Resumos
Este trabalho apresenta um levantamento das espécies de Scarabaeinae de uma área de campo nativo no município de Bagé, estado do Rio Grande do Sul, Brasil. As coletas foram realizadas com armadilhas de interceptação de voo e armadilhas de queda iscadas com fezes humanas, banana em decomposição e carne apodrecida, entre os meses de dezembro de 2005 e novembro de 2006. Foram capturados 4.573 indivíduos pertencentes a 14 gêneros e 30 espécies. Onthophagus aff. hirculus Mannerheim, 1829, Canthon podagricus Harold, 1868, Ontherus sulcator (Fabricius, 1775) e Canthidium moestum Harold, 1867 foram as espécies mais abundantes. A maior parte da assembleia capturada é constituída por espécies coprófagas e generalistas preferencialmente necrófagas. Poucas espécies foram estritamente necrófagas e nenhuma foi classificada como saprófaga. As roladoras e as escavadoras foram representadas por números similares de espécies.
Scarabaeoidea; rola-bosta; levantamento de espécies; Campos Sulinos; sul do Brasil
This work presents a survey of Scarabaeinae species from a natural grassland area in Bagé, state of Rio Grande do Sul, Brazil. Samplings were carried out with flight intercept traps and pitfall traps baited with human feces, rotten banana and rotten meat, from December 2005 to November 2006. A total of 4,573 individuals, belonging to 14 genera and 30 species were collected. Onthophagus aff. hirculus Mannerheim, 1829, Canthon podagricus Harold, 1868, Ontherus sulcator (Fabricius, 1775) and Canthidium moestum Harold, 1867 were the most abundant species. Most of the captured assemblage is composed by species coprophagous and generalists preferably necrophagous. Few species were strictly necrophagous and none was classified as saprophagous. The rollers and tunnelers were represented by similar numbers of species.
Scarabaeoidea; dung beetle; species survey; 'Campos Sulinos'; southern Brazil
INVENTÁRIOS
Escarabeíneos (Coleoptera: Scarabaeidae: Scarabaeinae) de uma área de campo nativo no bioma Pampa, Rio Grande do Sul, Brasil
Dung beetles (Coleoptera: Scarabaeidae: Scarabaeinae) from native grassland in Pampa biome, Rio Grande do Sul, Brazil
Pedro Giovâni da SilvaI,*; Lívia Dorneles AudinoII; Juliana Marim NogueiraIII; Leonardo Pompéu de MoraesIV; Fernando Zagury Vaz-de-MelloV
IPrograma de Pós-graduação em Ecologia, Departamento de Ecologia e Zoologia, Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Córrego Grande, CEP 88040-900, Florianópolis, SC, Brasil
IIPrograma de Pós-graduação em Entomologia, Departamento de Entomologia, Universidade Federal de Lavras - UFLA, Campus Universitário, CP 3037, CEP 37200-000, Lavras, MG, Brasil
IIIUniversidade da Região da Campanha - URCAMP, Av. Tupy Silveira, 2099, Centro, CEP 96400-110, Bagé, RS, Brasil
IVONG Instituto Bageense Pró Pampa Sustentável, Rua Associação Riograndense de Imprensa, 437A, Bairro Mascarenhas de Moraes, CEP 96407-075, Bagé, RS, Brasil
VDepartamento de Biologia e Zoologia, Instituto de Biociências, Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367, Boa Esperança, CEP 78060-900, Cuiabá, MT, Brasil
RESUMO
Este trabalho apresenta um levantamento das espécies de Scarabaeinae de uma área de campo nativo no município de Bagé, estado do Rio Grande do Sul, Brasil. As coletas foram realizadas com armadilhas de interceptação de voo e armadilhas de queda iscadas com fezes humanas, banana em decomposição e carne apodrecida, entre os meses de dezembro de 2005 e novembro de 2006. Foram capturados 4.573 indivíduos pertencentes a 14 gêneros e 30 espécies. Onthophagus aff. hirculus Mannerheim, 1829, Canthon podagricus Harold, 1868, Ontherus sulcator (Fabricius, 1775) e Canthidium moestum Harold, 1867 foram as espécies mais abundantes. A maior parte da assembleia capturada é constituída por espécies coprófagas e generalistas preferencialmente necrófagas. Poucas espécies foram estritamente necrófagas e nenhuma foi classificada como saprófaga. As roladoras e as escavadoras foram representadas por números similares de espécies.
