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Contexto Formativo de Invenção Robótico-Matemática: Pensamento Computacional e Matemática Crítica

Formative Context of Robotic-Mathematical Invention: Computational Thinking and Critical Mathematics

Resumo

Neste artigo buscamos identificar e compreender as características do contexto formativo em Matemática de estudantes quando produzem jogos digitais e dispositivos robóticos destinados ao tratamento de sintomas da doença de Parkinson. Norteados pelas ideias da metodologia qualitativa de pesquisa, interagimos com alunos do Ensino Médio visando a construção de um jogo eletrônico com dispositivo robótico, chamado Paraquedas, destinado a sessões de fisioterapia de pacientes com Parkinson. Os alunos foram estimulados a propor e desenvolver ideias em ambientes voltados à experimentação e invenções eletrônicas para beneficiar pessoas em sociedade. Os dados foram analisados à luz dos pressupostos teóricos do Pensamento Computacional e da Matemática Crítica e consistem de discussão-análises do desenvolvimento científico-tecnológico, colaborativo-argumentativo e inventivo-criativo de tecnologias, indo além dos muros da sala de aula de Matemática. Como resultado, identificamos as seguintes características do contexto formativo em Matemática: independência formativa; imprevisibilidade de respostas; aprendizagem centrada na compreensão-investigação-invenção; e conexão entre áreas de conhecimento. Compreendemos que tais características se originam e mutuamente se desenvolvem dinâmico e idiossincraticamente nas concepções de planejamento, diálogo e protagonismo dos sujeitos, os quais fomentam a exploração de problemas aberto e inéditos de Matemática em-uso e descentralizam a formalização excessiva do rigor de objetos matemáticos como ponto nevrálgico à formação em Matemática.

Matemática Crítica; Jogos Digitais; Robótica; Formação Matemática

Abstract

In this article, we identify and understand the characteristics of a mathematics educational context in which students produce digital games and robotic devices to treat symptoms of Parkinson's disease. Using a qualitative research methodology, we interact with high school students who aim to build an electronic game with a robotic device called Parachute, intended for physiotherapy sessions for patients with Parkinson's. Beyond the walls of the Mathematics classroom, students were encouraged to propose and develop ideas in an instructional environment created for experimentation with digital inventions for the benefit of people. We analyzed data using the theoretical assumptions of computational thinking and critical mathematics. The analytic categories consisted of discussion-analysis of scientific-technological, collaborative-argumentative, and inventive-creative development of technologies. As a result, we identified the following characteristics of the mathematical educational context: formative independence, unpredictability of responses, learning centered on understanding-research-invention, and connection between areas of knowledge. These characteristics originate and develop mutually, dynamically, and idiosyncratically in students' planning, dialogue, and initiative. Moreover, these characteristics foster the exploration of open and unprecedented mathematical problems and decentralize the excessive formalization of the rigor of mathematical objects.

Critical Mathematics; Digital games; Robotics; Mathematical Formation

1 Introdução

O sistema educacional ao redor do mundo flagrantemente transgride por suas diversas maneiras de fragmentar o tempo e espaço: “Peguem seus livros... resolvam 10 problemas no final do capítulo 18... triiim... o sinal tocou, fechem seus livros. [Agora, por outro lado,] imagine um executivo, um neurocirurgião ou um cientista que tivesse que trabalhar com a uma agenda tão fragmentada e [admoestada]” ( PAPERT, 2008PAPERT, S. A máquina das Crianças: repensando a escola na era informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. , p. 92). As palavras deste autor nos impulsionam a perscrutar os diferentes contextos formativos e organizações que tentam fragmentar a aprendizagem do estudante, deixando de lado o tempo e o espaço para se pensar livremente, desenvolver invenções científicas e criar criativamente ( RESNICK, 2017RESNICK, M. Lifelong Kindergarten: cultivating Creativity through projects, passion, peers and play. Cambridge: MIT Press, 2017. ; VALENTE; BURD, 2019VALENTE, A. B.; BURD, L. Creative Learning Challenge Brazil: A Constructionism approach to educational leadership development. Tecnologias, Sociedade e conhecimento, v. 6, n. 2, p. 9-29, dez. 2019. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tsc/article/view/14504/9516.
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), para além da sala de aula. Impulsionam-nos também a pensar e refletir sobre os modus operandi escolares que, por conseguinte, acabam rotulando alunos engajados e críticos em pessoas incapazes de desenvolver algo especial ao mundo pela simples razão de não repetir o que outros reproduzem ( FREIRE, 2005FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. ; PAPERT, 2008PAPERT, S. A máquina das Crianças: repensando a escola na era informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. ).

Em sintonia com o rompimento da pedagogia do treinamento no contexto escolar ( FREIRE, 2005FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. ) e, por conseguinte, motivados em transladar o foco das lentes que não mais se sustentam no sistema educacional do século 21, concatenamos esforços para pensar a formação em Matemática amalgamada à invenção criativa e científica de dispositivos robóticos voltados ao tratamento de Parkinson. Ao descentralizar a fragmentação cronológica da aprendizagem de Matemática conhecida histórico-culturalmente ( PAPERT, 1996PAPERT, S. An exploration in th espace of mathematics educations. International Journal of Computers for Mathematical Learning, Boston, v. 1, n. 1, p. 95-123, 1996. ; D’AMBROSIO; LOPES, 2015D’AMBROSIO, B. S.; LOPES, C. E. Insubordinação Criativa: um convite à reinvenção do educador matemático. Bolema, Rio Claro, v. 29, n. 51, p. 1-17, 2015. ; RESNICK, 2017RESNICK, M. Lifelong Kindergarten: cultivating Creativity through projects, passion, peers and play. Cambridge: MIT Press, 2017. ; AZEVEDO et al. , 2018AZEVEDO, G. T., MALTEMPI, M. V.; LYRA-SILVA, G. G. M. V. Processo formativo do aluno em matemática: jogos digitais e tratamento de Parkinson. 2018, v. 26, n. 3, pp. 569-585. set./dez, 2018. Zetetike, 26(3). Disponível em: https://doi.org/10.20396/zet.v26i3.8651962.
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; AZEVEDO, 2020; 2021; BARBOSA; LOPES, 2020BARBOSA, J. G; LOPES, C., E. Insubordinação criativa como parte do legado científico de Beatriz Silva D’Ambrosio. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 5, n. 13, p. 261-276, jan./abr. 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2020.v5.n13.p261-276. Acesso em: 10 jul. 2020.
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), movemo-nos em rotas que nos permitem vislumbrar a criticidade, emancipação intelectual, a invenção científico-tecnológica, autonomia e o protagonismo dos estudantes ao pensar, argumentar e criar matematicamente em sala de aula.

Considerando esse contexto à formação crítica em Matemática, em forma de recorte, este trabalho tem por objetivo identificar e compreender as características do contexto formativo em Matemática de estudantes quando produzem jogos digitais e dispositivos robóticos destinados a problemas reais encaminhados em sociedade, como no tratamento de sintomas da doença de Parkinson. Este contexto de formação em Matemática considera os elementos do ambiente (escola e hospital) e o processo (não só o produto) das interações de aprendizagem que ali ocorrem, entre os estudantes e colaboradores de pesquisa. Norteados pelas ideias da metodologia qualitativa de pesquisa, interagimos com estudantes do Ensino Médio, do Instituto Federal Goiano (IF-Goiano), Ipameri (GO), visando à construção de um jogo eletrônico com dispositivo robótico, chamado Paraquedas, destinado a sessões de fisioterapia de pacientes, no Hospital Dia do Idoso, em Anápolis (GO).

