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Bioética e saúde do trabalhador: uma interface

Resumos

O presente estudo tem como objetivo propor uma abordagem ética sobre a relação saúde-trabalho, inicialmente a partir de dois marcos históricos, que remetem à interface entre bioética e saúde do trabalhador. Enfocando os limites das deontologias empresariais, o decorrente processo de culpabilização dos trabalhadores e o novo mundo biotecnocientífico do trabalho, a reflexão aponta para novos modos de apropriação e possibilidades de redimensionamento das questões que povoam o campo da saúde do trabalhador, com base em contribuições oferecidas pela bioética. Conclui-se, identificando problemas persistentes e emergentes no mundo do trabalho e indagando se a interface da bioética com a saúde do trabalhador assenta-se como pensamento contra-hegemônico capaz de estabelecer referenciais epistemológicos que contribuam para encurtar o caminho entre a teoria consolidada e a práxis transformadora, não experimentada no mundo do trabalho.

Bioética; Saúde do trabalhador; Direitos humanos; Ética; Trabalhadores


The aim of this paper is to propose an ethical approach in the health-work relationship, initially on the part of two historical landmarks that point to the interface between bioethics and workers' health. Focusing on the limits of corporate deontologies, the derived process of putting the blame on workers and the new bio-techno-scientific world of work. This reflection points out new modes of appropriation and possibilities for reshaping questions that reshape that encompass the field of workers' health, based on contributions offered by bioethics. It concludes mentioning the persistent and emergent problems in the world of labor, asking whether the interface of bioethics with workers' health finds a place as a contra-hegemonic thinking capable of establishing epistemological reference points that may contribute to shortening the path between consolidated theory and transformational praxis not yet experienced in the world of work.

Bioethics; Workers' health; Human rights; Ethics; Workers


El presente trabajo tiene como objetivo proponer un abordaje ético sobre la relación salud-trabajo, inicialmente a partir de dos marcos históricos que remiten a la interfaz entre bioética y salud del trabajador. Abordando los límites de las deontologías empresariales, el resultante proceso de culpabilización de los trabajadores y el nuevo mundo biotecnocientífico del trabajo, la reflexión apunta a nuevos modos de apropiación y posibilidades de redimensionamiento de las cuestiones que pueblan el campo de la salud del trabajador, a partir de contribuciones ofrecidas por la bioética. Concluye identificando problemas persistentes y emergentes en el mundo del trabajo, indagando si la interfaz de la bioética con la salud del trabajador se asienta como un pensamiento contrahegemónico capaz de establecer referencias epistemológicas que contribuyan a acortar la distancia entre la teoría consolidada y la praxis transformadora no experimentada en el mundo del trabajo.

Bioética; Salud del trabajador; Derechos Humanos; Ética; Trabajadores


Por uma reflexão ética no mundo do trabalho

Temos percebido que a emergência de questões de natureza ética no mundo do trabalho é constante. Constante, porém não nítida. A morte no trabalho é um evento, em si, antiético. Afronta-se a premissa moral de que o trabalho se expressa como processo de construção da própria humanidade. Grande parte das reflexões que se propõem a tratar das relações entre ética e trabalho não se apropria dos aspectos morais e valorativos a elas pertinentes, bem como não existem, em geral, formulações que indiquem novas posturas, voltadas para a busca de soluções mediante a reflexão ética.

A maior parte das escassas análises éticas encontradas na literatura acadêmica acerca dessa e de outras do mundo do trabalho são desenvolvidas com base na perspectiva das corporações, das organizações e das empresas 1. Lins TA. Uma bioética para a saúde do trabalhador. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013.. Existe, portanto, carência de análises que não sejam unilaterais e que proponham uma abordagem ética sobre a relação saúde-trabalho, de modo a considerar, nesse processo reflexivo, o interesse de todos os afetados, a partir da ampliação do papel dos próprios trabalhadores nesse processo.

Dois marcos históricos e a possível relação entre bioética e saúde do trabalhador

A fim de ilustrar a relevância da interface entre saúde do trabalhador e bioética, escolhemos propor uma possível relação entre dois marcos históricos. Primeiramente, rememoramos a influência de um dos mais importantes eventos para o balizamento dos valores de cidadania da humanidade: a Declaração Universal dos Direitos Humanos 2. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. [Internet]. ONU; 1948 [acesso 16 maio 2015]. Disponível: http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf
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.No conjunto de valores expressos pelo referido documento, datado de 1948, encontraremos, em seu artigo 23 (§ 1º), a definição do trabalho como essencial ao homem, ao afirmar que toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego 2. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. [Internet]. ONU; 1948 [acesso 16 maio 2015]. Disponível: http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf
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O segundo marco histórico tem sua localização circunscrita no teor das discussões sobre a ética médica, principalmente em relação à pesquisa e à clínica, e posteriormente converge no campo que hoje conhecemos como bioética. Justifica-se tal aproximação, uma vez que as relações entre saúde e trabalho estão historicamente associadas à medicina, tida, em seus primórdios, como disciplina capaz conformar os corpos para o trabalho e, mais recentemente, como integrante de um conjunto de saberes necessários ao desenvolvimento de condições favoráveis de trabalho 3. Mendes R, Dias EC. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. [Internet]. Rev Saúde Pública. 1991 [acesso 16 maio 2015];25(5):341-9. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101991000500003
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No ano de 1979, com a publicação do livro “Princípios de ética biomédica”, Tom L. Beauchamp e James F. Childress 4. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios da ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.propuseram certa perspectiva processual à reflexão moral nas discussões do campo biomédico. Essa perspectiva, conhecida como principialismo ou ética baseada em princípios, é um dos mais importantes e paradigmáticos conjuntos conceituais da bioética, prova disso é que tem servido de referencial a uma série de pactuações internacionais acerca da ética em pesquisa, influenciando, inclusive, o marco legal brasileiro de abordagem dessas questões, definido pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde 5. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [Internet]. 2012 [acesso 16 maio 2015]. Disponível: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
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Levando em conta a especificação da ética derivada do Relatório Belmont 6. United States of America. The National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral research. The Belmont report: ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research. [Internet]. 2012 [acesso 16 maio 2015]. Disponível: http://videocast.nih.gov/pdf/ohrp_belmont_report.pdf
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, o principialismo fundamenta-se em quatro princípios, considerados prima facie, já que não devem ser tomados como absolutos, mas sim corretos “ao mero olhar”: respeito à autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. De acordo com o principialismo, devemos buscar soluções para os problemas e dilemas éticos valendo-se de uma perspectiva de negociação e aceitação, operada pelo conjunto das pessoas envolvidas no processo em questão.