Palavras-chave: Scarabaeoidea, rola-bosta, levantamento de espécies, Campos Sulinos, sul do Brasil.
ABSTRACT
This work presents a survey of Scarabaeinae species from a natural grassland area in Bagé, state of Rio Grande do Sul, Brazil. Samplings were carried out with flight intercept traps and pitfall traps baited with human feces, rotten banana and rotten meat, from December 2005 to November 2006. A total of 4,573 individuals, belonging to 14 genera and 30 species were collected. Onthophagus aff. hirculus Mannerheim, 1829, Canthon podagricus Harold, 1868, Ontherus sulcator (Fabricius, 1775) and Canthidium moestum Harold, 1867 were the most abundant species. Most of the captured assemblage is composed by species coprophagous and generalists preferably necrophagous. Few species were strictly necrophagous and none was classified as saprophagous. The rollers and tunnelers were represented by similar numbers of species.
Keywords: Scarabaeoidea, dung beetle, species survey, 'Campos Sulinos', southern Brazil.
Introdução
Os ecossistemas campestres do extremo sul do Brasil que pertencem ao bioma Pampa estão ali presentes há mais de 12 mil anos (Behling et al. 2004, 2005), cobrindo atualmente cerca de 2% do território nacional e 63% do Rio Grande do Sul, único estado brasileiro onde esse tipo de formação vegetal ocorre (Instituto... 2009). Possui uma riqueza única, apresentando altos índices de diversidade e endemismo (Brasil 2002, Behling et al. 2009, Bencke 2009). Contudo, apenas pequena parte de sua diversidade biológica é conhecida cientificamente (Nabinger et al. 2006), e esta se encontra ameaçada devido às intensas transformações deste bioma (Pillar et al. 2006, Roesch et al. 2009), que são geradas principalmente por atividades econômicas agropecuárias e silviculturais, as quais têm crescido e se expandido em área sobre os campos nativos a ritmos cada vez maiores (Pillar et al. 2006, Behling et al. 2009). As gramíneas e espécies vegetais herbáceas que constituem este bioma apresentam grande valor forrageiro, e por este motivo, a pecuária tem sido a principal atividade econômica da região (Boldrini 1997, 2002, Gonçalves 1999, Bilenca & Miñarro 2004, Carvalho et al. 2006, Overbeck et al. 2009).
Sendo assim, a conservação do Pampa é uma necessidade, já que as formas vegetais, animais e os processos biológicos desse sistema devem ser mantidos para as gerações futuras e para o funcionamento dos processos ecossistêmicos deste bioma (Pillar et al. 2006, Nabinger et al. 2009). O conhecimento de sua biodiversidade é, portanto, fundamental para o estabelecimento de políticas conservacionistas e estratégias de manejo sustentável, além de contribuir com novas informações acerca da diversidade de organismos ali existente (Pillar et al. 2006, Bencke 2009, Boldrini 2009).
Os representantes de Scarabaeinae (Coleoptera: Scarabaeidae) são popularmente conhecidos no Brasil como 'rola-bostas'. Cerca de 7.000 espécies deste grupo já foram descritas em todo o mundo (Schoolmeesters et al. 2010) com maior concentração de diversidade em florestas e savanas tropicais. No Brasil ocorrem mais de 700 espécies, sendo que quase um terço parece ser endêmica (Vaz-de-Mello 2000). No entanto, muitos estados brasileiros, incluindo o Rio Grande do Sul, não possuem sua fauna de 'rola-bostas' totalmente conhecida, e a realização de novos estudos pode incrementar o número de espécies, além de contribuir com o conhecimento da real distribuição destas ao longo do território nacional.