Os dados da pesquisa foram analisados à luz dos pressupostos teóricos do Pensamento Computacional e da Matemática Crítica e consistem de intepretações e discussões analíticas do desenvolvimento científico-tecnológico, colaborativo-argumentativo e inventivo-criativo de tecnologias robóticas, indo além dos muros escolares. Tendo a colaboração de profissionais da computação, engenharia e saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e fonoaudiólogos) e a criação de ambientes de aprendizagem para estimular que os alunos agissem como inventores, corroboramos o contexto de formação em Matemática que suspende a mera repetição e treino sucessivo de exercícios matemáticos. E apontamos para o enfraquecimento da admoestação de ideias, ao passo que favorecemos espaços à experimentação e às invenções eletrônicas para beneficiar pessoas em sociedade.

2 Contexto formativo e Matemática Crítica

Por entendermos que o contexto formativo em Matemática pode ser concebido como lugar para vivenciar experiências científico-tecnológicas e criativas, além de fomentar o desenvolvimento social, ético, colaborativo e intelectual do aluno em sociedade, apoiamo-nos nas concepções preconizadas pela Matemática Crítica (POWELL, 2008; POWELL, 2012; FRANKENSTEIN 1983FRANKENSTEIN, M. Critical mathematics education: An application of Paulo Freire’s epistemology. Journal of Education, New York, v. 164, p. 315–339, 1983. ; 2012). Comprometida com a mudança social e educacional, a Matemática Crítica problematiza possibilidades para que os alunos adquiram “uma postura crítica em sua própria aprendizagem e que o [contexto formativo] favoreça situações para que [eles] aprendam e intervenham no mundo a partir do saber crítico matemático em sociedade; [usufruindo] do conhecimento matemático não como estático, [cabal] e neutro” (POWELL, 2012, p. 22, tradução nossa). Nessa perspectiva, o professor-pesquisador precisa ter os objetivos bem definidos de aprendizagem e a intenção clara de ajudar seus estudantes, proporcionando-lhes contextos para que pensem e argumentem matematicamente e, ao mesmo tempo, desenvolvam ideias e ferramentas tecnológicas e científicas para o bem social.

Reconhecendo que os estudantes são capazes de desenvolver soluções com a Matemática, é importante que o contexto de formação leve a sério o próprio trabalho intelectual dos aprendizes [e que eles possam ter a chance] de participar ativamente como co-interrogadores do processo de [invenção] e aprendizagem. A respeito desse contexto de formação, a Matemática Crítica ( FRANKENSTEIN, 2012FRANKENSTEIN, M. Beyond math content and process: Proposals for underlying aspects of social justice education. In: Wager, A. A.; Stinson, D. W. (ed.). Teaching mathematics for social justice: Conversations with mathematics educators. USA: NCTM, 2012. p. 49-62. ) nos ajuda a refletir e compreender que não é simplesmente desenvolver uma nova invenção tecnológica enquanto se aprende Matemática e aprimora o potencial criativo do aluno, mas é um caminho que pode colocá-lo como um sujeito que atua, questiona e intervém direto, ético e positivamente na sua própria realidade, sendo capaz de beneficiar pessoas acometidas com a doença de Parkinson por meio de suas invenções científico-tecnológicas. Para tanto, entendemos que evidenciar este contexto de formação em Matemática, à luz da Matemática Crítica, com a produção de jogos e dispositivos robóticos ao tratamento de Parkinson, torna-se importante pensar a formação em Matemática dos alunos que esteja à altura deste tempo. Uma formação em Matemática que promova aspectos de insubordinação à pedagogia do treinamento e que, ao mesmo tempo, valorize a produção investigativa e intelectualmente emancipatória do estudante.

Em meio a isso, a insubordinação aos modus operandi do sistema educacional subjaz à “crença e a esperança de construção de uma sociedade mais justa e digna para todos, em que a escola priorize a formação de cidadãos capazes de visualizar, [pensar], construir, intervir [e desenvolver criativamente propostas e invenções úteis] à sociedade” ( BARBOSA; LOPES, 2020BARBOSA, J. G; LOPES, C., E. Insubordinação criativa como parte do legado científico de Beatriz Silva D’Ambrosio. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 5, n. 13, p. 261-276, jan./abr. 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2020.v5.n13.p261-276. Acesso em: 10 jul. 2020.
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, p. 275). A ideia é bem diferente daquela que se mostra pela imposição de temas escolhidos pelo professor, livro didático, orientações governamentais ( FREITAS, 2015FREITAS, L. C. Base Nacional (Mercadológica) Comum. Blog do Freitas. 2015. Disponível em: https://avaliacaoeducacional.com/2015/07/20/base-nacional-mercadologica-comum/. Acesso em: 06 jan. 2020.
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) ou até mesmo pelo uso passivo da robótica sem significado em sala de aula ( RESNICK, 2017RESNICK, M. Lifelong Kindergarten: cultivating Creativity through projects, passion, peers and play. Cambridge: MIT Press, 2017. ). Em consonância, negamos o processo impositivo pedagógico mecanizado e colocamos em suspensão a produção de eletrônicos (jogos e dispositivos robóticos) como fim em si mesmo.

Consideramos que “[...] os eletrônicos nas aulas de matemática não são ferramentas de ensino, mas são matérias-primas de construção ativa, desenvolvimento científico-criativo, expressão pessoal e intelectual do aluno” ( AZEVEDO; MALTEMPI, 2020AZEVEDO, G. T.; MALTEMPI, M. V. Processo Formativo em Matemática e Robótica: Construcionismo, Pensamento Computacional e Aprendizagem Criativa. Tecnologias, Sociedade e Conhecimento, v. 7, p. 85-227, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.20396/tsc.v7i2.14857.
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, p. 87). Neste sentido, concebemos que o trabalho com a produção de jogos e o desenvolvimento de dispositivos robóticos nas aulas de Matemática em prol do tratamento de Parkinson não deva se limitar ao campo cognitivo de formação, mas possibilitar formas diversas e inovadoras de sentir, expressar ideias, comunicar estratégias e construir possíveis soluções úteis à sociedade.

3 Pensamento Computacional e Matemática Crítica: dispositivos robóticos ao Parkinson

O conjunto de ideias do Pensamento Computacional (PC) no contexto de formação não é se centrar no algoritmo em si mesmo, tampouco nos códigos de programação e seus derivados procedimentos (sintaxe, algoritmo, compilação, etc.); pelo contrário, é o modo de desenvolver o encadeamento da lógica, curiosidade, formulação de estratégia, identificar e desenvolver a concatenação de ideias para resolver problemas emergentes em sociedade ( DENNING, 2017DENNING, P. J. Remaining Trouble Spots with Computational Thinking. Communications of the ACM, New York, v. 60, n. 6, p. 33-39, 2017. Disponível em: http://denninginstitute.com/pjd/PUBS/CACMcols/cacm-trouble-ct.pdf. Acesso em: 13 fev. 2018.
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; WING, 2010WING, J. M. Computational Thinking: What and Why? 2010. Disponível em: http://www.cs.cmu.edu/~CompThink/resources/TheLinkWing.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
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; 2014WING, J. M. Computational Thinking Benefits Society. Social Issues in Computing. 2014. Disponível em: http://socialissues.cs.toronto.edu/2014/01/computational-thinking/. Acesso em: 04 abr. 2019.
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). É preciso nutrir e encorajar o pensamento lógico, a criatividade e formulação e estratégias dos alunos, tendo cautela e responsabilidade de modo a não recair nos modismos atuais do século 21, quanto à supervalorização da robótica ou da programação em sala. Nossa visão do PC é justamente essa, de modo que todos possam se beneficiar dele, desde um cientista da área da computação até um aluno do Ensino Médio.

