Open-access Riscos microbiológicos de fórmulas para lactentes

Microbiological risks of infant formulas

Resumo

O objetivo desse trabalho foi discorrer sobre os principais perigos biológicos encontrados em fórmulas infantis a partir dos relatos da literatura, especialmente de registros de surtos. Este estudo é de cunho exploratório por meio de revisão bibliográfica, sendo utilizados como fontes de dados sites de busca científica. Dentre os principais micro-organismos causadores de doenças ligadas à ingestão de fórmulas infantis estão o Cronobacter sakazakii e a Salmonella enterica, porém outras bactérias, como Clostridium botulinum, Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus e Bacillus cereus, podem ser responsáveis por contaminações destas fórmulas. Visto que lactentes apresentam os sistemas imunológico e metabólico ainda em desenvolvimento, estes representam um público mais vulnerável a contaminantes, fazendo-se fundamental o oferecimento de alimentos seguros desde o processamento na indústria até a administração nas residências e unidades hospitalares.

Palavras-chave:  Fórmulas infantis; Contaminação de alimentos; Surtos; Patógeno; Salmonella; Cronobacter sakazakii

Abstract

The objective of this paper was discuss the main biological hazards found in infant formulas from literature reports, especially from outbreak records. This study has an exploratory nature through a bibliographical review where scientific search sites were used as data sources. Cronobacter sakazakii and Salmonella enterica are among the main microorganisms that cause diseases associated with infant formulas ingestion; however, Clostridium botulinum, Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus and Bacillus cereus can also be responsible for infant formulas contaminations. Since infants have the immune and metabolic systems still in development, they represent a more vulnerable group to contaminants, making it essential to offer safe foods from processing in industry to administration in homes and hospital units.

Keywords:  Infant formulas; Food contamination; Outbreaks; Pathogen; Salmonella; Cronobacter sakazakii

1 Introdução

A alimentação desempenha um papel essencial para a saúde humana desde o período gestacional. Os primeiros mil dias de vida da criança (270 dias da gestação e 730 dias até a criança completar dois anos de idade) são considerados uma janela de oportunidade para o desenvolvimento integral e adequado (Bhutta et al., 2008; Cunha et al., 2015). Durante essa fase, o crescimento acontece de forma rápida com a maturidade dos sistemas e órgãos, sendo este um período crítico pelo alto risco de infecções (Bula-Rudas et al., 2015; Mozetic et al., 2016).

O leite materno é o único alimento que o recém-nascido necessita até os seis meses de idade; no entanto, quando a amamentação não pode ser realizada, são necessários produtos apropriados para substituir nutricionalmente o leite humano, como as fórmulas infantis, capazes de proporcionar maior expectativa de vida aos lactentes (Sá et al., 2017). Portanto, a qualidade da alimentação oferecida nesse período é essencial para o completo desenvolvimento, influenciando na saúde e no bem-estar do indivíduo ao longo da vida (Cunha et al., 2015).

Do ponto de vista microbiológico, as fórmulas infantis podem sofrer contaminações, sendo relatados surtos e casos isolados de doenças vinculadas a seu consumo (Tabela 1). Em 2004, a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) e a World Health Organization (WHO) elaboraram um parecer avaliando os possíveis riscos microbiológicos em fórmulas infantis, tornando possível sua identificação e classificação (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2004). Os micro-organismos foram divididos em três categorias (A, B e C) mediante a comprovação científica do grau de causalidade de doenças (Tabela 2) (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2006).

Tabela 1
Casos isolados e surtos por contaminação microbiológica de lactentes alimentados com fórmulas infantis.
Tabela 2
Caracterização de micro-organismos ou toxinas de maior preocupação em fórmulas infantis em pó, com base na força de evidência de associação causal entre sua presença em fórmulas infantis em pó e doença em lactentes.