Os besouros deste grupo são detritívoros e se alimentam principalmente de fezes, carcaças e frutos podres, auxiliando na remoção desses materiais da superfície do solo e reingresso no ciclo de nutrientes (Halffter & Matthews 1966, Hanski & Cambefort 1991). Estes insetos exibem distintos comportamentos alimentares e nidificantes, possuem alta diversidade na região Neotropical, desempenham inúmeras funções benéficas ao ecossistema e são sensíveis às mudanças ambientais (Halffter & Favila 1993, McGeoch et al. 2002, Nichols et al. 2007, 2008, Gardner et al. 2008). Assim, cada vez mais têm sido utilizados tanto como indicadores ambientais quanto no controle biológico de parasitos coprobiontes através da desestruturação e enterro de massas fecais de grandes herbívoros em agroecossistemas pecuários (Waterhouse 1974, Flechtmann & Rodrigues 1995, Koller et al. 2007).
O objetivo deste estudo foi realizar um inventário da fauna de Scarabaeinae em uma área de campo nativo característico do bioma Pampa na porção sul do Rio Grande do Sul, e verificar a preferência alimentar das espécies, visando contribuir com o conhecimento deste grupo nesta região do estado.
Material e Métodos
O estudo foi desenvolvido na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), unidade Embrapa Pecuária Sul, localizada no município de Bagé, sul do Rio Grande do Sul, entre dezembro de 2005 e novembro de 2006.
A metade sul do estado se caracteriza por apresentar extensas áreas de campos naturais com leves ondulações de terreno (entre 60 e 350 m de altitude) utilizados principalmente para a prática agropecuária (Bilenca & Miñarro 2004, Carvalho et al. 2006). Bagé apresenta clima subtropical semiúmido, temperatura média anual em torno de 18 ºC, sendo a média do mês mais quente de 24 ºC e a do mês mais frio de 12 ºC (Instituto... 2008), com frequentes formações de geadas no inverno. A umidade relativa do ar média anual é de 80%, os índices pluviométricos médios são de 1.200 mm anuais, com variações ao longo dos anos (Pimentel 1940, Bilenca & Miñarro 2004, Carvalho et al. 2006).
Uma área de campo (31º 21' 10" S e 54º 00' 49" W) com aproximadamente 30 ha foi escolhida para a instalação das armadilhas e coleta dos insetos. A área é constituída de vegetação campestre nativa, onde as gramíneas (Poaceae) são as mais abundantes e o entorno formado por plantios de espécies forrageiras (Bromus auleticus Trinius e Lolium multiflorum Linnaeus), áreas de vegetação mais densa (Eupatorium sp., Eryngium spp. e Saccharum sp.), plantio de Eucalyptus sp. (cerca de um hectare), além de algumas pequenas áreas de capim-annoni (Eragrostis plana Ness), uma espécie exótica invasora.
Na área foram instaladas armadilhas de queda (pitfall) e de interceptação de voo para a coleta dos besouros. As armadilhas de queda foram montadas com a utilização de potes plásticos de 500 mL (12 cm de altura por 10 cm de diâmetro) enterrados de modo que sua borda ficasse ao nível do solo. Sobre os potes maiores foram acomodados potes plásticos de dimensões menores (6 cm de altura por 5 cm de diâmetro) para colocação das iscas, transpassados na borda superior por arame fino, que foi dobrado nas pontas e enterrado no solo de modo que deixasse o pote menor ao longo do diâmetro do pote maior. Azulejos de cerâmica (20 × 20 cm) amparados por pequenas estacas de madeira foram utilizados para a proteção das armadilhas.
Foram utilizadas 17 armadilhas de queda iscadas com fezes humanas (10 armadilhas), banana fermentada (quatro armadilhas) e fígado de frango apodrecido (três armadilhas), distribuídas para os lados de um transecto, de modo que as armadilhas iscadas com fígado ficassem no início e fim, as com fezes humanas na porção central e as com banana apodrecida na parte intermediária entre as com fezes e fígado. O maior número de armadilhas com fezes se deve ao hábito alimentar preferencial das espécies de Scarabaeinae pela coprofagia, principalmente em áreas campestres, além de ser a principal isca para esta fauna (Halffter & Matthews 1966).
As armadilhas de interceptação de voo foram montadas esticando-se um tecido resistente de malha fina (1,2 m de altura por 2 m de comprimento) em estacas de madeira com 1,7 m de altura presas por cordas em pequenas estacas enterradas no solo. O tecido foi amarrado nas estacas de modo que deixasse uma altura de 10 cm entre a parte inferior deste e o solo, onde foram acomodadas bandejas brancas para a coleta dos insetos que colidissem com o tecido. Foram utilizadas duas armadilhas de interceptação de voo, instaladas 100 m distantes da área com as armadilhas de queda e entre si.