Com esse entendimento sobre o contexto de formação em Matemática e robótica, perscrutamos possibilidades de invenção de dispositivos científico-tecnológicos com Matemática à luz das ideias preconizadas pelo Pensamento Computacional (PC), que vão além das burocracias educacionais. Salientamos que o termo Pensamento Computacional foi usado por Papert, na década de 1980, em Mindstorms: Children, Computers, and Powerful Ideas , como possibilidade de forjar ideias mais acessíveis e poderosas para a construção de conhecimento em distintas áreas, entre as quais se inclui a Matemática. Suas visões embrionárias afirmavam como “integrar o pensamento computacional à vida cotidiana [e deveria criar oportunidades] para [ampliar e intensificar] movimentos sociais de pessoas interessadas em computação pessoal, [...] interessado em educação de qualidade” ( PAPERT, 1980PAPERT, S. Mindstorms: Children, Computers and Powerful Ideas. New York: Basic Books Inc., 1980. , p. 182, tradução nossa, grifos nossos). Embora as ideias do PC já tivessem se originado no século 20, elas foram impulsionadas por Papert (1980)PAPERT, S. Mindstorms: Children, Computers and Powerful Ideas. New York: Basic Books Inc., 1980. como mecanismo potencial para criar ideias e nutrir possíveis soluções a problemas de diferentes ordens no mundo. Wing (2010)WING, J. M. Computational Thinking: What and Why? 2010. Disponível em: http://www.cs.cmu.edu/~CompThink/resources/TheLinkWing.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
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corrobora esse entendimento e situa o PC “na formulação de problemas e suas soluções para que elas sejam representadas de forma que possam ser efetivamente realizadas e aplicadas em situações reais ” (p. 1, tradução nossa, grifos nossos).

Ao encontro das ideias do Pensamento Computacional e da Matemática Crítica, situamos a formação em Matemática a partir da invenção científico-tecnológica (jogos digitais e dispositivos robóticos) como possibilidade de construção de conhecimento crítico em prol do tratamento de sintomas de Parkinson. Nesse ínterim, concordamos que à medida que os alunos trabalham coletivamente em projetos à criação de soluções, “[...] produzem não apenas teias de conceitos, mas também desenvolvem habilidades – articulam ideias e criam coisas para resolver problemas do mundo e comunicar ideias” ( RESNICK, 2017RESNICK, M. Lifelong Kindergarten: cultivating Creativity through projects, passion, peers and play. Cambridge: MIT Press, 2017. , p. 54, tradução nossa). Reconhecemos que esse tipo de formação busca propor uma proposta educadora que incorpora em suas diretrizes a interpretação de mundo do aluno, sua visão crítica e perscrutada da realidade, que busca conferir a eles, no ambiente escolar, recursos para o exercício de emancipação (FREIRE, 2011), invenção ( BARBA, 2016BARBA, L. Computacional Thinking: I do not think it means what you think it means. 2016. Disponível em: http://lorenabarba.com/blog/computational-thinking-i-do-not-think-it-means-what-you-think-it-means/. Acesso em: 10 dez. 2019.
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), criatividade ( RESNICK, 2017RESNICK, M. Lifelong Kindergarten: cultivating Creativity through projects, passion, peers and play. Cambridge: MIT Press, 2017. ) e autonomia ( PAPERT, 2008PAPERT, S. A máquina das Crianças: repensando a escola na era informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. ) e justiça social ( FRANKENSTEIN, 2012FRANKENSTEIN, M. Beyond math content and process: Proposals for underlying aspects of social justice education. In: Wager, A. A.; Stinson, D. W. (ed.). Teaching mathematics for social justice: Conversations with mathematics educators. USA: NCTM, 2012. p. 49-62. ). É uma formação que não se limita ao conteúdo e nem se centra na programação ou na construção tecnológico-robótica somente. Em vez disso, valoriza todo o processo de aprendizagem em Matemática do aluno ao longo das invenções científico-tecnológicas, do qual se articula com outras áreas do conhecimento, computação, engenharia e área médica.

Nesse processo de aprender a programar jogos associados aos dispositivos robóticos para o Parkinson, o aluno pode adquirir um senso mais elaborado da Ciência, da Matemática e da Arte em construir modelos tecnológicos, tendo a sua emancipação intelectual e científica estimulada e encorajada durante o processo de formação ( AZEVEDO; MALTEMPI, 2020AZEVEDO, G. T.; MALTEMPI, M. V. Processo Formativo em Matemática e Robótica: Construcionismo, Pensamento Computacional e Aprendizagem Criativa. Tecnologias, Sociedade e Conhecimento, v. 7, p. 85-227, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.20396/tsc.v7i2.14857.
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, 2020AZEVEDO, G. T.; MALTEMPI, M. V. Processo Formativo em Matemática e Robótica: Construcionismo, Pensamento Computacional e Aprendizagem Criativa. Tecnologias, Sociedade e Conhecimento, v. 7, p. 85-227, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.20396/tsc.v7i2.14857.
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). Por fim, entendemos que a plasticidade do Pensamento Computacional amalgamada às ideias da Matemática Crítica pode promover diversidade epistemológica do conhecimento e inovação tecnológica, fomentando um ambiente no qual os alunos, na sua própria voz, podem materializar seus projetos com expertise e responsabilidade científico-social e humana ( PAPERT, 1991PAPERT, S. Situating Constructionism. In I. Harel e S. Papert, Constructionism. Norwood, NJ: Ablex Publishing, p. 1-11, 1991. ). Uma Matemática curricular que não se encerre em si mesma, nem no currículo ou o desenvolvimento de competência e habilidades, tampouco na própria invenção científica e tecnológica. Mas uma Matemática que sirva de base para beneficiar pessoas no mundo e incentivar uma geração de jovens não como copiadores ou reprodutores, mas como sujeitos atuantes, criativos e autônomos. Imbuídos de ambas correntes teóricas, que fundamentam nossos caminhos e ampliam nossos olhares, avançamos à próxima seção a fim de conhecer os cenários, sujeitos e técnicas adotadas no percurso metodológico de pesquisa.

4 Percurso metodológico de pesquisa

Tendo por objetivo compreender as características do contexto formativo em Matemática de estudantes quando produzem jogos digitais e dispositivos robóticos destinados ao tratamento de sintomas da doença de Parkinson, apoiamo-nos nos pressupostos qualitativos de pesquisa ( TRIVIÑOS, 2009TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em Educação. 18 reimp. São Paulo: Atlas, 2009. ). Isso porque visamos “atingir aspectos humanos sem passar pelos crivos da mensuração, sem partir de métodos previamente definidos e, portanto, sem ficar presos a quantificadores e aos cálculos recorrentes” ( BICUDO, 2006BICUDO, M. A. V. Pesquisa Qualitativa e Pesquisa Qualitativa Segundo a Abordagem Fenomenológica. In: BORBA, M. C.; ARAÚJO, J. L. (org.). Pesquisa Qualitativa em Educação Matemática. São Paulo: Autêntica, 2006. p. 100-118. , p. 107). Nessa perspectiva, negamos a neutralidade do pesquisador durante a investigação e consideramos que há sempre um aspecto subjetivo a ser considerado ( BOGDAN; BIKLEN, 1994BOGDAN, R; BIKLEN, S. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Lisboa: Porto Editora, 1994. ).