Nossa reflexão, portanto, inicia-se a partir da percepção acerca do possível atravessamento entre os dois eventos históricos em destaque. Têm-nos instigado as implicações que emergem da correspondência do artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos com os quatro princípios da teoria de Beauchamp e Childress, conforme salientamos a seguir: toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho (respeito à autonomia), a condições equitativas (justiça) e satisfatórias (beneficência) de trabalho e à proteção contra o desemprego (não maleficência). A aproximação entre a emergência da bioética como campo e as considerações acerca do trabalho com base em uma perspectiva de moralidade comum conforme conceito descrito por Clouser 7. Clouser KD. Common morality as an alternative to principlism. Kennedy Inst Ethics J. 1995;5(3):219-236., tal como é possível pensar pelo prisma dos direitos humanos, constitui, a nosso ver, o fio condutor para identificar outras aproximações na interface entre saúde do trabalhador e bioética, as quais intencionamos estabelecer neste trabalho.

As deontologias empresariais e a culpabilização das vítimas

Alguns dos maiores exemplos dessa interface da bioética com as questões referentes à relação saúde-trabalho são encontrados na produção de Giovanni Berlinguer 8. Berlinguer G. A relação entre saúde e trabalho do ponto de vista bioético. Saúde Soc. 1993;2(2):101-34., que, já no ano de 1993, distinguiu emergentes questões do mundo do trabalho que também diziam respeito ao campo da bioética. Nesse artigo, o autor, valendo-se da apresentação de situações presentes na interface entre as dinâmicas trabalho-saúde e economia-biologia humana, evidencia a carência de análises norteadas pela dimensão ética da relação entre os modos de saúde e as vivências de trabalho dos homens.

Diferentemente das proposições de Berlinguer, a chamada “ética empresarial” 9. Srour RH. Ética empresarial: o ciclo virtuoso dos negócios. 3ª ed. São Paulo: Elsevier; 2009.

10 . Srour RH. Casos de ética empresarial: chaves para entender e decidir. São Paulo: Elsevier; 2011.

11 . Srour RH. Poder, cultura e ética nas organizações. São Paulo: Elsevier; 2012.
-1212 . De Souza MCG. Ética no ambiente de trabalho: uma abordagem franca sobre a conduta ética dos colaboradores. São Paulo: Elsevier; 2009. volta-se para outra perspectiva moral no que se refere à aplicabilidade da ética às questões presentes no contexto do trabalho. Nesse cenário de pulsantes mudanças tecnológicas e reorganizações histórico-políticas, apresentou-se certa ameaça ao setor empresarial, materializada no surgimento de problemas carregados de aspectos morais, como corrupção, fraudes, abusos, assédios e explorações no trabalho, danos à saúde de trabalhadores, às comunidades e ao meio ambiente, entre outros.

De forma contraditória, tais problemas conseguiram romper os limites previamente impostos por determinados dispositivos técnicos e organizacionais que se destinavam justamente a evitá-los. Ora, falhando as estruturas organizacionais destinadas à antecipação dos problemas, foi necessária a composição de uma reflexão moral pretensamente capaz de transcender às simples imposições técnicas próprias do mundo do trabalho, na busca de capturar a dimensão subjetivo-moral dos envolvidos. O próprio setor empresarial passa a perceber que, para manter sua sobrevida, precisaria refletir e incorporar tais estruturas morais, a fim de garantir sua não desestruturação diante dos problemas que a lógica própria desse sistema produz.

Assim, à proporção que a perspectiva da ética empresarial ganha corpo, vê-se a concomitante expansão dos códigos de ética deontológicos, que talvez fossem mais bem definidos como códigos morais ou códigos de conduta. Destinados às empresas, corporações e organizações, esses códigos, no entanto, têm como foco de aplicação e operacionalização os trabalhadores. Para que se cumpram este objetivo, apresentam-se como modelo disciplinar, nos moldes descritos por Michel Foucault 1313 . Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011., na medida em que gera auto e heterovigilâncias em relação às condutas no trabalho.