Juntamente com a divulgação desse parecer, a World Health Organization enfatiza a necessidade de recomendações específicas para alimentos destinados a lactentes e crianças, e ressalta a importância da identificação de perigos e de um controle higiênico-sanitário eficiente para esses produtos (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2004). Diante do exposto, o objetivo deste trabalho foi apresentar um panorama sobre os principais perigos biológicos presentes em fórmulas infantis e como estes afetam a segurança das fórmulas e a saúde de lactentes e crianças na primeira infância.

2 Metodologia

O trabalho desenvolvido foi um estudo exploratório por meio de revisão bibliográfica, com base em artigos dos últimos 50 anos. O mecanismo de busca foi a consulta de sites, como Web of Science, Science Direct, Scielo, Google Acadêmico, arquivos disponíveis na Biblioteca Digital da UNICAMP e livros da Biblioteca da Universidade Estadual de Campinas. Os termos-chave para busca foram: Segurança dos Alimentos, Contaminação de Alimentos, Food safety, Contaminação de fórmulas infantis, Fórmulas infantis reconstituídas, Infant formula.

3 Fórmulas infantis

As composições das fórmulas infantis são específicas para a necessidade de cada lactente, considerando fatores como a faixa etária e a classificação do recém-nascido, a presença de alergias, a intolerância à lactose, o refluxo e as patologias, entre outros. Dentre todos os tipos de fórmulas, este artigo irá tratar especificamente das fórmulas destinadas a recém-nascidos, lactentes e crianças de primeira infância, sendo denominadas “de partida”, quando indicadas para recém-nascidos a termo e com idades de até cinco meses e 29 dias; fórmulas para lactentes (desde que fortificadas com ferro) destinadas às idades entre 6 e 12 meses, e leites de transição, sendo estes equivalentes às fórmulas para lactentes, porém com teores mais elevados de cálcio, ferro e fósforo, podendo ser consumidos também por crianças de 12 a 36 meses (Sá et al., 2017).

De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), uma série de regras deve ser adotada para a produção de fórmulas infantis adequadas (Brasil, 2014). As regulamentações abrangem desde os ingredientes a serem utilizados na produção até a comercialização dos produtos, sendo estas as RDC n.º 42/2011, RDC n.º 46/2011, RDC n.º 43/2011, RDC n.º 44/2011, e RDC n.º 45/2011, e a Lei n.º 11.265/2006. Além das RDCs que regularizam as fórmulas infantis, esses produtos precisam seguir critérios microbiológicos específicos, como os descritos na RDC 12/2001, que expõe tecnicamente os padrões microbiológicos de alimentos (Tabela 3) (Brasil, 2001), e no Codex 066/2008, que trata dos critérios microbiológicos exclusivos das fórmulas infantis (Tabelas 4 e 5) (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2009).

Tabela 3
Critério microbiológico para alimentos infantis, incluindo fórmulas.
Tabela 4
Critério microbiológico para fórmulas “de partida”, fórmula para lactentes com necessidades dietoterápicas específicas e para leite humano fortificado.
Tabela 5
Critério microbiológico para fórmulas destinadas a lactentes, fórmulas de transição e para crianças de primeira infância com necessidades dietoterápicas específicas.

Contaminações microbiológicas podem ocorrer durante a produção industrial (Figura 1), a estocagem ou até mesmo durante o preparo das fórmulas infantis, sendo necessárias orientações de condutas de assepsia nos ambientes de preparo e armazenamento após reconstituição (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2004, 2006).

Figura 1
Fluxograma genérico da produção de fórmulas infantis e seu preparo em ambiente hospitalar e domiciliar. Fonte: Rossi (2007); World Health Organization (2007); Wu et al. (2018).

Os processos industrias de obtenção das fórmulas infantis apresentam etapa letal, geralmente constituindo-se em tratamento térmico, que permite a redução significativa (8 a 10 unidades de log ou mais) de micro-organismos em sua forma vegetativa (International Commision on Microbial Specifications for Foods, 2015). Desta forma, a presença de patógenos, tais como Salmonella e Cronobacter spp. em produtos acabados é possivelmente decorrente de contaminação pós-processo (International Commision on Microbial Specifications for Foods, 2015).