Foi utilizada uma solução conservante (água, detergente, formalina a 10% e sal) para a coleta e preservação dos besouros, sendo depositado cerca de 300 mL em cada pitfall e seis litros em cada bandeja. As coletas foram realizadas quinzenalmente e a solução e iscas renovadas semanalmente. Os besouros foram triados, pré-processados e pré-identificados (em nível de gênero) no Laboratório de Entomologia da Embrapa Pecuária Sul, com a utilização de chave para gêneros de Scarabaeinae (Vaz-de-Mello et al. 2011). A identificação definitiva foi realizada no Laboratório de Ecologia de Invertebrados do Setor de Ecologia da Universidade Federal de Lavras, e o material coletado encontra-se depositado nas coleções dessa instituição e da Universidade Federal de Mato Grosso.
O hábito alimentar das espécies de Scarabaeinae foi estabelecido de acordo com a incidência de queda de no mínimo 80% nas armadilhas iscadas com diferentes recursos (Almeida & Louzada 2009), e comparados com dados da literatura (Martínez 1959, Halffter & Matthews 1966). Dessa forma, foi possível determinar a guilda trófica das espécies, classificando-as em: coprófagas (maior ocorrência na armadilha iscada com fezes humanas), necrófagas (maior ocorrência na armadilha iscada com fígado de frango apodrecido), saprófagas (maior ocorrência na armadilha iscada com banana fermentada) e generalistas (abundância de indivíduos semelhante em mais de um tipo de armadilha iscada) (Halffter & Favila 1993, Halffter & Arellano 2002). Devido ao número desigual de armadilhas de cada uma das iscas utilizadas, a caracterização da guilda trófica foi realizada com dados obtidos por apenas três armadilhas de cada uma das iscas selecionadas aleatoriamente. Foram excluídos desta análise os singletons e doubletons, pois não tiveram número suficiente de indivíduos para a inferência alimentar.
As espécies foram também classificadas de acordo com o modo que utilizam o recurso alimentar para a nidificação (guilda funcional): endocoprídeas (residentes - alimentam-se e nidificam no interior do recurso), paracoprídeas (escavadoras - escavam galerias no solo ao lado ou logo abaixo do recurso) e telecoprídeas (roladoras - retiram pequenas porções do recurso que são transformadas em esferas e roladas por diferentes distâncias até serem enterrados no solo) (Halffter & Matthews 1966, Hanski & Cambefort 1991).
Como forma de aferir estimativas do número de espécies esperado para a área de estudo, foram calculados os valores de cinco estimadores de riqueza não-paramétricos (Jackknife 1, Jackknife 2, Chao 1, Chao 2 e Bootstrap). Para avaliar o esforço amostral e comparar a riqueza de espécies obtida entre os diferentes métodos de coleta, foi construída uma curva de acumulação de espécies, com intervalo de confiança de ±95%, onde se relacionou o número de coletas realizadas com a riqueza observada média (Sobs - Mao Tau), obtida por meio de 500 randomizações. Estas análises foram realizadas com a utilização do software EstimateS 7.5.2 (Colwell 2005).
Resultados
Foram coletados 4.573 indivíduos de Scarabaeinae pertencentes a 14 gêneros e 30 espécies (Tabela 1). As tribos que estiveram representadas foram: Deltochilini (15 espécies - 50%), Coprini (sete espécies - 23,3%), Phanaeini (três espécies - 10%), Ateuchini (duas espécies - 6,7%), Onthophagini (duas espécies - 6,7%) e Oniticellini (uma espécie - 3,3%).
As espécies mais abundantes foram Onthophagus aff. hirculus Mannerheim, 1829 (62%), Canthon podagricus Harold, 1868 (10,4%), Ontherus sulcator (Fabricius, 1775) (8,8%) e Canthidium moestum Harold, 1867 (4%), que juntas representaram mais de 85% dos indivíduos coletados, sendo espécies comumente encontradas na região.