Esses sistemas deontológicos surgem a partir do pensamento das direções executivas gerenciais dessas mesmas instituições (e nunca a partir das perspectivas dos trabalhadores e das comunidades afetadas pelos processos produtivos). Fundada em valores que são caros aos setores empresariais, criou-se uma estrutura moral que se pretende aplicável a todo o mundo do trabalho. Nesse sentido, a ética empresarial seria mais bem nomeada se fosse chamada de “moral empresarial”, cabendo, portanto, como estrutura moral, um exercício ético crítico-reflexivo capaz de vislumbrar os limites e pontos obsoletos presentes nessa moralidade.

Assim como a ética empresarial, ao longo da história, alguns campos tradicionais propuseram-se a analisar determinados aspectos éticos que envolvem o trabalho humano. Entretanto, Berlinguer 8. Berlinguer G. A relação entre saúde e trabalho do ponto de vista bioético. Saúde Soc. 1993;2(2):101-34.lança luz sobre o fato de que, devido ao reducionismo, ou até mesmo às implicações políticas conservadoras de alguns desses discursos, a convocação à bioética tornou-se premente para o engendramento de reflexões críticas dirigidas às moralidades e aos conflitos presentes no contexto do trabalho, abrindo espaço ao protagonismo real dos trabalhadores em tais discussões. Berlinguer indica que os discursos que culpam as vítimas da conjuntura na qual surgem os problemas (trabalhadores, comunidades, meio ambiente, entre outros) serão sempre insuficientes.

Na indicação de possíveis saídas para tais limites, Berlinguer 8. Berlinguer G. A relação entre saúde e trabalho do ponto de vista bioético. Saúde Soc. 1993;2(2):101-34. enfatiza a necessidade de se considerar a realidade concreta dos trabalhadores e de suas perspectivas (e não das empresas, nem dos gestores), na medida em que, segundo o autor, tais perspectivas se constituirão em referencial seguro para reflexões e intervenções.

O novo mundo biotecnocientífico do trabalho

Os discursos hegemônicos em ética empresarial e as tradicionais deontologias profissionais caracterizam-se, ainda, por outra dificuldade, quando demonstram, na maior parte das vezes, não estar atentos à influência dos emergentes vetores surgidos do cenário biotecnocientífico sobre o mundo do trabalho. Esses mesmos limites, no entanto, não são exclusivos dessas duas áreas.

Desde seu surgimento, o campo da saúde do trabalhador, que no Brasil está inscrito no grande campo da saúde pública, tem demonstrado sua força na criação de fecundas proposições e intervenções no mundo do trabalho, concernentes à relação homem-trabalho-ambiente. Apesar das muitas conquistas, podemos perceber, também, que esse campo passou a defrontar-se com alguns percalços históricos, os quais, a nosso entender, desaceleraram e/ou mitigaram a potência de seu aporte reflexivo-interventivo para contribuir no debate de questões problemáticas que nele se apresentam.

O surgimento desses limites teórico-práticos, aos quais se refere nossa hipótese, deve-se principalmente a uma série de transformações ocorridas na sociedade moderna desde meados do século XX. Schramm 1414 . Schramm FR. Paradigma bio-tecnocientífico e paradigma bioético. In: Oda LM, organizador. Biosafety of transgenic organisms in human health products. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1996. p. 109-27. argumenta que essas transformações aglutinam-se em torno de um fenômeno denominado biotecnociência. Assim, ao levarmos em conta as características desse emergente cenário, temos percebido que boa parte do campo da saúde do trabalhador ainda não conseguiu apropriar-se dos efeitos reconfiguradores estabelecidos pelo cenário biotecnocientífico.

A intervenção das ciências e tecnologias na dimensão biológico-humana tem produzido efeitos físicos e subjetivos não apenas sobre os trabalhadores, mas também sobre o mundo do trabalho. Tais efeitos, por certo, precisam ser levados em conta nas análises a ele pertinentes. Aspectos como as técnicas de aprimoramento humano, a expansão sem precedentes da indústria farmacêutica, as novas capacidades de intervenções cirúrgicas, o mapeamento genético, entre inúmeros outros exemplos possíveis de serem elencados, estabeleceram e continuam a estabelecer novas configurações ao mundo no qual, queiramos ou não, estamos imersos.

Atentando para não cair em certa postura saudosista em relação ao paradigma biotecnocientífico, o qual passou a fazer parte da vida humana (e, subsequentemente, parte também do trabalho humano), nossa proposta é enxergar a biotecnociência como chave de leitura primordial para a análise das novas configurações que se assentam sobre o campo da saúde do trabalhador. Se, por um lado, podemos perceber o problema ético advindo, por exemplo, de um modelo de recrutamento e seleção de trabalhadores que adota as características genéticas dos candidatos como critério para mensurar as probabilidades desses indivíduos de vir a gerar, no futuro, custos indesejados à empresa, em razão de afastamentos por enfermidade – intervenção essa que poderia ser considerada eugênica –, por outro lado, devemos também ponderar sobre as interessantes possibilidades que as biotecnologias ofereceriam, por exemplo, para o aumentar a qualidade e a expectativa de vida humana na relação com o trabalho.