A pesquisa foi realizada no âmbito do Projeto Mattics1 1 Cf.: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Nn1zXGY14lY&t=12s com a participação de 30 alunos do Ensino Médio do IF-Goiano, em Ipameri (GO), e com visitas mensais ao Hospital do Idoso, em Anápolis (GO). Esse Projeto acontece no contra turno, semanalmente, ao longo do ano letivo e, no final de cada mês, os alunos participam das sessões fisioterapêuticas. Desde 2018, 30 jogos digitais e 15 dispositivos robóticos (específicos ao tratamento Parkinsoniano) foram desenvolvidos pelos estudantes com a mediação do professor-pesquisador, com o auxílio de profissionais da computação, engenharia e da área médica - beneficiando pacientes com o retardamento de sintomas da doença de Parkinson.

Sendo uma doença de “caráter crônico e progressivo, que promove complicações motoras com prejuízo na coordenação motora global e limitações funcionais que podem interferir de forma significativa na qualidade de vida particular ou geral do paciente” ( SANTOS et al. ; 2017SANTOS, L. R.; SOUSA, L. R.; LOPES, C. R.; DIONÍSIO, J.; FENELON, S. B.; HALLAL, C. Z. Game terapia na doença de Parkinson: influência da adição de carga e diferentes níveis de dificuldade sobre a amplitude de movimento de abdução de ombro. Revista Ciência e Movimento, Cidade, v. 25, n. 4, p. 32-38, 2017. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/RBCM/article/view/6892/pdf. Acesso em: 10 de jan. de 2019.
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, p. 33), o Parkinson pode ser retardado com sessões fisioterapêuticas, que visam estimular os movimentos coordenados e posturais do paciente, além de estimular o seu raciocínio e a sua concentração. A respeito dessas atividades, os jogos e dispositivos robóticos que têm sido produzidos, de baixo custo, pelos alunos podem servir como base para estimular habilidades motoras e cognitivas dos acometidos. Podem também estabelecer uma conexão entre um ambiente real e virtual, proporcionando uma interação em tempo real e o estímulo de diversos movimentos corporais, promovendo melhora das capacidades biomotoras dos pacientes ( SANTOS et al. , 2017SANTOS, L. R.; SOUSA, L. R.; LOPES, C. R.; DIONÍSIO, J.; FENELON, S. B.; HALLAL, C. Z. Game terapia na doença de Parkinson: influência da adição de carga e diferentes níveis de dificuldade sobre a amplitude de movimento de abdução de ombro. Revista Ciência e Movimento, Cidade, v. 25, n. 4, p. 32-38, 2017. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/RBCM/article/view/6892/pdf. Acesso em: 10 de jan. de 2019.
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).

Para tanto, evidenciamos na última seção o uso dos eletrônicos no tratamento de sintomas da doença Parkinson. Apesar da doença não ter cura, os sintomas podem ser retardados de modo a trazer qualidade de vida ao paciente e uma das atividades da pesquisa é a de desenvolver eletrônicos personalizados para auxiliar no tratamento de sintomas específicos da doença, contribuindo com a redução das limitações motoras causadas pela lentidão e atrofia dos movimentos e alterações posturais, manutenção das amplitudes de movimento, prevenindo deformidades, incentivando o equilíbrio, marcha e coordenação.

Neste trabalho, em forma de recorte, trazemos para a apresentação e discussão-analítica as distintas etapas da produção do jogo eletrônico Paraquedas e do seu dispositivo associado, Paraquedas-Robótico ao tratamento de sintomas da doença de Parkinson. Embora o trabalho evidencie superficialmente elementos (imagens, falas e vídeos) do tratamento de sintomas da doença de Parkinson, focamos aqui no contexto de formação em Matemática do estudante. Em sintonia com objetivo estabelecido, destacamos o contexto formativo em Matemática o qual é marcado por ilustrações, links e transcrições dos pesquisados e dos profissionais da computação, engenharia e saúde, que participam do projeto. A apresentação e análise dos dados são sequenciais e dialógicas. Elas foram analisadas à luz do aporte teórico estabelecido. Para registro dos dados utilizamos diversos instrumentos, como diário de campo do pesquisador, fotografias, filmagens e depoimentos dos alunos, pacientes e dos profissionais. Para a produção dos eletrônicos foram utilizados os seguintes programas: Scratch e GeoGebra , e placas robóticas: BBC Micro-bit, Makey-Makey e Arduino.

Para a apresentação e análise dos dados da pesquisa, utilizaremos recortes dos diálogos e discussões gravados (filmados) e anotados, bem como faremos uso dos símbolos [] para explicitar trecho que se refira à transcrição de fala dos sujeitos. Ainda, utilizaremos os símbolos () para supressão dos diálogos e contextualização das falas, captadas de gravações realizadas no projeto e depoimentos coletados ao longo da pesquisa. As ilustrações foram organizadas em letras e números. A letra refere-se o conjunto de imagens de um determinado contexto e o número associado sinaliza a parte deste contexto. Cabe ressaltar que todos os participantes da pesquisa receberam os termos de consentimento/autorização e manifestaram interesse em participar da pesquisa sem o anonimato de suas identidades. Salienta-se que o trabalho foi aprovado no Comitê de Ética (CEP) da Unesp, campus de Rio Claro (SP), cujo CAAE é 95768318.2.0000.5466 e parecer designado pelo código 3.243.517.

5 Apresentação e análise de dados

O jogo Paraquedas2 2 Cf. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n9FfyZj_h0g&t=1s associado ao dispositivo guarda-chuva-robótico é uma das invenções dos alunos para atender às sessões de fisioterapia de Parkinson no Hospital do Idoso, à luz das recomendações da equipe de profissionais da área médica. Tal invenção, que simula o salto convencional de um paraquedista a partir de um avião até a aterrissagem, busca encorajar o equilíbrio, movimentos verticais, a postura correta da coluna e força dos pacientes parkinsonianos, visando à redução dos tremores. As produções se constituíram em três principais fases: ideação; brainstorming ; e depuração, conforme Figura 1 .

Figura 1
: Jogo Paraquedas: diferentes etapas da produção dos eletrônicos

A primeira imagem, mais à esquerda da Figura 1 , retrata a construção dos algoritmos do jogo paraquedas. Nessa etapa, o professor-pesquisador e seus alunos trabalham com a construção de conhecimento matemático a partir da produção dos programas do jogo Paraquedas, o qual se destina ao tratamento de Parkinson. A imagem central retrata, em fase de construção, o dispositivo guarda-chuva-robótico , sendo constituído por sucatas de guarda-chuva, condutores, acessórios e placas BBC: micro-bit . Evidencia-se na última imagem, à direita, os ajustes finais do jogo e seu dispositivo robótico associado, que são cuidadosamente testados, analisados e aprovados pela equipe do Mattics, antes de serem utilizados no hospital.

Embora independentes, as etapas não são mutuamente excludentes. O propósito de se construir o eletrônico Paraquedas-Robótico se remontou em um processo de estudo, interação com diferentes profissionais e se organizou na perspectiva de pesquisa e invenção, tendo a matemática, engenharia e computação como peças combinadas à formação em matemática, em sala de aula. A respeito disso, selecionamos, conforme Quadro 1 , alguns dos conhecimentos acadêmicos e técnicos mobilizados na invenção dos eletrônicos.

Quadro 1
– Por trás do jogo Paraquedas: ideias matemáticas e conceitos de programação

Conforme Quadro 1 , observamos os principais tópicos matemáticos e computacionais que emergiram durante a produção do jogo paraquedas e seu dispositivo robótico. Ao darmos enfoque às invenções eletrônicas, torna-se imprescindível discorrer sobre como os programas são desenvolvidos pelos estudantes e como eles lidam com problemas abertos ao buscar alternativas para solucioná-los junto ao professor-pesquisador. Um dos contextos que se evidencia é quando os aprendizes se engajam na criação do leiaute e dos códigos, que há por trás dos eletrônicos. Como recorte, investigamos a criação dos algoritmos dos jatos em termos dos conhecimentos matemáticos e computacionais, entre os quais se ressaltam: repetições, condicionais e funções exponenciais naturais, do tipo J(x)=aekx+b ; a,bR,e>0e1 . Para tanto, destacamos as ilustrações da pesquisa que combinam figuras com excertos das falas dos participantes, na temporalidade dos acontecimentos.