De acordo com os estimadores de riqueza calculados, a riqueza observada está próxima das estimadas, mas mesmo assim sugere que com a continuidade do estudo, provavelmente novos registros ainda seriam encontrados. O mínimo estimado foi de aproximadamente 31 (Chao 1) e o máximo em torno de 35 espécies (Jackknife 2), sendo registrado entre 86 e 97% da riqueza de Scarabaeinae esperada para a área estudada (Tabela 2).
Embora nenhuma das curvas tenha atingido a assíntota, é possível observar através do gráfico de acumulação de espécies, que o esforço amostral foi satisfatório em todas as metodologias de coleta utilizadas, já que as curvas se aproximaram da estabilização (Figura 1). A maior riqueza foi obtida através das armadilhas de queda iscadas com fezes humanas e de interceptação de voo, que não apresentaram diferenças significativas em relação ao número de espécies capturadas, de acordo com o intervalo de confiança. Estes dois métodos de coleta, contudo, diferiram das armadilhas de queda iscadas com carne apodrecida e banana, que foram responsáveis pela captura de um menor número de espécies (Figura 1).
Nove espécies (30%) foram classificadas como coprófagas. Apenas duas foram consideradas necrófagas e nenhuma como saprófaga (Tabela 1). As demais espécies (10), excetuando-se singletons e doubletons, e também Uroxys dilaticollis (Blanchard, 1845), que teve apenas um indivíduo coletado nas armadilhas de queda, foram caracterizadas como generalistas, mas tiveram seus hábitos preferenciais destacados. Oito espécies não puderam ser enquadradas em nenhuma das categorias alimentares, seguindo o critério deste estudo, pela baixa amostragem de indivíduos, sendo três delas singletons e cinco doubletons. Uma espécie ocorreu somente na armadilha de interceptação de voo (Tabela 1).
Foram capturadas 15 espécies telecoprídeas (também chamadas de roladoras), 14 paracoprídeas (escavadoras) e somente uma espécie endocoprídea (residente). As espécies roladoras, unicamente de Deltochilini, representaram 50% das espécies capturadas; a espécie residente foi representada por Oniticellini (3,33%) e as escavadoras (46,7%) pelas demais tribos registradas neste estudo (Tabela 1).
Onthophagus aff. hirculus foi a mais abundante nas armadilhas de interceptação de voo, assim como nas armadilhas de queda iscadas com fezes humanas. Ontherus sulcator também apresentou elevada abundância nestes dois tipos de armadilhas. As espécies que foram capturadas em maior número na armadilha de interceptação de voo do que nas armadilhas de queda iscadas foram A.robustus (79,1%), Canthon bispinus (Germar, 1824) (50,6%) e U. dilaticollis (75%) (Tabela 1).
Discussão
Conforme os estimadores de riqueza, a riqueza observada e estimada é semelhante, demonstrando que o esforço amostral foi satisfatório para a captura da assembleia de Scarabaeinae da área de campo nativo estudado. Contudo, devido à escassez de conhecimento para a maioria dos grupos de animais no Pampa (Bencke 2009), ressalta-se a necessidade de mais inventários de Scarabaeinae focados em outras localidades deste bioma e em seus ecossistemas associados por causa da rápida conversão de seus habitats nativos e modificação de sua biodiversidade, uma vez que os dados aqui apresentados restringem-se a somente uma área. Possivelmente, a realização de novos estudos poderá contribuir com novos registros e com o conhecimento da distribuição destas espécies no território brasileiro e no estado.
Apesar de a maior abundância ter sido observada nas armadilhas iscadas com excremento humano, as armadilhas de interceptação de voo e de excremento não diferiram em relação ao número de espécies coletadas, e apresentaram uma riqueza maior quando comparadas às armadilhas iscadas com carne apodrecida e banana fermentada. Contudo, o número de indivíduos obtidos através das armadilhas de interceptação de voo foi baixo, semelhante a estas duas últimas armadilhas. Armadilhas de interceptação de voo têm sido empregadas para a captura de espécies de Scarabaeinae não atraídas às iscas utilizadas, sendo uma importante ferramenta para a mais completa amostragem da fauna de escarabeíneos presente no ecossistema (Davis 2000, Larsen & Forsyth 2005, Costa et al. 2009). Além de excrementos de mamíferos, outros tipos de recursos (como carne e fruta apodrecidas) são também utilizados para o conhecimento dos hábitos alimentares das espécies de Scarabaeinae, uma vez que muitas espécies podem ser atraídas por um grande número de recursos (Halffter & Matthews 1966, Larsen & Forsyth 2005). Contudo, a maior riqueza observada em armadilhas de queda iscadas com fezes humanas se deve ao fato de que Scarabaeinae, devido a processos evolutivos, possui maior número de espécies coprófagas que utilizam excrementos de mamíferos como alimento de adultos e larvas (Halffter & Matthews 1966, Hanski & Cambefort 1991). Na região Neotropical, excremento humano é um dos mais importantes atrativos para a efetiva captura das espécies de Scarabaeinae, tanto em florestas quanto em pastagens (Halffter & Matthews 1966, Falqueto et al. 2005, Larsen et al. 2006, Filgueiras et al. 2009).
