RESUMO
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A buprenorfina é um opioide agonista parcial semissintético utilizado como opção no tratamento de pacientes com dor de moderada a intensa. A única apresentação disponível da buprenorfina no Brasil é para uso por via transdérmica. Esta é uma via importante de administração de fármacos, principalmente para o tratamento de dor crônica, já que apresenta diversas vantagens, no entanto não é isenta de complicações. O objetivo deste estudo foi apresentar uma reação cutânea adversa grave após o uso de buprenorfina transdérmica, com necessidade de intervenção cirúrgica.
RELATO DO CASO: Paciente do sexo feminino, 63 anos, hipertensa e diabética, com diagnósticos de artrite reumatoide, síndrome fibromiálgica e hérnia de disco lombar, portadora de dor crônica intensa, com orientação de utilizar buprenorfina transdérmica 10 mg para auxiliar o controle álgico. Após 24 h de uso, a paciente evoluiu com eritema e prurido local, sendo indicada a remoção do adesivo, porém a lesão piorou progressivamente com formação de abscesso e necessidade de drenagem cirúrgica.
CONCLUSÃO: A buprenorfina transdérmica apresenta um perfil favorável de segurança e tolerabilidade, pois reduz o risco de efeitos indesejados, como depressão respiratória, constipação e ideação suicida. No entanto, seu uso em pacientes idosos portadores de comorbidades, como a imunossupressão descrita no caso, exige maior vigilância, devido à possibilidade de desenvolvimento de reações adversas mais graves.
DESTAQUES
A buprenorfina é um fármaco opioide semissintético, agonista parcial do receptor μ e antagonista nos receptores δ e κ, indicado para o tratamento de dor de moderada a intensa.
A buprenorfina disponível no Brasil é de uso transdérmico, apresentação associada à diminuição da agressão ao sistema gastrointestinal, ao contorno do metabolismo de primeira passagem hepático e a maior adesão ao tratamento por parte do paciente.
A buprenorfina transdérmica pode estar associada a presença de prurido, eritema e erupção cutânea, as quais, em pacientes imunocomprometidos, podem evoluir para a formação de abscesso, com necessidade de desbridamento e drenagem cirúrgica.
ABSTRACT
BACKGROUND AND OBJECTIVES: Buprenorphine is a partial agonist semi-synthetic opioid used as an option in the treatment of patients with moderate to severe pain. The only presentation of buprenorphine available in Brazil is for transdermal use. This is an important route of drug administration, especially for the treatment of chronic pain, as it has several advantages, however it is not free from complications. The objective of this study was to present a serious adverse skin reaction after the use of transdermal buprenorphine, requiring surgical intervention.
CASE REPORT: Female patient, 63 years old, hypertensive and diabetic, diagnosed with rheumatoid arthritis, fibromyalgia syndrome and lumbar disc herniation, with severe chronic pain, advised to use transdermal buprenorphine 10 mg to help control algic. After 24 hours of use, the patient developed erythema and local itching, requiring removal of the adhesive, but the lesion progressively worsened with the formation of an abscess and the need for surgical drainage.
CONCLUSION: Transdermal buprenorphine has a favorable safety and tolerability profile, as it reduces the risk of unwanted effects such as respiratory depression, constipation and suicidal ideation. However, its use in senior patients with comorbidities, such as the immunosuppression described in this case, requires greater vigilance, due to the possibility of developing more serious adverse reactions.
Keywords
Abscess; Buprenorphine; Pain
HIGHLIGHTS
Buprenorphine is a semi-synthetic opioid drug, partial agonist of the μ receptor and antagonist of the δ and κ receptors, indicated for the treatment of moderate to severe pain.
The buprenorphine available in Brazil is transdermal, a drug presentation associated with reduced aggression to the gastrointestinal system, which bypasses hepatic first-pass metabolism, and greater patient adherence to treatment.
Transdermal buprenorphine can be associated with pruritus, erythema and rash, which, in immunocompromised patients, can result in the appearance of abscess, requiring debridement and surgical drainage.
INTRODUÇÃO
A buprenorfina é um fármaco opioide agonista parcial, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para uso por via transdérmica no tratamento de pacientes com dor de moderada a intensa. Trata-se de um opioide semissintético, agonista parcial do receptor μ e antagonista nos receptores δ e κ1.