Para a reconstituição de fórmulas infantis em ambiente domiciliar ou em lactários, um fator essencial é a qualidade da água utilizada, recomendando-se que esta seja fervida e posteriormente resfriada até uma temperatura de aproximadamente 70 °C, garantindo eficiência na manutenção da segurança do produto e de seu valor nutricional (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2006). Outra etapa importante é garantir a correta higienização de todos os instrumentos e superfícies que serão utilizados durante a reconstituição, uma vez que a presença de resíduos pode causar recontaminação de utensílios e a formação de biofilmes, o que pode ocasionar contaminação cruzada de outros alimentos, pois micro-organismo patógenos e/ou seus esporos podem sobreviver longos períodos em alimentos com baixa atividade de água como as fórmulas infantis (World Health Organization, 2007; Beuchat et al., 2013).

4 Contaminantes biológicos

4.1 Cronobacter sakazakii

A Cronobacter sakazakii (C. sakazakii) é um patógeno oportunista emergente, sendo reconhecidamente um novo agente etiológico causador de doenças de origem alimentar (Machado, 2013). Dentre os riscos, pode-se citar meningite, enterocolite necrosante, sepse e bacteremia, alcançando taxas de mortalidade de até 80% e com possibilidade de sequela neurológica para os sobreviventes (Fiore et al., 2008). De acordo com a Food and Agriculture Organization of the United Nations (2004), a C. sakazakii é uma das bactérias classificadas na categoria A como veículo e fonte de infecção para lactentes e crianças, ou seja, a evidência de causalidade microbiológica e epidemiológica é cientificamente comprovada.

O processo de pasteurização consegue inativar a bactéria, no entanto pode haver contaminação cruzada de alimentos na planta de produção ou mesmo durante a reconstituição da fórmula, pois, quando presentes em uma superfície, estas são capazes de formar biofilme e produzir substâncias poliméricas extracelulares que a protegem do ambiente externo, impedindo sua eliminação (Lehner et al., 2005). O mecanismo de patogenicidade desse micro-organismo não é totalmente claro até o momento. Acredita-se que a menor acidez gástrica dos recém-nascidos contribua para a sobrevivência da bactéria, facilitando sua chegada e proliferação no intestino. Esta condição favorece a colonização das mucosas intestinais por patógenos e sua translocação para outros tecidos. Somada a isso, a síntese de diferentes compostos pode interferir na permeabilidade da barreira hematoencefálica, levando à infecção das meninges e do cérebro (Iversen & Forsythe, 2003; Fiore et al., 2008).

Surtos e casos isolados associando a C. sakazakii com a transmissão de doenças podem ser encontrados na literatura, sendo alguns desses ocorridos no Brasil, como mostra a revisão de Brandão et al. (2018). Estudos apontam as fórmulas infantis como um dos principais veículos de doenças transmitidas por alimentos para crianças, principalmente menores de um ano de idade, prematuros e/ou com baixo peso (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2004; Fiore et al., 2008). Muytjens et al. (1988) analisaram 141 amostras de fórmulas infantis em pó de 35 países e constataram que 52,2% estavam contaminadas com bactérias da família Enterobacteriaceae, sendo 14% destas (13 países) identificadas como C. sakazakii. Trabalho semelhante foi realizado no Canadá por Nazarowec-White & Farber (1997) e, como resultado, das 120 amostras analisadas, 6,7% estavam contaminadas.

Um surto de enterocolite necrosante atingiu 12 recém-nascidos na Bélgica em 1998, resultando em dois óbitos. Após estudo mais detalhado, observou-se que 10 dos 12 lactentes foram alimentados com a mesma marca de fórmula infantil em pó, sendo a C. sakazakii isolada do estômago, sangue e “swab” anal de seis deles, assim como das latas do mesmo lote de leite em pó (Van Acker et al., 2001). Estudos em diferentes países com amostras de fórmulas infantis obtidas de comércios varejistas ou online e de farmácias hospitalares, detectaram a presença de C. sakazakii em 5,3% a 7,2% do total das amostras analisadas, demonstrando que existe um risco constante de contaminação neste produto (Kim et al., 2011; Mardaneh & Dallal, 2017).

