartura de frutas de pequizeiro e alegrando o espírito do dono desta planta, para que no próximo ano dê mais frutas. Ambas as festas culturais do povo Wauja são para o apapaatai do grande beija-flor que se chama Kumesixumã. Porém, Yaupe não tem período certo para ser realizada, sendo promovida quando o pessoal quer dançar na aldeia, alegrar a comunidade e, ao mesmo tempo, alegrar o ‘dono’ Kumesixumã.
  • 14
    Epitsitsi é a tinta de urucum amarelo. Não é usada pelo homem para pintar o corpo, apenas as mulheres a utilizam para pintar as suas pernas ou o corpo antes de dançar e antes de trabalhar na roça, no sol quente. Para o povo Wauja, epitsitsi é como um protetor para o corpo, tanto para mosquitos quanto para sol quente, para não queimar a pele.
  • 15
    Yuuku é a tinta de urucum vermelho utilizada por homem e mulher. É sempre utilizada quando tem dança cultural na comunidade, na pescaria e nos trabalhos em sol quente. Assim como epitsitsi, funciona como protetor solar ou roupa para o povo Wauja.
  • 16
    Ulutaki é uma resina de uma árvore grande, nativa da mata. É usada pela comunidade Wauja para pintura do rosto antes da dança na festa cultural. Esta resina é preparada com carvão preto. Depois de pintado, o rosto fica cheiroso, e a resina serve também como remédio.
  • 17
    Apapaatai é uma palavra do povo Wauja que indica ‘animal, bicho ou espírito invisível e visível’. Barcelos Neto (2008, pp. 29-163)Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. EDUSP/FAPESP. traduziu a palavra apapaatai para a língua portuguesa como “. . . não humano, bicho ou espírito invisível”.
  • 18
    As palavras ekepeleitsuwakí e sekitsipitsanakí são usadas pelos Wauja para se referirem aos cuidados, tanto da saúde quanto da beleza do corpo. As duas expressões são sinônimas – ekepeleitsuwakí e sekitsipitsanakí. Sua tradução literal é ‘higienização, promoção da saúde e dieta alimentar’ (ekepeleitsuwa ‘se cuidar, se proteger’ e ‘ação de proteção’, sekitsi(u) ‘se respeitar’, ‘se cuidar’ e ‘dieta alimentar’ e pitsanakí ‘ação de proteção’). Estas palavras têm variações no singular e no plural, como pekepeleitsuwa (‘você se cuide’, ‘você se respeite’), pisekitsuwa (‘você se respeite’, ‘você jejue’, ‘você se cuide’). Estes termos e suas variações são encontrados ao longo texto quando me refiro à promoção da saúde do corpo.
  • 19
    “A beleza é o substrato essencial para a produção da alegria, estado imprescindível para a obtenção do sucesso” (Barcelos Neto, 2008Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. EDUSP/FAPESP., p. 274). A beleza do corpo, a beleza da pintura corporal, o capricho na confecção de objetos, a melodia das canções e dos ritmos de danças são produtores/as de alegria para o povo Wauja.
  • 20
    Tukupé Waurá é Agente Indígena de Saúde (AIS) da aldeia Piyulewene (Waurá), trabalhando na área da saúde indígena desta aldeia. Fez o curso de Formação de Agentes Indígenas de Saúde/Projeto Xingu/Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo no ano de 2012.
  • 21
    Hukai Waurá é professor na aldeia Ulupuwene (Waurá), trabalhando na Escola Indígena Municipal Ulupuwene, anexada à Escola Estadual Indígena de Educação Básica de Piyulaga. É licenciado na área da Ciências da Cultura, pelo curso de Educação Intercultural, do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em seu projeto extraescolar, Hukai Waurá pesquisou sobre “A arte da cerâmica do povo Waurá”. Ele concluiu o curso em 2018.
  • Waurá, A. (2023). Educação Wauja no contexto da reclusão pubertária. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220085. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0085.

REFERÊNCIAS

  • Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu EDUSP/FAPESP.
  • Costa, C. E. (2020). Política da reclusão: chefia e fabricação de corpos no Alto Xingu. Revista de Antropologia da UFSCAR, 12(1), 145-172. https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.335
    » https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.335
  • Lima, A. G. M. (2013). Uma biografia do Kàjre, a machadinha Krahô. In J. R. S. Gonçalves, R. S. Guimarães & N. P. Bitar (Orgs.), A alma das coisas. Patrimônios, materialidade e ressonância (pp. 185-210). Ed. Mauad/FAPERJ.
  • Mello, M. I. C. (2005). Iamurikuma: música, mito e ritual entre os Wauja do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/102877/211418.pdf?sequence=1&isAllowed=y
    » https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/102877/211418.pdf?sequence=1&isAllowed=y
  • Novo, M. P. (2018). “Esse é o meu patikula”: uma etnografia do dinheiro e outras coisas entre os Kalapalo de Aiha [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9812
    » https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9812
  • Soares, A. M. P. S. (2019). Sangue menstrual na sociedade Karipuna do Amapá. Amazônica: Revista de Antropologia, 11(2), 413-433. http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v11i2.7548
    » https://doi.org/10.18542/amazonica.v11i2.7548
  • Tavares, S. C. (1994). A reclusão pubertária nos Kamayurá de Ipavu - um enfoque biocultural [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas]. https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994.79860
    » https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994.79860
  • Verani, C. (1990). A ‘Doença da Reclusão’ no Alto Xingu: estudo de um caso de confronto intercultural [Dissertação de mestrado, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro].
  • Viveiros de Castro, E. (1979). A fabricação do corpo na sociedade xinguana. Boletim do Museu Nacional, Série Antropologia, (32), 40-49.
  • Waurá, A. (2020). Revisitando a arte de fiação Wauja: algodão, beleza e saúde. Emblemas, 17(1), 60-72. https://periodicos.ufcat.edu.br/emblemas/article/view/63148
    » https://periodicos.ufcat.edu.br/emblemas/article/view/63148
  • Waurá, A. (2021). Wauja O̱ náka, O̱ nakiyejetuwãpitsana: reclusão pubertária, saúde, beleza e o saber-fazer do algodão [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Goiás].
  • Waurá, T., Waurá, A., & Waurá, H. (2012). Utapai ulekem onakapitsi onaunakirapitsi: conhecimento das regras de alimentação e da história Wauja. FALE/UFMG, Literaterras/Curso de Formação de Agentes Indígenas de Saúde/Projeto Xingu/EPM/UNIFESP.

Editado por

Responsabilidade editorial: Márcio Henrique Couto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2022
  • Aceito
    10 Maio 2023
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br