A buprenorfina transdérmica tem como características o início de ação lento e a duração prolongada, além do bom perfil de uso para pacientes com dor crônica, não devendo ser aplicada no tratamento de dor aguda, seja ela de moderada a intensa2. Sua ação agonista no receptor ORL-1 reduz os efeitos de recompensa e retarda o desenvolvimento de tolerância aos efeitos analgésicos2. No Brasil, a buprenorfina encontra-se disponível apenas para aplicação transdérmica, via definida como aquela que dispõe de um reservatório para entrega de fármacos por um mecanismo de ação local ou sistêmico e uma formulação de dose específica2,3. A sua administração transdérmica tornou-se cada vez mais popular devido às suas vantagens significativas3. Por exemplo, fármacos transdérmicos contornam o metabolismo de primeira passagem do fígado que afeta os fármacos administrados por via oral, protegendo-o de lesões3. Além disso, os fármacos transdérmicos diminuem o risco de agressão ao sistema gastrointestinal, observado na administração de fármacos por via oral, aumentam a probabilidade de uso consistente do paciente e permitem a sua administração de maneira contínua e com intervalos estáveis3.
A buprenorfina transdérmica, apesar de apresentar uma farmacodinâmica e farmacocinética próprias, não é isenta de efeitos adversos. Segundo o fabricante da marca Butrans e dos patches genéricos de buprenorfina transdérmica comercializados nos Estados Unidos da América (EUA), reações graves nos locais de aplicação são raras e caracterizadas por processos inflamatórios que podem levar ao surgimento de queimaduras e vesículas4. O tempo para início do quadro também é variável, podendo levar de dias a meses4. Em um trabalho de análise agrupada realizado em 2013 contendo 16 estudos sobre dor crônica conduzidos nos EUA, a incidência de reações locais com o Butrans transdérmico foi considerada baixa (23,4%). A maioria das reações locais nessa análise (98,3%) foram consideradas leves e moderadas em gravidade e, inclusive, a taxa de descontinuação do dispositivo transdérmico foi de apenas 4,4%4. Até o momento, não há dados na literatura sobre a prevalência das reações adversas locais na população brasileira.
O objetivo deste estudo foi descrever a reação exacerbada de pele com formação de abscesso após o uso de buprenorfina transdérmica, com necessidade de desbridamento e drenagem cirúrgica.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 63 anos, com diagnósticos de hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus tipo 2, artrite reumatoide, dor crônica secundária à síndrome fibromiálgica e hérnia de disco lombar com conflito radicular nas raízes emergentes de L5 bilateralmente. Foi internada com solicitação de avaliação da equipe da clínica da dor do Hospital Santa Izabel da Santa Casa de Misericórdia da Bahia para controle álgico. Apresentava dor intensa com comprometimento da qualidade de vida. Fazia uso regular de pregabalina 150 mg/dia-1, leflunomida 10 mg/dia-1, metotrexato 12,5 mg 12/12 h e ácido fólico 5 mg (ambos uma vez por semana), prednisona 15 mg/dia-1, dipirona 1 g a cada 8 h.
Durante a anamnese, a paciente relatou que fazia acompanhamento em outro serviço de saúde, o qual indicou o uso de buprenorfina transdérmica 10 mg para auxiliar o controle álgico das comorbidades associadas. No entanto, a paciente apresentou reação cutânea adversa grave com uso do fármaco, mesmo aplicando o adesivo conforme recomendado em bula, sob pele íntegra, com limpeza realizada com água e sabão.
Apesar de a complicação não ter ocorrido em atendimento do presente relato de caso, decidiu-se relatar o caso da paciente devido à grande escassez de quadros semelhantes publicados na literatura e ao uso cada vez mais difundido de fármacos transdérmicos. Algumas informações, tais como coleta de culturas e exames laboratoriais realizados na época da complicação, não puderam ser acessados.
A paciente referiu ter iniciado uso do adesivo aplicando-o na região de dorso sobre pele íntegra. Após 24 horas, iniciou-se um quadro de prurido e eritema local, sendo em seguida indicada a retirada do adesivo. A paciente permaneceu com prurido local e piora do eritema, evoluindo com formação de pústulas cerca de 24-48 horas após a retirada do adesivo. O quadro progrediu e 4 dias após a retirada do adesivo de buprenorfina a paciente referia dor importante em região dorsal, piora do eritema, sensação de calor e a presença de nodulação de tamanho importante no local. Negava febre durante todo o período. Procurou o serviço de emergência, no qual foi diagnosticada com abscesso cutâneo e foi internada. Foi iniciada antibioticoterapia e a paciente foi submetida à drenagem cirúrgica de abscesso volumoso no sexto dia (Figuras 1, 2, 3 e 4).