Recentemente, foram publicados trabalhos que visavam analisar a possível presença de C. sakazakii em fórmulas infantis comercializadas na China. Fei et al. (2017) encontram contaminação de 2,8% (56/2020) das amostras de fórmulas coletadas. Resultado semelhante foi observado por Xin et al. (2018), que constataram contaminação de 3,4% das 119 amostras que incluíam fórmulas infantis (88/119) e fórmulas infantis para lactentes de 6 a 12 meses (31/119). Outro estudo realizado por uma equipe chilena analisou 90 amostras de fórmulas infantis em pó e líquidas de quatro países (Chile, Estados Unidos, Holanda e Singapura) comercializadas em farmácias e supermercados no Chile. Das 90 amostras, 79 foram positivadas para micro-organismos aeróbios, sendo 55% dessas bactérias identificadas como Enterobacteriaceae; Enterobacter cloacae; Enterobacter hormaechei, e Klebsiella pneumoniae. Além disso, do total avaliado, 8,8% estava contaminado por C. sakazakii (Parra-Flores et al., 2018).

Este alerta vem despertando a necessidade de buscar maneiras rápidas e eficientes de identificar patógenos em alimentos infantis, visando reduzir os riscos de novos surtos e melhorando a saúde de uma população tão vulnerável como os lactentes. Neste sentido, Morlay e colaboradores, percebendo a importância da detecção de patógenos do leite como a C. sakazakii e a Salmonella spp., desenvolveram um método rápido (menos de um dia) e específico denominado Plasmonic Immuno-Assay (PlasmIA), que detecta baixos níveis de Cronobacter spp. e outros micro-organismos gram-negativos em fórmulas infantis (Morlay et al., 2016).

4.2 Salmonella enterica

A presença de Salmonella enterica (S. enterica) em alimentos infantis é uma das principais responsáveis por infecções acometendo crianças menores de um ano de idade, podendo levar à morte lactentes imunodebilitados (Bula-Rudas et al., 2015). Essa bactéria se mostra responsável por quadros de diarreias, podendo evoluir para meningite ou bacteremia (Cahill et al., 2008). A transmissão pode ocorrer por falta de higiene, contaminação das matérias-primas, falhas no processamento ou mesmo contaminação ambiental após o tratamento térmico (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2004).

Após a ingestão do alimento contaminado, as bactérias sobreviventes ao ambiente ácido do estômago chegam ao intestino e iniciam seu processo de proliferação ao alcançarem a lâmina própria (Ohl & Miller, 2001; Bula-Rudas et al., 2015). Comumente, esses micro-organismos agem localmente, sendo responsáveis por infecções gastrointestinais. Uma vez fagocitados por células de defesa, se proliferam e dão início a uma resposta inflamatória que estimula o aumento da secreção de água e eletrólitos, provocando diarreia (Haimovich & Venkatesan, 2006; Shinohara et al., 2008). Além disso, podem migrar para outros órgãos, ampliando o risco de desenvolvimento de septicemia e morte dos infectados (Ohl & Miller, 2001; Bula-Rudas et al., 2015).

Juntamente com a C. sakazakii, a Salmonella enterica é classificada na categoria A de perigos da Food and Agriculture Organization of the United Nations (2004). Em relação à Salmonella sp., para que um alimento seja considerado microbiologicamente seguro para consumo, sua presença deve ser negativada em 60 amostras de 25 g tomadas de um lote de fórmulas infantis de forma aleatória (Brasil, 2001). Assim como em outras doenças transmitidas por alimentos, a notificação é baixa por razões como a dificuldade de identificação de sorotipos e de inclusão dessas análises nas rotinas de serviços de saúde ou mesmo a transferência de responsabilidade da doença a outros fatores (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2006).