Ora, o vetor biotecnocientífico pode e poderá ser fator de potência ou de enfraquecimento da relação homem-trabalho-produção-ambiente. Nesse sentido, entendemos que o fato de a biotecnociência vir a situar-se num ou noutro extremo da disputa entre potência e enfraquecimento dependerá fundamentalmente de nossa apropriação sobre o máximo possível de vetores referentes a esse cenário, bem como de nossa implicação propositiva para produzir reflexões que, mediante o exercício ético, considerem as metamorfoses que compõem o novo mundo biotecnocientífico do trabalho. Por conta do percurso reflexivo e prático presente no arcabouço da bioética, no que diz respeito às questões que emergem do cenário biotecnocientífico, acreditamos que a interface desse terreno com o campo da saúde do trabalhador poderá oferecer modos reflexivos e interventivos até então inéditos.

Identificando problemas persistentes e emergentes no mundo do trabalho

Garrafa e Porto 1515 . Garrafa V, Porto D. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In: Garrafa V, Pessini L, organizadores. Bioética: poder e injustiça. Brasília/São Paulo: Sociedade Brasileira de Bioética/Edições Loyola; 2003. p. 35-44., ao proporem uma bioética originada da perspectiva dos países periféricos, enfatizando questões pertinentes a esse contexto, indicaram a divisão do conjunto de problemas morais em duas grandes categorias: os persistentes e os emergentes. A fim de facilitar a compreensão didática e de proporcionar melhor organização para futuras análises e intervenções, dividiremos as questões éticas presentes no mundo do trabalho nessas duas categorias.

Os problemas persistentes referem-se a questões que contêm atravessamentos caros ao campo da bioética, mas que desde muito tempo já estão postas no mundo do trabalho. Como exemplos, temos, entre outros: assédio moral, sexual e racial no contexto do trabalho; deontologias profissionais e seus limites; questão da dupla lealdade dos profissionais de saúde ocupacional; conflito de interesses e influência secundária na aplicação de técnicas gerenciais, pesquisas de clima organizacional e em processos de recrutamento e seleção de trabalhadores; administração de danos e monetarização de riscos nos processos produtivos; dinâmica emprego-desemprego como processo de vulnerabilidade; instituição de discursos e práticas docilizadoras, destinados a gerar um processo de subjetivação identitária voltado para o trabalho.

Os problemas emergentes têm como principal característica sua origem, na medida em que essas questões puderam surgir das reconfigurações engendradas pelo cenário biotecnocientífico no mundo do trabalho. Entre outros exemplos, temos: aprimoramentos neurocognitivos concernentes ao trabalho; modificações de funções e características corporais voltadas para o trabalho; medicalização da vida em função do trabalho; contratação e avaliação de trabalhadores por meio descreening genético; amputações voluntárias para o implante de membros biônicos com vistas a aumentar o desempenho no trabalho.

Por que uma bioética para a saúde do trabalhador?

Será que os problemas elencados trazem em si características simultaneamente relacionadas aos campos da bioética e à saúde do trabalhador? Uma vez que estejamos convencidos de que a resposta a essa pergunta é positiva, automaticamente emergirá uma questão basal acerca dessa interface: seria relevante uma bioética para o mundo do trabalho?

A respeito dessas perguntas, alguns comentários se fazem necessários. O meio acadêmico-científico tem produzido número ínfimo de estudos centrados na discussão das questões que atravessam a relação entre saúde e trabalho, do ponto de vista da bioética. Tais discussões, quando propostas, em geral abordam a ética como componente periférico, que se restringe a oferecer suporte a uma ou mais questões concretas e específicas aí tratadas. Nesse contexto, o estudo de Berlinguer 8. Berlinguer G. A relação entre saúde e trabalho do ponto de vista bioético. Saúde Soc. 1993;2(2):101-34. foi a exceção que pudemos encontrar1. Lins TA. Uma bioética para a saúde do trabalhador. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013..

O campo da saúde do trabalhador traz em si uma série de avanços acerca do pensar sobre a relação trabalho-saúde, na medida em que foi capaz de superar certos limites presentes nos campos da medicina do trabalho e da saúde ocupacional 3. Mendes R, Dias EC. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. [Internet]. Rev Saúde Pública. 1991 [acesso 16 maio 2015];25(5):341-9. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101991000500003
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. Acreditamos que o principal avanço seja precisamente a consideração do protagonismo dos trabalhadores quanto à saúde deles próprios. As questões concernentes à relação trabalho-saúde requerem um olhar que contemple não apenas os efeitos dos problemas, mas também a eticidade das relações que fazem emergir os problemas (como nos permite pensar a bioética), e o papel protagonista dos trabalhadores é pressuposto para a efetivação de reflexões e intervenções que favoreçam os processos de saúde-doença no mundo do trabalho (como nos permite pensar a saúde do trabalhador).

Assim, acreditamos que, para avançar na direção do que temos proposto, não precisaremos criar um terceiro campo. Antes, nosso esforço deverá se voltar para a viabilização de processos que confluam na interface entre esses dois terrenos. Portanto, falar de ética ou bioética do trabalho, ou ainda de ética ou bioética empresarial, não seria o suficiente; precisamos pensar em uma bioética para a saúde do trabalhador.

Interface da bioética com a saúde do trabalhador como pensamento pós-abissal

A fim de estabelecer um diálogo que fundamente tal interface, convocamos as contribuições de Boaventura de Souza Santos, por meio de seu trabalho “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes” 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94.. Nesse estudo, o autor aborda um ponto que nos é muito caro, haja vista a proposta que temos feito à bioética para a saúde do trabalhador, a saber: o modo como se dão seus processos de invisibilização no mundo moderno.