Figura 2
: Jogo Paraquedas: comportamento do Jato [Função definida: Exponencial]

Camila Tínhamos um problema sem respostas [Percurso do jato]. Estudamos muitas ideias de modo que o jato atravessasse o palco. Examinamos os movimentos dele e as suas proporções de estágios de avanço na tela. Decidimos começar na posição x < 220 e y > 0 Os valores de x representam o percurso horizontal do jato e os valores de y a altura dele, sendo y = 0 o nível do mar.

Caio [Tempo depois] analisamos o percurso de algumas funções e descobrimos, com o auxílio do professor, que um bom movimento que se assemelha ao que a gente deseja é o percurso da função exponencial do tipo J ( x ) = e k x [para e > 0 , e 1 . Era até então uma função desconhecida. Mas, aos poucos, fomos nos familiarizando com ela. Ela atendeu ao nosso propósito...

Camila Caio, observo que seu grupo explorou as funções exponenciais com bases positivas. Por quê? A base [e] não pode ser negativa? Muda o trajeto?

Caio[Fica pensativo] Hum..., vamos pensar [Pausa] Há três casos para os valores de base neperiana e (funções exponenciais)[(i)e>1e1; (ii)0<e<1] ; e (funções similares às exponenciais)[(iii)e<0][explana os casos e contextos à turma], conforme a orientação do professor. Por fim, constatamos que o melhor caso seria a basee>1, pelo fato de fazer com que os jatos cresçam e tenham trajetórias sempre crescentes. Isso fez sentido para o jogo!

Guímel [Tempo depois] [...] Não só a base, investigamos os parâmetros [a,b] da função exponencial, na verdade, quebramos a cabeça para escolher valores que permitissem a trajetória do jato passar na tela [...]. No nosso código de programação [em especial, a função J ( x ) = a e k x + b , exploramos diferentes valores de a, b e c para descrever a melhor trajetória do jato dentro da tela do jogo [mostra os diferentes valores testados, analisados e debatidos].

Caio Criamos e apagamos o código várias vezes... [sucessão de pensamentos] [e] definimos os parâmetros a = 20 e b = 0 e o produto do expoente por k = 0,01 com muito esforço [argumenta sobre as falhas e faz testes junto à turma]. Isso para deixar os jatos e seus percursos dentro da tela, respeitando suas dimensões (x,y). Ao simularmos os valores, notamos que se os valores de a aumentam, então a curva ficaria mais próxima ao eixo y. Isso resultaria um voo do jato quase verticalizado e isso não daria certo aqui [arguições]

Professor [...] Gostei das ideias e dos valores. Não havia pensado neles... Há outros que satisfaçam também a condição estabelecida por vocês? [dimensão do palco].

Vitor Acho que sim, professor. Estamos pensando nesses valores... Vamos projetá-los no código de programação aliados às funções recursivas... [Engajamos] para desenhar as funções no jogo, vimos que o valor de a = 0 não geraria a função exponencial [condição de existência], porque o produto vai anular a própria função, daí não tem curva, não é? [Discussão sobre os cálculos entre os grupos]. Também se x = 0 não vai formar curva exponencial, porque todo número real elevado a zero é igual a 1 f ( x ) = a e k x f ( 0 ) = a e k 0 = f ( 0 ) = a. e 0 = a .1 = 1 . a = a . [reta horizontal paralela ao eixo x gerada].

(Gravação de vídeo da sala de aula, 2019).

Figura 3
: Simulação da trajetória dos Jatos

O recorte do diálogo mostra a discussão em-uso do conteúdo entre alunos e professor. A função exponencial, que não se encerra em si mesma, é utilizada como base para estabelecer a trajetória do jato no jogo. Ao perscrutar os excertos, encontramos informações como as de Camila e Caio, respectivamente: “[...] tínhamos um problema sem respostas [e] estudamos [diferentes] ideias de modo que o jato atravessasse o palco [...] examinamos os movimentos dele e as suas proporções” ; e “analisamos o percurso [e] descobrimos...J(x)=ekx ” (Gravação de vídeo, 2019), e compreendemos que a produção de eletrônicos não se limita ao par pergunta-resposta do conhecimento matemático, mas valoriza múltiplos caminhos, não necessariamente previsíveis, para que os alunos construam modelos matemáticos em-uso, quando desenvolvem ideias e estratégias para solucioná-los engajadamente. O conhecimento “torna-se valorizado pelo próprio aluno por ser útil, por ser possível compartilhar com outras pessoas e por combinar com o estilo pessoal de cada indivíduo” ( PAPERT, 2008PAPERT, S. A máquina das Crianças: repensando a escola na era informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. , p. 173).

Ao abordar as ideias da função exponencial em-uso a partir de problemas imprevisíveis [construir modelos matemáticos para alçar voo com o jato], há espaço à experimentação, troca de ideias e depurações, como se nota na fala de Caio: “vamos pensar ”. O conhecimento sobre a função exponencial não é simplesmente empilhado como tijolos e, numa direção contrária, ele se remonta em um processo de “[...] aprendizagem em-uso [dos conteúdos curriculares pela produção de jogos] [e] libera os alunos para aprender de uma forma pessoal” ( PAPERT, 2008PAPERT, S. A máquina das Crianças: repensando a escola na era informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. , p. 71). Isso, por sua vez, “[...] libera os professores para oferecer aos seus alunos algo mais autônomo, a partir de problemas [abertos]” ( PAPERT, 2008PAPERT, S. A máquina das Crianças: repensando a escola na era informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. , p. 71), que visam interromper a lógica ternária definição-exemplo-exercícios de Matemática, dando mais sentido e contexto ao conteúdo de Matemática pela participação ativa (AZEVEDO; MALTEMPI, 2019, 2020).

Entendemos que as ideias em-uso de Matemática ocorrem quando os alunos têm a chance de questionar e investigar resultados, criar ideias e testá-las colaborativamente ao desenvolverem suas invenções eletrônicas, como observamos nas transcrições de Camila, Caio e Guímel: “a base e não pode ser negativa? Por quê? [Questionamento]” ; “[análise] três casos [...](i)e>1e1 ; (ii)0<e<1 ; (iii)e<0 ; “[hipótese ] se a base e > 1 ”, então...” ; “investigamos os parâmetros a e b [investigação], [...] quebramos a cabeça para obterJ(x)=aekx+b[depuração]” etc. Nessas observações, identificamos características específicas do saber e fazer matematicamente ao contexto de formação em matemática, entre as quais se destacam: questionar e analisar estratégias, conceitos e ideias, construir hipóteses e, quando necessário, saber refutá-las mediante as depurações realizadas dos resultados. Assim, ao trabalhar com problemas em-uso, descentralizando o foco de exercícios matemáticos fechados e colocando em suspensão a mera repetição da programação (sem contexto), os alunos podem ter a chance de pensar e argumentar sobre o problema em questão e, por conseguinte, desenvolver múltiplos caminhos não antevistos para solucioná-lo.