Diversos surtos relacionados com S. enterica e fórmulas infantis são registrados ao redor do mundo. Em 1994, três casos de contaminação hospitalar na Espanha causadas por uma cepa atípica de Salmonella sp. foram associados ao consumo de fórmula infantil (Usera et al., 1996). Na busca pela elucidação da origem e propagação dessa cepa, foi elaborado um programa de vigilância pelo National Epidemiology Center (NEC) que identificou 48 neonatos (menores de sete meses) que apresentaram síndrome gastroentérica aguda e confirmação positiva para Salmonella enterica subsp. enterica sorovar Virchow; além disso, houve a aplicação de questionários que incluíam perguntas, como contato com pessoas que tiveram diarreia, viagem para o exterior, alimentos consumidos e a marca da fórmula láctea utilizada. As fórmulas infantis em uso foram analisadas laboratorialmente durante aproximadamente seis meses, possibilitando a detecção da fonte de contaminação e a retirada do produto e dos lotes de circulação (Usera et al., 1996).

Um extenso estudo foi realizado por Yang et al. (2014) entre 2010 e 2012, na China, com 705 alimentos infantis à base de leite, dentre eles 246 fórmulas em pó obtidas de supermercados e lojas de varejo, sendo identificada a presença de S. enterica em 24 amostras, em que 5/246 (2%) eram de leite em pó. No ano de 2017, um surto de Salmonella enterica sorovar Agona ligado a ingestão de fórmulas infantis de diversos segmentos foi registrado, atingindo pelo menos 37 crianças menores de seis meses de idade, sendo 35 na França, uma na Espanha e um caso de suspeita na Grécia. Mais de 12 milhões de caixas afetadas foram retiradas das prateleiras de supermercados de 83 países (Whitworth, 2017; Willsher, 2018). Em alguns casos, não é possível determinar qual foi a fonte de contaminação da fórmula e se ela ocorreu antes ou após a abertura da embalagem, sendo necessário, portanto, o cuidado no preparo e na higienização dos utensílios utilizados durante a reconstituição (Cahill et al., 2008).

4.3 Outros patógenos

4.3.1 Clostridium botulinum

Micro-organismos do gênero Clostridium podem causar o distúrbio neuromuscular conhecido como botulismo (Rosow & Strober, 2015). Existem vários tipos de botulismo, sendo um dos mais comuns o infantil, que atinge crianças menores de um ano de idade (especialmente até os seis meses) e pode ser causado principalmente pela espécie Clostridium botulinum (C. botulinum), sendo esta capaz de sintetizar sete neurotoxinas nomeadas de A a G (Brook, 2007; American Academy of Pediatrics, 2012; Rosow & Strober, 2015). Atualmente, o botulismo infantil passou a ser denominado botulismo intestinal, visto que pode acometer também adultos em algumas condições que cursem com desequilíbrio da microbiota intestinal (tais como cirurgias intestinais, doença inflamatória intestinal e uso prolongado de antibióticos), bem como na presença de acloridria gástrica (Brook, 2007; American Academy of Pediatrics, 2012).

O botulismo infantil tem início com a ingestão de esporos que colonizam o trato gastrointestinal e produzem toxinas que se espalham pelo lúmen intestinal e são transportadas para a circulação, alcançando células colinérgicas, como as dos nervos periférico e craniano; as toxinas se ligam irreversivelmente a essas células, bloqueando a liberação de acetilcolina, o que pode causar paralisia simétrica descendente e hipotonia, e em casos mais severos, torna-se necessária a utilização de ventilação artificial (Brook, 2007; Rosow & Strober, 2015). No caso dos bebês, a toxinfecção é facilitada devido ao processo de desenvolvimento da microbiota e do alto pH intestinal, condições nas quais os esporos desse micro-organismo podem germinar e produzir toxinas, principalmente neurotoxinas A e B (Bula-Rudas et al., 2015; Rosow & Strober, 2015). Dentre as principais fontes de contaminação, está o mel, muitas vezes utilizado para adoçar as fórmulas infantis, sendo assim contraindicado para crianças menores de um ano de idade (American Academy of Pediatrics, 2012).