O número de espécies especialistas coprófagas e necrófagas (11) é superior ao das generalistas (10). Estes resultados diferem da hipótese de que as assembleias neotropicais de Scarabaeinae possuem proporção maior de espécies generalistas em relação às especialistas (Halffter & Matthews 1966, Halffter 1991), e são semelhantes aos encontrados por Almeida & Louzada (2009) para a fauna de Scarabaeinae de diferentes fitofisionomias em Carrancas, Minas Gerais. No local amostrado houve uma distribuição similar entre o número de espécies especialistas e generalistas conforme as análises utilizadas.
Embora similar, o número de espécies telecoprídeas (também chamadas de roladoras), foi superior ao das paracoprídeas (ou escavadoras). Estes resultados diferem do padrão apresentado pela fauna de Scarabaeinae coletada em áreas abertas em distintas localidades do Brasil (por exemplo, Flechtmann et al. 1995, Aidar et al. 2000, Koller et al. 1999, 2007, Marchiori 2000, 2003, Marchiori et al. 2003), onde frequentemente há um número maior de espécies paracoprídeas em relação às demais guildas, como encontrado por Halffter et al. (1992) e Louzada & Lopes (1996) para áreas de floresta Neotropical. Este fato possivelmente se deve ao maior número de espécies pertencentes à Deltochilini que ocupam áreas abertas nesta região, onde as espécies escavadoras parecem mais restritas a habitats florestais.
Ao serem comparados os dados aqui obtidos sobre a preferência trófica das espécies com aqueles da literatura, Ateuchus robustus (Harold, 1868), Canthidium breve (Germar, 1824) e Canthon ornatus bipunctatus (Burmeister, 1873) possuem hábito alimentar estritamente coprófago, sendo também encontradas em excrementos de grandes mamíferos, onde a segunda é mais frequente nas primeiras horas da manhã e a terceira pode ser atraída por cadáveres de animais, especialmente durante os primeiros estágios de decomposição (Martínez 1959). Canthidium sp. 1 possui hábito alimentar coprófago, ocorrendo somente em armadilhas com fezes humanas e nas de interceptação de voo. Eurysternus aeneus (Génier, 2009) apresenta ampla distribuição em áreas florestadas no sul do Brasil, sul do Paraguai e nordeste da Argentina (Génier 2009), e frequentemente é registrada em maior número em armadilhas iscadas com fezes. Onthophagus aff. hirculus possui preferência pela coprofagia, mas foi também atraída por carne apodrecida e banana, embora em números muito reduzidos. Vulcanocanthon seminulus (Harold, 1867) é coletada na região principalmente atraída por excremento humano e de bovinos. Ontherus sulcator é uma espécie comum de ampla distribuição pela região Neotropical (Martínez 1959, Génier 1996) e Sulcophanaeus menelas (Castelnau, 1840) é frequente no centro-sul do Brasil (Edmonds 2000); ambas são atraídas por excrementos de mamíferos (Martínez 1959). Canthon seminitens (Harold, 1868) e Coprophanaeus milon (Blanchard, 1845) são frequentemente encontradas em cadáveres de pequenos animais (Martínez 1959), corroborando suas preferências alimentares à necrofagia.