Logo no início de seu texto, Santos apresenta uma demarcação basal para que possamos caminhar em direção a essa compreensão: O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o ‘deste lado da linha’ e o ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente 1717 . Santos BS. Op. cit. p. 71..

Para Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94., o mundo moderno constitui-se em um processo de produção de “inexistências” denominado “pensamento abissal”. Trata-se de uma exclusão radical que pretende ser derradeira, ao tornar invisíveis certas existências. Assim, os invisíveis, postos do outro lado da linha abissal, não se constituem nem mesmo naqueles “outros” para os quais se voltam os processos humanitários de inclusão social. Para manter a lógica desse pensamento, é necessário que a linha abissal, ao demarcar os limites de visibilidade, permaneça estabelecida. Uma ordem que parte do mundo visível, a fim de garantir a impossibilidade de que ambos os lados convivam de modo equânime.

Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94. assegura que, nas sociedades metropolitanas, a modernidade ocidental é caracterizada pela tensão entre regulação social e emancipação social. No entanto, quando as linhas abissais se estabelecem, tornam-se concomitantes dois modos sociais distintos: além das sociedades metropolitanas, constituem-se também os territórios coloniais (aqueles que são invisibilizados). Assim, para o autor, os territórios coloniais invisibilizados configuram-se em modos de relação histórico-políticos bastante similares àqueles encontrados nos processos de colonização – processos esses que separavam o Velho do Novo Mundo.

O autor ressalva que as assimetrias produtoras de inexistências encontram-se de tal forma acirradas nos territórios coloniais, que a esses ainda não foi possível pensar acerca da dinâmica regulação-emancipação, já que esse modo social é operado em outra dinâmica, a que se apresenta na tensão apropriação-violência. Ao refletir sobre as principais linhas abissais de nosso tempo, o autor chega à conclusão de que elas consistiriam no conhecimento e no direitomodernos: A apropriação e a violência assumem formas diferentes nas linhas abissais jurídica e epistemológica, mas em geral a apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física, material, cultural e humana. Na prática, é profunda a ligação entre a apropriação e a violência 1818 . Santos BS. Op. cit. p. 75..

A linha abissal do conhecimento diz respeito a uma dimensão epistemológica que delega à ciência o monopólio das produções de verdades universais e da distinção entre o real e o irreal. Assim, essa mesma ciência moderna posiciona-se acima de outros conhecimentos excluídos ou alternativos, existentes nas sociedades metropolitanas, tais como a filosofia e a teologia – o que estabelece tensões visíveis e nítidas, na medida em que, ressalta Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94., estão presentes no lado de cá da linha. No entanto, a própria visibilidade desses conhecimentos assenta-se justamente na invisibilidade e no desaparecimento de conhecimentos tácitos que são postos do outro lado da linha abissal, quando sequer se apresentam, em termos da dicotomia verdadeiro-falso, na dinâmica entre os conhecimentos localizados do lado visível da linha:

No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias e de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão até a pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, ao passo que a violência é exercida mediante a proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, a adoção forçada de nomes cristãos, a conversão e a destruição de símbolos e lugares de culto e a prática de todo tipo de discriminação cultural e racial 1818 . Santos BS. Op. cit. p. 75..

Já em relação ao direito moderno, segunda principal linha abissal, de acordo com Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94., o lado visível da linha constitui-se também de um conjunto normativo-legal fundado no direito oficial do Estado e no direito internacional, ambos tidos como os únicos modos jurídicos possíveis, de forma que as relações estabelecidas em torno desses modos os consideram, necessariamente, universais. Nesse sentido, o autor assinala que a dicotomia legal-ilegal se constitui por intermédio dessa perspectiva abissal, e tornando invisíveis certos modos organizativos que desconsideram esse tipo de padronização da legalidade.

A essa concepção abissal de direito soma-se a compreensão de que a realidade cronológica atual do lado de lá da linha é também invisibilizada e que, em uma ação epistemológica, o presente dos territórios coloniais são conceituados como passado do lado de cá da linha, e se diz que lá existe um processo evolutivo que, pretensamente, seria natural. Ocorre, assim, a criação hegemônica de um futuro único para o mundo, no qual as questões concretas de agora dos territórios coloniais não importam, ou nem mesmo existem. Por essa razão, mesmo que os princípios legais das sociedades metropolitanas não se apliquem ao outro lado, a crença na universalidade desses princípios permanece. Assim, para Santos, a tensão entreregulação e emancipação nas sociedades metropolitanas coexiste com a tensão entre apropriação eviolência nos territórios coloniais:

No tocante ao direito, a tensão entre apropriação e violência é particularmente complexa em virtude de sua relação direta com a extração de valor: tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador do direito e das autoridades tradicionais por meio do governo indireto (indirect rule), pilhagem de recursos naturais, deslocação maciça de populações, guerras e tratados desiguais, diferentes formas de apartheid e assimilação forçada etc. Enquanto a lógica da regulação/emancipação é impensável sem a distinção matricial entre o direito das pessoas e o direito das coisas, a lógica da apropriação/violência reconhece apenas o direito das coisas, sejam elas humanas ou não 1818 . Santos BS. Op. cit. p. 75..