De acordo com Food and Agriculture Organization of the United Nations (2004), a bactéria C. botulinum encaixa-se na categoria C de identificação de perigos nas fórmulas infantis, ou seja, a causalidade é menos provável ou ainda não foi comprovada. Em 2001, um caso de botulismo infantil no Reino Unido foi possivelmente ligado à ingestão de fórmula infantil contaminada com esporos de C. botulinum. Na busca por respostas, dois laboratórios diferentes analisaram a amostra com técnicas genéticas distintas e identificaram estirpes variadas de C. botulinum nas fezes da criança, assim como em uma lata de fórmula em uso no momento da manifestação da doença e em uma lata fechada proveniente do mesmo lote. Como resultado, observou-se que uma mesma estirpe foi identificada na fórmula aberta e nas fezes da criança; no entanto, a mesma não foi encontrada na lata lacrada, indicando que a fonte de infecção não necessariamente foi a fórmula (Brett et al., 2005; Johnson et al., 2005).

Um estudo coordenado por Barash et al. (2010) utilizou uma base de dados contendo casos de crianças diagnosticadas com botulismo infantil que faziam uso de fórmula por pelo menos quatro semanas antes do episódio da doença. Foram investigadas 39 fórmulas − 30 provenientes do domicílio das crianças diagnosticadas e nove obtidas de supermercados. Após avaliação dos dados, constatou-se que 31% das amostras continham esporos de 12 espécies diferentes de Clostridium, no entanto, nenhuma delas era pertencente a espécies potencialmente causadoras de botulismo infantil, não sendo possível mais uma vez comprovar a responsabilidade do micro-organismo como causa direta da doença.

Um caso de botulismo infantil foi registrado na França acometendo um lactente de 11 semanas alimentado exclusivamente de leite materno, com exceção de uma única mamadeira de fórmula. O diagnóstico foi confirmado com o isolamento de C. botulinum tipo B e de toxina botulínica tipo B. Foram realizados testes da poeira ambiental da residência e o resultado foi negativo, no entanto o leite materno e o artificial não foram testados (Bernardor et al., 2018).

4.3.2 Klebsiella pneumoniae

A Klebsiella pneumoniae (K. pneumoniae) é responsável por infecções hospitalares, como pneumonias, infecções teciduais, septicemias e infecções de trato urinário, que atingem com maior severidade indivíduos com o sistema imune debilitado, como os lactentes, possuindo morbimortalidade severa (Alcantar-Curiel et al., 2004; Casolari et al., 2005). Após a bactéria ser ingerida e sobreviver ao ambiente estomacal, esta é capaz de se proteger contra as células de defesa imunológicas, colonizar o trato intestinal e migrar para outros tecidos, invadindo células e dando início a um processo infeccioso, principalmente no trato urinário (Struve et al., 2008). O controle desse micro-organismo é dificultado por sua habilidade de ser resistente a antibióticos e produzir fatores capazes de neutralizar ou reduzir a ação de células do sistema imune (Struve et al., 2008; Zhou et al., 2011).

A alimentação artificial pode ter associação com a colonização de bactérias resistentes como a K. pneumoniae no cólon de recém-nascidos (Vieira et al., 1999). Em 2004, a K. pneumoniae foi classificada na categoria “B” de perigos em fórmulas infantis em pó, ou seja, esses micro-organismos são causadores de doenças e foram encontrados em fórmulas infantis, no entanto seu vínculo como veículo da infecção alimentar não foi comprovado (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2004). Muytjens et al. (1988) analisaram 141 fórmulas infantis, sendo a K. pneumoniae identificada em 13 amostras. Outro estudo realizado por Carneiro et al. (2003) avaliou um total de 90 amostras de fórmulas coletadas do lactário do Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro (HUPE/UERJ). Do total, 23 amostras estavam contaminadas por diferentes bactérias, sendo que as predominantes foram K. pneumoniae, K. planticol, Citrobacter freundii e Cedacea davisae (Carneiro et al., 2003).