Compreendemos que tais características se confluem com ideias do PC por meio do “[...] processo de pensamento, que envolve a formulação de problemas e suas soluções para que elas sejam representadas de forma que possam ser efetivamente realizadas e aplicadas em situações reais [aqui, destinadas ao Parkinson]” ( WING, 2010WING, J. M. Computational Thinking: What and Why? 2010. Disponível em: http://www.cs.cmu.edu/~CompThink/resources/TheLinkWing.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
http://www.cs.cmu.edu/~CompThink/resourc...
, p. 1, tradução nossa). Ao analisar os recortes subsequentes, Caio afirma “[...] criamos e apagamos o código várias vezes... [Por fim] definimos a = 20 e b= 0 k = 0,01 [sucessão de pensamentos]”; já Guímel concorda que “valores a, b 𝑒 k [descrevem] a melhor trajetória do jato” ; enquanto Vitor, “vamos projetá-los... [negação] não gera curva exponencialf(x)=aekxf(0)=aek0=f(0)=ae0=a1=1a=a de forma que compreendemos que a formulação e projeção de problemas, bem como as suas respectivas argumentações, buscam conferir aos alunos oportunidades para lidar com o erro, desenhar estratégias e gerar soluções a partir do manejo de ideias e cálculos matemáticos.

Embora tenham obtido a melhor trajetória que descrevesse/desenhasse o percurso do jato, os alunos precisaram promover ideias, pensamentos e reflexões, os quais se associam ao domínio do PC, haja vista que “a análise do pensamento (pensar sobre o pensar) e de como ele difere dos outros, bem como a prática na análise de problemas podem resultar num novo grau de sofisticação intelectual, que sirva a um determinado problema” ( PAPERT, 1980PAPERT, S. Mindstorms: Children, Computers and Powerful Ideas. New York: Basic Books Inc., 1980. , p. 45). O pensar com invenções eletrônicas e o pensar sobre o próprio pensar contribuem para que o aprendiz se torne um epistemólogo; e que possa ter uma forma alternativa e distinta de pensar ( PAPERT, 2008PAPERT, S. A máquina das Crianças: repensando a escola na era informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. ; RESNICK, 2018; BARBA, 2016BARBA, L. Computacional Thinking: I do not think it means what you think it means. 2016. Disponível em: http://lorenabarba.com/blog/computational-thinking-i-do-not-think-it-means-what-you-think-it-means/. Acesso em: 10 dez. 2019.
http://lorenabarba.com/blog/computationa...
; WING; 2019), abrindo janelas à compreensão, criação e interação de modelos em processos sucessivos lógicos do próprio pensamento. Destarte, para pensar sobre o pensar não basta simplesmente pensar isolado e arbitrariamente sobre um determinado fenômeno, como se as questões fossem desconexas e as estratégias sem propósitos. Para pensar sobre o pensar é necessário que o aluno compreenda o processo e “embarque em numa exploração sobre a forma como ele próprio pensa, [aprimorando ideias e obtendo resultados à luz de suas depurações]” ( PAPERT, 1988PAPERT, S. Logo: Computadores e Educação. São Paulo: Brasiliense, 1988. , p. 35).

À luz da Matemática Crítica (POWELL, 2012; FRANKENSTEIN, 1983FRANKENSTEIN, M. Critical mathematics education: An application of Paulo Freire’s epistemology. Journal of Education, New York, v. 164, p. 315–339, 1983. , 2012FRANKENSTEIN, M. Beyond math content and process: Proposals for underlying aspects of social justice education. In: Wager, A. A.; Stinson, D. W. (ed.). Teaching mathematics for social justice: Conversations with mathematics educators. USA: NCTM, 2012. p. 49-62. ), o contexto também aponta para o enfraquecimento de dependência formativa e para a valorização social do que se produz em sala de aula. Os alunos não ficam subordinados à competência intelectual do professor. O professor, que se posiciona como mediador de aprendizagem, também se vê como aprendiz ao avançar com seu aluno, conforme excerto: [Professor] “Não havia pensado [nisso]”. Neste sentido, a concepção não é a de centrar tudo no professor, mas, de acordo com Resnick (2017)RESNICK, M. Lifelong Kindergarten: cultivating Creativity through projects, passion, peers and play. Cambridge: MIT Press, 2017. , é promover caminhos para que os alunos se tornem mais criativos e autônomos, ao longo de seu processo formativo, ajudando-os na “maneira como compartilham e colaboram [uns com outros], [e] fornecendo-lhes as melhores ferramentas, suportes e oportunidades para isso” ( RESNICK, 2017RESNICK, M. Lifelong Kindergarten: cultivating Creativity through projects, passion, peers and play. Cambridge: MIT Press, 2017. , p. 99, tradução nossa). Ao tomarmos a consciência sobre abordagens que promovam a parceria professor-aluno aliada ao currículo de Matemática, vislumbramos concepções da formação matemática como um recurso diante da burocracia educacional contraproducente ( FRANKENSTEIN, 2012FRANKENSTEIN, M. Beyond math content and process: Proposals for underlying aspects of social justice education. In: Wager, A. A.; Stinson, D. W. (ed.). Teaching mathematics for social justice: Conversations with mathematics educators. USA: NCTM, 2012. p. 49-62. ; D'AMBROSIO; D'AMBROSIO, 2013; POWELL, 2012), as quais podem visualizadas nas ilustrações e fragmentos a seguir.

De acordo com as Figuras 4 e 5 e fragmentos correspondentes, notamos que a lógica formativa em Matemática se inverte ao longo do processo de aprendizagem. Ao perscrutar os recortes, Caio afirma que “[criamos] função jatoJ(x)=aekx+b[sendoe>0ee1] ” e o Professor, “podemos formalizar algumas ideias [a partir dela]” , entendemos que, em vez de se limitar a formalização excessiva de termos matemáticos, o contexto valoriza a investigação-compreensão e, por extensão, a formalização de conceitos por meio de questões norteadoras. Tais inversões se fundam no sentido de oportunizar mais “criticidade relativa a percepções, pensamentos e decisões do aluno” (D'AMBROSIO; LOPES, 2015, p. 7), não se restringindo a abordagem metodológica e avaliativa da pedagogia do treinamento.

Figura 4
: Leiaute do Jogo Paraquedas e algoritmo do jato

Figura 5
: Desenvolvimento do dispositivo robótico guarda-chuva e sensores elétricos

Considera-se o trabalho de investigação realizado pelos alunos à compreensão. A formalização de conceitos matemáticos constitui-se como campo dinâmico de troca e expertises democráticas, refletindo impossibilidades às estruturas pedagógicas uniformes, as quais submetem obrigatoriamente a definição de objetos matemáticos como ponto de partida à aprendizagem, como se os alunos carecessem estar sempre encapsulados a um conjunto de códigos ou regras excessivas para avançar em um determinado assunto. A respeito disso, reconhecemos que esse cenário de invenção requer, no mínimo, um trabalho “mais adaptável, [dinâmico] e flexível, no qual os professores usam sua autoridade para estabelecer acordos que não sejam autoritários e abandonam o papel de disciplinadores, criando, assim, um espaço produtivo, [dialógico, criativo] e democrático” ( BLIKSTEIN, 2008BLIKSTEIN P. Travels in Troy with Freire: Technology as an agent for emancipation. In: Noguera P.; Torres C. A. (eds.) Social justice education for teachers: Paulo Freire and the possible dream. Rotterdam: Sense, 2008, p. 205–244. , p. 854, tradução nossa).