No pós-operatório, a paciente fez uso de curativo a vácuo, uma vez que apresentava incisão cirúrgica extensa. Posteriormente, ela evoluiu com boa cicatrização.
DISCUSSÃO
No caso clínico relatado, a paciente tinha 63 anos, com comorbidades, implicando a necessidade de utilização de imunossupressores. A paciente apresentou uma reação do tipo dermatite de contato após a utilização de patch de buprenorfina. Posteriormente, evoluiu com infecção local secundária, complicada pela formação de abscesso, com necessidade de desbridamento e drenagem cirúrgica.
O tratamento da dor é um grande desafio, principalmente quando ela se cronifica e ocorre em pacientes idosos portadores de comorbidades, como a do caso em questão, os quais apresentam o risco potencializado do desenvolvimento de reações adversas e a gravidade dos efeitos adversos. É necessária a busca de novas estratégias de tratamento e de fármacos que possibilitem o manejo da dor com opções terapêuticas potencialmente mais seguras, mas igualmente eficazes. Nesse contexto, surge a possibilidade de utilização da buprenorfina transdérmica, um fármaco que, por ser agonista parcial no receptor opioide μ e antagonista nos receptores opioides δ e κ, pode contribuir para seu perfil favorável de segurança e tolerabilidade, diminuindo os riscos de efeitos adversos, tais como depressão respiratória, constipação e tendências suicidas3,5.
A atividade agonista no receptor ORL-1 também pode contribuir para a eficácia analgésica da buprenorfina, pois demonstrou promover analgesia no corno dorsal da medula espinhal5. Sabe-se que a buprenorfina administrada por via oral tem apenas 10% de biodisponibilidade, embora avanços recentes na administração de fármacos contornem esse problema5. A formulação sublingual fornece aproximadamente 28-51% de biodisponibilidade, a formulação transdérmica, 15%, e o filme bucal, 46-65%5. Entre essas, a única apresentação disponível no Brasil é a transdérmica.
O sistema transdérmico de buprenorfina é uma formulação indicada para o tratamento da dor moderada ou intensa que justifique a utilização de tratamento com opioides diários, 24 h por dia e de longo prazo e para os quais as opções alternativas de tratamento são inadequadas, como o caso citado2,3,6. Entretanto, o que a literatura demonstra é que a buprenorfina transdérmica agrega algumas particularidades, inclusive o potencial de desenvolvimento de efeitos adversos outros, os quais vão além do efeito do fármaco propriamente dito6. A via transdérmica promove menor flexibilidade no que diz respeito à dose do fármaco a ser administrado e está associada a maior tempo de entrega e sua eliminação. Além disso, há o risco de desenvolvimento de alergias, irritações e lesões de pele, muitas vezes graves, como descrito pelo estudo6, após o uso de fentanil transdérmico.
Em revisão da literatura5 descobriu-se que os sintomas no local de aplicação, como prurido, eritema e erupção cutânea estão entre os efeitos adversos mais comuns associados ao uso de buprenorfina transdérmica. Uma relação dose-resposta entre a potência do patch de buprenorfina e o surgimento de reações adversas locais já havia sido descrita previamente em outros estudos. Em uma análise de 5 trabalhos placebo-controlados, em que foram avaliadas 3 doses Figura 4. Lesão cutânea 7 dias após a retirada do adesivo diferentes do adesivo de buprenorfina transdérmica, o adesivo de 20 μg.h-1 apresentou maior incidência de reações adversas locais (17,8%), seguido pelo adesivo de 10 μg.h-1 (16,5%). A incidência de reações locais adversas no grupo placebo foi de 12,7% e maior do que a incidência no grupo que utilizou o adesivo de 5 μg.h-1 (8,25%)7.
Para a buprenorfina transdérmica e outros produtos que também atuam por via transdérmica, o tamanho do adesivo aumenta à medida que aumenta a sua potência e, consequentemente, há uma maior área de contato com a pele7. O tamanho do adesivo já foi identificado como fator de risco para o desenvolvimento de dermatites de contato em fármacos transdérmicos7.