Um trabalho realizado por Zhou et al. (2011) analisou 30 amostras de fórmulas infantis adquiridas de supermercados na China para identificação de bactérias e teste de resistência a antibióticos. Das amostras totais, a K. pneumoniae pôde ser isolada em seis, sendo 71,4% resistentes a seis ou mais tipos diferentes de antibióticos, o que reforça a importância no controle dos patógenos para a segurança dos alimentos destinados ao público infantil.

4.3.3 Staphylococcus aureus

Algumas espécies de Staphylococcus são capazes de produzir exotoxinas − enzimas ou proteínas – como as enterotoxinas provenientes de sua multiplicação e metabolismo, sendo estas posteriormente disponibilizadas na circulação sanguínea do hospedeiro (Tortora et al., 2002). A ingestão de toxinas pré-elaboradas nos alimentos é capaz de suprimir a resposta imune pelo estímulo de resposta inespecífica de células de defesa e liberar um volume grande de citocinas, instaurando um quadro de intoxicação sistêmica no organismo (Marrack & Kappler, 1990).

Esses micro-organismos também possuem em sua parede celular proteínas que, ao interagir com as células do hospedeiro, são capazes de desenvolver fatores de virulência em infecções (Palmqvist et al., 2002). Além disso, algumas proteínas extracelulares contribuem para sua instalação e subsequente dano ao organismo, sendo capazes de aderir à parede celular auxiliando a bactéria na neutralização das células de defesa (Vojtov et al., 2002). Os sintomas mais comuns da toxicidade por Staphylococcus são diarreia, cólica abdominal, náusea e vômito (Le Loir et al., 2003).

A espécie Staphylococcus aureus (S. aureus) é comumente detectada na pele e na mão de manipuladores de alimentos, sendo assim uma fonte importante de contaminação direta e/ou indireta com a ingestão de produtos por eles manipulados (Tortora et al., 2017). Em 1980, Singh et al. analisaram 10 amostras de alimentos infantis enlatados em pó, sendo sete fórmulas infantis e três produtos alimentícios infantis à base de leite e cereais, todos adquiridos de supermercados. Da quantidade total, nove marcas estavam altamente contaminadas, o que indica possíveis falhas durante o processamento ou mesmo na distribuição ou na reconstituição do produto (Singh et al., 1980).

No ano de 2004, um grande surto ligado à ingestão de S. aureus foi relatado na China, em que mais de 150 crianças foram hospitalizadas apresentando sintomas como febre, diarreia e vômito, após o consumo de fórmula láctea contaminada (Dairy Reporter, 2004). Outro estudo realizado na China, por Wang et al. (2010) analisou 367 amostras de alimentos infantis obtidos de 80 mercearias, sendo 143 fórmulas. Do total, 30 amostras estavam contaminadas por S. aureus, sendo 11,2% (16) delas de leite em pó (Wang et al., 2012).

4.3.4 Bacillus cereus

O Bacillus cereus (B. cereus) pode causar dois tipos de doenças alimentares, sendo estas as síndromes diarreicas e eméticas (Bhunia, 2008). Na síndrome diarreica, há ingestão de alimentos contaminados por bactérias que, ao colonizar e se multiplicar no intestino delgado, produzem enterotoxinas capazes de formar poros na parede celular, ocasionando perda de íons e água (Arnesen et al., 2008). Já as síndromes eméticas são causadas pelo consumo de alimentos contaminados por toxinas – cereulidas – pré-formadas durante o armazenamento do produto ou da matéria-prima (Arnesen et al., 2008). A toxina pode causar sintomas como vômitos por se ligar a receptores do nervo vago no estômago, além de insuficiência hepática pela degeneração dos hepatócitos e pela intoxicação (Bhunia, 2008).