Assim, em um processo de coisificação de tudo aquilo que se inscreve nos territórios coloniais, criam-se existências subumanas invisíveis (e, portanto, desconsideradas) até mesmo aos modos modernos de inclusão social. Segundo Santos, a humanidade moderna não se concebe sem uma subumanidade moderna 1919 . Santos BS. Op. cit. p. 76.. Nessa mesma direção, o autor nos indica que o pensamento abissal banaliza sua destrutividade, porque é no exercício de criação de uma humanidade pretensamente universal que se engendra o sacrifício de uma parcela de humanos – o que se constitui na negação da humanidade dos seres coloniais.

Para pensarmos acerca do tema central de nosso texto (a produção de modos reflexivos e interventivos a partir da interface entre a bioética e a saúde do trabalhador), encontramos, nesse estudo de Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94., a indicação do trabalho escravo e do trabalho infantil como linhas abissais. No entanto, uma questão persiste: além das linhas indicativas desse autor, existiriam outras zonas pós-abissais no mundo do trabalho que ainda permanecem em estado de invisibilidade? Caso a resposta seja afirmativa, faz-se necessária a criação de modos de desinvisibilização das linhas abissais relacionadas ao trabalho humano, a fim de que, pelo protagonismo dos trabalhadores que até então foram “colonizados”, possamos pensar em outros modos éticos para os processos de trabalho e de produção.

Parece-nos que o pensamento de Santos acerca da injustiça social encontra correspondência nas reflexões propostas por Christophe Dejours 2020 . Dejours C. A Banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV; 2003., segundo as quais, por mais que as pessoas sejam acometidas de processos produtores de sofrimento, como o desemprego e a pobreza, existe uma cisão cognitiva que gera certa compreensão resignada e fatalista em relação ao sofrimento. Tal compreensão, por sua vez, impossibilita o entendimento de que esse mesmo sofrimento é, na verdade, uma injustiça. Para Dejours, isso ocorre em razão de um processo contemporâneo de produção de subjetividades clivadas, cujos limites de tolerância às injustiças foram expandidos. O autor descreve tal processo como a banalização da injustiça social, o que parece bastante similar àquilo que Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94. denomina banalização da destrutividade do pensamento abissal.

Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94. sublinha que o fascismo social que se dá a partir das linhas abissais apresenta-se como forma inédita e naturalizada de relação social, ao conseguir estabelecer seus fundamentos à parte do contrato social. O autor defende que esse fascismo moderno constitui o meio pelo qual os grupos invisibilizados (bem como seus interesses) são, de fato, desconsiderados pelo contrato social. Para ele, trabalhadores e membros das classes populares tornam-se descartáveis, na medida em que seus direitos econômicos e sociais são anulados pelo contrato social, que passa a atender e a garantir apenas os interesses hegemônicos. Além disso, a cidadania torna-se inacessível a certos grupos sociais que pretendem alcançá-la, como é o caso da população jovem, de grupos minoritários e dos desempregados.

É nesse mesmo sentido que Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94.apresenta o advento do fenômeno denominado “lei branda”, forma legal cujo cumprimento não é obrigatório para “alguns”. O autor destaca que esse dispositivo tem sido aplicado principalmente às relações entre capital e trabalho, quando são criados, por exemplo, códigos de conduta destinados a estabelecer linhas indicativas para as grandes corporações multinacionais, e nos quais se opera um endurecimento normativo para com os trabalhadores. Ao mesmo tempo, entretanto, a aplicação dessas mesmas “leis” é abrandada no caso dos empregadores, quando não cumprem os compromissos e garantias que deveriam impedir as consequências negativas dos processos produtivos.

O autor expõe a premente necessidade de se engendrar um processo de resistência ativa à expansão e à manutenção das linhas abissais, propondo que a resistência política só será possível quando formos capazes de estabelecer uma resistência epistemológica. Ou seja, mais do que a indicação de alternativas políticas (muitas delas ainda fundadas na lógica colonial), carecemos produzir a passagem para um pensamento pós-abissal.

Santos defende, ainda, que nenhuma alternativa pós-capitalista será, de fato, progressista enquanto perdurarem os processos produtores de invisibilizações e de inexistências, característicos do pensamento abissal: Uma concepção pós-abissal do marxismo (em si mesmo um bom exemplo de pensamento abissal) pretende que a emancipação dos trabalhadores seja conquistada em conjunto com a emancipação de todas as populações descartáveis do Sul global, que são oprimidas mas não diretamente exploradas pelo capitalismo global. Da mesma forma, reivindica que os direitos dos cidadãos não estarão assegurados enquanto os não cidadãos sofrerem um tratamento sub-humano 2121 . Santos BS. Op. cit. p. 84-5..

A partir dessa perspectiva, perceberemos a necessidade de considerar os diferentes prismas que o outro lado da linha tem a ofertar. Os invisíveis e inexistentes da modernidade podem, portanto, oferecer ao pensamento pós-abissal possibilidades que o pensamento ocidental moderno situa no domínio do impensável. O pensamento pós-abissal põe em xeque a cultura unidirecional da ciência hegemônica, uma vez que, segundo Santos 1616 . Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. 2007;(79):71-94., propõe uma ecologia de saberes, ao garantir o reconhecimento e a autonomia dos conhecimentos heterogêneos, plurais e singulares.