Embora não classificadas quanto à preferência alimentar devido ao número insuficiente de indivíduos, Gromphas lacordairei (Brullé, 1834) e Dichotomius nisus (Olivier, 1789) possuem hábito alimentar coprófago, podendo, esta última, ser atraída por luz artificial (Martínez 1959). Ambas são espécies comuns em pastagens (Louzada et al. 1996, Morelli et al. 2002). Malagoniella magnifica (Balthasar, 1939) parece ser uma espécie coprófaga, assim como Canthon aff. heyrovskyi (Balthasar, 1939) e Onthophagus aff. tristis (Harold, 1873), que foram capturadas em armadilhas de queda iscadas com excremento humano. Contudo, estas últimas ainda necessitam de estudos complementares para a determinação de sua preferência alimentar. Canthidium sp. 3 e Canthon coeruleicollis (Blanchard, 1845) foram coletadas em número igual em pitfall com isca de fezes humanas e em redes de interceptação de voo, sendo a segunda também encontrada em carcaça de peixe (Martínez 1959). Destaca-se que esta última espécie foi citada para o Brasil por Martínez (1959), mas sem especificação da região, e por Biezanko et al. (1949) para o município de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul. Todos os demais registros mencionaram a espécie apenas para florestas de galeria na Argentina e Uruguai (Martínez et al. 1964, Halffter & Matthews 1966). Portanto, C.coeruleicollis foi registrada novamente para o Rio Grande do Sul após mais de 60 anos em área de campo. Canthon curvipes (Harold, 1868) foi capturada somente na armadilha de interceptação de voo, embora seja encontrada em excrementos de grandes herbívoros e fezes humanas, bem como em cadáveres de peixes e de outros pequenos animais (Luederwaldt 1911, Martínez 1959, Halffter & Matthews 1966). Silva et al. (2008) coletaram maior número desta espécie, atraída por carne apodrecida, em área de mata nativa no mesmo município, demonstrando que esta é possivelmente mais associada a estes tipos de ambientes.
Canthidium moestum e Canthon lividus (Blanchard, 1845), tiveram maior ocorrência em armadilhas iscadas com fezes humanas, mas possuem hábito alimentar generalista (Martínez 1959, Halffter & Matthews 1966); foram aqui classificadas como generalistas preferencialmente coprófagas. Canthidium sp. 2, Canthon bispinus (Germar, 1824), C. chalybaeus Blanchard, 1845, C. mutabilis (Lucas, 1857), C. podagricus, Deltochilum elevatum (Castelnau, 1840) e D. sculpturatum (Felsche, 1907), ocorreram em maior número nas armadilhas iscadas com carne apodrecida, sendo classificadas como generalistas preferencialmente necrófagas. Canthon bispinus já foi encontrada utilizando tanto excrementos quanto carcaças para produção de suas bolas-ninho (Halffter & Matthews 1966). Canthon chalybaeus, além de carcaças e excrementos frescos, também foi observada consumindo frutos de palmeiras (butiá) (Luederwaldt 1911; Martínez 1959, Halffter & Matthews 1966). Canthon podagricus e C. mutabilis são frequentemente registradas em carcaças de animais mortos (Luederwaldt 1911, Martínez 1959, Halffter & Matthews 1966), mas aqui também foram capturadas em armadilhas iscadas com banana fermentada e fezes humanas. Deltochilum elevatum e D. sculpturatum são espécies de hábito alimentar preferencialmente necrófago (Martínez 1959, Silva et al. 2008, Almeida & Louzada 2009), pois também podem utilizar excrementos (Sáenz & Morelli 1983) e, aparentemente, frutos apodrecidos. Canthon rutilans (Castelnau, 1840) é encontrada tanto em excrementos quanto em carcaças (Martínez 1959). Contudo, neste estudo obteve abundância igual em armadilhas iscadas com carne apodrecida e banana, e não ocorreu nas iscadas com excrementos, sendo enquadrada apenas como generalista. Possivelmente o tipo de ambiente pode ter influenciado nestes resultados, pois Silva et al. (2008) coletaram maior número de indivíduos em armadilhas iscadas com carne apodrecida do que em fezes bovinas e com preferência por habitat florestal.