Produtos lácteos em pó são frequentemente contaminados com B. cereus e seus esporos (Reyes et al., 2007). Os esporos não são capazes de germinar em alimentos com baixa atividade de água, no entanto, quando os produtos são reconstituídos e mantidos em temperatura ambiente, esporos viáveis podem germinar e começar a produzir toxinas, podendo esse processo ser continuado sob refrigeração (Jaquette & Beuchat, 1998). Portanto, justifica-se a preocupação da veiculação desses micro-organismos em fórmulas infantis. Um estudo realizado por Reyes et al. (2007) avaliou 381 amostras de alimentos em pó à base de leite oferecidos por um programa de alimentação escolar no Chile. Do total, 175 amostras (45,9%) estavam contaminadas por esporos de B. cereus.

Organji et al. (2015) analisaram 110 amostras de alimentos destinados a lactentes e crianças de primeira infância à base de arroz e leite, dentre elas 20 fórmulas infantis e fezes de crianças com idades entre oito dias e dois anos apresentando quadro de diarreia na Arábia Saudita e Egito entre 2012 e 2013. Dentre as fórmulas, 12 amostras estavam contaminadas por bactérias do gênero Bacillus, sendo quatro (33,3%) delas confirmadas como B. cereus. A presença desse micro-organismo também foi relacionada a 62,6% dos casos de diarreia nos lactentes e crianças participantes da pesquisa. Estudo similar foi desenvolvido por Di Pinto et al. (2013) entre 2008 e 2009, na Itália, onde foram analisadas 60 amostras de fórmulas infantis em pó, constatando-se a contaminação de 11 delas com bactérias do gênero Bacillus (<106 UFC/g), sendo cinco identificadas como B. cereus.

Um estudo realizado na Suíça buscou analisar alimentos destinados ao público infantil como purês de batata em pó e fórmulas infantis comercializados em supermercados. Como resultado, 78% das fórmulas estavam contaminadas por B. cereus sensu lato (B. cereus s. l.) (Heini et al., 2018). Recentes trabalhos realizados na China também buscaram identificar a presença de B. cereus em fórmulas infantis e/ou fórmulas infantis para lactentes. Zhang et al. (2017), Xin et al. (2018) e Pei et al. (2018) constataram contaminações de 8,2%, 36,1% e 100%, respectivamente, em suas pesquisas. A possível contaminação por B. cereus também foi testada em uma planta de produção de fórmulas infantis de leite de cabra em 2016 na China. Foram coletadas 970 amostras de três plantas diferentes contemplando o ambiente de produção, os funcionários (vestimenta e mãos), o material de transporte e as fórmulas em várias etapas de produção. Do total, 36,1% obtiveram resultado positivo para B. cereus s. l., sendo a bactéria detectada em 7 das 15 amostras coletadas do produto final pronto para comercialização (Liu et al., 2018).

Mesmo que a contaminação venha a ocorrer em níveis baixos, esta torna-se uma grande preocupação para a saúde de crianças, pois a matriz alimentar das fórmulas propicia o crescimento de bactérias e a produção de esporos, ou seja, esses alimentos em pó podem vir a ser veículos de infecções alimentares (Reyes et al., 2007). Portanto, é necessário um monitoramento contínuo e intensivo da presença de micro-organismos, assim como esporos e toxinas nos alimentos na busca da garantia de segurança e saúde para infantes e crianças consumidores de fórmulas (Di Pinto et al., 2013).

5 Conclusões

Concluiu-se que os micro-organismos mais frequentemente relacionados com surtos alimentares em lactentes e crianças de primeira infância foram Salmonella enterica e Cronobacter sakazakii. Para garantia da segurança microbiológica das fórmulas lácteas “de partida”, para lactentes e de transição, são necessários cuidados desde a sua produção industrial como a implementação de medidas de Boas Práticas de Fabricação, a Análise dos Pontos Críticos de Controle e o treinamento higiênico-sanitário para manipuladores, até o preparo e a administração em nível domiciliar ou hospitalar com a correta manipulação e procedimentos sanitários adequados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2018
  • Aceito
    03 Jan 2019
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