Tal postura não exclui a ciência moderna, mas a situa em um plano horizontal, não hierárquico, em relação aos outros inúmeros conhecimentos. Há que ressaltar que a autonomia entre os saberes não deve ser vista como sinônimo de isolamento; em vez disso, a ecologia de saberes irá fomentar um processo comunicativo e de interlocução entre todos os conhecimentos, inclusive aqueles que antes eram marginais ou até mesmo invisíveis. Desse modo, a fim de pensarmos as relações pós-abissais no mundo do trabalho, deveremos refletir e intervir no trabalho em uma dimensão situada além do próprio trabalho e, ao mesmo tempo, pensar a saúde do trabalhador em um aspecto que está além da oposição entre empregador e empregado.

Uma bioética para a saúde do trabalhador

Diferentemente de outros campos cuja preocupação é dirigida às populações, ao todo, às entidades gerais, o olhar oferecido pelo campo da bioética tem como principal característica o fato de concentrar sua atenção naqueles que “escapam”, nas singularidades, nos invisíveis de zonas abissais, naqueles que, por definição, são postos à margem da chamada “curva normal”, conforme indica Canguilhem 2222 . Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 4ª ed. Rio de janeiro: Forense Universitária; 1995. ao descrever os constructos epistemológicos que sustentam critérios de normalidade assimilados e naturalizados pelo senso comum. Essas vidas estão inscritas em uma dimensão real e concreta de vulnerabilidades e são constituídas por uma assimetria estrutural ante as relações de produção do capitalismo. Tal assimetria compõe-se por intermédio da produção de “vidas descartáveis”, as quais são apropriadas pelas relações produtivas com a finalidade de objetivar esses homens e mulheres (em sua dimensão singular e específica) como meros instrumentos do lucro e da acumulação – um tipo de vida produzida para ser empregada e, em seguida, descartada.

O mundo do trabalho parece ser, por excelência, o campo da padronização e da regulação. Comumente, podemos observar que produções e análises a respeito das teorias de gestão do trabalho, das relações de trabalho, bem como de modelos identitários do mundo do trabalho 2323 . Chiavenato I. Introdução à teoria geral da administração. São Paulo: Campus; 2004., tendem a se acomodar em generalizações e totalizações. Tal postura, necessariamente, deixa perdidos, esquecidos e invisibilizados os múltiplos sentidos que emergem nas singulares experiências advindas das microdinâmicas vida-trabalho. Ora, se aqui nosso enfoque se volta justamente para aquilo que difere do comum, do habitual, do familiar, do homogeneizado, do normalizado (e que, portanto, tende a escapar), torna-se claro o privilégio que conferiremos ao incomum – não em um sentido patologizante, individualizante, ou de modo espetacularizado, mas, sim, com a finalidade de abrir espaço a possibilidades antes impensadas na reflexão acerca do trabalho.

Desejamos dar visibilidade às questões éticas relacionadas à dinâmica vida-trabalho-saúde, as quais parecem surpreendentes e espantosas quando avistadas a partir de uma perspectiva encaixada no regular e no comum. Ao olharmos tais questões na dimensão do extraordinário (tal como a bioética nos permite pensar), perceberemos também as obscurecidas e ocultadas aporias decorrentes desses contextos. Apostamos no instrumental oferecido pela bioética na feitura dessa interface com o campo da saúde do trabalhador, por considerarmos que ela retém em seu olhar uma apropriação situada além da pura e simples regulamentação legal de dispositivos destinados a garantir direitos e deveres. Antes, o olhar bioético voltará sua atenção para o campo da invisibilidade, ou seja, para contextos que de início são percebidos como insolúveis justamente porque os nós críticos de seus problemas se encontram invisibilizados.

Nesse sentido, a bioética para a saúde do trabalhador terá como premissa de ação a dinâmica de desinvisibilização e de descortinação de linhas abissais no mundo do trabalho, de modo a criar processos éticos de reflexão crítica acerca das moralidades que ali pairam, bem como fomentar subsequentes intervenções nesse campo. Ao seguirmos nessa direção, nosso intento é encontrar caminhos possíveis (mesmo que nesse processo se faça necessário o exercício de construção de caminhos) em meio à falta de “poros”, que é característica de alguns problemas emergentes nos processos produtivos e de trabalho. Assim vislumbramos a produção de conhecimentos pós-abissais concernentes ao mundo do trabalho – conhecimentos esses que consigam superar as dimensões de fundamentalismo, heteronomia e injustiça que ainda incidem de maneira insistente sobre os trabalhadores.

A principal dificuldade que encontraremos, nesse sentido, será a abertura do diálogo com aquelas outras epistemes que ora ocupam o lugar de hegemonia em relação aos modos de pensar e de agir sobre o mundo do trabalho. Tais saberes institucionalizados desde muito empreendem suas energias a fim de assegurar a manutenção de uma ordem opressora no mundo do trabalho, para a qual os trabalhadores são meros recursos descartáveis. Ora, a interface entre bioética e saúde do trabalhador constitui-se em convergência entre campos que, mediante a interlocução de seus instrumentos, se encaminham justamente para desacomodar e descristalizar a pseudonaturalidade de pressupostos hegemônicos sobre o trabalho.

Contudo, devemos compreender que, mesmo nesse processo de destituição hierárquica das epistemes centrais, por meio da aplicabilidade da ecologia de saberes em uma bioética para a saúde do trabalhador, de maneira alguma devemos desconsiderar os saberes que serviam à manutenção da ordem hegemônica. A proposta de ecologia de saberes não pretende excluir os saberes que até então eram hegemônicos; antes se deve inseri-los em uma dinâmica equânime e horizontalizada.