Outros fatores de risco incluem o tipo de adesivo (os do tipo “matrix” são mais bem tolerados do que os do tipo reservatório), duração do tratamento e local de aplicação4. Algumas áreas da pele apresentam maior suscetibilidade ao desenvolvimento de dermatites4. Dermatites de contato decorrentes de sistemas de entrega de fármacos transdérmicos geralmente ocorrem devido ao resultado de irritação da pele pelo próprio fármaco ou outros componentes do patch ou podem estar relacionados inclusive ao efeito oclusivo causado pelo adesivo4. Reações locais adversas com o desenvolvimento de dermatite de contato podem ocorrer de forma aguda após uma única exposição ou após exposições repetidas e um possível dano do estrato córneo da pele4.
Alergias e irritações de pele associadas ao uso de buprenorfina transdérmica geralmente são autolimitadas e impactam pouco na evolução e na qualidade de vida do paciente, além de serem facilmente revertidas após a retirada do dispositivo4,7. Não há relato na literatura de pacientes que tenham evoluído com infecção local secundária, complicada pela formação de abscesso, com necessidade de desbridamento e drenagem cirúrgica. A evolução observada pode ser justificada pelo fato de a paciente em questão ser portadora de imunossupressão em função das comorbidades associadas8. Nesses casos, as manifestações dermatológicas observadas com mais frequência são as piodermites, como celulite, erisipela e furúnculos, embora abscessos também sejam descritos8. Estes, quando extensos, devem ser tratados com antibioticoterapia e drenagem cirúrgica8. Após a realização do tratamento adequado, a paciente evoluiu de forma favorável, com total resolução do quadro clínico.
CONCLUSÃO
A buprenorfina transdérmica, por apresentar uma farmacodinâmica e farmacocinética próprias, é considerada um opioide apropriado para o tratamento da dor crônica, entretanto a sua utilização não é isenta de efeitos adversos e da possibilidade de desenvolvimento de complicações, as quais devem ser tratadas de forma adequada. Embora alergias e irritações de pele sejam os efeitos adversos mais comuns após o uso de fármacos transdérmicos, nos pacientes imunocomprometidos elas podem evoluir de forma desfavorável, inclusive com a formação de abscesso, com necessidade de desbridamento e drenagem cirúrgica.
-
Fontes de fomento: não há.
Referências bibliográficas
- 1 Kress HG. Clinical update on the pharmacology, efficacy and safety of transdermal buprenorphine. Eur J Pain. 2009;13(3):219-30.
- 2 Butler S. Buprenorphine-clinically useful but often misunderstood. Scan J Pain. 2013;4(3):148-52.
- 3 Khan S, Sharman T. Transdermal medications. StatPearls. 2022.
- 4 Meyer-Junco L, Rea B, Mendoza K, Fudin J. Application site reactions from the buprenorphine transdermal patch: a case series. J Pain Palliat Care Pharmacother. 2022;36(1):49-54.
- 5 Pergolizzi JV Jr, Raffa RB. Safety and efficacy of the unique opioid buprenorphine for the treatment of chronic pain. J Pain Res. 2019;12:3299-317.
- 6 Rojas-Pérez-Ezquerra P, Micozzi S, Torrado-Español I, Rodríguez-Fernández A, Albéndiz-Gutiérrez V, Noguerado-Mellado B. Allergic contact dermatitis to fentanyl TTS with good tolerance to systemic fentanyl. Recent Pat Inflamm Allergy Drug Discov. 2019;13(1):66-8.
- 7 Wen W, Lynch SY, Munera C, Swanton R, Ripa SR, Maibach H. Application site adverse events associated with the buprenorphine transdermal system: a pooled analysis. Expert Opin Drug Saf. 2013;12(3):309-19.
- 8 Rebellato PRO, Mendívil PCG, Melo LH, Martins LEAM. Manifestações dermatológicas em pacientes infectados pelo HIV: um estudo de prevalência. J Bras Med. 2015;103(1):31-7.
Editado por
-
Editor associado responsável: Oscar Cesar Pires https://orcid.org/0000-0002-7033-0764
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
29 Nov 2023 -
Aceito
16 Jan 2024