Em consonância com a Matemática Crítica, a democratização de ideias e a valorização de expertises do aluno e da mediação do professor tecem oportunidades para que ambos tenham qualidade formativa, cognitivamente exigente e permeada por experiências enriquecedoras ( FRANKENSTEIN, 1983FRANKENSTEIN, M. Critical mathematics education: An application of Paulo Freire’s epistemology. Journal of Education, New York, v. 164, p. 315–339, 1983. ). Ao desenhar possibilidades de invenções, como diz Stella no trecho “rascunhamos algumas ideias” , os alunos atribuem sentidos às coisas e, por inferência, contribuem com novos olhares às invenções para Parkinson junto à equipe do projeto. Tal forma de propor invenção ou diferentes maneiras de pensar ao grupo se configura como processo de “ Empowerment3 3 Pode ser traduzido para “empoderamento”. (POWELL, 2012), no qual o sentimento de confiança do aluno, que lhe é próprio, se faz presente ao longo da sua atuação, responsável e independente. Entendemos também que não basta identificar a raiz de um problema, é preciso compreendê-lo e desenhar estratégias para resolvê-lo no contexto de formação, atuando emancipadamente na sociedade [de modo] a transformar uma situação ( FRANKENSTEIN, 1983FRANKENSTEIN, M. Critical mathematics education: An application of Paulo Freire’s epistemology. Journal of Education, New York, v. 164, p. 315–339, 1983. , 2012FRANKENSTEIN, M. Beyond math content and process: Proposals for underlying aspects of social justice education. In: Wager, A. A.; Stinson, D. W. (ed.). Teaching mathematics for social justice: Conversations with mathematics educators. USA: NCTM, 2012. p. 49-62. ). A visão emancipatória do processo formativo em Matemática “deve fazer com que as pessoas se sintam agentes de ação e mudança no mundo” ( BLIKSTEIN, 2008BLIKSTEIN P. Travels in Troy with Freire: Technology as an agent for emancipation. In: Noguera P.; Torres C. A. (eds.) Social justice education for teachers: Paulo Freire and the possible dream. Rotterdam: Sense, 2008, p. 205–244. , p. 853), permitindo o aluno a pensar e a descobrir possibilidades de autonomia, atuação e intervenção.

Ao desenvolver códigos de programação, integrados aos demais componentes do jogo, placas e sensores, os alunos se postam contra a passividade e assumem a posição de inventores, buscando construir soluções específicas ao tratamento de sintomas da doença de Parkinson, como se identifica nas discussões de Stella e Vitor, respectivamente: “[...] os pacientes precisarão concentrar e mover os braços [e] [...] a partir de movimentos sincronizados e estratégicos [e] sensor de captura de movimentos” [invenção] ; “Para os pacientes que não puderem ficar em pé, podemos criar um sistema elétrico de captação pelos pés...” . Para além do encadeamento da lógica e a concatenação de ideias ( DENNING, 2017DENNING, P. J. Remaining Trouble Spots with Computational Thinking. Communications of the ACM, New York, v. 60, n. 6, p. 33-39, 2017. Disponível em: http://denninginstitute.com/pjd/PUBS/CACMcols/cacm-trouble-ct.pdf. Acesso em: 13 fev. 2018.
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; WING, 2010WING, J. M. Computational Thinking: What and Why? 2010. Disponível em: http://www.cs.cmu.edu/~CompThink/resources/TheLinkWing.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
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), os alunos intervêm engajadamente em sociedade a partir de suas invenções de modo a contribuir com as sessões de fisioterapia do tratamento de sintomas Parkinson, auxiliando os profissionais da saúde4 4 Cf. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gMLNvsLB2ts , no Hospital do Idoso, como se destaca, a seguir, na Figura 6 .

Figura 6
: – Sessões de fisioterapia: Invenções científico-tecnológicas ao Parkinson

De acordo com a Figura 6 , o jogo Paraquedas e o dispositivo guarda-chuva-robótico, que integram as demais invenções da pesquisa, têm servido como base para estimular habilidades motoras, cognitivas e aspectos atitudinais dos acometidos. Conforme área especialista do projeto, as intervenções fisioterápicas devem ser acompanhadas e trabalhadas a longo prazo. Os eletrônicos específicos desenvolvidos, como o do paraquedas robótico, buscam estimular momentos de marcha, coluna, braços, mãos, pescoço e pernas dos pacientes. Tais estímulos, conforme Morris (2006)MORRIS, M. E. Locomotor Training in People with Parkinson Disease. Journal of the American Physical Therapy Association, 2006. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17012646/. Acesso em: 17 fev. 2021.
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e Nieuwboer et al . (2007), buscam estabelecer a prevenção a atrofia muscular ou interromper a inabilidade de movimentos.

Por um lado, à luz da literatura específica ao Parkinson, os movimentos estratégicos mobilizados pelos jogos e dispositivos, além dos aspectos sócio-motivacionais, podem provocar um aumento de liberação da dopamina, haja vista que eles se originam pelo processo das características ambientais, o que pode resultar no encorajamento do paciente a participar das sessões e deixando-o mais motivado frente ao seu tratamento (GALNA et al., 2014). Por outro lado, de acordo com os dados, concebemos que o trabalho voltado para o tratamento de Parkinson valoriza novos caminhos para se pensar a formação de jovens que sejam socialmente engajados com o conhecimento científico de matemática. Uma formação que visa formar sujeitos capazes de propor contribuições ao mundo em vez de repetir fórmulas sem finalidade. Assim sendo, inferimos que este contexto de formação se torna fundante quando consideram também as aspirações, expectativas, os sentimentos e motivações dos alunos em sala de aula e para além dela ( FRANKENSTEIN, 2012FRANKENSTEIN, M. Beyond math content and process: Proposals for underlying aspects of social justice education. In: Wager, A. A.; Stinson, D. W. (ed.). Teaching mathematics for social justice: Conversations with mathematics educators. USA: NCTM, 2012. p. 49-62. ).

Neste sentido, concordamos com Frankenstein (1983FRANKENSTEIN, M. Critical mathematics education: An application of Paulo Freire’s epistemology. Journal of Education, New York, v. 164, p. 315–339, 1983. ; 2012) quando ela reforça a necessidade de respeitar e valorizar o conhecimento dos estudantes sem deixar de lado a realidade que os circunscreve. E por essa razão, finalizamos esta seção de análise com os depoimentos dos alunos5 5 Cf. Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLit9Jc-HtK_d9A2-y0WoHXxO65djdM1Kc , de um profissional da saúde e um paciente, que participaram dos encontros no Hospital, utilizando o Paraquedas Robótico e demais invenções. Tais recortes buscam trazer mais contexto aos movimentos das sessões fisioterápicas: [Carol] “ Paraquedas-Robótico foi um desafio grande [...] Construímos e aplicamos o conhecimento matemático e computacional, que aprendemos dentro da sala de aula para a sua construção [Paraquedas]. E esse jogo e esse dispositivo robótico são úteis e ajudam os pacientes” ; e [João G.] “ Esses idosos e profissionais acreditam muito no nosso trabalho e no nosso engajamento científico (...) é uma experiência à vida ”; [Gabriela] “ Ver a reação dos idosos, quando jogam e se sentem bem, é algo maravilhoso ”; (Saúde) [Raquel] “ De uma forma série, os pacientes estão sendo beneficiados. Ajuda nos movimentos, equilíbrio, postura e no retardamento ”; e (paciente) [Dona Vicentina] “ É bom fazer todas as atividades com esses profissionais e jovens [alunos]. [Por exemplo] o eletrônico ajuda nos movimentos sincronizados... ”. Conforme depoimentos específicos, a Intervenção dos participantes da pesquisa no Hospital diz respeito não apenas o conteúdo curricular– mas, especialmente, protagoniza questões essenciais ao respeito à vida – na qual a competência humana é colocada como um ingrediente indispensável no contexto de formação em matemática dos estudantes.