Nesse processo, poderemos encontrar muitas dificuldades, uma vez que atores e saberes alinhados aos poderes hegemônicos habituaram-se a investir suas forças no enfraquecimento de trabalhadores e de outros sujeitos invisibilizados pelos processos produtivos. No entanto, esses mesmos atores e saberes ainda não se apropriaram do fato de que problemas e questões característicos do mundo do trabalho (e que são reforçados por suas ações) também dizem respeito a eles próprios, afetando-os direta e indiretamente.

Em relação a essa dificuldade de perceber questões e problemas éticos que afetam terceiros como algo que diz respeito a todos, lembramo-nos de uma reflexão trazida por Humberto Maturana, em sua obra “Emoções e linguagem na educação e na política”2424 . Maturana H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG; 1998.. Esse autor assinala que nossa sociedade ocidental produz inúmeras reflexões de natureza ética, mantendo, inclusive, uma pactuação de moralidade comum, por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos 2. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. [Internet]. ONU; 1948 [acesso 16 maio 2015]. Disponível: http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf
http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/U...
. No entanto, prossegue ele, grande parte dessas reflexões desenvolve-se em bases puramente racionais e, exatamente por isso,só convencem os que já estão convencidos, advertindo que o motivo pelo qual se dá essa ineficácia reside justamente no fato de que a preocupação ética nunca emergirá em uma dimensão que seja puramente racional2525 . Maturana H. Op. cit. p. 72..

Maturana também afirma que a preocupação ética só será possível mediante a aceitação do outro. Assim justifica sua compreensão: Em 1955 eu era estudante na Inglaterra. Visitei, com vários amigos chilenos, uma exposição de quadros de um pintor japonês sobre a destruição e o sofrimento gerados pela bomba atômica lançada sobre Hiroshima. Ao sair, um dos meus amigos disse: – Que me importa que tenham morrido cem mil japoneses em Hiroshima, se eu não conhecia nenhum! – Ouvir isto me deu calafrios e, ao mesmo tempo, me pareceu maravilhoso. Agradeci ao meu amigo que o tenha dito, porque me fez entender algo fundamental: se não tenho imaginação para incorporar aqueles japoneses no meu mundo, aceitando-os como legítimos outros na convivência, não posso preocupar-me com o que lhes acontece como consequência de meus atos 2626 . Maturana H. Op. cit. p. 73..

Assim, Maturana conclui que a ética nunca poderá fundamentar-se exclusivamente na racionalidade, e que, se assim o fizer, terá frustradas suas pretensões propositivas. Nesse mesmo sentido, o autor indica que toda a proposição ética que se pretenda profícua deverá ter suas fundamentações assentadas em uma dimensão relacional entre emotividade e racionalidade. Desse modo, se queremos fomentar um pensar ético que abarque a todos (e não somente aqueles que nos sejam semelhantes), devemos transcender à pura racionalidade a fim de criar processos dialógicos capazes de atingir as existências em sua dimensão integral – integralidade essa que incluirá principalmente os afetos que compõem a vida naquilo que conhecemos como emoções.

Por fim, ao nos apropriarmos das contribuições de Maturana nesta construção dialógica entre a bioética e a saúde do trabalhador, esperamos mitigar o efeito de forças sedentárias que pretendem impedir os processos transformadores no mundo do trabalho. Ao pôr em prática a ecologia de saberes que temos proposto, não podemos abrir mão, nem da dimensão do papel protagonista dos trabalhadores (e demais afetados que estejam em processo de invisibilização) nas reflexões e intervenções éticas no mundo do trabalho, nem de nos inserir no campo de disputa, que está posto, a fim de criar novas alianças com atores e saberes que antes, em um processo de apropriação e cooptação, foram postos a serviço de poderes hegemônicos. Assim, mediante um processo reflexivo de aceitação e de responsabilização que atinja a integralidade das existências – ou seja, tanto no plano reflexivo, quanto no plano das emoções humanas –, pretendemos conquistar novos aliados no intuito de fortalecer, em um plano horizontal e não hierarquizado, o exercício de uma ecologia de saberes que favoreça a composição de uma bioética para a saúde do trabalhador, desde que esses novos parceiros sejam capazes de considerar aqueles inscritos na categoria trabalhador como alteridades legítimas.

Considerações finais

A partir da perspectiva proposta e desenvolvida no presente trabalho, pretendemos incentivar a criação e a consolidação de espaços que fomentem a apropriação emancipatória de autênticos sentidos e experiências por parte dos trabalhadores. Para tanto, faz-se necessário o exercício reflexivo crítico a respeito das moralidades que povoam o mundo do trabalho – o que, de acordo com nossa proposta, será viabilizado pela bioética para a saúde do trabalhador. A nosso ver, tal exercício será tão importante para a bioética quanto o são as demais reflexões realizadas por esse campo acerca de outras questões que lhes são caras. Arriscamos dizer que a emergência da bioética para a saúde do trabalhador poderá constituir-se em prisma que se conjuga plenamente às proposições e ações empreendidas pelo campo da bioética ao longo dos últimos anos.

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  • 25
    Maturana H. Op. cit. p. 72.
  • 26
    Maturana H. Op. cit. p. 73.
  • Este trabalho baseia-se em dissertação produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva em Associação das IES Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal Fluminense(UFF) – PPGBIOS, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2014
  • Revisado
    20 Maio 2015
  • Aceito
    3 Jun 2015
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