Ateuchus robustus teve baixa ocorrência às iscas utilizadas possivelmente por possuir hábito alimentar específico de excrementos de herbívoros (Martínez 1959). Canthon bispinus teve maior abundância em armadilha de interceptação de voo, mas Martínez (1959) afirma que esta espécie possui hábito alimentar necrófago, podendo ser observada nos primeiros estágios de decomposição de carcaças de diferentes animais. Neste estudo, em relação às armadilhas de queda iscadas, esta espécie teve maior ocorrência nas iscadas com fígado apodrecido, mas foi caracterizada como generalista preferencialmente necrófaga; é provável que o tipo de isca não seja o preferencial da espécie. Uroxys dilaticollis apresenta um dos nichos menos evidentes dos Scarabaeinae, pois é reportada de ninhos de formigas Acromyrmexlundi (Guérin, 1838), caso de mirmecofilia (Martínez 1959, Vaz-de-Mello et al. 1998), e é também frequentemente encontrada associada a excrementos bovinos e equinos.
Onthophagus aff. hirculus e O. sulcator apresentaram elevada abundância nas armadilhas de fezes e de interceptação de voo, sendo as coprófagas mais abundantes neste estudo. Estas duas espécies, por serem paracoprídeas (escavadoras) e muito comuns na região, devem receber atenção especial devido à importante função que desempenham na remoção de massas fecais da superfície de pastagens e na utilização no controle biológico de dípteros e helmintos parasitos de importância veterinária. De acordo com Doube (1990), os besouros 'rola-bostas' escavadores processam maior quantidade de esterco em comparação com os roladores (telecoprídeos) de mesmo tamanho.
Além do maior número de armadilhas de queda iscadas com fezes humanas utilizado neste estudo, a maior concentração de espécies coprófagas, em relação às necrófagas e saprófagas, é provavelmente fruto das condições encontradas em um ambiente de campo característico do Pampa em relação aos recursos alimentares disponíveis para os escarabeíneos. Neste ambiente, onde a prática pecuária é comum (semelhante à área estudada), existe grande quantidade de esterco de ruminantes (e.g. bovinos, equinos e ovinos), sendo este o recurso alimentar encontrado em maior abundância e com maior frequência, levando à dominância da coprofagia em ambientes campestres (Halffter & Matthews 1966). Carcaças de animais podem estar disponíveis no ambiente de campo, mas não com a mesma disponibilidade do esterco, não possibilitando, desta forma, uma elevada riqueza e abundância de espécies com guilda alimentar do tipo necrófaga.
Nenhuma espécie foi classificada como saprófaga. Isto sugere que frutos em decomposição não são frequentes no ambiente campestre estudado, ao contrário do que acontece em ecossistemas florestais nativos, onde este tipo de recurso pode ser mais abundante. As espécies que foram atraídas por iscas de banana em decomposição, são, em sua maioria, espécies generalistas, que podem utilizar os frutos como um recurso alternativo ao seu alimento preferencial. Isto pode diminuir a competição em alimentos escassos e efêmeros como excrementos e carcaças de pequenos animais e elevar a diversidade do grupo (Halffter & Halffter 2009).
Apesar de ser um importante grupo de insetos responsáveis por várias funções benéficas aos ecossistemas, a fauna de Scarabaeinae ainda é muito pouco estudada no Rio Grande do Sul, e especialmente no bioma Pampa. Estudos futuros direcionados ao conhecimento desta fauna poderão subsidiar dados sobre a biologia e a distribuição das espécies de Scarabaeinae pelo estado e no território brasileiro. Tais informações, como as adquiridas com a realização deste estudo, são fundamentais para embasar qualquer iniciativa de manejo e conservação da biodiversidade e de ecossistemas.
Agradecimentos
Ao pesquisador Marcos Flávio Silva Borba, associado a Embrapa Pecuária Sul, pelo incentivo, apoio e disponibilização de recursos para a realização da pesquisa. Aos professores Júlio Louzada (UFLA) e Rocco Di Mare (UFSM) pela disponibilização de espaço para a execução de parte deste trabalho. Aos revisores pelas valiosas contribuições. Este trabalho contou com auxílios parciais da FAPEMAT (570847/2008 e 447441/2009) e CNPq (151603/2007-3 e 304925/2010-1).
Recebido em 20/06/2011
Versão reformulada recebida em 25/05/2012
Publicado em 07/08/2012
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Nov 2012 -
Data do Fascículo
Set 2012
Histórico
-
Recebido
20 Jun 2011 -
Aceito
07 Ago 2012 -
Revisado
25 Maio 2012