Conforme os dados da pesquisa, compreendemos que o campo da solidariedade e comprometimento com o bem-estar do idoso e de si mesmo é um mecanismo para se promover contextos formativos globalmente responsáveis. O uso destes eletrônicos (Paraquedas e Paraquedas Robóticos) não visou apenas aprender conteúdos de matemática (e.g.: funções exponenciais, trigonométricas; equações; etc.), mas usá-los ativamente para estabelecer relações na sociedade de modo a intervir positivo e cientificamente nela. Tais conhecimentos matemáticos mobilizados tiveram uma finalidade prática (com propósito) e socialmente útil para o bem-comum das pessoas. Os alunos passam a vê-lo “não como um corpo estático, neutro e determinado de regras mecanizadas; em vez disso, eles veem um conhecimento construído por seres humanos, que pode servir como veículo para erradicar o modelo alienante [do conteúdo em si mesmo]” (POWELL, 2012, p. 26, tradução nossa).

6 Discussão de resultados e Conclusão

Retomando o objetivo do estudo, tendo como base os dados perscrutados da pesquisa, identificamos que algumas características emergem no e pelo contexto formativo em Matemática de estudantes quando criam invenções científico-tecnológicas, destinadas ao tratamento de sintomas da doença de Parkinson, como destacadas no Infograma 1 , a seguir:

Infograma 1
– Características do Contexto Formativo em Matemática de estudantes quando criam invenções científico-tecnológicas ao tratamento de Parkinson

Constatamos que, a partir dos dados apresentados nas seções anteriores, à medida que os alunos desenvolvem invenções e soluções científico-tecnológicas, algumas características se remontam em perspectivas potenciais de fortalecimento ao contexto de formação em Matemática, tais como independência formativa, imprevisibilidade de respostas cabais, aprendizagem centrada à compreensão-investigação, conexão entre distintas áreas (interdisciplinaridade), responsabilidade e colaboração mútua. O contexto direciona para o trabalho consonante às questões abertas, que buscam incentivar o aluno a: trabalhar com problemas inéditos e autorais; lidar com o imprevisível; depurar estratégias para solucionar problemas; e desenvolver a lógica da programação e Matemática. O contexto suspende a mera repetição de conceitos preconizados pelo treino sucessivo de exercícios do tipo: faça isso 10 vezes e depois repita isso mais 4 vezes até decorar todas as regras.

Compreendemos, à luz dos dados interpretados, que o contexto formativo, o qual intercambia Matemática e computação, não se centra no algoritmo ou na invenção tecnológica. Até porque a essência do trabalho não é sobre o ambiente de programação que se utiliza ou que se faz uso, tampouco o programa ou materiais personalizados que se têm, mas é o que realmente se faz com isso de modo a impactar positivamente realidades, como beneficiar a vida de dezenas de portadores da doença de Parkinson. Por não haver neutralidades nessas construções ao Parkinson, observamos que o processo formativo em Matemática não se limita a fala do professor, cuja formalização de conceitos matemáticos se estrutura por campos de diálogos e questionamentos entre estudantes. A formalização conceitual é vista como consequência da compreensão , e não como pré-requisito (compulsório) para que o aluno progrida em seu conhecimento matemático.

Não há uma estrutura homogênea da definição à compreensão dos conceitos matemáticos durante a produção dos eletrônicos. A lógica é justamente inversa: mobilizam-se inicialmente as ideias intuitivas matemáticas, atribuindo significados, descartando falsas teorias e ressignificando interpretações, para defini-las, tendo o professor-pesquisador como mediador. Embora não seja uma ordem absolutista, a inversão tende a refletir diretamente na forma como se constrói o conhecimento matemático em sala, uma vez que os alunos têm a oportunidade de problematizar, errar, investigar e formalizar o conceito matemático, em vez de recebê-lo mastigado verticalmente pelo próprio sistema educacional.

O contexto formativo desconhece uma rota previsível de acertos e erros, haja vista que não há protótipos robóticos cabais, nem códigos de programação ou circuitos elétricos a serem prontamente consumidos na escola e aplicados nas sessões fisioterapêuticas do hospital. Em contraste a esse consumismo e tencionados por caminhos promissores à formação matemática e pela descentralização de percursos instrutivos, o contexto formativo é marcado pela incerteza de soluções eletrônicas em que os alunos se reconhecem como inventores e tratam de problemas reais que não se limitam a unicidade de objetivo. Em razão desse reconhecimento, e ao focar na capacidade de gerar ideias com Matemática e computação, o contexto preconiza o imprevisível-intencional , com o qual nutri e apoia a criatividade e autonomia dos estudantes. Assim, reconhecemos que, ao desenvolver tecnologias e ideias com a Matemática, o aluno pode se perceber como agente ativo de trans(formação) em sociedade.

Outra característica marcante é o fundo formativo que passa pela mobilização de conhecimento acadêmico, criatividade e autonomia. Isso porque, ao dosar e encontrar equilíbrio entre o que se produz e se aplica, o aluno embarca em uma exploração própria de sentidos e originalidade em inventar com a Matemática. Neste sentido, inferimos que o contexto não desconsidera os rankings estandardizados, porém, não se limita a eles. Os alunos trabalham com o conteúdo curricular preconizado pelos documentos oficiais e testes nacionais e internacionais ( BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em 10 nov. 2020.
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; OCDE, 2019) ao serem apoiados e estimulados a trabalhar com conteúdos matemáticos e computacionais ao longo do processo de invenção. Tendo como um dos elementos essenciais ao contexto formativo, no sentido de alçar intensos e maiores voos, os alunos trabalham com o senso de responsabilidade quando assumem a posição de inventores eletrônicos e se empenham para trazer qualidade de vida aos pacientes.

Outro resultado obtido, e sem a ambição de esgotar o tema, é que se torna fecundo a construção de contextos formativos em Matemática que se insubordinem ao currículo excessivo e desatualizado, de modo a caminhar na contramão da mera repetição de conceitos que não se mostra em sentido para os aprendizes ou que não favoreça efetivamente o exercício da emancipação do estudante (D'AMBROSIO; LOPES, 2015). Assim, reconhecemos que, ao fazer ciência e desenvolver tecnologias, o aluno pode se perceber como agente de trans(formação) em sociedade. Por isso, nutrimos possibilidades para que este trabalho/pesquisa possa despertar novos interesses a professores e pesquisadores em Matemática e Educação Matemática de modo a contribuir com temas não só relacionados ao processo formativo em Matemática do aluno do ensino básico ou da formação inicial/continuada do professor, mas também inspirar a tantos profissionais a desenvolverem contextos formativos cada vez mais atuais, científico-tecnológicos, responsáveis e solidários.

Agradecimentos

Nosso reconhecimento a toda equipe de profissionais do Projeto Mattics. Em especial, aos excelsos alunos do Ensino Médio do IF-Goiano, Ipameri - GO, edição 2018/19, pela dedicação e engajamento contínuo. E também aos incríveis profissionais da computação, engenharia e saúde, que sonham de perto com as invenções científico-tecnológicas. Aos pacientes do Hospital Dia do Idoso, Anápolis - GO, vocês são amáveis e inspiradores.

Referências

  • AZEVEDO, G. A; MALTEMPI, M. V. Invenções robóticas para o Tratamento de Parkinson: pensamento computacional e formação matemática. Bolema [online]. 2021, vol. 35, n. 69, pp.63-88. abril, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-4415v35n69a04
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  • Apoiado pela FAPESP (Processo 2018/14053-2) e CNPq (Processo 308563/2019-0).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2021
  • Aceito
    26 Out 2021
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